I. A admissibilidade do recurso de revista, restrita e atípica, previsto no art. 14º, 1, do CIRE exige uma oposição de julgados em que as decisões em confronto se baseiam em situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em vista os específicos interesses das partes em conflito – são análogas ou equiparáveis, pressupondo a oposição jurisprudencial (frontal e expressa, por regra) uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, sendo que, nesse contexto, a questão fundamental de direito (ou questões fundamentais) em que assenta(m) a alegada divergência sobre a aplicação de determinada solução legal assume(m) um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso.
II. Não há oposição relevante que justificasse resultados decisórios distintos numa e noutra das decisões alegadamente em colisão, desde logo e por si só, se, relativamente à questão fundamental de direito elencada, incidente sobre a aplicação da situação factual do art. 186º, 2, d), em sede de insolvência culposa às pessoas singulares, por força do art. 186º, 4, do CIRE, enquanto situação reveladora de “elementos indiciários” para o indeferimento da exoneração do passivo restante nos termos do art. 238º, 1, e), do CIRE, os acórdãos em confronto, ainda que não totalmente coincidentes, não exibem divergência relevante que conduzisse a solução diversa no acórdão recorrido, e, ademais, as situações fáctico-materiais litigiosas não são de tal modo equiparáveis que proporcionem uma contraditória aplicação do regime legal correspondente à disposição de bens do devedor indagada na al. d) do art. 186º, 2.
Acordam em conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
I) RELATÓRIO
1. AA e cônjuge mulher BB apresentaram-se à insolvência – decretada por sentença proferida em 21/10/2024, transitada em julgado – e formularam pedido de concessão do benefício da exoneração do passivo restante, tendo em conta o preenchimento das condições exigidas pelos arts. 235º e ss do CIRE.
2. A Sra. Administradora da Insolvência, no Relatório elaborado nos termos do art. 155º do CIRE, pronunciou-se pelo indeferimento liminar do incidente de exoneração do passivo restante, por verificação do circunstancialismo a que alude a alínea e) do art. 238º, 1, do CIRE.
Os credores «Garval – Sociedade de Garantia Mútua, S.A.», «Banco BIC Português, S.A.», «Banco Santander Totta, S.A.» e «BMW – Bank GMBH, Sucursal Portuguesa» pugnaram igualmente pelo indeferimento liminar do incidente de exoneração do passivo restante, por preenchimento das alíneas d) e e) do art. 238º, 1, do CIRE.
Os insolventes exerceram o respectivo contraditório, batendo-se pela verificação dos pressupostos que justificam a concessão do referido pedido.
3. O Juiz 1 do Juízo de Comércio de Leiria proferiu decisão liminar ao abrigo do art. 238º, 1, do CIRE, ratificada por despacho ulterior:
“(…)
II - Dos factos
Em face da prova documental junta nos autos e respetivos apensos, e posição assumida pelas partes nos respetivos articulados, para apreciação do presente incidente importa considerar a seguinte factualidade, que resulta assente nos autos:
1. Por ação entrada em juízo a 09.10.2024, AA e BB apresentaram-se à insolvência que veio a ser declarada por sentença proferida a 21.10.2024, já transitada em julgado.
2. Os insolventes casaram entre si, em 08-12-2010, sem convenção antenupcial, sob o regime de comunhão de adquiridos sendo o seu agregado familiar composto pelos próprios e pela filha menor CC, nascida em ...-...-2011, com 13 anos de idade.
3. O Insolvente Marido trabalha para a sociedade Lanknow Productions, Lda., com a categoria profissional de Fresador convencional/Técnico de bancada, auferindo o salário base de €820,00.
4. A Insolvente Mulher trabalha para a sociedade Wisebrand – Agência de Comunicação, Unipessoal Lda., com a categoria profissional de Administrativa, pelo salário base de €820,00, sendo- lhe ainda concedido a título de prestação social para a inclusão o montante de €324,80, em virtude de ter padecido de um “problema de saúde de natureza oncológica (cancro da mama)”.
5. Os Insolventes residem em casa dos pais do Insolvente marido, comparticipando nas despesas de casa com o montante mensal de €250,00.
6. O Insolvente marido constituiu, em 02-10-2014, com DD, a sociedade comercial por quotas, PTKM, Lda, NIPC .......98, com o capital social de €5.000,00, na qual o insolvente marido era titular de uma quota com o valor nominal de €1.500,00.
7. Por deliberação de 29-10-2020, a sociedade aumenta o capital social para €20.000,00, passando o capital social a ser distribuído por três quotas: a) €8.000,00 titulada pelo sócio DD; b) €6.0000,00 titulada pelo Insolvente Marido, c) €6.000,00 titulada pela Indumel – Embalagens, Unipessoal, Lda.
8. No âmbito da atividade da referida sociedade foram avalizadas diversas operações bancárias pelos insolventes.
9. A sociedade PTKM, Lda. foi declarada insolvente por sentença proferida no dia 17-09-2024, no âmbito do processo n.º 1728/23.2T8LRA o qual correu os seus termos neste Juízo de Comércio - J3, processo que veio a ser encerrado por decisão de 08-11-2024 após rateio final, encontrando-se a sociedade extinta.
10. Os créditos reclamados e reconhecidos no âmbito dos presentes autos resultam de avales e fianças prestados pelos insolventes no âmbito de atividade societária da sociedade “PTKM, Lda.”, créditos esses cujas datas de vencimento remontam ao período compreendido entre 28/07/2020 a 21/10/2024.
11. Os créditos reclamados e reconhecidos nos autos totalizam o montante de €743.581,89.
12. Os Insolventes, em 31-01-2023, procederam à venda de uma fração autónoma, designada pela letra “A”, correspondente a um rés-do-chão esquerdo, destinado a habitação, com garagem na cave e uma arrecadação no sótão, inscrita na matriz predial urbana da freguesia da Marinha Grande sob artigo matricial ...96 e descrita na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis da Marinha Grande sob o n.º ...03 da referida freguesia de Marinha Grande adquirido pela sociedade denominada “TRANSEMA, S.A.”, NIF .........14, pelo montante de € 129.000,00.
13. Procederam à liquidação antecipada do empréstimo, no valor de € 54.683,11 e procederam ao pagamento da quantia de € 6.346,80 à mediadora imobiliária.
14. O remanescente do valor auferido (cerca de € 48.000,00) foi utilizado para pagamento de dívidas a familiares diretos e algumas obras de adaptação na habitação do pai do insolvente, para a qual foram viver e foi ainda gasto /consumido no dia-a-dia do agregado durante o período que se seguiu à alienação da fração.
15. O Insolvente marido, a partir de janeiro de 2023 deixou de receber vencimento na empresa, somente retomando recebimento de salário, após ter iniciado, por sua iniciativa, trabalho noutra entidade, a partir de outubro de 2023.
16. Foi um período em que não existiu qualquer suporte salarial para o agregado, atendendo a que a Insolvente mulher, desde 2019, se encontrava desempregada.
17. Em 17-12-2021, os insolventes doaram, aos pais do insolvente marido, dois prédios rústicos, inscritos na respetiva matriz sob os artigos matriciais n.º ..38 e ..39 da freguesia de Moita, concelho da Marinha Grande e descritos na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça sob os n.º ..58 e ..59 da freguesia de Moita.
18. O insolvente marido era titular de uma quota com o valor nominal de € 6.000,00 (seis mil euros) na sociedade "PTKM, Lda.", NIPC .........98, a qual não tem qualquer valor, uma vez que a sociedade se encontra extinta, porquanto foi declarada insolvente no âmbito do processo n.º 1728/23.2T8LRA, tendo sido determinado o encerramento do processo por realização de rateio com os efeitos previstos no artigo 233.º e 234º, n.º 3 do CIRE.
19. Do Certificado do Registo Criminal dos insolventes nada consta.
Cumpre decidir.
A questão a dilucidar centra-se em saber se se mostram ou não preenchidos os pressupostos exigidos pelo artigo 238º, nº 1, als. d) e e), do CIRE, que fundamentaram a posição do credor no sentido do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante formulado pela devedora.
A exoneração do passivo restante encontra-se regulada nos artigos 235.º a 248.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e constitui uma inovação introduzida por este código, constituindo uma medida específica da insolvência das pessoas singulares, independentemente de serem ou não titulares de uma qualquer empresa.
No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março que aprovou o CIRE, pode ler-se que o Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica.
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste. A efetiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de três anos – designado período da cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente
satisfeitos. (…) A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.
Conforme refere Maria Assunção Cristas (“Novo Direito da Insolvência”- Temis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, Edição Especial, pág. 170.) para que se profira despacho inicial torna-se necessário, desde logo, que o devedor tenha tido um comportamento anterior e atual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência (…) a conduta do devedor é devidamente analisada através da ponderação de dados objetivos passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedora de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe é imposta.
O objetivo final é a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que aprendida a lição este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua atividade económica (cfr. Catarina Serra “O Novo Regime Jurídico da Insolvência – Uma Introdução”, 2.ª Edição, pág. 73).
O artigo 238.º, n.º 1 do CIRE prevê, taxativamente, as situações de indeferimento liminar do pedido de exoneração do pedido restante, concretamente se: a) for apresentado fora de prazo; b) o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza; c) o devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência; d) o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica; e)constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador de insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º; f) o devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data daentrada em juízo do pedido de declaração de insolvência ou posteriormente a esta data; g) o devedor, com dolo ou com culpa grave, tiver violado os deveres de informação,
apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.
As causas que impedem a admissão liminar daquele pedido são taxativas (por exemplo, «a oposição dos credores ao deferimento do pedido de exoneração do passivo restante não é fundamento legal para o indeferimento desse pedido», Acórdão do TRP de 23.10.2008, in www.dgsi.pt, «os casos de indeferimento estão taxativamente fixados no art. 238º e a circunstância de ter ocorrido encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente não é obstáculo a que seja analisado o pedido de exoneração do passivo restante», Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 05.11.2007, in www.dgsi; no mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto 12-05-2009, in www.dgsi.pt; «a inexistência de rendimento disponível no momento em que é proferido o “despacho inicial” previsto no artigo 239 do CIRE, não constitui fundamento só por si, para se indeferir o pedido de exoneração do passivo restante», Ac. Relação do Porto de 18.06.2009, in www.dgsi.pt).
No caso dos presentes autos está em causa a eventual aplicação das alíneas d) e e), do n. º 1, do artigo 238.º, do CIRE.
E sobre a aplicação da al. d), do n.º1, do artigo 238.º, do CIRE, na formulação dos acórdãos do STJ de 21.10.2010 (Pº 3850/09.TBVLG-D.P1.S1) e de 19.4.2012 (Pº 434/11.5TJCBR-D.C1.S1), são três os requisitos previstos na transcrita alínea d) do nº1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, cuja verificação cumulativa impede a concessão do pedido de exoneração do devedor: 1º) – a não apresentação à insolvência ou apresentação à insolvência para além do prazo de seis meses desde a verificação da situação de insolvência; 2º) – a existência de prejuízos decorrentes desse incumprimento; 3º) – o conhecimento de que não havia qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
Quanto ao primeiro requisito cumpre desde logo a assinalar que os insolventes, sendo pessoas singulares, não tinham o dever jurídico de se apresentar à insolvência, uma vez que tal dever não lhe é imposto pelo artigo 18.º, n. º2, do CIRE.
Também se impunha, para preenchimento do 3º requisito, que os factos provados permitissem a conclusão de que os Requerentes do pedido de exoneração, ao omitir a apresentação no dito prazo de seis meses, sabiam, ou pelo menos não podiam ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica. E cabia aos credores ou ao administrador alegar e provar tais factos. O que não se verifica.
Consequentemente, não pode considerar-se verificada a situação prevista na dita al. d), do n. º1, do artigo 238.º, do CIRE.
Quanto à aplicação da al. e) do nº 1 do artigo 238º do CIRE:
Aí se preceitua que «o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se: … e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º».
E esse artigo 186º preceitua: 1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. 2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º.
3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
4 - O disposto nos nºs 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.
5 - Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que
determinante de um agravamento da situação económica do insolvente.
Ora, no que concerne a esta alínea, os factos só relevam para os efeitos do disposto no artigo 186º se traduzirem conduta que, além do mais, não vá além dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (cf. a cláusula geral do nº 1).
Perscrutando a matéria factual que se encontra assente, constata-se que a mesma se insere dentro do referido período temporal.
Cumpre, assim, apreciar se com a doação dos prédios rústicos e a alienação do imóvel e destino dado ao produto dessa alineação a atuação dos insolventes integra a factie species de alguma das alíneas do citado artigo 186.º do CIRE, e em particular a alínea d), do n.º 2.
Decorre, como vimos, do acima citado artigo 238º n.º 1 e), do CIRE, que pode ser liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo, se «constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º.»
Da leitura deste normativo decorre assim que estão em causa comportamentos do devedor que tenham contribuído ou agravado a sua situação de insolvência, sob a forma de atuação indiciariamente culposa. Com efeito, convocando agora o aludido artigo 186.º do CIRE, dali resulta do seu n.º 2, al. d), e 4, que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que tenha «disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros».
No caso, os insolventes em 17.12.2021 doaram dois prédios rústicos ao pai do insolvente marido. E em 31-01-2023, procederam à venda de uma fração autónoma, designada pela letra “A”, correspondente a um rés-do-chão esquerdo, destinado a habitação, com garagem na cave e uma arrecadação no sótão inscrita na matriz predial urbana da freguesia da Marinha Grande sob artigo matricial ...96 e descrita na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis da Marinha Grande sob o n.º ...03 da referida freguesia de Marinha Grande adquirido pela sociedade denominada “TRANSEMA, S.A.”, NIF .........14, pelo montante de € 129.000,00.
Com o produto da venda procederam à liquidação antecipada do empréstimo, no valor de € 54.683,11 e procederam ao pagamento da quantia de € 6.346,80 à mediadora imobiliária. O remanescente do valor auferido (cerca de € 48.000,00) foi utilizado para pagamento de dívidas a familiares diretos e algumas obras de adaptação na habitação do pai do insolvente, para a qual foram viver e foi ainda gasto / consumido no dia-a-dia do agregado durante o período que se seguiu à alienação da fração.
Verifica-se, desde logo, que tais transmissões (doação e venda) ocorreram menos de três anos antes da data do início do processo.
A transmissão de todo o seu património imobiliário configura, a nosso ver, uma disposição de bens dos insolventes em seu proveito (remanescente do produto da vendada fração) e em proveito de terceiros (doação).
Tal conduta dos insolventes, visando subtrair os (praticamente) únicos bens de que eram proprietários à ação dos credores, menos de três anos antes de se apresentarem à insolvência, obsta a que se conclua pela sua boa fé e honestidade.
Independentemente das justificações apresentadas pelos insolventes, a verdade é que a sua atuação teve como consequência direta a transmissão de praticamente todo o seu património, prejudicando o ressarcimento dos seus credores.
Assim, e independentemente do valor dos bens ou da resolução do contrato – que, no caso não foi possível realizar (cfr. neste sentido o Acórdão da Relação de Coimbra de 02-03-2010, in www.dgsi.pt) –, entende-se que a conduta dos insolventes integra as disposições conjugadas dos artigos 238.º, n.º 1, alínea e), e 186.º, n.º 2, alínea d), do CIRE».
Com efeito, no juízo de antecipação a realizar ao abrigo do disposto no artigo 238.º, n.º 1, al. e), por referência ao artigo 186.º, n.ºs 1 e 2, al. d) e 4, do CIRE, não só o agravamento da situação de insolvência é evidente, em face da doação e venda por parte dos insolventes de todo o seu património imobiliário, como indiciada está também a sua culpa nesse agravamento, pois que, não se olvide, é de considerar sempre culposa – presunção jure et de jure – a insolvência do devedor que tenha disposto dos bens em proveito pessoal ou de terceiros.
Na fase preliminar de apreciação do pedido de exoneração do passivo restante, deve ser ponderada a idoneidade dos insolventes e o merecimento por parte dos mesmos de uma nova oportunidade, através da concessão do benefício da exoneração do passivo restante.
Ora, temos por evidente que, por via das aludidas transmissões, os insolventes agravaram a sua situação de insolvência, tanto assim que foi proposto o encerramento do processo de insolvência por inexistirem bens para serem apreendidos para a massa insolvente.
Toda a cronologia dos acontecimentos (incumprimento da devedora principal, seus afiançados, e sua posterior declaração de insolvência, a transmissão dos bens pelos insolventes e sua posterior declaração de insolvência) não nos deixam dúvidas de que o comportamento dos mesmos não é merecedor da oportunidade que a concessão do benefício da exoneração do passivo restante visa conceder.
Em nosso entender a transmissão dos bens no circunstancialismo dos autos não é compaginável com o comportamento que a lei exige a quem quer beneficiar do instituto de que aqui cuidamos. Independentemente da bondade da argumentação usada pelos insolventes, certo é que os credores ficaram prejudicados ao ser eximido do pagamento da dívida dos insolventes todo o património dos mesmos.
(…)
IV. Decisão
Em face do exposto e ao abrigo do disposto nos artigos 236.º n.º 3, 238.º n.º 1 al. e) e 186.º, n.º2, al. d), do CIRE, indefiro liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes.”
Mais se decidiu, como valor processual do incidente, ser este no montante de € 30.000,01.
4. Inconformados, os Requerentes e Insolventes interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, que conduziu a ser proferido acórdão, no qual se julgou improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
5. Novamente sem se resignarem, vieram os Requerentes e Insolventes interpor recurso de revista, fundada nos arts. 671º, 1, do CPC, e 14º, 1, do CIRE, baseando-se em oposição de julgados com o Ac. da Relação de Lisboa de 4/7/2023, proferido no processo n.º 2556/18.2T8FNC-B.L1.20/7/2023, com junção superveniente de comprovação de trânsito em julgado em 20//2023, no que respeita à questão relativa à aplicação do art. 186º, 2, al. d), do CIRE às pessoas singulares, por força do art. 186º, 4, do CIRE, em consideração do âmbito de interpretação e aplicação do art. 238º, 1, e), do CIRE – Conclusões 5. a 10 –, visando a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por decisão que admita a exoneração requerida do passivo restante.
6. Subidos os autos, foi proferido despacho ao abrigo do art. 655º, 1, ex vi art. 679º, do CPC, atenta a eventual inadmissibilidade da revista na ausência de contradição relevante de julgados.
Os Recorrentes apresentaram Resposta, pugnando pela admissão do recurso uma vez que a questão da “especificidade da situação das pessoas singulares não é compatível com a consideração do carácter inilidível da presunção” do art. 186º, 2, do CIRE, verificando-se, ainda que parcialmente, oposição de Acórdão quanto a essa questão fundamental de direito e manifesta divergência interpretativa perante situações fáctico-materiais equivalentes.
∗
Foram dispensados os vistos nos termos legais (art. 657º, 4, CPC).
Cumpre apreciar e decidir, desde logo enfrentando a admissibilidade da revista.
II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS
Questão prévia da admissibilidade do recurso
7. A revista dos Requerentes e aqui Recorrentes visa a revogação do acórdão recorrido, que inverta a decisão de indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante. Sendo esta decisão tramitada endogenamente nos próprios autos de insolvência, rege-se pelo especial e atípico regime de recursos previsto no artigo 14º, 1, do CIRE, com aplicação restrita e, por isso, delimitador da susceptibilidade do recurso de revista do acórdão recorrido (sem impedimento da dupla conforme prevista no art. 671º, 3, do CPC).
Determina esta norma do CIRE que:
«No processo de insolvência e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das Relações ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686º e 687º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme».
Daqui resulta que o recorrente tem o ónus específico de demonstrar que a diversidade de julgados a que respeitam os acórdãos em confronto é consequência de uma interpretação divergente da mesma questão fundamental de direito na vigência da mesma legislação, conduzindo a que uma mesma incidência fáctico-jurídica tenha sido decidida em termos contrários, sob pena de não inadmissibilidade do recurso do acórdão recorrido e apreciação do seu mérito.
Para existência da indispensável oposição jurisprudencial, as decisões entendem-se como divergentes se se baseiam em situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em vista os específicos interesses das partes em conflito – são análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, e que a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso.
Assim, para que o STJ seja chamado a pronunciar-se, orientando a jurisprudência em tais tipos de processos, é necessário concluir, previamente, que existe uma oposição (frontal e expressa, por regra) de entendimentos nos acórdãos em confronto sobre a aplicação de determinada solução legal, sendo que – reitere-se – tal divergência se projecta decisivamente no modo como os casos foram decididos.
8. Vistas as Conclusões da revista, os Recorrentes alegam, incidindo sobre a interpretação do 238º, 1, e), do CIRE, que o acórdão recorrido estaria em oposição com o acórdão fundamento quanto à aplicação do art. 186º, 2, al. d), às pessoas singulares, tendo em conta a interpretação feita do art. 186º, 4, do CIRE, cujas «necessárias adaptações» exigidas implicaria o afastamento do regime aos requerentes como pessoas singulares e a aplicação da cláusula geral do art. 186º, 1, do CIRE.
Neste contexto, vejamos.
9. No acórdão recorrido, fundamentou-se assim a decisão, na parcela relevante:
“Na opinião dos apelantes, a aplicabilidade de qualquer uma das do nº2 do artigo 186º do CIRE, às pessoas singulares (por via do nº4), depende de uma análise casuística de cada concreta situação, pelo que, não se poderá entender que, sempre que, e em todos os casos, e quaisquer circunstâncias, tenha alienado ou doado património nos 3 anos anteriores, se presume, sem admissibilidade de prova em contrário ou apreciação casuística, a insolvência se presume como culposa.
Tal raciocínio suscita a apreciação de duas questões distintas:
a) por um lado, a própria aplicabilidade abstrata da al. d) do nº2 do artigo 186º ao insolvente pessoa singular;
b) em caso afirmativo, se na aplicação de tal alínea, a sua adaptação às pessoas singulares, deverá permitir que, na análise de cada concreta situação, possa haver lugar a uma apreciação casuística que permita afastar a presunção de culpa (inilidível) na insolvência prevista no nº2.
E, desde já se adianta, que a defesa da possibilidade de apreciação casuística no âmbito de qualquer uma das alíneas do nº2 do artigo 186º, permitindo ao devedor insolvente afastar a presunção de culpa aí contida – presunção inilidível – é completamente contrária ao sentido da norma.
“Tratando-se de presunções inilidíveis, quando se preencha algum dos factos elencados nº nº2 do artigo 186º, a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato.” [Maria do Rosário Epifânio, “Manual de Direito da Insolvência”, 8ª ed., p. 160.]
A admitir-se que, no caso de pessoa singular, terá de ser dada a possibilidade ao devedor de afastar a presunção de culpa resultante de determinado comportamento criador ou agravador da insolvência, significa que o mesmo só poderá ser valorado no âmbito do nº1 do artigo 186º.” (sunlinhado nosso);
“Não discutimos que as situações elencadas nas diversas alíneas do nº2 estão pensadas (e expressamente previstas) para as pessoas coletivas, reportando-se ao comportamento dos seus administradores, de facto ou e direito, sendo a sua aplicabilidade às pessoas singulares insolventes efetuada por via da remissão feita pelo nº4, “com as necessárias adaptações” e “onde a isso não se opuser a diversidade das situações”.
Assim, alíneas há, que constituem casos flagrantes de não aplicação às pessoas singulares, como o da alínea e), do nº2, ou a al. a), do nº3.
Outras alíneas há, cuja aplicabilidade às pessoas singulares não levantará qualquer dúvida como o das alíneas a) e i), pelo que, caso tais situações se verifiquem, é de aplicar a presunção de insolvência culposa, contida no nº2, sem necessidade de prova de qualquer outro requisito, designadamente, culpa e nexo de causalidade.
Também não conseguimos encontrar qualquer razão que justifique o afastamento da aplicabilidade da alínea d), na parte em que se reporta à disposição de bens pelo devedor pessoa singular, quando em proveito de terceiros, da qual se presume de forma inilidível a insolvência como culposa.”
10. No acórdão fundamento da Relação de Lisboa, encontramos a seguinte argumentação sobre a questão fundamental de direito invocada pelos Recorrentes:
“Prescreve o n.º 1 do artigo 186.º que “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.“
São, pois, requisitos cumulativos da insolvência culposa: a) o facto inerente à actuação, por acção ou omissão, do devedor ou dos seus administradores (tanto de direito, como de facto), nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; b) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave); e c) o nexo causal entre aquela actuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
O conceito constante deste n.º 1 é depois complementado nos dois números seguintes por um conjunto de situações em que a insolvência se considera sempre culposa – n.º 2 –, ou nas quais se presume a existência de culpa grave – n.º 3.
No caso, defendem os recorrentes que se mostra preenchida a circunstância descrita na al. d) do n.º 2, segundo a qual se considera “sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: (…) d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;”.
O disposto neste n.º 2 (assim como no n.º 3) é aplicável, “com as necessárias adaptações, à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.” (n.º 4).
As previsões elencadas nas diversas alíneas do citado n.º 2 correspondem, na verdade, a condutas que integram uma presunção iuris et de iure, da existência de insolvência culposa. Trata-se de um elenco taxativo de presunções inilidíveis de insolvência culposa, de culpa e de nexo de causalidade – cfr. artigo 350.º, n.º 2, in fine, do Código Civil.
(…)
Cumpre, pois, aferir se o comportamento da aqui devedora é subsumível à al. d) do citado n.º 2 (sendo que, no recurso intentado, não foi invocada qualquer outra alínea do n.º 2 ou do n.º 3 do artigo 186.º).”
Assim sendo.
11. Desde logo, no acórdão recorrido, discute-se a concessão da exoneração do passivo restante, enquanto que no acórdão fundamento a qualificação da insolvência como “fortuita” ou “culposa”, ainda que o art. 238º, 1, remeta para o art. 186º do CIRE, mas a título da verificação de elementos indiciários e de grande probabibilidade de insolvência culposa.
12. De todo o modo, mesmo na busca desses “elementos indiciários” quanto ao preenchimento da al. d) do art. 186º, 2, do CIRE – «Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros.» –, regista-se:
(i) no acórdão recorrido aponta-se para o preenchimento do art. 186º, 2, d), por força da doação de prédios rústicos aos pais do insolvente marido (terceiros), e, para além dela, para o preenchimento da cláusula geral do art. 186º, 1, do CIRE pela venda de imóvel a sociedade (com amortização de mútuo bancário e utilização do remanescente com finalidades demonstradas), motivando a recusa da exoneração do passivo restante; no acórdão fundamento, apenas o preenchimento da al. d) do art. 186º, 2, foi ponderada, sendo que a venda de imóvel da insolvente não a preencheu e a venda de veículo automóvel foi decidida como fundamento da sua verificação, no contexto de qualificação da insolvência como “culposa”; o que significa uma diferença na aplicação no que respeita ao art. 186º, 2, d), quanto à natureza do negócio, gratuito vs. oneroso;
(ii) ademais, as circunstâncias fáctico-processuais da venda de imóvel, mesmo sem essa coincidência na convocação do art. 186º, 2, d), no que respeita à utilização do montante resultante da alienação, são distintas e foram ponderadas de forma diferenciada pelos acórdãos em alegada oposição: no acórdão fundamento considerou-se não ter existido qualquer intenção de favorecimento ou prejuízo de credores, uma vez que “não provocou, nem agravou a insolvência da devedora”; no acórdão recorrido, a venda do bem imóvel dos insolventes “criou ou agravou a situação de insolvência e foi praticado com culpa grave”, contribuindo para os insolventes se terem desfeito da totalidade do seu património imobiliário um ano e meio antes da sua apresentação à insolvência).
13. Por fim, e no que mais releva, verifica-se que, relativamente à questão fundamental de direito elencada pelos Recorrentes, incidente sobre a interpretação e aplicação do art. 186º, 4, para fazer aplicar ou não o art. 186º, 2, d), do CIRE às pessoas singulares, por força da remissão do art. 238º, 1, e), do CIRE, não há oposição relevante que se retire dos fundamentos dos acórdãos em confronto. Na verdade, sobre o tema dessa aplicação às pessoas singulares, a pronúncia é parcialmente coincidente: ilimitada e sem distinções no acórdão fundamento; restringida pelo acórdão recorrido no âmbito de aplicação da al. d) às pessoas singulares no destinatário do acto de “disposição”, ou seja, «terceiros». Tal distinção, no entanto, não teria qualquer impacto, pois de interpretação mais ampla se trata no acórdão fundamento (e não de exclusão de aplicação às pessoas singulares, dependente de casuísmo em concreto, como sustentam os Recorrentes ser a posição a adoptar), e não levaria a resultado decisório distinto no acórdão recorrido se fosse convocada a interpretação (mais ampla e indistinta) e a argumentação do acórdão fundamento (a certo ponto, muito claro: “O objectivo visado pela al. d) do seu n.º 2 [art. 186º do CIRE] é o de evitar que o património do devedor seja utilizado em proveito pessoal ou de terceiros, quando o mesmo deverá antes ser canalizado para a satisfação dos credores.”
Ademais, verifica-se que, nos termos vistos, a ponderação das situações fáctico-materiais litigiosas relevantes para o confronto do âmbito de aplicação do art. 186º, 2, d), do CIRE considerado procedente e preenchido não são de tal modo equiparáveis – doação de prédios rústicos no acórdão recorrido; venda de bem automóvel no acórdão fundamento –, tal como vistos na sua materialidade concreta, que proporcionem uma contraditória aplicação do regime legal correspondente à disposição de bens do devedor indagada na migração do art. 238º, 1, e), em sede de indeferimento da exoneração do passivo restante, para o art. 186º, 2, d), enquanto factualidade contributiva para a insolvência com presunção inilidível em face da cláusula geral do art. 186º, 1, do CIRE.
14. Em suma: não se preenche o requisito da dissemelhança entre os resultados da interpretação das disposições legais relevantes – a saber, os arts. 186º, 2, d), 186º, 4, do CIRE –, tendo os acórdãos interpretado e aplicado sem contradição relevante a mesma normatividade legal para o efeito pretendido no acórdão recorrido, nem se preenche o requisito da equiparação essencial das situações de facto subsumidas no regime legal.
Resulta do analisado que, sem prejuízo do inconformismo dos Recorrentes quanto à solução do acórdão recorrido proferido pela Relação, não ocorre, como condição prévia para a admissibilidade do recurso, a oposição de julgados (pelo menos com este acórdão indicado como fundamento recursivo) indispensável para ser conhecida a revista no âmbito do art. 14º, 1, do CIRE. E sem esta condição estar verificada, não se pode aceitar uma reapreciação em último grau de jurisdição através de uma revista que deve ser admitida com particular exigência, no âmbito de um regime prima facie de irrecorribilidade.
III) DECISÃO
Em conformidade, acorda-se em não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas da revista pelos Recorrentes.
STJ/Lisboa, 7/10/2025
Ricardo Costa (Relator)
Anabela Luna de Carvalho
Luís Espírito Santo
SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC)