LEGADO
TESTAMENTO
HERANÇA
INTERPRETAÇÃO
VONTADE REAL
CONTEXTO DO DOCUMENTO
ADMISSIBILIDADE
RECURSO DE REVISTA
PODERES DE COGNIÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
FUNDAMENTOS
Sumário


I - A interpretação do testamento, no sentido da descoberta da vontade real do testador, pode constituir: (i) questão de direito, se feita única e exclusivamente com recurso ao texto do testamento, caso em que o STJ pode conhecê-la; (ii) questão de facto se for feita com recurso recurso ao texto do testamento, caso em que o STJ pode conhecê-la; (ii) questão de facto se for feita com recurso a prova complementar, e neste caso é da exclusiva competência das instâncias, mas sem prejuízo de o STJ poder sindicar, nos termos do art. 2187.º, n.º 2, do CC, a correspondência da vontade do testador assim determinada, com o contexto do testamento.
II - A vontade real da testadora de abranger, no legado, não só o saldo da conta à ordem, mas também as aplicações financeiras associadas a essa conta bancária tem correspondência com o contexto do testamento e com o teor das expressões utilizadas na cláusula testamentária em litígio: “todo o dinheiro que possuir na conta bancária com o n.º...36 do Banco Comercial Português, SA”.

Texto Integral

Acordam na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I - Relatório

1. A Autora intentou a presente ação contras os Réus, peticionando:

- Ser a Autora reconhecida e declarada como legítima possuidora e proprietária de todos os dinheiros, valores mobiliários, aplicações financeiras e ações, associados à conta bancária com o n.º .....36 do Banco Comercial Português, S.A.

- Serem os Réus condenados no cumprimento de tal legado.

Alegou para o efeito que, em 16.12.2022, faleceu GG, a qual deixou dois testamentos válidos, sendo que no último, outorgado em 12.12.2016, dispôs de vários legados a favor da Autora.

Alegou ainda que um desses legados foi “todo o dinheiro que possuir na conta bancária com o nº......6 do BCP”, sendo que tal conta tinha um saldo de €15.000,00 à data da participação do óbito e ainda uma carteira de títulos (ações BCP e dois fundos mobiliários), no valor de €137.000,00, pelo que a falecida GG quando fez o testamento quis incluir não só o saldo bancário, mas também as aplicações financeiras associadas a essa conta bancária.

2. Devidamente citados, vieram os Réus, pessoas singulares, contestar, alegando, em síntese, que a falecida GG deixou dois testamentos, sendo que num deles beneficia o Réu DD, tendo aí a falecida tido o cuidado de prever que o saldo, à data daquela conta, incluía o valor dos seus certificados de aforro que possuía até à presente data, e, quando celebrou novo testamento, teve o cuidado expresso de declarar que o testamento de 28.11.2011 a favor do referido sobrinho não era beliscado.

Alegaram, assim, que os valores são autónomos, não pretendendo a falecida incluir na conta à ordem o valor das aplicações financeiras que a Autora reclama, as aplicações financeiras integram sim a herança e não o legado, porquanto à data da disposição não tinham sido sequer constituídas, como confirma a Autora no artigo 76º.

Referem que, caso assim o pretendesse, a falecida GG teria legado à Autora todo o seu património financeiro, não o fez, distinguindo saldo bancário de aplicações financeiras, pelo que ao legar os saldos da conta bancária não quis incluir no legado outras aplicações financeiras.

Pugnam pela improcedência da ação e pela condenação da Autora como litigante de má fé, em multa e indemnização, em valor não inferior a €5.000,00.

3. O Réu Banco Comercial Português, SA, veio apresentar contestação, alegando, em síntese, saber qual o teor literal da cláusula que institui o legado, desconhecendo, porém, a vontade histórica da testadora.

Mais alegou, que a falecida tinha duas contas, com o mesmo número, embora uma fosse de depósito à ordem e outra de depósito de valores mobiliários, por as contas de títulos estarem sempre formalmente associadas a uma conta à ordem, e por isso terem o mesmo número de identificação nos serviços do Banco.

Impugnou os mais factos alegados por desconhecimento.

4. A Autora respondeu, requerendo a condenação da Ré BB. como litigante de má-fé, peticionando a sua condenação em indemnização a arbitrar.

5. Foi realizada a audiência prévia e proferido despacho saneador no qual se fixou o objeto do litígio e os temas da prova.

Foi fixado o objeto de litígio:

Saber se a falecida GG para além do dinheiro existente na conta do BCP nº.....36, quis, igualmente, legar à Autora as ações e aplicações financeiras existentes na referida conta, e, em caso afirmativo, da obrigação dos Réus em reconhecer tal legado.

Foram fixados os seguintes temas de prova:

1º) Do valor do saldo existente na conta do BCP nº.....36, à data do falecimento de GG.

2º) Da vontade da falecida GG em legar todos os valores associados à referida conta, incluindo aplicações financeiras/fundos de investimento, à A, sua afilhada.

3º) Circunstâncias em que ocorreram as transferências bancárias aludidas nos arts. 33º a 35º da petição inicial.

4º) Da data, circunstâncias e condições em que foram constituídas as aplicações financeiras associadas à conta 636.

5º) Da vontade da falecida GG com a expressão “todo o dinheiro que possuir na conta” em legar à Autora apenas o dinheiro e não valores mobiliários a crédito da mesma conta.

6º) Circunstâncias em que ocorreram as transferências bancárias aludidas nos artigos 12º e 20º da contestação do RR pessoas singulares.

7º) Do benefício por parte de GG da quota disponível da herança do pai dos Réus com a promessa de aquela vir a fazer regressar a estes o máximo de valores possível.

6. Após audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, nos seguintes termos:

«Pelo exposto, o Tribunal julga:

1- parcialmente procedente a presente acção e, em consequência:

a) - condena os RR a reconhecerem que a A é proprietária da quantia de €15.206,16, (quinze mil, duzentos e seis euros e dezasseis cêntimos), valor este existente na conta de deposito à ordem nº.....36 do Banco Comercial Português, SA, à data de 16.12.2022;

b) - condena os RR BB, CC, DD, EE e FF, a cumprir o legado de GG, entregando a quantia referida em a) à A AA.

c)- absolve os RR. quanto ao mais peticionado».

7. Inconformada, veio a Autora interpor recurso de apelação desta decisão, no qual solicitou modificação da matéria de facto, tendo o tribunal recorrido, após modificação parcial da factualidade provada e não provada, decidido o seguinte:

«Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar procedente a apelação, revogando-se, parcialmente, a decisão recorrida, e em consequência:

a) - condena os RR a reconhecerem que a A é proprietária de todos os dinheiros, valores mobiliários, aplicações financeiras e acções, associados à conta bancária com o n.º .....36 do Banco Comercial Português, S.A, à data de 16.12.2022;

b) - condena os RR BB, CC, DD, EE e FF, a cumprir o legado de GG, entregando a quantia referida em a) à A AA.

Custas pelos apelados (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil)».

8. BB, e outros, notificados do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no dia 3 de março de 2025, vieram, nos termos do disposto no artigo 671.º, n.º 1, do CPC, interpor recurso de revista, em cuja alegação formularam as seguintes conclusões:

«1.O presente recurso de revista incide sobre o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto que, revogando a sentença de 1.ª instância, deu como provado que era vontade inequívoca da testadora, GG, legar à Autora todos os valores associados à conta bancária n.º .....36, incluindo aplicações financeiras e ações.

2. A questão submetida ao Supremo Tribunal de Justiça é uma questão de direito, nos termos do art.º 674.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil, por se tratar da interpretação do conteúdo de uma cláusula testamentária formal e da respetiva conformidade com o disposto no art.º 2187.º do Código Civil.

3. O testamento em causa dispõe que a testadora legava à Autora “todo o dinheiro” existente na conta bancária identificada, expressão que, no uso jurídico, bancário e corrente, tem um significado claro e delimitado: refere-se ao numerário ou saldo disponível à ordem, não abrangendo aplicações financeiras, ações ou outros produtos titulados em conta de depósito de valores mobiliários.

4. A decisão da 1.ª instância respeitou o critério legal de interpretação das disposições testamentárias, ao reconhecer que a vontade do testador, sendo soberana, deve encontrar expressão, ainda que mínima, na letra do testamento — exigência essa imposta pelo art.º 2187.º, n.º 2 do Código Civil.

5. A Relação, ao dar como provado o facto n.º15 – segundo o qual seria vontade inequívoca da testadora legar também os produtos financeiros — baseou-se exclusivamente em prova testemunhal indireta, sem qualquer apoio no texto da disposição testamentária, violando o regime legal da sucessão testamentária.

6. Tal decisão representa uma reconstrução subjetiva da vontade da testadora que não encontra qualquer eco na cláusula testamentária, configurando um erro de julgamento em matéria de direito, por substituição ilegítima da norma individual pela convicção do julgador.

7. A testadora demonstrou, noutros testamentos, plena consciência da distinção entre saldo em conta e produtos financeiros, tendo identificado expressamente certificados de aforro, depósitos a prazo e a sua origem, sempre que os quis legar.

8. O testamento que beneficia a Autora foi feito posteriormente a esses legados mais tecnicamente redigidos, pelo que se presume que a testadora sabia perfeitamente como incluir aplicações financeiras, caso o desejasse - e não o fez.

9. A alegação da Autora, de que a testadora pretendeu afastar os herdeiros devido a uma chamada telefónica do Réu DD, colide com a cronologia dos factos: tal alegado motivo apenas ocorreu após o testamento em causa, sendo por isso incapaz de o justificar ou ampliar retroativamente.

10. O testamento é um ato jurídico formal e solene, cuja validade e eficácia dependem da forma e da clareza da expressão de vontade. A reconstrução da vontade por via de testemunhos, sem base na letra do testamento, subverte o regime sucessório e compromete a segurança jurídica.

11. Por tudo o exposto, deve a presente revista ser julgada procedente, revogando-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto e restabelecendo-se a sentença proferida em 1.ª instância, por ser a única decisão que respeita a letra, o contexto e o regime jurídico aplicável à sucessão testamentária.

12. A decisão recorrida violou, nomeadamente, os art.º 217.º, 218.º e 2187.º do Código Civil, ao atribuir à cláusula testamentária um conteúdo que não se encontra minimamente expresso na sua letra, bem como os art.º 607.º, n.º 4 e 5, 662.º e 674.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil, ao transformar uma interpretação jurídica da declaração testamentária numa valoração fáctica sem suporte normativo».

9. A Autora apresentou contra-alegações, nas quais, em síntese, sustenta que o recurso de revista é inadmissível, na medida em que os recorrentes invocam erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, questão que não é cognoscível por este Supremo Tribunal (artigo 674.º, n.º 3, do CPC) e, subsidiariamente, defendem, tal como o Acórdão recorrido, por cuja confirmação pugnam, que não existe qualquer falta de correspondência entre o que foi declarado e o que foi dado como provado (artigo 2187.º, n.º2 do Código Civil) e que a falecida GG ao passar o dinheiro de uma conta para outra – a que foi legada para a Recorrida – mostrou a sua vontade inequívoca de enriquecer essa conta e de lhe deixar as aplicações financeiras controvertidas nos autos. Mais afirmam que «na interpretação do testamento não pode deixar de se ter em conta o contexto, à data da sua outorga e no qual se inspirou a vontade do testador, as suas opiniões pessoais, a sua cultura, os seus hábitos e comportamentos(sociais e religiosos),em suma, a sua mentalidade ao tempo do testamento». Por outro lado, na ótica da Recorrida (autora) será «(…) forçoso concluir que estes títulos constituídos por acções do BCP e fundos de investimento, bem como eventuais benfeitorias financeiras, fazem parte integrante do legado, salvaguardando a doutrina presente no art.º 2269.º do Código Civil».

10. Sabido que o objeto do recurso se delimita, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, pelas conclusões, as questões a decidir são as seguintes:

a) Questão prévia da admissibilidade do recurso suscitada pela autora;

b) A interpretação do testamento.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A – Os factos

1. Em 16.12.2022 faleceu, no estado civil de viúva de HH, sem descendentes nem ascendentes, GG, nascida em D.M.1928.

2. A falecida teve a sua última residência habitual na Rua 1 Mamede de Infesta e Senhora da Hora, Matosinhos.

3. A Falecida GG deixou dois testamentos válidos, celebrados no Cartório Notarial de Gondomar, a cargo da Notária II.

4. O primeiro testamento datado de 28.11.2011, lavrado a fls. 47 do respetivo Livro nº1, com o seguinte teor: “Que não tem herdeiros legitimários que lhe possam suceder, e tendo já realizado dois testamentos, o primeiro em 30.12.2009, exarado a fls., oito a nove, e o segundo em 29.06 do corrente ano, exarado de fls. 40 a fls. 41, ambos outorgados neste Cartório e Lavrados no Livro de Testamentos Um, declara que pretende manter os mesmos em vigor, complementando-os com a presente disposição: Que ao seu sobrinho, DD, casado, de nacionalidade brasileira, filho do seu irmão JJ, residente na Rua 2”, em S.Paulo, no Brasil, lega todo o dinheiro que possuir na conta bancária com o nº.........40 e com o NIB 0033..................05 do Banco Comercial Português, SA, e mais esclarece que o saldo atual que tem na identificada conta é o produto do levantamento que fez de todos os seus certificados de aforro que possuía até à presente data. E assim termina este testamento.” -cfr. Doc. de fls. 22 e 23, cujo teor se dá por reproduzido.

5. E um outro datado de 12.12.2016, lavrado a fls. 76 do respetivo Livro nº2, no qual dispôs o seguinte: “ Pela outorgante foi dito que não tem descendentes, nem ascendentes vivos, e que por este testamento faz as seguintes disposições: 1) Ao seu primo, KK, filho de LL e de MM, com o numero de identificação civil ......83, lega: a) Um sexto (1/6) indiviso do prédio urbano sito na Rua 3, na União de Freguesias de Matosinhos e Leça da Palmeira, concelho de Matosinhos, inscrito na matriz sob o artigo .42; b) Um sexto (1/6) indiviso do prédio urbano sito na Rua 4, na União de Freguesias de Matosinhos e Leça da Palmeira, concelho de Matosinhos, inscrito na matriz sob o artigo .44; 2) À sua sobrinha, NN, filha da sua cunhada OO, lega um sexto (1/6) indiviso do jazigo nº.....13, sito no cemitério de Agramonte, no Porto, talhão da Ordem do Carmo; 3) À sua prima e afilhada, AA e de PP, lega: a) As frações autónomas, designadas pelas letras DB e DC, referentes a duas lojas sitas na Rua 5, na freguesia de Pedrouços, concelho da Maia, inscrita na matriz sob o artigo ..31; b) A fração autónoma, designada pela letra “O”, terceiro andar esquerdo, sito na Rua 6, na união de freguesias de São Mamede de Infesta e Senhora da Hora, concelho de Matosinhos, inscrito na matriz sob o artigo ..07; c) todo o dinheiro que possuir na conta bancária com o nº..........00 da Caixa Geral de Depósitos, SA e na conta bancária com o nº.....36 do Banco Comercial Português, SA. Que impõe à Legatária, AA, que mande rezar, por sua alma, um trintário de missas. E assim termina este seu testamento declarando revogar o testamento que outorgou neste Cartório, a 15 de Fevereiro do corrente ano, exarado de fls. 45 e 46v, lavrado no Livro de Testamentos “Dois”, e qualquer outro anteriormente feito com exceção do testamento outorgado neste Cartório a vinte oito de novembro de 2011, e exarado de folhas 47 a 47v do Livro de Testamento “Um”, complementando-o com as disposições acima elencadas” - cfr.Doc de fls. 24 a 26 23, cujo teor se dá por reproduzido.

6. Conforme escritura de habilitação de herdeiros de 19.01.2023, realizada no Cartório Notarial de Viseu, na Rua 7, de fls. 20 a 21, cujo teor se dá por reproduzido, a falecida GG, deixou como herdeiros legítimos, seus sobrinhos todos filhos de seu pré-falecido irmão germano JJ, a saber os RR CC, DD, EE, FF e BB, esta ultima cabeça de casal.

7. À data do óbito de GG, esta era titular única no Banco Comercial Português das seguintes contas:

a) Conta de depósito à ordem nº .....36 que apresentava no dia 16.12.2022 o saldo de 15.206,16€;

b) Conta de depósito de valores mobiliários nº.....36, que tinha sob custódia no mesmo dia 16.12.2022 os seguintes valores mobiliários:

1) – 50.007 ações do Banco Comercial Português, com a cotação, no mercado Euronext Lisbon, de 0,145€, sendo que em setembro de 2016 existiam 407.435 ações que, por força da redução de capital social do BCP, ocorrido em 24.10.2016, foram reagrupadas (“Reverse stock split”) fundindo 75 ações numa só, passando assim a existir 5.432 ações; tais ações em fevereiro de 2017, face ao aumento de capital passaram a ser de 100.007 e em 08.3.2017 foram vendidas 50.000,00, passando a carteira a ter as referidas 50.007 ações.

2) - 7407,5511 UP’s do AA com cotação unitária à data do óbito de 5,1706€ - tendo sido subscritas em 14.01.2021, e inicialmente na quantidade de 14.929,5511Up’s, que foram parcialmente resgatadas em 22.09.2021 e em 09.3.2022,e

3) - 27382,2562 UP’s do AA -A com a cotação unitária à data do óbito de 3,3616€, subscritas em 19.02.2020.

8. Estas duas contas, pese embora, uma ser de depósito à ordem, e a outra de depósito de valores mobiliários, tinham o mesmo número e a mesma e única titular, a falecida GG, por as contas de títulos estarem sempre formalmente associadas a uma conta à ordem e, por isso, colhem o mesmo número de identificação nos serviços do banco.

9. À data da elaboração do testamento referido em 5) as aplicações financeiras não haviam sido subscritas e por força da redução de capital social do BCP, ocorrido em 24.10.2016, existiam apenas 5.432 ações na conta de depósito de valores mobiliários nº.....36.

10. A falecida GG, era igualmente titular, juntamente com o R DD, seu sobrinho, no Banco Comercial Português, da conta de depósitos à ordem nº.........40, aberta em 24.10.2011.

11. Em 18.12.2020, foi feito um crédito da Ocidental - Companhia de Seguros, SA Indem nº......04, no montante de €113.816,04, correspondente a uma indemnização decorrente de um furto de joias ocorrido na residência da falecida, na conta referida em 10), ficando tal conta com o saldo de €114.765,63, sendo que em 12.01.2021 foi efetuada uma transferência de tal conta no montante de €114.500,00, para a conta nº .....36, ficando aquela primeira conta com um saldo positivo de 265,63€.

12. A falecida GG, em 28.11.2012 emitiu uma procuração a favor de QQ, conferindo-lhe poderes para em nome dela movimentar a conta bancária existente no banco Millennium BCP com os nº.....36, do balcão da Senhora da Hora, bem como a conta bancária com o nº...........00 da CGD, balcão Monte dos Burgos, podendo movimentar as mesmas tanto a débito como a crédito, incluindo a requisição e emissão de cheques, cartões de débito/crédito, podendo assinar qualquer declaração relacionada com as mesmas, procuração essa que consta dos serviços do BCP.

13. A Autora e a falecida GG conviviam, nomeadamente em épocas festivas, tendo uma relação de proximidade (Facto modificado pelo Tribunal da Relação do Porto).

14. A Ré BB, única Ré que reside em Portugal, durante a pandemia e em 2022 procurou por várias vezes falar e visitar a sua tia, a falecida GG, tendo sido impedida pela procuradora desta de o fazer, invocando o seu estado de saúde muito débil, logrando apenas a visitar uma vez em 2021.

15. Era vontade segura e inequívoca da falecida GG deixar à Autora, todos os valores associados à conta nº.....36, incluindo aplicações financeiras/fundos de investimento e ações, que fazem parte integrante da conta (Facto aditado pelo Tribunal da Relação do Porto)

16. Os RR não estiveram presentes ou foram convidados para qualquer festa ou convívio organizado pela falecida GG, ou qualquer outro familiar, nomeadamente uma última grande festa que aquela organizou para celebrar o seu 90º aniversário que decorreu no Novo Hotel Porto Gaia, onde reuniu maís de 50 pessoas, entre familiares e amigos (Facto aditado pelo Tribunal da Relação do Porto)1.

B – O Direito

1. Questão prévia da admissibilidade do recurso de revista

Tendo a recorrida suscitado a questão prévia da admissibilidade do recurso de revista, em virtude do artigo 674.º, n.º 3, do CPC, que veda ao Supremo o conhecimento de erros na apreciação da prova, importa responder que a análise dos pressupostos da admissibilidade da revista constitui um juízo necessariamente prévio e autónomo em relação ao mérito do recurso. De facto, como fez notar o acórdão do Supremo Tribunal, de 04-10-2016 (Proc. n.º 231/11.8TBPMS.C1.S1) “(…) para que um recurso de Revista possa ser admitido, impõe-se, além do mais que se não cura aqui (vg valor da acção e sucumbência), que não haja dupla conformidade decisória, como decorre inequivocamente do disposto no n .º3 do artigo 671º do CPCivil. Isto é uma coisa. Coisa outra, será a fundamentação do recurso, e a esta temática refere-se especificamente o preceituado no artigo 674.º do CPCivil, a qual poderá ser de índole processual ou de índole substantiva, sendo certo que esta problemática respeitante ao fundo recursivo, se situa a jusante; a montante, temos sempre a temática da admissibilidade do mesmo.”

Assim, a admissibilidade do presente recurso não suscita dúvidas, tendo em conta o valor da causa (fixado em €137.615,42 no despacho saneador datado de 18-12-2023), o valor da sucumbência (superior a metade da alçada do tribunal da Relação), a legitimidade dos recorrentes, a natureza e o conteúdo do acórdão recorrido, a tempestividade da impugnação e, bem assim, a inexistência de dupla conformidade, dado que o acórdão recorrido revogou a sentença do tribunal de 1.ª instância (cfr. os artigos 629.º, n.º 1, 631.º, n.º 1, 671.º, n.º 1 e n.º 3, e 674.º, n.º 1, al. a), todos do CPC).

2. O objeto do presente recurso de revista consiste em saber se a falecida GG, testadora, ao afirmar no testamento que deixava à autora (AA) todo o dinheiro da sua conta bancária nº .....36 do BCP, quis legar, não só o dinheiro depositado na conta à ordem, mas também as ações e aplicações financeiras existentes na referida conta.

As instâncias analisaram, esta questão como uma questão de facto e, por isso, do artigo 2.º dos temas de prova consta o seguinte: «Da vontade da falecida GG em legar todos os valores associados à referida conta, incluindo aplicações financeiras/fundos de investimento, à A, sua afilhada».

Com base na prova testemunhal e documental produzida nos autos, o tribunal de 1.ª instância considerou não provada a vontade da testadora em legar as aplicações financeiras à autora.

O tribunal recorreu então às regras legais de interpretação do testamento consagradas no artigo 2187.º do Código Civil e à posição subjetivista da interpretação das disposições testamentárias, concluindo que o sentido da declaração da testadora, à data da celebração do casamento, é inequívoco no sentido de abranger apenas o dinheiro depositado da conta à ordem n.º .....36, que era de €15.206,16 e já não o valor da conta de depósito de valores mobiliários, que só foram subscritos mais tarde.

Já o acórdão recorrido, procedendo a uma modificação da matéria de facto, fundada numa reapreciação da prova dos autos (prova testemunhal e documentos bancários), fez transitar dos factos não provados para o elenco dos factos provados, o seguinte: «Era vontade segura e inequívoca da falecida GG deixar à Autora, todos os valores associados à conta nº.....36, incluindo aplicações financeiras/fundos de investimento e ações, que fazem parte integrante da conta». Em consequência, concluiu que o facto dado como provado em 15 responde à questão dos autos, não sendo necessário o recurso às regras de interpretação do testamento para determinar a vontade da testadora. O acórdão da Relação entendeu não fazer vencimento a argumentação da sentença, segundo a qual era inequívoca a vontade da testadora de não integrar no legado deixado à autora as aplicações financeiras, já que estas, à data do testamento, não figuravam na conta objeto do legado. Para decidir em sentido diverso, atribuiu o acórdão recorrido valor decisivo a um elemento extrínseco ao testamento: a conduta posterior da testadora, transferindo a quase totalidade do dinheiro recebido da companhia de seguros da conta co-titulada por si e pelo sobrinho para a conta legada à autora. Esta conduta assumiu, na economia da fundamentação do acórdão recorrido, o significado da abrangência da vontade da testadora, que incluiria também as aplicações financeiras adquiridas em data posterior à da feitura do testamento com o dinheiro transferido para a conta cujos valores foram legados à autora.

Entendem os recorrentes que a reconstrução da vontade da testadora feita a partir da prova testemunhal, para além de gerar insegurança jurídica, não encontra qualquer eco na cláusula testamentária, configurando um erro de julgamento em matéria de direito, por substituição ilegítima da norma individual pela convicção do julgador, violando o artigo 674.º, n.º 1, al. b), do CPC e as regras da interpretação do testamento (artigo 2187.º, n.º 2, do Código Civil), que exigem que a vontade da testadora deve encontrar expressão, ainda que mínima, na letra e no contexto do testamento.

Quid iuris?

3. Em primeiro lugar importa balizar quais são os poderes cognitivos do Supremo Tribunal de Justiça em matéria de interpretação do testamento de acordo com a vontade da testadora.

Mostra-se consolidado, no seio da jurisprudência deste Supremo Tribunal, o entendimento, já expresso no assento de 19 de outubro de 1954, agora com valor de jurisprudência fixada (artigo 17.º, n.º 2, do Decreto-lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro), segundo o qual a determinação da intenção do testador, da sua vontade real, constitui matéria de facto (cfr., a este propósito, entre outros, os Acórdãos de 24-02-2011, proc. n.º 1611/06.6TBGDM.PL.S1; de 16-10-2012, proc. n.º 649/04.2TBPDL.L1.S1; de 07/05/2015, proc. n.º 9713/05.0TBBRG.G1.S1; de 11/02/2020, proc. n.º 933.13.4TBVCD.S1) .

Como particularizou o Acórdão deste Supremo Tribunal, datado de 25-05-2023 (proc. n.º 1504/18.4T8PVZ.S1), “a interpretação do testamento, no sentido da descoberta da vontade real do testador, pode constituir: (i) questão de direito, se feita única e exclusivamente com recurso ao texto do testamento, caso em que o STJ pode conhecê-la; (ii) questão de facto se for feita com recurso a prova complementar, e neste caso é da exclusiva competência das instâncias, mas sem prejuízo de o STJ poder sindicar, nos termos do art. 2187.º, n.º 2, do CC, a correspondência da vontade do testador assim determinada, com o contexto do testamento."

Ora, como se deixou já antever, o juízo formulado a respeito da vontade real, da testadora assentou, não apenas no texto do testamento, mas, igualmente, em prova complementar ou extrínseca a tal texto, desprovida de força legalmente vinculativa, sendo um juízo cujo acerto, por se mover no âmbito da liberdade de apreciação de prova (cfr. artigos 362.º, 366.º e 396.º, todos do Código Civil), o Supremo Tribunal se encontra impedido de examinar.

No entanto, e uma vez que os recorrentes invocam, ainda que de modo genérico e não circunstanciado, a violação dos artigos 607.º, n.º 4 e 662.º do CPC, sempre se diga que a decisão impugnada, na reapreciação da prova levada a cabo quanto à matéria que agora figura no ponto 15) dos factos provados, analisou criticamente os depoimentos testemunhais prestados, explicitando a razão de ciência das testemunhas e cotejando os depoimentos testemunhais com outros meios de prova (como documentos bancários), tendo exteriorizado uma convicção própria, fundada numa análise substancial – não vaga ou genérica – dos meios probatórios. Não se vislumbra, pois, neste domínio, qualquer violação do regime adjetivo concernente à análise crítica da prova ínsito no artigo 607.º, n.º 4, do CPC (aplicável por remissão do estatuído no artigo 663.º, n.º 2, do mesmo Código).

4. Assim, quanto ao facto provado n.º 15 não foi violada pela Relação qualquer dever legal previsto no artigo 662.º do CPC, pelo que o facto provado n.º 15 integra a matéria de facto provada e impõe-se ao Supremo, que não o pode modificar interferindo no juízo de livre apreciação do Tribunal da Relação, salvo regras essenciais de lógica aqui não violadas.

5. Importa ainda, todavia, determinar se a Relação observou as regras de interpretação das disposições testamentárias previstas no artigo 2187.º do Código Civil, ou seja, saber se a abrangência da vontade imputada à testadora pelos factos provados se reflete na letra e no contexto do testamento. Tal matéria assume natureza normativa por implicar a determinação do sentido juridicamente relevante do testamento, mediante a aplicação de critérios jurídicos e, nessa medida, como tem reiteradamente considerado a jurisprudência deste Supremo Tribunal, inscreve-se no âmbito dos seus poderes cognitivos (cfr., neste sentido, os Acórdãos de 13/09/2012, proc. n.º 3415/05.4TBPRD.P1.S1; de 07/05/2015, proc. n.º 9713/05.0TBBRG.G1.S1; de 11/03/2025, proc. n.º 5882/21.0T8STB.E1.S1).

6. O testamento, descrito pela lei como “o ato unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles” (artigo 2179.º, n.º 1, do Código Civil), deve ser qualificado como um negócio jurídico unilateral, gratuito, revogável, não recipiendo e de última vontade.

Na interpretação de tal negócio jurídico, de acordo com o disposto no artigo 2187.º do Código Civil, “1 - (…) observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento. 2. É admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.”

Em matéria de interpretação prevalece a tese subjetivista centrada na vontade do testador, pois não se verifica a necessidade de conferir peso a expectativas de outrem ou a interesses do tráfico jurídico. O artigo 2187.º do Código Civil estabelece assim um “desvio subjetivista” em relação à doutrina objetivista da “impressão do destinatário”, consagrada no artigo 236.º do Código Civil para a generalidade dos negócio jurídicos, determinando que a fixação do sentido e alcance das disposições testamentárias se realize, em todos os casos, de acordo com a vontade real ou psicológica do testador, isto é, de acordo com a sua intenção ( cfr. Rabindranath Capelo De Sousa, Lições de Direito das Sucessões, volume I, 4.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p. 196).

Esta procura da vontade do testador deverá ser, nos termos da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 2187.º do Código Civil, conforme ao “contexto do testamento”, pelo que o intérprete não poderá ter apenas em conta o texto da disposição testamentária, a sua letra, mas, igualmente, as restantes disposições testamentárias que com aquela formam uma unidade (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-02-2020, proc. n.º 933.13.4TBVCD.S1). Pode, por outro lado, o intérprete, na fixação da vontade do testador, utilizar prova complementar ou extrínseca (presunções, confissão, documentos, prova pericial, inspeção ou prova testemunhal) relativamente às disposições testamentárias (artigo 2187.º, n.º 2, do Código Civil, primeira parte). Assim, a avaliação pelo acórdão recorrido da conduta posterior da testadora de transferir dinheiro de uma conta para outra, a que foi legada à autora, pode ser ponderada nesta sede, não havendo qualquer argumento de direito probatório material que o impeça. Ponto é que essa vontade real da testadora tenha reflexo no contexto do testamento.

Como tem sido sublinhado pela jurisprudência (vide, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-04-2012, n.º 259/10.5TBESP.P1.S1; de 13-05-2014, proc. n.º 102/12.0T2AND.S1), de 20-05-2015, proc. n.º 2085/09.5TBGDM.P1.S1; de 26/11/2020, proc. n.º 2261/17.7T8PTM.E1.S1; de 11/03/2025, n.º 5882/21.0T8STB.E1.S1) e pela doutrina2, da segunda parte do n.º 2 do artigo 2187.º do Código Civil emerge uma restrição à operatividade jurídica da vontade real reconstituída do testador, pois esta vontade só será relevante se encontrar justificação na natureza formal do testamento.

Com efeito, como assinala Carvalho Fernandes (Lições de Direito das Sucessões, 4.ª edição, Lisboa, Quid Iuris, 2012, pp. 535-536), resulta do artigo 2187.º do Código Civil que no testamento a “conformidade verbal mínima do sentido do negócio se apura, não por recurso ao texto específico de cada disposição testamentária, mas segundo o contexto do testamento, isto é, de acordo com a sua expressão verbal , no seu conjunto, do documento que titula o negócio” , sendo admissível “recorrer ao texto relativo a disposição testamentária diferente daquela de cuja interpretação se trata, para apurar a existência da referida correspondência verbal do sentido que a esta possa ser atribuído, sem prejuízo da sua validade”. Efetivamente, como o mesmo autor salienta (cfr. Carvalho Fernandes, “Interpretação do testamento”; in Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles: 90 anos – Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa, Coimbra, 2007, pp. 731-732.), “(…) está aqui em causa o carácter complexo do conteúdo do testamento, nomeadamente, como acto de disposição global da herança, consubstanciado em disposições que não só podem ser de natureza diversa quanto ao seu objecto – legado e herança – como ter por beneficiários várias pessoas e, até, não ter natureza patrimonial (artigo 2179.º). Por assim ser, na interpretação de cada uma delas não se deve atender apenas ao respectivo texto, mas à expressão literal de cada uma das demais, consideradas conjuntamente. É perfeitamente admissível que o sentido (subjectivo) de certa disposição testamentária não tenha no seu texto a correspondência imposta pela sua natureza formal, mas veja essa exigência de validade satisfeita, quando se atenda a outras disposições que integram o mesmo testamento, ou, no limite, até em testamento diferente, pressuposta, já se deixa ver, neste caso, a eficácia de ambos”.

O “contexto” do testamento, como acentua Oliveira Ascensão (Direito Civil das Sucessões, 5.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p. 295), corresponde ao conjunto de cláusulas deste e não ao circunstancialismo que o rodeou, na medida em que o n.º 2 do artigo 2187.º do Código Civil contrapõe o contexto ao que resulta da prova complementar.

7. Vejamos.

No caso em apreço, tendo ficada demonstrada a vontade real da testadora – no sentido de deixar à legatária todos os valores associados à conta n.º .....36, incluindo aplicações financeiras/fundos de investimento e ações, que fazem parte integrante da conta bancária em causa – há que apurar se, como defendem os recorrentes, deve ser negada a tal intenção operatividade jurídica por ausência de apoio no contexto do testamento.

A conduta posterior da testadora, se apresenta virtualidade para fixar a vontade real desta, já não se mostra prestável para aferir da conformidade de tal vontade com o limite legal estabelecido pela parte final do n.º 2 do artigo 2187.º do Código Civil. Para o efeito, há que apelar ao “contexto” do testamento outorgado em 12-12-2016, podendo recorrer-se a disposições integrantes de outros testamentos outorgados pela falecida.

Assim, para analisar o reflexo da vontade real da testadora no contexto do testamento há que ter em conta em primeiro lugar a letra do texto da cláusula.

A cláusula em litígio inserta no testamento outorgado em 12-12-2016 apresenta a seguinte redação:

Pela outorgante foi dito que não tem descendentes, nem ascendentes vivos, e que por este testamento faz as seguintes disposições: (…) 3) À sua prima e afilhada, AA e de PP, lega: (…) c) todo o dinheiro que possuir na conta bancária com o nº..........00 da Caixa Geral de Depósitos, SA e na conta bancária com o nº......6 do Banco Comercial Português, SA. Que impõe à Legatária, AA, que mande rezar, por sua alma, um trintário de missas (…)”.

Questiona-se: a vontade real da testadora de abranger as aplicações financeiras associadas à conta é ou não compatível com a expressão “todo o dinheiro que possuir conta bancária com o nº......6 do Banco Comercial Português, SA”?

Nesta sede, afigura-se que o significado mais imediato da expressão “todo o dinheiro” existente numa conta bancária, aponta não só para o saldo da respetiva conta à ordem, mas também para o montante correspondente aos valores mobiliários que se encontrem associados à mesma conta bancária à data da abertura da sucessão, tendo em conta que os títulos em causa ostentam um valor que é determinável através do seu valor de mercado. Não estamos, pois, a falar de títulos cujo valor económico seja dificilmente calculável, mas de ações – valores mobiliários que representam o capital social de sociedades anónimas (no caso, do Banco Comercial Português) – e de unidades de participação de organismos de investimento coletivo. O valor de umas e de outras é determinado, de forma imediata, através do valor que o mercado dá à totalidade da sociedade ou ao fundo de investimento (artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro, em vigor à data da elaboração do testamento e da abertura da sucessão), afigurando-se tais títulos, por isso, facilmente convertíveis em dinheiro. Nada, do ponto de vista da linguagem corrente, se opõe a este sentido amplo da palavra dinheiro, que também é definida no Dicionário Houassis da Língua Portuguesa (cfr. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia Portugal, Círculo de Leitores, Lisboa, 2003, p. 1354) como “tudo aquilo que pode ser convertido em dinheiro (ações, títulos, cheques, etc).” Por outro lado, a circunstância de a testadora ter utilizado o pronome “todo” para determinar o substantivo “dinheiro” acomoda, em termos sintáticos, a sua vontade de atribuir à autora a integralidade dos valores associados à conta bancária em causa.

Do mesmo modo, não se opõe a esta conclusão o facto destacado pelos recorrentes nos pontos 7) e 8) das suas conclusões de recurso, segundo o qual, no testamento datado de 28-11-2011, a testadora precisou que o saldo da conta bancária objeto do legado “é o produto do levantamento que fez de todos os seus certificados de aforro que possuía até à presente data”. Esta especificação efetuada pela “de cujus”, no testamento de 2011, teve por objeto um esclarecimento sobre a proveniência do dinheiro existente numa determinada conta bancária, mas não implica qualquer diferenciação entre bens associados à conta, que permitisse inferir a vontade da testadora na cláusula em litígio de excluir do legado os valores mobiliários que viessem a integrar a conta do BCP deixada à autora. Assim tal declaração negocial incluída noutro testamento não se afigura idónea a restringir o alcance textual da cláusula sub judice.

Conclui-se, pois, que a fácil convertibilidade em dinheiro, que caracteriza as ações e unidades de participação associadas à conta bancária em causa, permite concluir que a vontade real da testadora – de deixar à autora todos os valores associados à conta n.º .....36, incluindo aplicações financeiras/fundos de investimento e ações, que fazem parte integrante da conta (ponto 15 dos factos provados) – apresenta repercussão literal mínima, ainda que imperfeitamente expressa, no contexto do testamento sob escrutínio, pelo que não se deteta a violação do regime da hermenêutica testamentária previsto na parte final do n.º 2 do artigo 2187.º do Código Civil imputada ao Tribunal da Relação.

18. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC:

I - A interpretação do testamento, no sentido da descoberta da vontade real do testador, pode constituir: (i) questão de direito, se feita única e exclusivamente com recurso ao texto do testamento, caso em que o STJ pode conhecê-la; (ii) questão de facto se for feita com recurso a prova complementar, e neste caso é da exclusiva competência das instâncias, mas sem prejuízo de o STJ poder sindicar, nos termos do artigo 2187.º, n.º 2, do CC, a correspondência da vontade do testador assim determinada, com o contexto do testamento.

II - A vontade real da testadora de abranger, no legado, não só o saldo da conta à ordem, mas também as aplicações financeiras associadas a essa conta bancária tem correspondência com o contexto do testamento e com o teor das expressões utilizadas na cláusula testamentária em litígio: “todo o dinheiro que possuir na conta bancária com o nº.....36 do Banco Comercial Português, SA”.

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 30 de setembro de 2025

Maria Clara Sottomayor (Relator)

Nelson Borges Carneiro (1.º Adjunto)

Maria João Vaz Tomé (2.ª Adjunta)

Declaração de voto de vencida

Está em causa a interpretação da cláusula que institui o legado a favor da Autora no testamento outorgado a 12 de dezembro de 2016, segundo a qual: “Pela outorgante foi dito que não tem descendentes, nem ascendentes vivos, e que por este testamento faz as seguintes disposições: (…) 3) À sua prima e afilhada, AA e de PP, lega: (…) c) todo o dinheiro que possuir na conta bancária com o nº..........00 da Caixa Geral de Depósitos, SA e na conta bancária com o nº.....36 do Banco Comercial Português, SA. Que impõe à Legatária, AA, que mande rezar, por sua alma, um trintário de missas (…)”.

Salvo melhor juízo, voto vencida com os seguintes fundamentos:

- creio não poder afirmar-se uma pretensa vontade real da testadora de integrar no legado feito à Autora “todos os valores associados à conta bancária n.º .....36, incluindo as aplicações financeiras e ações” com ressonância - ainda que “mínima” - o contexto do testamento e no teor das expressões usadas na cláusula testamentária em apreço;

- tanto o contexto do testamento como o teor dos vocábulos utilizados apontam em sentido diverso;

- a de cujus tinha literacia financeira;

- hodiernamente, sendo o dinheiro uma realidade estritamente jurídica, não pode dizer-se que “as aplicações financeiras e ações” são dinheiro. Com efeito, o dinheiro consubstancia-se naquilo (em tudo aquilo e apenas aquilo) que a ordem jurídica qualifica como idóneo para satisfazer obrigações pecuniárias, id est, como meio legal de pagamento;

- parece-me ainda que a determinação do valor de unidades de participação em organismos de investimento coletivo de tipo contratual, assim como a sua liquidez, depende, inter alia, do tipo de organismo de investimento coletivo em causa (abertos/ fechados, mobiliários/imobiliários, etc.) – o que não é referido no acórdão. De resto, o mesmo se poderá afirmar a propósito de outros valores mobiliários;

- a aplicação dos cânones hermenêuticos da interpretação do testamento (art. 2187.º do CC) à cláusula que institui o legado no testamento outorgado a 12 de dezembro de 2016 teria, pois, conduzido a resultado diverso do alcançado.

Por conseguinte, teria julgado procedente o recurso de revista interposto pelos Réus BB e outros.

Maria João Vaz Tomé

___________________________________

1. Constava da al. e) dos factos não provados da sentença e o acórdão recorrido considerou-o expressamente provado na fundamentação da modificação da matéria de facto, embora não o tenha elencado na matéria de facto.

2. Rabindranath Capelo De Sousa, Lições de Direito das Sucessões, volume I, 4.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p. 198; José de Oliveira Ascensão, Direito Civil das Sucessões, 5.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, pp. 294-295; Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, 4.ª edição, Lisboa, Quid Iuris, 2012, pp. 535-536; Luís Carvalho Fernandes, “Interpretação do testamento”; in Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles: 90 anos – Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa, Coimbra, 2007, pp. 731-732; Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra, Coimbra Editora, volume VI, 1998, p. 306; João Correia Leitão, A Interpretação do Testamento, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1991, pp. 104-105.