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ERRO DE JULGAMENTO
CERTIFICADO DE REGISTO CRIMINAL
Sumário
I – Há erro de julgamento, sindicável junto do Tribunal da Relação, se na sentença não foi levado em conta, em violação do art. 11.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio, o teor do certificado de registo criminal do arguido. II – Em consequência, a análise desse meio de prova documental impõe ao Tribunal da Relação a alteração da matéria de facto provada relativamente aos antecedentes criminais do arguido.
Texto Integral
Neste processo n.º 171/23.8GACMN.G1, acordam em conferência os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I - RELATÓRIO
No processo comum singular n.º 171/23.8GACMN, a correr termos no Juízo de Competência Genérica de Caminha, Comarca de Viana do Castelo, em que é arguido AA, foi proferida sentença que o condenou, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), num total de € 500,00 (quinhentos euros).
Inconformado, recorreu o Ministério Público, apresentando as seguintes conclusões[1]:
«1.ª O Tribunal só poderá afastar a valoração dos antecedentes criminais do arguido quando os mesmos se mantenham registados depois de decorridos os prazos de cancelamento previstos no artigo 11.º da Lei da Identificação Criminal (Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio); 2.ªIn casu, como o arguido foi sucessivamente praticando crimes em 2011, 2012, 2015 e 2018, e porque a última pena que cumpriu se extinguiu em 13-10-2022, as decisões condenatórias continuam, e bem, registadas no seu Certificado do Registo Criminal. 3.ª Consequentemente, deveria o Tribunal ter considerados provados todos os antecedentes criminais do arguido, como impõe a valoração, integral e sem reservas, do Certificado do Registo Criminal junto aos autos. 4.ª A pena de multa aplicada não responde às necessidades de reafirmação do bem jurídico violado e de reintegração do arguido na sociedade, considerando (1) que este é o sétimo contacto do arguido com a Justiça Penal (o terceiro pela ofensa do mesmo bem jurídico), (2) que o arguido sofreu, anteriormente, penas de prisão pela prática de crimes da mesma natureza, (3) que uma das condenações sofridas levou, inclusivamente, à reclusão do arguido, na sua residência, com fiscalização electrónica, por um período de 150 dias, (4) que o arguido praticou os factos escassos 8 meses e 14 dias após ter regressado à liberdade, (5) o arguido é alcoólico, tem hábitos aditivos de substâncias estupefacientes, abandonou o acompanhamento e tratamento para estas dependências e tem um discurso de vitimização, e (6) está conotado com a adoção de comportamentos física e verbalmente agressivos, quando condicionado pelo consumo de álcool, que se têm vindo a intensificar, o que acaba por gerar tensão/alarme social. 5.ª Impõe-se a aplicação ao arguido de uma pena privativa da liberdade, suspensa na sua execução mas condicionada a um apertado regime de prova, com enfoque especialmente direcionado ao controlo dos comportamentos física e verbalmente agressivos que já devolvem eco na comunidade. 6.ª Ao afastar a valoração integral dos antecedentes criminais e ao aplicar ao arguido uma pena de multa, violou o Tribunal o disposto no artigo 11.º da Lei da Identificação Criminal (Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio) e os artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal.»
Pugna o recorrente pela revogação da sentença e sua substituição «por outra que, valorando integralmente os antecedentes criminais registados, condene o arguido AA em pena de prisão, suspensa na sua execução, condicionada a um apertado regime de prova, com enfoque especialmente direcionado ao controlo de comportamentos física e verbalmente agressivos».
O recurso foi admitido.
Na 1.ª instância, o arguido não apresentou resposta.
Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta acompanha o recurso, também defendendo que a matéria de facto deve ser alterada no que respeita aos antecedentes criminais do arguido, uma vez que constam validamente do seu certificado de registo criminal outras condenações além das dadas como provadas; perante as circunstâncias do facto e as condições pessoais do arguido, aponta para a aplicação de uma pena de 14 meses de prisão, acompanhada do regime de prova nos termos pedidos pelo recorrente.
Cumprido o contraditório, o arguido respondeu: entende que deve ser mantida a decisão recorrida, já que não devem ser valorados antecedentes criminais que não revelam risco actual.
Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A. Delimitação do objecto do recurso
Nos termos do art. 412.º do Código de Processo Penal[2], e face às conclusões do recurso, são duas as questões a resolver:
- se há erro de julgamento quanto aos antecedentes criminais do arguido;
- em caso afirmativo, se é caso de lhe aplicar pena de prisão, suspensa na sua execução com regime de prova.
1. Factos provados[4]
«1. No dia 27-06-2023, cerca das 22h30m, junto ao portão de acesso à garagem do prédio sito na Rua ..., em ..., área desta Comarca, o arguido abeirou-se de BB, animado por uma má relação preexistente, e desferiu-lhe um pontapé nas costas, fazendo-o cair ao chão, e, seguidamente, pontapés em diversas partes do corpo, causando-lhe dores e: - No membro superior direito: equimose esverdeada, com 7 cm por 4 cm de maiores dimensões, na face anterior do terço médio do braço; equimose arroxeada e amarelada, com 6 cm por 4 cm de maiores dimensões, no terço distal da face anterior do antebraço; mobilidade do ombro dolorosa no movimento de flexão anterior, com queixas álgicas a partir dos 100º, com estalido à palpação no restante movimento até ao arco final; - No membro superior esquerdo: área com 8 cm por 4 cm de maiores dimensões, com múltiplas escoriações avermelhadas, lineares e com múltiplas orientações,no terço proximal da face posterior do antebraço; - No membro inferior esquerdo: equimose arroxeada e amarelada, com 7 cm por 6 cm de maiores dimensões, no terço proximal da nádega; lesões que demandaram tratamento hospitalar e um período de oito dias para a cura, com afectação da capacidade de trabalho geral por três dias. 2. O arguido actuou, da forma supra descrita, com o propósito concretizado de causar sofrimento físico e lesões corporais a BB, ciente que atentava, como atentou, contra o seu corpo e a sua saúde. 3. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era, como é, proibida e punível por lei penal. 4. Na sequência do descrito nos pontos 1 a 3, foi necessário prestar ao ofendido BB cuidados médicos, conforme constam da factura n.º ...56, de 12/04/2024, no valor de €235,11 (duzentos e trinta e cinco euros e onze cêntimos), na qual se pode verificar que foram executados, os seguintes actos médicos: “Grelha costal, duas incidências, TC do tórax, Tc do crânio, episódio de urgência”, conforme documento que ora se junta e se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. 5. O arguido nos últimos cinco anos já foi condenado: . No processo comum nº 172/18.8GAVN, do ..., pela prática em 22/07/2018, por um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, por decisão transitada em julgado a 22/11/2019, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de €5,00, o que perfaz um total de €400,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses. Extintas a 18/08/2020 e 20/03/2020 respectivamente. . No processo abreviado nº 166/18.3GACMN, do ..., pela prática em 31/08/2018, por um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, por decisão transitada em julgado a 06/01/2020, na pena de 65 dias de multa à taxa diária de €5,00, o que perfaz um total de €325,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses. Extintas a 13/11/2020 e 29/06/2020 respectivamente. 6. Condições sociais do arguido: . AA, tal como acontecia à data dos factos, tem agregado constituído pela companheira (CC, 51 anos, solteira, 6º ano escolaridade, empregada de serviços domésticos) e o filho do casal (nascido em ../../2021). . É uma relação que dura há cinco anos e que tem sido pautada por fases de instabilidade/conflituosidade e que deu já azo a uma participação, por parte da companheira, às autoridades policiais pela alegada ocorrência de violência doméstica. . Será de registar que já anteriormente, o filho do arguido foi sinalizado à CPCJ ... pela GNR ... na sequência de um conflito ocorrido entre o casal. . Foi deliberada uma medida de apoio junto dos pais, que se mantém. . A companheira do arguido está a ser alvo do acompanhamento das estruturas de apoio às vítimas de violência doméstica, no caso concreto pela equipa do Gabinete de Atendimento à Família/GAF de .... . No que concerne ao agregado de origem, o arguido mantém contacto regular com a mãe e com os avós maternos, residentes em .... Tem duas irmãs consanguíneas, que apenas conheceu há alguns anos atrás, com quem vai mantendo contacto. Será de referir que o arguido nasceu de uma relação de namoro da mãe, a qual veio a assumir um novo relacionamento deixando o arguido entregue os cuidados dos avós maternos, contexto familiar com o qual o arguido estabeleceu vinculações afetivas, mas no qual estavam presente problemas de alcoolismo. . O pai, que se demitiu das suas responsabilidades parentais, foi desde sempre uma figura ausente, não existindo qualquer tipo de vinculação entre si. . O agregado ocupa casa que é da propriedade da companheira do arguido, dotada das mínimas condições de habitabilidade. . AA está habilitado com o 9º ano de escolaridade. Ao nível profissional e por referência à data dos factos, dedicava-se à faina da pesca, em ..., após ter estado embarcado em alto mar, por cerca de quatro meses, na pesca do bacalhau. Desde então, dedicou-se a tarefas indiferenciadas. . Em abril de 2024, o arguido começou a trabalhar de forma regular, na construção civil, junto de um empreiteiro de ..., ao serviço do qual permaneceu até ao início de Fevereiro de 2025, altura em que foi despedido. . Após ter mantido um comportamento responsável, de comprometimento com as tarefas que lhe eram pedidas, sendo cumpridor dos horários e estabelecendo a uma interação adequada com a equipa de trabalho, AA passou a manifestar interações de confronto com o empregador, motivo pelo qual foi dispensado. . O arguido vai começar a trabalhar novamente na faina da pesca, junto de um Mestre de uma embarcação de ..., assim que a sua situação jurídico-penal estiver regularizada. . O arguido ao longo do seu percurso de vida passou já por diversos setores de atividade, nomeadamente por unidades fabris, construção civil, jardinagem e limpeza de florestas, demostrando dificuldade em manter um posto de trabalho. Entretanto, obteve a cédula marítima, o que lhe permitiu dedicar-se também à atividade piscatória. . A condição económica do agregado é descrita como modesta. O arguido estima vir a auferir entre 100 a 200 euros semanais, quantia que é variável e dependente não só da quantidade do pescado, mas também das condições climatéricas, uma vez que não auferem qualquer remuneração nos dias de intempérie em que não podem sair ao mar. . A companheira, é empregada de serviços domésticos, em casas particulares, atividade que lhe permite obter um rendimento aproximado ao salário mínimo nacional, caso trabalhe todos os dias. . Acresce o abono de família atribuído ao menor, no valor atual de 72,00 euros mensais. . É a companheira quem assume as despesas do agregado, uma vez que o contributo do arguido será diminuto. . Apresentam encargos no valor global mensal de 422,06 euros, repartidos pelos consumos domésticos de água, energia elétrica, gás e comunicações; descontos da companheira do arguido para o sistema contributivo da segurança social e mensalidade do infantário que o menor frequenta. . Anualmente paga 207,62€ com o seguro da viatura automóvel. . AA admite ter iniciado o consumo de bebidas alcoólicas com cerca de 16 anos, hábito que se tornou abusivo e que manteve ao longo do seu percurso de vida. Segundo a companheira, a par da ingestão abusiva de álcool, o arguido tem ainda hábitos aditivos de substâncias estupefacientes (cannabis). . Em junho do pretérito ano, AA compareceu numa primeira consulta no CRI ..., passando a ser acompanhado por esse serviço. Entretanto, conforme o próprio confirmou, decidiu abandonar a frequência das consultas e o respetivo tratamento. . Na comunidade de referência o arguido está conotado com a adoção de comportamentos física e verbalmente agressivos, quando condicionado pelo consumo de álcool, constando que se têm vindo a intensificar, o que acaba por gerar tensão/alarme social. . O arguido tem um discurso é de vitimização. . O arguido tem pendente o processo n.º: 8/25.3GACMN), no qual está indiciado na prática de um crime de ofensa à integridade física simples, um crime de ameaça agravada e um crime de detenção de arma proibida. . Nesses autos, encontra-se sujeito, entre outras medidas de coação, à proibição de se aproximar do ofendido (também ofendido nos presentes autos), fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, a qual, globalmente, tem cumprido sem incidentes reportados aos autos. Está ainda sujeito a efetuar tratamento de desabituação do consumo de álcool, para o qual deu o seu consentimento.»
2. Motivação
«(…) o Tribunal, relativamente aos antecedentes criminais do arguido apenas teve em consideração condenações relativas a factos praticados desde o ano 2018, porquanto apenas desta forma se considera justa e equitativa a análise da pena a aplicar. Isto, por comparação com os arguidos em idêntica situação, mas que apresentem, por exemplo condenações averbadas como as do arguido. (…)»
C. Apreciação do recurso
1.Erro de julgamento
O recorrente considera que a Mm.ª Juiz a quo deveria ter tido em conta o teor integral do certificado de registo criminal do arguido, e não apenas, como consta do facto provado 5, as condenações por ele sofridas nos últimos cinco anos (conclusões 1 a 3).
Ou seja, é pressuposto inegável do desfecho do recurso – maxime, aplicação ao arguido de diferente espécie de pena – a alteração deste último facto provado.
A este respeito, rege o art. 412.º, n.º 3: “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.”
Deixando de lado esta última alínea, já que o recorrente não pretende qualquer renovação da prova, restam as duas primeiras.
O recorrente observou os requisitos das demais alíneas, porque coloca precisamente em causa o teor do facto provado supra mencionado, indicando como meio de prova o certificado de registo criminal do arguido, junto aos autos.
Não competindo a este Tribunal fazer um segundo julgamento da matéria de facto, ainda assim o seu âmbito de cognição abrange os “pontos concretos e precisos dessa matéria que sejam contestados e identificados pelo recorrente, a partir das provas específicas por ele indicadas. Só se essas provas impuserem, o que significa determinarem necessariamente, inequivocamente, uma decisão diferente sobre aquele específico ponto, a Relação poderá modificar a matéria de facto (nesse ponto preciso).”[5]
Vejamos se é aqui o caso.
O nó górdio está na valoração – total, como defende o recorrente, ou parcial, feita pela Mm.ª Juiz a quo – das condenações anteriores sofridas pelo arguido, o que tem de ser decidido à luz da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio.
Em primeiro lugar, diga-se que o certificado de registo criminal do arguido (ref.ª ...02) foi emitido dois dias antes da audiência de discussão e julgamento e dezassete dias antes da leitura da sentença, sendo, por isso, válido, nos termos do art. 15.º, n.º 3, do D.L. n.º 171/2015, de 25 de Agosto: “Os certificados cuja emissão não resulte da utilização de um código de acesso têm um prazo de validade de três meses a contar da data da sua emissão.”
Dele constam as seguintes condenações[6]:
Processo
Factos
Trânsito
Crime
Pena
Extinção da pena
120/11.6GAPCR
6.6.2011
9.1.2012
Condução sem habilitação legal
50 dias de multa
12.7.2012
27/12.0GAPCR
4.2.2012
15.1.2014
Falsificação de boletins, actas ou documentos
120 dias de multa
4.8.2014
41/15.3GACMN
25.2.2015
14.12.2015
Ofensa à integridade física simples e dano simples
1 ano e 2 meses de prisão, substituída por 425 horas de trabalho, revogada e substituída por 150 dias de prisão em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica
13.10.2022
240/15.8GAPCR
18.10.2015
20.6.2016
Ofensa à integridade física simples
1 ano e 2 meses de prisão, suspensa por igual período, mais tarde prorrogada por 1 ano
10.5.2021
172/18.8GAVNC
22.7.2018
22.11.2019
Condução de veículo em estado de embriaguez
80 dias de multa
18.8.2020
166/18.3GACMN
31.8.2018
6.1.2020
Condução de veículo em estado de embriaguez
65 dias de multa
13.11.2020
Haverá base legal – que, diga-se, não consta da motivação da sentença recorrida – para que nesta apenas se tenham considerado as duas últimas condenações, e não as restantes?
A resposta não pode deixar de ser negativa, e decorre da aplicação do art. 11.º da citada Lei[7]:
- nos termos do n.º 1, a), “as decisões inscritas [no registo criminal] cessam a sua vigência”, se tiverem aplicado pena de prisão, “decorridos 5 (…) anos sobre a extinção da pena, se a sua duração tiver sido inferior a 5 anos (…) e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza”;
- quanto às decisões que apliquem “pena de multa principal a pessoa singular (…) decorridos 5 anos sobre a extinção da pena e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza” – alínea b) do mesmo número;
- relativamente às decisões “que tenham aplicado pena substitutiva da pena principal (…), decorridos 5 anos sobre a extinção da pena e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza” – alínea e);
- nos termos do n.º 3, no caso de aplicação de pena de prisão suspensa na sua execução, os prazos do n.º 1, e), “contam-se, uma vez ocorrida a respectiva extinção, do termo do período da suspensão.”
A razão de ser desta norma é simples: se, por erro dos serviços de identificação criminal ou por falta de comunicação de algum tribunal, por exemplo, do despacho de extinção da pena, constarem condenações fora dessas condições legais – ou seja, que já deviam ter sido objecto de cancelamento –, elas não podem sequer ser incluídas na matéria de facto provada pelo julgador, porque não têm já qualquer relevância: é como se tivessem deixado de existir. Nesses casos, levá-las em conta seria ilegal – e inconstitucional, por violador do princípio da igualdade do art. 13.º –, redundando num injusto prejuízo para o arguido quando comparado com outro, em situação idêntica, cujo registo criminal estivesse devidamente actualizado[8].
Reportando-nos a 18 de Fevereiro de 2025 (data da emissão do certificado de registo criminal dos autos), verifica-se que, nas duas primeiras penas de multa, embora já tivessem decorrido – à data da sentença dos autos (6 de Março de 2025) – mais de cinco anos desde a respectiva extinção, não opera o citado art. 11.º, n.º 1, b), porquanto, antes de passado esse período, o arguido veio a sofrer nova condenação:
- extinta a primeira pena de multa a 12 de Julho de 2012, a 15 de Janeiro de 2014 o arguido foi novamente condenado (ou seja, um ano, seis meses e três dias depois);
- embora a segunda pena de multa se tenha extinguido a 4 de Agosto de 2014, um ano, quatro meses e dez dias depois teve o arguido outra condenação (a relativa aos crimes praticados a 25 de Fevereiro de 2015).
Já relativamente à terceira condenação, que versou pena de prisão, bem como à quarta, que respeita a pena de prisão suspensa na sua execução, extinguiram-se, respectivamente, a 13 de Outubro de 2022 e a 10 de Maio de 2021, pelo que, na data da sentença, ainda nem sequer o pressuposto temporal dos cinco anos tinha decorrido para qualquer delas (acrescendo, claro, a circunstância de a própria sentença recorrida constituir nova condenação, o que também impediria a aplicação da alínea a) do n.º 1 e o n.º 3 do citado art. 11.º).
É, por isso, evidente que todas as condenações que constam do certificado de registo criminal do arguido junto aos autos tinham de ser levadas em conta pela Mm.ª Juiz a quo na sentença recorrida, fazendo-as constar do facto provado respectivo, tal como pretende o recorrente.
Aliás, não pode deixar de se manifestar perplexidade pela motivação (supra B.2.) da sentença recorrida a este respeito: porquê considerar apenas as condenações relativas a factos praticados desde 2018? A justiça e equidade invocadas como fundamento são incompreensíveis e não encontram acolhimento em qualquer norma legal ou constitucional (que também não são aí mencionadas). E porquê comparar com «outros arguidos em idêntica situação»? Estando a analisar um caso concreto, o julgador deve limitar-se a ele, e não estabelecer comparações, ainda mais absolutamente vagas nos seus termos: o que serão as «condenações averbadas como as do arguido», as que a Mm.ª Juiz a quo incluiu nos factos provados ou as que deixou (injustificadamente) de fora destes?
Isto posto, é evidente que estamos perante um dos casos em que a análise de um meio de prova documental constante dos autos manifestamente impõe a este Tribunal a alteração da matéria de facto provada, nos termos do art. 431.º, b).
Assim, o facto provado 5 passa a ter a seguinte redacção (sugerida pelo recorrente e apoiada no certificado de registo criminal do arguido):
«À data dos factos dos autos, o arguido tinha sofrido as seguintes condenações: - No processo sumaríssimo n.º 120/11.6GAPCR do Tribunal Judicial de Paredes de Coura, pela prática em 06-06-2011, de um crime de condução sem habilitação legal, por decisãotransitada em julgado a 09-01-2012, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de € 5,50, o que perfaz um total de € 275,00. Extinta a 12-07-2012. - No processo sumaríssimo n.º 27/12.0GAPCR do Tribunal Judicial de Paredes de Coura, pela prática em 04-02-2012, de um crime de falsificação de boletins, actas ou documentos, por decisão transitada em julgado a 15-01-2014, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 5,50, o que perfaz um total de € 660,00. Extinta a 04-08-2014. - No processo comum colectivo n.º 41/15.3GACMN do Juízo Central Criminal de Viana do Castelo – Juiz ..., pela prática em 25-02-2015, de um crime de ofensa à integridade física simples e de um crime de dano, por decisão transitada em julgado a 14-12-2015, na pena única de 1 ano e 2 meses de prisão, substituída por 425 horas de trabalho, entretanto convertida em 150 dias de prisão em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica. Extinta a 13-10-2022. - No processo comum singular n.º 240/15.8GAPCR do Juízo de Competência Genérica de Valença – Juiz ..., pela prática em 18-10-2015, de um crime de ofensa à integridade física simples, por decisão transitada em julgado a 20-06-2016, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa por igual período, entretanto prorrogado por mais 1 ano. Extinta a 10-05-2021. - No processo comum nº 172/18.8GAVN, do ..., pela prática em 22/07/2018, por um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, por decisão transitada em julgado a 22/11/2019, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de €5,00, o que perfaz um total de €400,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses. Extintas a 18/08/2020 e 20/03/2020 respectivamente. - No processo abreviado nº 166/18.3GACMN, do ..., pela prática em 31/08/2018, por um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, por decisão transitada em julgado a 06/01/2020, na pena de 65 dias de multa à taxa diária de €5,00, o que perfaz um total de €325,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses. Extintas a 13/11/2020 e 29/06/2020 respectivamente.»
Deve, assim, proceder este segmento do recurso.
2. Espécie e medida da pena
A este respeito, o recorrente defende que só a pena de prisão é adequada ao caso, invocando para tal várias circunstâncias, quer relativas ao facto quer ao agente (conclusões 4 e 5).
Fora do âmbito do recurso – e já dilucidado em 1.ª instância – ficou o crime praticado pelo arguido, de ofensa à integridade física simples do art. 143.º, n.º 1, que é punível com pena de prisão até 3 anos (cujo mínimo é 1 mês, pela cláusula geral do art. 41.º, n.º 1) ou pena de multa (entre 10 e 360 dias, nos termos do art. 47.º, n.º 1, todos do Código Penal).
Este determina que se deve dar preferência às penas não privativas de liberdade (quando o crime as prevê), mas desde que tal realize “de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” (art. 70.º); de acordo com o art. 40.º, n.º 1, do mesmo Código, são duas essas finalidades: a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Da conjugação destes dois artigos resulta que são “as necessidades de prevenção – geral positiva [tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada] e especial de socialização – que vão justificar e impor a opção pela pena não privativa da liberdade – pena alternativa ou pena de substituição – (…), não existindo aqui qualquer finalidade de compensação da culpa, uma vez que esta, constituindo o limite da pena (art. 40º, nº 2 do C. Penal), apenas funciona ao nível da determinação da sua medida concreta.”[9]
Quer dizer, “a culpa, ou o grau de culpa, não são realidades a ponderar especificamente na tarefa de escolher a espécie da pena, antes têm o seu campo de incidência, privilegiado, na escolha da medida da pena. (…) E, se em regra são razões de prevenção especial que respondem pela não aplicação da prisão, em nome de uma melhor reinserção social do arguido, também geralmente são motivos de prevenção geral, que afastam a aplicação de uma pena de substituição, não detentiva.”[10]
Na decisão recorrida, consideraram-se medianas as exigências de prevenção geral, referindo embora que «no âmbito dos crimes contra bens jurídicos contra o corpo ou a saúde, se sente cada vez mais a indiferença com que muitos cidadãos agem relativamente aos direitos alheios»; porém, deu a Mm.ª Juiz a quo mais relevância às necessidades de prevenção especial, que entendeu ficarem satisfeitas com a pena de multa, pela circunstância de os dois antecedentes criminais respeitarem a crime diverso e estarem já extintas as respectivas penas.
Em sede de prevenção geral, quanto ao reforço da norma violada, as necessidades são elevadas: não porque haja um (por vezes tão apregoado) aumento dos crimes violentos, mas porque, nos tempos conturbados que vivemos, em que proliferam os ânimos exaltados e em que qualquer pequeno desentendimento tende logo a subir de tom, numa manifesta (e muitas vezes incompreensível) diminuição da aceitação do outro tal como ele é, e da tentativa de compreender os seus motivos, devem os Tribunais emitir sinais claros de que a assunção de um acto de violência física não pode, de forma nenhuma, ser tolerado.
Acresce que as razões de prevenção especial, no caso do arguido, manifestamente não permitem a aplicação de uma pena de multa: como assinala o recorrente, este é o sétimo contacto do arguido com o sistema penal (nos últimos 12 anos), e já o terceiro (em menos de 10 anos) pela prática de crime idêntico.
Não se pode de todo concluir que o arguido tenha de alguma forma correspondido às exigências de prevenção especial que estiveram subjacentes às duas penas anteriores que lhe foram aplicadas:
- na de Dezembro de 2015, 1 ano e 2 meses de prisão substituída por 425 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade, foi esta substituição revogada (o que significa não ter o arguido dado cumprimento, ao menos integral, à pena não detentiva), acabando o arguido por cumprir a pena de 150 dias de prisão em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica, ou seja, sendo privado de liberdade;
- na de Junho de 2016, de igual medida (1 ano e 2 meses de prisão), agora suspensa na sua execução por igual período, esta suspensão teve de ser prorrogada por um ano, circunstância que só ocorre por causa imputável ao agente e culposa (art. 55.º do Código Penal).
Após estas duas condenações – as mais relevantes para o crime ora em causa, mas, recorde-se, não as únicas sofridas pelo arguido –, qual foi a reacção deste? Alterou a sua conduta? Não, pelo contrário: extinta a pena efectiva de 150 dias de prisão a 13 de Outubro de 2022, bastaram 8 meses e 14 dias para o arguido voltar à prática de novo crime de ofensa à integridade física simples (27 de Junho de 2023, a data dos factos dos autos).
Portanto, as penas de prisão, uma delas efectiva, não tiveram qualquer ressonância na conduta do arguido; é, por isso, evidente que uma pena de multa nunca seria susceptível de satisfazer nem as necessidades de prevenção geral nem as de prevenção especial positiva – pelo contrário, seria vista pela comunidade e pelo arguido quase como um prémio e um incentivo do sistema judicial a que ele recorra à violência física como “solução”. É que, afinal, mesmo com duas condenações anteriores em pena de prisão, a terceira seria ainda mais leniente: solução incompreensível e absolutamente infundada, insusceptível de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição supra referidas (art. 40.º do Código Penal).
É que a protecção dos bens jurídicos inclui “todas as finalidades que, sendo preventivas, se não confundam com a prevenção especial positiva, ou seja, com a reinserção social do delinquente. Desde logo, portanto, as outras modalidades de prevenção especial: negativa, enquanto intimidação do próprio agente do crime, e neutralizadora, como afastamento do delinquente da sociedade por certo período, para que, pelo menos durante esse tempo, não cometa mais crimes. Depois, haverá evidentemente que prosseguir as finalidades geral-preventivas. Não está excluída do preceito um efeito de prevenção geral negativa, como intimidação de todos os potenciais delinquentes, mas, de acordo com a doutrina mais autorizada, importa assinalar, como fim essencial da pena, a prevenção geral positiva ou de integração. É sabido que com a prevenção geral positiva se almeja, antes de mais, a criação de um sentimento de confiança no sistema, por parte da população em geral. A segurança das pessoas resulta também da convicção de que o direito é mesmo para ser respeitado. Mas, numa perspectiva de prevenção geral positiva, a pena tem ainda um efeito pedagógico. O auto-refreamento de eventuais solicitações para o crime que assaltem os não delinquentes é compensado com a satisfação moral de não se sofrer qualquer pena, facto contraposto à pena que se vê aplicada ao delinquente. Finalmente, assinala-se à prevenção geral positiva, um efeito de coerência lógica: a coercibilidade do direito em geral, e do direito penal, em particular, impõe que o desrespeito das respectivas normas tenha consequências efectivas.”[11]
Portanto, in casu, a aplicação de pena de multa não asseguraria nem as finalidades de prevenção geral positiva, porque se perderia, sobretudo, o citado efeito pedagógico: a comunidade veria um arguido que já por duas vezes praticou crimes da mesma natureza, pelos quais sofreu pena de prisão, a ser agora contemplado com uma pena muito menos gravosa.
Também a prevenção geral negativa ficaria por assegurar, podendo transmitir ao arguido a (falsa e contraproducente) ideia de que, afinal, o crime compensa…
Assim, afastada a pena de multa, impõe-se aplicar ao arguido uma pena de prisão, entre 1 mês e 3 anos de prisão.
Na determinação concreta da pena, devem ser levadas em conta “todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele” (art. 71.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal), cuja enumeração exemplificativa consta deste último, a saber:
“a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”
Tal como se afirma na sentença recorrida, há dolo directo na conduta do arguido (a sua forma mais grave e intensa), é «considerável» o grau de ilicitude, uma vez que «o arguido agrediu o ofendido com um pontapé nas costas que causou a sua queda ao chão, causando as lesões identificadas nos factos provados, sem qualquer explicação plausível» (ou seja, além de não haver qualquer causa de justificação da sua conduta, inexiste sequer motivo aparente para esta); foi ainda relevado contra o arguido a existência de antecedentes criminais – que, perante a alteração supra operada no facto provado 5, não só assumem muito maior importância como revelam uma manifesta falta de preparação do arguido para manter uma conduta lícita – e a pendência de um outro processo crime contra o arguido.
Quanto a este, se é certo que o ofendido é o mesmo, estão indiciados mais crimes para além do de ofensa à integridade física simples (ameaça agravada e detenção de arma proibida) e o arguido está sujeito a medidas de coacção já de certa gravidade (como a proibição de se aproximar do ofendido, fiscalizada através de vigilância electrónica, e o tratamento de desabituação do consumo de álcool, mediante prévio consentimento do arguido), não é menos verdade que este beneficia da presunção de inocência do art. 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. Por isso, entende-se que esse conjunto de circunstâncias não deve ser tido em conta contra o arguido.
Ainda nas circunstâncias desfavoráveis ao arguido, não pode esquecer-se o modo de execução do crime: desde logo, dar um pontapé noutra pessoa demonstra sentimentos de menosprezo e grau de agressividade muito mais acentuados do que um murro ou uma bofetada, porquanto o uso dos pés já aponta não só para uma maior intensidade da violência mas também para um (ainda mais intenso) desdém pela pessoa que se atinge; não satisfeito, o arguido, com o ofendido no chão – como consequência da primeira agressão –, deu-lhe mais pontapés em várias partes do corpo. Aí, já numa posição de superioridade física, derrubado que estava o ofendido, acentua-se a censurabilidade em relação ao modo de execução dos factos, dos quais resultaram lesões que, mesmo tendo uma cura relativamente rápida (oito dias), não só afectaram a capacidade de trabalho geral do ofendido durante três dias mas exigiram tratamento hospitalar, e se situaram em diversas partes do corpo: o braço direito (duas equimoses e mobilidade dolorosa do ombro), o braço esquerdo (múltiplas escoriações) e a perna esquerda (uma equimose).
Embora a integração familiar actual do arguido, e a tentativa de integração profissional, militem a seu favor, bem como a modesta condição económica, nenhuma delas pode esconder ou minorar a conduta posterior aos factos: a postura de vitimização do arguido (incompreensível neste âmbito pois, por muito difícil que tenha sido o seu percurso de vida, nada justifica que canalize a sua instabilidade para a violência física contra um concidadão) e o abandono do tratamento no CRI ..., que o próprio arguido tinha procurado em Junho de 2024, por causa dos seus hábitos aditivos (álcool e cannabis).
Aqui chegados, é manifesto que são em maior número os factores que concorrem contra o arguido – assumindo agora, por referência à sentença recorrida, acrescida importância o seu passado criminal, no qual avultam as duas condenações anteriores pela prática do mesmo crime – do que aqueles que o favorecem.
Situando-se o termo médio da pena de prisão em 1 ano, 5 meses e 15 dias, sopesando tudo o que já foi dito – e ainda, a favor do arguido, a circunstância de estar a fazer tratamento de desabituação do consumo de álcool, e de não haver incidentes no cumprimento da medida de coacção de proibição de se aproximar do ofendido (no âmbito do outro processo pendente), no que parece uma inflexão positiva na sua atitude, embora por força de uma imposição judicial –, mostra-se adequada a pena de 1 ano e 3 meses de prisão.
Isto posto, é o próprio recorrente a peticionar a suspensão da execução desta pena, embora condicionada a um apertado regime de prova (conclusão 5).
Esta suspensão, aplicável a penas não inferiores a cinco anos nos termos do art. 50.º, n.º 1, do Código Penal, configura-se como uma pena de substituição, que pode até implicar, singular ou cumulativamente, deveres e regras de conduta para o agente do crime (n.º 2 e n.º 3 do mesmo artigo), exemplificados nos arts. 51.º e 52.º daquele Código.
Mas tem requisitos específicos: só se mostra viável se “atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, [o tribunal] concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
Assim, quanto “à prevenção geral, importa que a comunidade não sinta a suspensão da execução da pena de prisão como sinal de impunidade. A respeito da prevenção especial, é necessário que a suspensão implique, de facto, uma “mudança de vida” do delinquente, é preciso que a suspensão leve o delinquente a “interiorizar o mal feito””.[12]
A suspensão da execução da pena exige que, em cada situação e nas suas circunstâncias, o tribunal possa fazer um juízo de prognose favorável em relação à conduta futura do agente; não é ter a certeza que o arguido se vai afastar do caminho do crime, porque isso é impossível de adivinhar, mas tem de haver pelo menos alguns dados de facto – relativos quer ao próprio agente quer ao crime – em que o tribunal se possa alicerçar para augurar um futuro do arguido mais conforme ao Direito.
É verdade que a anterior suspensão da execução de pena de prisão, por crime idêntico, sofreu uma prorrogação por um ano; e também o é que, pouco tempo depois da sua extinção, o arguido cometeu o crime dos autos.
Porém, a adequação desta suspensão ao caso concreto mostra-se, ainda assim, possível: o arguido tem 36 anos, tem uma companheira e um filho menor, já acompanhado pela CPCJ, estava a voltar para uma actividade que conhece (a pesca, tendo cédula marítima) e, como se referiu, tem vindo a cumprir as medidas de coacção que lhe foram impostas em processo posterior a este.
A aplicação deste instituto (assim como a fixação das penas) não tem uma bitola fixa, porque todas as situações são diferentes; e, como a desorientação da vida do arguido vem sendo manifesta, uma suspensão da execução da pena pode (ainda, se ele perceber que se trata de uma oportunidade em risco de ser a última antes da pena efectiva) orientá-lo para caminho diferente daquele que ele vem seguindo.
E é exactamente por essa necessidade de orientação que se justifica inteiramente que, desta vez, a suspensão da execução da pena não só se prolongue mais no tempo – por dois anos – mas também que seja acompanhada de regime de prova, possibilidade prevista no art. 53.º do Código Penal, caso o tribunal o considere “conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade.” (n.º 1).
Nos termos do n.º 2, tal regime “assenta num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social.”
Relativamente ao conteúdo deste plano, rege o art. 54.º, n.º 1, do mesmo Código: “contém os objectivos de ressocialização a atingir pelo condenado, as actividades que este deve desenvolver, o respectivo faseamento e as medidas de apoio e vigilância a adoptar pelos serviços de reinserção social.”
Claro que, sem prejuízo destes detalhes operacionais, cabe ao Tribunal definir directrizes mínimas relativamente ao conteúdo desse plano; no caso do arguido, são indispensáveis a manutenção de posto de trabalho (ou a procura activa deste, em caso de perda), bem como a frequência de acção de formação e/ou sensibilização para a prevenção da violência interpessoal, uma vez que esta se afigura transversal à vida do arguido. Ora, é mais do que tempo de o arguido perceber que não é por aí que pode melhorar a sua vida, só a piorando, bem como a das pessoas sobre quem a exerce.
Portanto, também aqui se conclui pela procedência da pretensão do recorrente, com a aplicação ao arguido da pena de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, com regime de prova, nos termos que acabam de se descrever.
III - DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência:
- alteram a matéria de facto provada, nos termos descritos em II-C.1. deste acórdão;
- revogam a sentença recorrida, na parte relativa à condenação do arguido em pena de multa;
- condenam o arguido AA, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, com sujeição a regime de prova, conforme plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP, especialmente direccionado à manutenção de posto de trabalho (ou à procura activa deste, em caso de perda) e à frequência de acção de formação e/ou sensibilização para a prevenção da violência interpessoal.
Sem custas.
Guimarães, 16 de Setembro de 2025
(Processado em computador e revisto pela relatora)
Os Juízes Desembargadores
Cristina Xavier da Fonseca Paulo Alexandre da Costa Correia Serafim Florbela Sebastião e Silva