CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
LEGITIMIDADE
CRIME DE BURLA TRIBUTÁRIA
Sumário


I – O conceito de ofendido, para efeitos de legitimidade para a constituição como assistente, coincide com o conceito adoptado no Código Penal no Artº 113°, n° 1, para aferir da legitimidade para apresentar queixa, tendo sido inicialmente consagrado pelo Artº 11° do C.P.Penal de 1929 e, posteriormente, pelo Artº 4°, nº 2, do Decreto-Lei n° 35.007, de 13 de Outubro de 1945.
II - Diz-se ofendido, em processo penal, unicamente a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violado ou posto em perigo.
III – No crime de burla tributária, p. e p. pelo Artº 87º, nº 1, do RGIT, o bem jurídico tutelado é o património do Estado ou da Segurança Social como componente patrimonial do sistema tributário.
IV – Nessa perspectiva, num processo em que se averigua a prática daquele ilícito criminal, nenhum particular se poderá constituir assistente, uma vez que não é o titular do interesse jurídico-penal protegido pela norma incriminadora, exclusivamente público.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do Inquérito nº 4570/23.7T9BRG, que correu termos pelo Departamento de Investigação e Acção Penal, 1ª Secção de Viana do Castelo, da Procuradoria da República da Comarca de Viana do Castelo, em 24/09/2024 foi proferido o despacho de arquivamento cuja cópia consta de fls. 2 / 2 Vº, nos seguintes termos (transcrição [1]):

“Arquivamento
O presente inquérito teve início com a queixa de fls. 7-9 na qual se imputa à sociedade “EMP01..., Unipessoal, Lda.” e respectivo gerente, AA, a prática de um crime de burla tributária, p. e p. pelo artigo 87º n.º 1 do RGIT.

*
Foram realizadas as diligências de inquérito tidas por necessárias e adequadas à descoberta da verdade material, nomeadamente e com interesse para o presente arquivamento, a junção aos autos da certidão permanente da sociedade visada e bem assim assento de óbito do seu legal representante (vide fls. 71-75).
*
Da certidão permanente da sociedade comercial resulta que a mesma tem já averbada a sua dissolução e encerramento da liquidação, bem como o cancelamento da respectiva matrícula desde ../../2023 sendo que do assento de óbito junto a fls. 75 resulta que o legal representante da sociedade em apreço também já faleceu no dia ../../2023 pelo que, por ora, cumpre aferir quais as consequências processuais daí decorrentes.

Resulta do artigo 160º n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais que “[A] sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos artigos 162º a 164º, pelo registo do encerramento da liquidação”.

Ora, extinta a sociedade por força do enquadramento legal elencado cessa, necessariamente, a sua personalidade jurídica e judiciária (fazendo-se aqui um paralelismo com a realidade jurídica aplicada às pessoas singulares) não sendo por isso possível responsabilizá-la pelos factos em investigação nos presentes autos (cfr. artigos 127º e 128º ambos do Código Penal aplicáveis ex vi do artigo 3º alínea a) do RGIT).
Ademais, estabelece o artigo 127º n.º 1 do Código Penal que “[A] responsabilidade criminal extingue-se pela morte, pela amnistia, pelo perdão genérico e pelo indulto” (sublinhado nosso).
Por outro lado, do teor do artigo 128º n.º 1 do Código Penal resulta que a morte do agente extingue tanto o procedimento criminal, como a pena ou a medida de segurança determinadas.
Nesta conformidade, a morte do agente assume a qualidade de pressuposto negativo de punição, não podendo o inquérito, face à sua confirmação, prosseguir, existindo certas excepções que, in casu, não se verificam (cfr. artigo 127º n.º 3 do Código Penal).

Nesta conformidade e sem necessidade de maiores considerandos, por ser legalmente inadmissível o procedimento, determina-se o arquivamento dos autos, nos termos do disposto nos artigos 127º e 128º, ambos do Código Penal, artigo 160º n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais e artigo 277º n.º 1 do Código de Processo Penal.
*
Cumpra o disposto no artigo 277º n.º 3 do Código de Processo Penal.
(...)”.
*
2. Notificado daquele despacho de arquivamento, em 17/10/2024 o participante BB requereu a sua constituição como assistente, nos termos do Artº 68º, nº 3, al. b), do C.P.Penal [2], e bem assim a abertura da instrução, nos termos da peça processual cuja cópia consta de fls. 6 / 10 Vº, que a seguir se transcreve:
“(...)
BB, assistente nos autos à margem referenciado e nele melhor identificado, notificado do ARQUIVAMENTO deduzido pelo MINISTÉRIO PÚBLICO com ela não se conformando, vem por este meio e nos termos do disposto no artigo 287.º n.º 1 alínea b) do Código Processo Penal requerer a
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
O que faz nos termos e com os seguintes fundamentos:

Da Questão Prévia
Nos termos do artigo 277.º do CPP “O Ministério Público procede, por despacho, ao arquivamento do inquérito, logo que tiver recolhido prova bastante de se não ter verificado crime, de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento.”
Nos termos do disposto no artigo 287º, nº 1 alínea b) do CPP, a abertura de instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou arquivamento, pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
O presente inquérito teve início com a apresentação de queixa, ora, nessa queixa é imputada à sociedade “EMP01..., Unipessoal, Lda., e respetivo gerente, AA, a prática de um crime de burla tributária, previsto e punível nos termos do artigo 87.º n.º 1 do RGIT.
No respetivo arquivamento, este justificou-se através da junção aos autos da certidão permanente da sociedade visada e bem assim assento de óbito do seu legal representante.
Alegando que, da certidão permanente da sociedade comercial resulta que a mesma tem já averbada a sua dissolução e encerramento da liquidação, bem como o cancelamento da respetiva matrícula desde ../../2023.
Ora, além da dissolução da sociedade comercial, o representante legal AA faleceu no dia ../../2023, servindo tais factos de base ao arquivamento por ser legalmente inadmissível o procedimento.
Tendo por base o artigo 160.º n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais que estipula que “A Sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos artigos 162.º a 164.º, pelo registo do encerramento da liquidação.”
Extinta a sociedade por força do enquadramento legal elencado cessa, necessariamente, a sua personalidade jurídica e judiciária (fazendo-se aqui um paralelismo com a realidade jurídica aplicada às pessoas singulares) não sendo por isso possível responsabilizá-la pelos factos em investigação nos autos, com base nos fundamentos do artigo 127.º e 128.º do Código penal ex vi artigo 3.º alínea a) do RGIT.
Dito isto, atentemos ao
 
CRIME CONCRETAMENTE IMPUTADO AO ARGUIDO
Vem o assistente pretender procedimento criminal por burla Informática, previsto e punido nos termos do artigo 87.º n.º 1 do RGIT.
Ora, resulta do disposto no artigo 87º n.º 1 do RGIT, “1 - Quem, por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efetuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro é punido com prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Se a atribuição patrimonial for de valor elevado, a pena é a de prisão de 1 a 5 anos para as pessoas singulares e a de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas coletivas.
3 – Se a atribuição patrimonial for de valor consideravelmente elevado, a pena é a de prisão de dois a oito anos para as pessoas singulares e a de multa de 480 a 1920 dias para as pessoas coletivas.
4 – As falsas declarações, a falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou a utilização de outros meios fraudulentos com o fim previsto no n.º 1 não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber.
5 - A tentativa é punível. “

Vejamos,
A morte do sócio-gerente, ocorreu, em ../../2023, e a firma ficou somente com o trabalhador CC, e tinha duas ou três obras em fase final, com alguns pequenos trabalhos para terminar.
Ora, DD e EE, concretamente cônjuge e filha do falecido sócio-gerente, mantiveram a sociedade em funcionamento após, pelo menos, 9 meses e 26 dias.
Prova disso é que, o trabalhador da sociedade, por acordo com as herdeiras do sócio-gerente falecido, desvinculou-se da sociedade, facto este que comprova que as mesmas ocuparam o cargo de sócios-gerentes da sociedade arguida, - conforme certidão que se anexa.
Ora, tendo, aliás as mesmas, conhecimento da presente ação.
Porém e para o que os presentes autos importa, havendo pluralidade de herdeiros e enquanto a herança permanecer indivisa, passa a verificar-se a contitularidade da participação social, expressamente contemplada e regulada nos arts. 222º a 224º e 303º CSC.
Ora, estando ainda aquando da entrada da presente ação a arguida ativa, nunca poderiam as herdeiras tomar o procedimento que efetivaram com o encerramento da empresa, resultando do atestado de óbito que o sócio único da arguida já faleceu, deverá a representação desta recair afinal sobre a generalidade dos herdeiros do referido sócio, nos termos dos arts. 2091.º do Código Civil, e que deverão nomear um representante comum (cfr. art. 222.º, n.º 1, do CSC).
Ora, as herdeiras do sócio-gerente apenas encerraram a sociedade comercial quando tiveram conhecimento dos processos judicias pendentes contra a mesma…Não configurará tal manobra de encerramento uma subtil fuga à justiça e desvio ao cumprimento da lei?
Se as Sociedades comerciais deixam de ser responsabilizadas criminalmente aquando do encerramento da mesma, não configurará uma forma legal de não se responsabilizar quem conscientemente não cumpre a lei?
Onde está a segurança jurídica? É suficiente uma sociedade comercial encerrar atividade para não ligar com as consequências emergentes dos atos ilegalmente praticados?
As herdeiras do sócio-gerente beneficiam dos lucros resultantes da sociedade e após, quando percebem haver um possível passivo e uma possível responsabilidade criminal encerram a sociedade e fica resolvido?
Onde faz o assistente valer os seus direitos? A sua segurança jurídica?
Deve o procedimento ser legalmente admissível e correr termos contra as herdeiras da mesma.
A segurança jurídica consiste num princípio inerente ao Direito e que supõe um mínimo de certeza, previsibilidade e estabilidade das normas jurídicas.
O princípio da segurança jurídica é deduzido pelo Tribunal Constitucional (TC) a partir do princípio do Estado de direito democrático, constante do artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Ora, decorre do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (...), no âmbito do processo n.º 286/11.5JAFAR.SL de 25.09.2013, que “Na verdade, a vida num Estado de Direito Democrático terá de estar ancorada, necessariamente, nos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança. O princípio da segurança jurídica, enquanto implicado no princípio do Estado de Direito Democrático, comporta a ideia da previsibilidade que, no essencial se «reconduz à exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos dos atos normativos».
Daí que a realização e efetivação do princípio do Estado de Direito, no quadro constitucional, imponha que seja assegurado um certo grau de calculabilidade e previsibilidade dos cidadãos sobre as suas situações jurídicas, ou seja, que se mostre garantida a confiança na atuação dos entes públicos. É, assim, que o princípio da proteção da confiança e segurança jurídica pressupõe um mínimo de previsibilidade em relação aos atos do poder, de molde que a cada pessoa seja garantida e assegurada a continuidade das relações em que intervém e dos efeitos jurídicos dos atos que pratica.
A propósito da “segurança jurídica” e da “proteção da confiança” refere o J.J. Gomes Canotilho que “… a segurança jurídica está conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica - garantia da estabilidade jurídica, segurança de orientação e de realização do direito - enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjetivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos atos dos poderes públicos. A segurança e a proteção da confiança exigem, no fundo: fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos atos do poder; de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios atos. Deduz-se que os postulados da segurança jurídica e da proteção da confiança são exigíveis perante qualquer ato de qualquer poder - legislativo, executivo e judicial. O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a ideia de proteção da confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo tem do direito poder confiar em que aos seus atos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas por esses atos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico …” (in: “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7.ª edição, pág. 257)
Os cidadãos têm direito a um mínimo de certeza e de segurança quanto aos direitos e expectativas que, legitimamente, forem criando no desenvolvimento das relações jurídicas. Por isso que «não é consentida uma normação tal que afete, de forma inadmissível, intolerável, arbitrária ou desproporcionadamente onerosa, aqueles mínimos de segurança que as pessoas, a comunidade e o direito devem respeitar.» (Cf. Ac. TC nº 365/91, DR II Série, de 27.09.91)”

Isto dito, em conclusão

I. O despacho de arquivamento do inquérito, conforme disposto no artigo 277.º do Código de Processo Penal (CPP), fundamenta-se na inadmissibilidade do procedimento, dado que a sociedade arguida, “EMP01..., Unipessoal, Lda.”, teve a sua personalidade jurídica extinta em decorrência da dissolução e encerramento da liquidação, conforme preceitua o artigo 160.º, n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais (CSC). Tal como a morte do sócio-gerente, AA.
II. A continuidade da atividade da sociedade sob a gestão das herdeiras após o falecimento do sócio-gerente implica na necessidade de análise da responsabilização potencial das mesmas.
III. De acordo com o disposto nos artigos 222.º a 224.º do CSC, a herança permanece indivisa até a partilha, mas isso não exime as herdeiras de possíveis responsabilidades associadas à gestão da sociedade, especialmente quando há indícios de má-fé ou tentativa de evasão de responsabilidades legais.
IV. A dissolução da sociedade, ocorrida após a comunicação de ações judiciais pendentes, poderá ser interpretada como uma manobra que visa a evadir responsabilidades legais. Tal conduta pode configurar um abuso de direito, ferindo os princípios da boa-fé e da segurança jurídica.
V. O princípio da segurança jurídica, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, exige previsibilidade e estabilidade nas relações jurídicas. A utilização da dissolução de sociedades como meio de elisão de responsabilidades pode comprometer a confiança nas instituições e no sistema jurídico, exigindo, portanto, uma reavaliação normativa que assegure a responsabilização dos representantes legais ou herdeiros em situações de ilícitos tributários.
VI. É essencial garantir que a aplicação do direito penal não seja elidida por estratégias de dissolução societária.
VII. A presente situação aponta para a necessidade de uma revisão legislativa que permita a responsabilização direta dos herdeiros ou dos gestores em situações de fraude
tributária, garantindo que o encerramento da sociedade não seja um obstáculo à responsabilização penal.

Termos em que se requer a Ex.ª que se digne admitir o presente requerimento, ordenar a abertura de instrução julgá-lo, procedente por provado, e consequentemente
a) Proferir o despacho de pronuncia do arguido pela prática do crime que lhe imputado.
(...)”.
*
3. Porém, tal requerimento [de constituição de assistente e de abertura de instrução (RAI)] foi rejeitado pelos despachos de 12/11/2024, do Mmº Juiz de Instrução Criminal do Juízo de Instrução Criminal de Viana do Castelo, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, cujas cópias constam de fls. 13/15, nos seguintes termos (transcrição):
Requerimento de admissão a intervir nos autos na qualidade de assistente formulado por BB:
Como refere o requerente, o objeto dos autos reporta-se a factos suscetíveis de integrar a eventual prática de um crime de burla tributária, previsto e punido pelo artigo 87.º, n.º 1, do RGIT (a dado momento, o requerente, por manifesto lapso refere-se a burla informática).
Ponderando que o requerente está em tempo, beneficia de apoio judiciário e encontra-se representado por Advogado, a questão que se suscita é da legitimidade do mesmo para se constituir assistente, nos termos do artigo 68.º, n.º 1, do Código Penal, desde já se adiantando que se nos afigura que o requerente não tem a qualidade de ofendido exigida pelo normativo invocado, pelo que não poderá assumir a qualidade de assistente.
Veja-se, a este propósito e com as correspondentes e necessárias adaptações, no respetivo sítio, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30-06-2015, onde pode ler-se:
“Posto isto, passemos a analisar se à denunciante, ora recorrente assiste ou não legitimidade para se constituir assistente relativamente aos crimes participados – fraude fiscal, abuso de confiança fiscal e abuso de confiança contra a segurança social, previstos nos arts.103º, 105º e 107º, do RGIT.
Inexistindo lei especial que atribua à denunciante e ora recorrente legitimidade para relativamente aos mencionados crimes se constituir assistente em processo penal, tal faculdade e sendo os crimes em causa de natureza publica, a legitimidade para ela se constituir assistente no tocante aos ditos crimes haverá que ser apreciada de acordo com o critério que dimana da alínea a), do nº1, do artº68º, do CPP que confere esse direito aos ofendidos, considerando como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Ao contrário do que parece preconiza a recorrente (…), na esteira do entendimento que temos vindo a perfilhar sobre esta matéria, alinhamos com os que defendem que a nossa lei acolhe um conceito estrito, imediato de ofendido, abrangendo apenas os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger quando formulou a norma incriminadora (cfr.F. Dias, Direito Processual Penal, 1974, pag.506 e Beleza dos Santos, RLJ 57º, pag.3). O mesmo conceito estrito de ofendido encontra-se plasmado no art.113º, nº1do C. Penal.
Assim, para efeito de constituição como assistente, não pode ser considerado “ofendido” qualquer pessoa prejudicada com a comissão do crime, mas somente o titular do interesse que constitui o objecto imediato do crime.
Não basta, portanto, uma ofensa indirecta a um determinado interesse para que o seu titular se possa constituir assistente, pois não se integra no âmbito do conceito de ofendido, os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, como é o caso da denunciante relativamente aos mencionados crimes de abuso de confiança fiscal, fraude fiscal e abuso de confiança contra a segurança social. Trata-se de crimes tributários em que o bem jurídico tutelado é o sistema tributário, entendido em sentido estático e dinâmico e de modo especial a vertente dinâmica da obtenção de recursos por meio de impostos para satisfação das necessidades financeiras do Estado.
Dito por outras palavras, o bem jurídico especialmente tutelado é exclusivamente o interesse público, sendo que no crime de abuso de confiança contra a segurança social o interesse directo e imediato protegido pela incriminação é o interesse do Estado na boa cobrança de receitas indispensáveis ao sistema de segurança social, cuja organização, coordenação e financiamento constitui sua obrigação constitucional.

Como é sublinhado pelo
Prof. Cavaleiro Ferreira, in Curso de Processo Penal, 1995, Vol. I, pgs.194 e segs. para ser considerado ofendido para efeitos de admissão e constituição como assistente, não basta ter sofrido um prejuízo com o crime, sendo ainda necessário que esse crime atinja directamente, especialmente, particularmente, aquele que pretende constituir-se assistente. Assim, não é ofendido para o referido efeito de intervenção como assistente no processo qualquer pessoa que tenha sido prejudicada com a prática do crime, mas apenas o titular do interesse que constitui o objecto imediato da infracção. Nem todos os crimes têm, por isso, «ofendido» particular. Só o tem aquele cujo objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular, pelo que se torna necessário auscultar o interesse que a lei quis proteger com a incriminação.
Como a este propósito assevera Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 15ª edição, pag.191, «não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com o crime; ofendido é somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime. O objecto jurídico mediato é sempre de natureza pública; o objecto mediato é que pode ter por titular um particular. Nem todos os crimes têm, por isso, ofendido particular. Só o têm aqueles em que o objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular».
Assim, de jure constituto só se considera ofendido, para os efeitos do art. 68º, nº 1, al. a), o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime e, por isso, nem todos os crimes têm ofendido particular, só o tendo aqueles em que o objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular.”
Salvo o devido respeito e melhor opinião a posição advogada pela recorrente, é merecedora de reflexão e ponderação mas em termos de jure constituendo.
Naturalmente que é pela análise e exame da norma incriminadora que se vê qual o interesse que a lei quis proteger ao tipificar determinado comportamento humano como criminoso, como é referido na anotação de Leal Henriques e Simas Santos, in Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, 1996, pág.318, os quais adiantam ainda que “definido o interesse há que identificar o titular desse interesse.”
Deste modo, a questão passa por averiguar da natureza individual ou supra-individual do bem jurídico que é tutelado pela incriminação que estiver em causa, não sendo todavia de arredar à partida que ambas – concorrencialmente - se possam ter por verificadas perante uma concreta norma incriminadora.
Como dissemos, os mencionados crimes tributários, assumem natureza pública, sendo pois crimes públicos, porque destinados a proteger um bem jurídico supra individual de interesse comunitário, fazendo parte das funções soberanas do Estado. Tais crimes tutelam directa e imediatamente o interesse do Estado e só indirectamente as normas incriminadoras protegem interesses particulares.
Como é dito no despacho sob censura o bem jurídico especialmente protegido com tais crimes é a ofensa ao património ou erário público.
São os interesses do Estado, na sua vertente vulgarmente denominada por Fisco ou Fazenda Nacional, entendido como sistema dinâmico de obtenção de receitas e realização de despesas. Nestes crimes não são visíveis quaisquer bens jurídicos de natureza particular. (…) Os interesses protegidos pelas infracções em apreciação no inquérito assumem uma dimensão pública cujo interesse jurídico-penal não foi pelo legislador excepcionado em termos de ser admitida a intervenção de outros que não o próprio Estado. (cfr. neste sentido relativamente ao crime de fraude fiscal o acórdão da Relação do Porto, de 28-10-2010, disponível em www.dgsi.pt).
O objecto do crime de fraude fiscal é complexo. Por uma parte o património do Estado, enquanto componente do bem jurídico tutelado, mas também o dever de colaboração leal dos cidadãos na determinação dos factos tributários e, por isso, o objecto do crime é por uma parte o património tributário de Estado, enquanto bem jurídico tutelado, e por outro os deveres de informação e de verdade dos cidadãos perante o sistema fiscal, que constituem o objecto da acção.
A ratio do crime de fraude fiscal é o dano no património fiscal do Estado.
A conduta incriminada consiste na violação dos deveres de informação e verdade susceptíveis de causar lesão ao património do Estado pela diminuição das receitas tributárias. (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, in Direito Penal Tributário, pag.230).

No crime de abuso de confiança fiscal é tutelado o sistema fiscal na perspectiva patrimonial: arrecadação dos tributos recebidos ou retidos pelo substituto de imposto (ob cit. pag.243). No crime de abuso de confiança contra a segurança social o bem jurídico directo e imediato penalmente protegido com a incriminação é também o interesse do Estado na defesa da boa cobrança das receitas (as contribuições devidas pelos trabalhadores e deduzidas pelas entidades empregadoras) indispensáveis ao funcionamento do sistema de segurança social, que constitui sua obrigação constitucional. Todos eles, enquanto crimes tributários, o bem jurídico tutelado é o «sistema tributário», entendido numa perspectiva funcional, como o conjunto de actividades a desenvolver pelo Estado e outros entes públicos para obtenção dos recursos financeiros e para a aplicação destes na satisfação das necessidades públicas que lhes cumpre realizar (Prof. Germano Marques da Silva, ob cit. pag.92).
Nos mencionados crimes nenhum particular se poderá constituir assistente, uma vez que o interesse protegido pelas incriminações é, a qualquer luz, exclusivamente público.
Em todos eles o bem jurídico tutelado tem uma natureza supra-individual, e ali não se encontra um interesse especialmente protegido de natureza particular que legitime a constituição como assistente.
Não se nega que os particulares não possam ser (reflexamente) atingidos e prejudicados, pelos comportamentos que preencham as aludidas normas incriminadoras, mas tal não basta para que possam integrar o conceito de “ofendido” adoptado pela lei processual penal para efeitos de atribuição de legitimidade para a constituição como assistente, na concepção por nós também adoptada e que atrás caracterizámos.
Assim, um particular, como é o caso da recorrente e denunciante, não é titular dos interesses especialmente protegidos com qualquer daquelas incriminações.
A recorrente, apesar de eventualmente poder encontrar-se lesada, e por isso com legitimidade para reclamar em sede própria a correspondente indemnização, não tem legitimidade, em termos processuais penais, para ser admitida como assistente, por o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato dos crimes aqui em causa ser o próprio Estado.
Como dissemos, o objecto imediato da tutela jurídica das normas incriminadoras não é, assim, um interesse ou direito de que a recorrente seja titular, pelo que ela carece de legitimidade para se constituir assistente nos autos supra mencionados.
Nesta conformidade, não nos merece reparo a conclusão extraída na decisão recorrida de que à requerente não assiste legitimidade para, no caso, se constituir e intervir na qualidade de assistente, e consequentemente, assim, para impulsionar o exercício da acção penal através da abertura da instrução, quanto ao procedimento pelos crimes denunciados que levaram à abertura do inquérito.
Obviamente que não tendo a denunciante (não assistente) legitimidade para requerer a instrução [art.287º, nº1, al.b) do CPP], faltando esse pressuposto processual ou essa condição de procedibilidade, a instrução não é admissível, nos termos do disposto no nº3 do citado art.287º do referido diploma adjectivo, o que acarreta a rejeição limiar do requerimento por aquela apresentado para abertura da instrução e prejudica o conhecimento das questões nele suscitadas, nomeadamente da nulidade arguida nesse requerimento, pelo que não nos merece censura a douta decisão recorrida, que consequentemente mantemos na íntegra” (os sublinhados são da nossa lavra).
Ora, seguindo-se este entendimento, por falta de legitimidade, não podendo ser considerado ofendido nos termos e para os efeitos do artigo 68.º, n.º 1, al.ª a), do Código de Processo Penal, indefiro o requerimento formulado por BB de intervenção nos autos na qualidade de assistente.
Notifique.
*
Requerimento de abertura de Instrução formulado por BB:
O requerimento formulado é tempestivo e o requerente encontra-se dispensado de proceder ao pagamento da taxa de justiça, em virtude de beneficiar de apoio judiciário.
Conforme despacho supra proferido, o requerente não tem a qualidade de assistente nos autos, pelo que não tem legitimidade para requerer a abertura de Instrução – cfr. o artigo 287.º, n.º 1, al.ª b), do Código de Processo Penal;
Acresce que o requerente não descreve a conduta concreta praticada por qualquer arguido que integre o pretendido tipo legal de burla tributária, seja do ponto de vista objetivo (conduta típica), seja do ponto de vista subjetivo (dolo), não descrevendo factos integrantes de uma verdadeira acusação, limitando-se a discordar do despacho de arquivamento, mas omitindo aqueloutro ónus – cfr. o artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Com pertinência, veja-se, a este propósito e no respetivo sítio, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29-04-2020:
“I – O requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente em caso de arquivamento pelo Ministério Público deve equivaler em tudo a uma acusação, condicionando e delimitando a atividade de investigação do juiz de instrução e, consequentemente, o objeto da decisão instrutória, nos exatos termos em que a acusação formal, seja pública, seja particular. II – Daí que, não constando do RAI uma descrição clara e ordenada de todos os factos necessários à integração de todos os pressupostos legais de algum crime, se torna inviável a realização desta fase processual de instrução por falta de delimitação do seu objeto. III – E isto porque é manifesto que ninguém poderá vir a ser pronunciado com base apenas em alegações genéricas, inconclusivas ou omissas de factos suscetíveis de fazer integrar, na totalidade os elementos objetivos e subjetivos do crime pelo qual se pretende essa pronúncia. IV – Quando não contém os elementos supra referidos em II, o RAI é nulo por falta de objeto, o que implica e inexequibilidade da instrução e, por via disso, a sua rejeição.
Em conformidade com o exposto e ao abrigo dos artigos 287.º, n.º 1, al.ª b), n.º 2 e 3, do Código de Processo Penal, por falta de legitimidade e de imputação de factos equivalentes a uma acusação, rejeito liminarmente o requerimento de abertura de Instrução formulado por BB.
Notifique e oportunamente devolvam-se os autos ao Ministério Público.
(...)”.
*
4. Inconformado com essas decisões judiciais, delas veio o queixoso BB interpor o presente recurso, nos termos constantes da peça processual cuja cópia se mostra junta a fls. 18 / 24 Vº, rematando a respectiva motivação com a formulação das seguintes conclusões e petitório (transcrição):

“I. O presente recurso é interposto da decisão que: a) Indeferiu a constituição do Recorrente como assistente, sob alegação de falta de legitimidade; b) Rejeitou liminarmente o requerimento de abertura de instrução, invocando alegada insuficiência dos factos descritos.
II. Nos termos do artigo 68.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, têm legitimidade para se constituir assistentes os “ofendidos”, ou seja, os titulares dos interesses diretamente protegidos pela norma incriminadora.
III. O conceito de ofendido deve ser interpretado amplamente, especialmente nos casos em que as práticas ilícitas implicam a violação direta de direitos e interesses individuais.
IV. O Recorrente tem legitimidade para se constituir assistente, porquanto:
a) Sofreu prejuízos patrimoniais concretos diretamente relacionados com a conduta ilícita do arguido; b) Foi envolvido indevidamente em operações tributárias fraudulentas, suportando obrigações fiscais que não lhe eram devidas; c) É lesado direto pela prática dos factos denunciados, o que o torna titular do interesse protegido pela norma incriminadora.
V. O crime de burla tributária, previsto no artigo 87.º do RGIT, protege o sistema tributário enquanto bem jurídico público, mas não exclui que particulares possam ser reflexamente lesados, sofrendo prejuízos patrimoniais concretos.         
VI. Além do crime de burla tributária, o Recorrente denunciou factos que configuram a prática de outros crimes, como: a) Burla qualificada (artigo 218.º do Código Penal), pela existência de um esquema fraudulento que causou prejuízos patrimoniais significativos ao Recorrente; b) Abuso de confiança (artigo 205.º do Código Penal), pela apropriação indevida de valores que pertenciam ou eram devidos ao Recorrente; c) Falsificação de documentos (artigo 256.º do Código Penal), em virtude da utilização de documentos com informações falsas para sustentar operações tributárias fraudulentas.
VII. A subsunção dos factos a vários tipos legais de crime demonstra a gravidade da conduta denunciada e reforça o interesse legítimo do Recorrente em participar no processo, assegurando que os crimes sejam investigados e os responsáveis julgados.
VIII. A doutrina e a jurisprudência têm evoluído no sentido de reconhecer que, mesmo em crimes tributários, onde o interesse público é primário, particulares diretamente lesados podem constituir-se assistentes, desde que demonstrem prejuízos concretos causados pela conduta ilícita dos arguidos.
IX. O Recorrente apresentou factos concretos demonstrativos dos prejuízos sofridos,
X. A empresa arguida falseou declarações fiscais e documentos, manipulando valores tributários devidos, para escapar ao pagamento de impostos;
XI. Foram apresentados documentos falsificados, que simulavam operações comerciais inexistentes, beneficiando indevidamente o arguido e prejudicando o Recorrente;
XII. A conduta do arguido foi praticada com dolo direto, com o intuito deliberado de lesar o Estado e terceiros, incluindo o Recorrente;
XIII. O Recorrente foi afetado diretamente, ao ser envolvido na operação tributária fraudulenta, suportando obrigações fiscais e patrimoniais indevidas.
XIV. Estes factos preenchem os elementos objetivos e subjetivos do crime de burla tributária;
XV. Elementos objetivos: a fraude tributária consistiu na omissão e falsificação de elementos essenciais para o apuramento do imposto devido;
XVI. Elementos subjetivos: a intenção dolosa é evidente na manipulação de declarações e documentos, com a finalidade de obter uma vantagem patrimonial indevida em prejuízo do sistema tributário e do Recorrente.
XVII. A decisão recorrida, ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução, invocou uma alegada insuficiência dos factos, mas tal conclusão não tem fundamento, pois o Recorrente:
XVIII. Descreveu de forma clara e precisa os factos constitutivos do crime;
XIX. Apresentou elementos probatórios concretos, como documentos falsificados, comprovativos dos prejuízos sofridos e indícios claros de manipulação dolosa;
XX. Fundamentou as suas razões de discordância com o arquivamento, nos termos exigidos pelo artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
XXI. A jurisprudência tem afirmado que o requerimento de abertura de instrução não tem de revestir o rigor técnico de uma acusação formal, bastando que contenha uma descrição suficiente dos factos e das razões que justificam a abertura da instrução (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-01-2021).12
XXII. O Recorrente cumpriu integralmente este ónus, tendo identificado os factos constitutivos dos crimes denunciados; os elementos probatórios que sustentam as suas alegações; a intenção dolosa do arguido na prática dos ilícitos denunciados.
XXIII. A decisão recorrida viola, assim, o direito de acesso à justiça (artigo 20.º da CRP) e o princípio do contraditório (artigo 32.º da CRP), ao privar o Recorrente da possibilidade de ver os factos devidamente investigados e apurados em sede de instrução.

TERMOS EM QUE, deve o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência:

1. Revogar a decisão recorrida, reconhecendo-se a legitimidade do Recorrente para se constituir assistente, nos termos do artigo 68.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, na qualidade de ofendido e lesado, em virtude dos prejuízos patrimoniais concretos sofridos em consequência das práticas ilícitas denunciadas;
2. Admitir o requerimento de abertura de instrução, determinando-se o prosseguimento dos autos, face à descrição clara e fundamentada dos factos integradores do crime de burla tributária (artigo 87.º do RGIT) e dos demais ilícitos criminais (burla qualificada, abuso de confiança e falsificação de documentos);
3. Determinar a realização da fase de instrução, como meio de garantir o apuramento cabal dos factos, a responsabilização dos arguidos e a tutela dos direitos do Recorrente.
Fazendo-se, assim, a habitual e acostumada JUSTIÇA!.
(...)”.
*
5. Admitido o recurso, pelo despacho de 01/04/2025, cuja cópia se mostra junta a fls. 32, e cumprido o estatuído no Artº 411º, nº 6, apresentou-se a responder o Ministério Público, pugnando pela sua improcedência, e pela manutenção das decisões recorridas.
*
6. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste tribunal da Relação emitiu o douto e fundamentado parecer que consta de fls. 108 / 111 Vº, defendendo, igualmente, a improcedência do recurso.
*
7. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, não foi apresentada qualquer resposta.
*
8. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

Como se sabe, é hoje pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal [3].

Assim sendo, no caso vertente, da leitura e análise das conclusões apresentada pelo recorrente, são as seguintes as questões que basicamente importa dirimir:
- Saber se o recorrente tem legitimidade para se constituir assistente nos autos; e
- Saber o requerimento de abertura da instrução (RAI) apresentado pelo recorrente contém a alegação de factos suficientes para preenchimento do tipo legal “imputado ao arguido”.

Vejamos, pois.
Começando pela pretendida constituição de assistente.
Como emerge dos autos, constata-se que, no âmbito do pertinente Inquérito, investigaram-se factos susceptíveis de, em abstracto, consubstanciar a prática de um crime de burla tributária, p. e p. pelo Artº 87º, nº 1, do RGIT, na sequência de queixa apresentada pelo recorrente BB contra a sociedade “EMP01..., Unipessoal, Lda.”.
Mais se constata que o Ministério Público, considerando que da certidão permanente da dita sociedade comercial resultava que a mesma tinha já averbada a sua dissolução, e encerramento da liquidação, bem como o cancelamento da respectiva matrícula desde ../../2023, e que também se mostrava comprovado que o legal representante da mesma sociedade também já havia falecido no dia ../../2023, ao abrigo das disposições conjugadas dos Artºs. 160º, nº 2, 162º a 164º, do Código das Sociedades Comerciais, 127º e 128º, do Código Penal, aplicáveis ex vi Artº 3º, al. a), do RGIT, e 277º, nº 1, do C.P.Penal, determinou o arquivamento dos autos.
E que, na sequência desse despacho de arquivamento, veio o denunciante BB solicitar a sua constituição como assistentes [e requerer a abertura de instrução], estatuto esse que lhe foi negado pelo primeiro dos despachos recorridos, dado o Mmº Juiz a quo ter entendido que, estando em causa factos susceptíveis de integrar a eventual prática de um crime de burla tributária, p. e p. pelo Artº 87º, nº 1, do RGIT, não lhe assistir legitimidade para o efeito, por não ter a qualidade de ofendido, conforme exige o Artº 68º, nº 1, al. a), do C.P.Penal.
O que é refutado pelo recorrente, que para o efeito aduz que não só se qualifica como ofendido, porque é prejudicado directamente pelas práticas denunciadas, mas que também é lesado, uma vez que sofreu prejuízos concretos em consequência dos factos denunciados, sendo certo que, para além do crime de burla tributária, previsto no Artº 87º do RGIT, denunciou outros factos que configuram a prática do crime de burla qualificada, previsto no Artº 218º, do crime de abuso de confiança, previsto no Artº 205º, e do crime de falsificação de documento, previsto no Artº 256º, todos do Código Penal.
Ora, adiantando a nossa posição, e com o devido respeito pela argumentação avançada pelo recorrente, cremos que a razão está do lado do tribunal a quo.
Desde logo se sublinhando não corresponder à realidade a afirmação supra aludida, segundo a qual, para além do crime de burla tributária, previsto no Artº 87º, nº 1, do RGIT, o recorrente denunciou outros factos que configuram a prática dos crimes de burla qualificada, previsto no Artº 218º, de abuso de confiança, previsto no Artº 205º, e de falsificação de documentos, previsto no Artº 256º, todos do Código Penal.
Pois, como linearmente se alcança do seu requerimento de abertura de instrução, supra transcrito, em tal peça processual o recorrente foi muito claro quanto ao ilícito que pretendia ver imputado às herdeiras de AA, falecido sócio-gerente da sociedade “EMP01..., Unipessoal, Lda.”, pugnando pela responsabilização criminal destas pelo crime de burla tributária [certamente por lapso fez alusão à burla informática], p. e p. nos termos do Artº 87º, nº 1, do RGIT, e não por qualquer outro ilícito criminal, em lugar algum do RAI descrevendo factos, ou enquadrando os aí descritos, nos tipos legais de crime que agora veio elencar no recurso apresentado.
Assim sendo, e como bem sublinha a Exma. PGA no seu douto parecer, “(...) invocando o recorrente, no referido RAI, a pretensa existência, nos autos, de factos subsumíveis, apenas, ao crime de burla tributária, somente este ilícito poderia estar na mira do Mmº J.I.C. ao apreciar a sua legitimidade para assumir o estatuto de assistente, pois é pela análise e exame da norma incriminadora que se vê qual o interesse que a lei quis proteger ao tipificar determinado comportamento humano como criminoso (...)”.
Feita esta precisão, há que atentar no teor do Artº 68º, nº 1, al. a), segundo o qual podem constituir-se como assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito os ofendidos, “Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos”.
O conceito de ofendido, para efeitos de legitimidade para a constituição como assistente, coincide com o conceito adoptado no Código Penal no Artº 113°, n° 1, para aferir da legitimidade para apresentar queixa, tendo sido inicialmente consagrado pelo Artº 11° do C.P.Penal de 1929 e, posteriormente, pelo Artº 4°, nº 2, do Decreto-Lei n° 35.007, de 13 de Outubro de 1945.
Segundo a lição do Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Primeiro Volume, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pág. 504, “diz-se ofendido, em processo penal, unicamente a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violado ou posto em perigo”.
Acrescentando o mesmo Mestre, na sua exposição, na pág. 512, plenamente válida perante o Código actual, que a nossa lei parte do conceito estrito de ofendido na determinação do círculo de pessoas legitimadas para intervir como assistentes em processo penal, sendo o princípio geral o que consta do transcrito preceito legal.
Na mesma linha de pensamento pronuncia-se o Exmo. Conselheiro Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal” Anotado e Comentado, 12ª edição, Almedina, 2001, pág. 219, que a este propósito assevera que, para efeito de constituição de assistente, “(...) não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime, mas somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime. O objecto jurídico mediato é sempre de natureza pública; o imediato, que continua a servir de base à classificação dos crimes no CP de 1982, pode ter por titular um particular. Nem todos os crimes têm ofendido particular; só o têm aqueles cujo objecto imediato de tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular.”.
Podemos, pois, afirmar com segurança, que só ao titular do interesse jurídico tutelado pela norma penal é reconhecida capacidade e legitimidade para intervir no processo penal como assistente.
Não havendo dúvidas, também, que a posição do assistente é a de colaboração com o Ministério Público, a cuja actividade subordina a sua intervenção, salvo as excepções previstas na lei (cfr. Artº 69º), e que para a decisão sobre a legitimidade da constituição como assistente, a aferição do interesse protegido é feita através dos factos denunciados na participação e no requerimento para abertura da instrução, e não pela prova resultante do inquérito.
Ora, na situação em apreço está em causa a eventual prática por banda das herdeiras de AA, falecido sócio-gerente da sociedade “EMP01..., Unipessoal, Lda.”, de um crime de burla tributária, p. e p. pelo Artº 87º, nº 1, do RGIT, segundo o qual “1 - Quem, por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro é punido com prisão até três anos ou multa até 360 dias.”.
Como elucida o Prof. Germano Marques da Silva, in “Direito Penal Tributário”, 2ª edição revista e ampliada, Universidade Católica Editora, Lisboa 2018, págs. 184/185, o bem jurídico tutelado por este tipo legal de crime é o património do Estado ou da Segurança Social como componente patrimonial do sistema tributário.
Trata-se de um crime de execução vinculada, uma vez que na descrição do tipo o seu cometimento tem de se verificar «por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos».
São elementos constitutivos deste crime:
- Uso de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos que sejam aptos ou idóneos a determinar a Administração Tributária ou a administração da Segurança Social a efetuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro; e
- O dolo do agente.
Neste conspecto, e como bem assinala a Exma. PGA no seu douto parecer, ao contrário do que se verifica com outros crimes de natureza pública, v.g., com o crime de falsificação, p. e p. pelo Artº 256.º, com o crime de abuso de poder, p. e p. pelo Artº 382º, ou com o crime de falsidade de depoimento ou declaração, p. e p. pelo Artº 359º, todos do Código Penal, relativamente aos quais se tem defendido doutrinária e jurisprudencialmente que os bens jurídicos aí protegidos tutelam, também, interesses de natureza particular, tal não sucede quanto ao tipo legal do crime de burla tributária à Segurança Social, p. e p. no Artº 87º, nº 1, do RGIT, cujo bem jurídico tutelado, como nos crimes fiscais, corresponde, exclusivamente, ao património público, traduzido no interesse do Estado na obtenção de receitas, não se vislumbrando quaisquer bens jurídicos de natureza particular que aí importe acautelar e defender.
Nessas circunstâncias, torna-se manifesto e evidente não poder ser acolhida a pretensão do recorrente no sentido de intervir nos autos como assistente, porquanto não é o titular do interesse jurídico-penal protegido pela norma incriminadora em causa nos autos.
Pelo que, não merecendo qualquer censura o despacho recorrido, que lhe negou tal possibilidade, por falta de legitimidade, soçobra o recurso, nessa parte.
Aqui chegados, em face do disposto no Artº 287º, nº 1, al. b), do C.P.Penal, não assumindo o queixoso e ora recorrente o estatuto de assistente nos autos, é-lhe vedada a possibilidade de requerer a abertura da instrução, o que prejudica o segmento recursivo relativo à (in)suficiência do RAI para o reclamado fim de abertura dessa fase processual.
Não obstante, e dado que essa questão acabou por ser expressamente abordada pelo Mmº JIC no âmbito do segundo dos aludidos despachos, há que referir que, ainda que ao queixoso e ora recorrente fosse reconhecido e atribuído o estatuto de assistente, o requerimento em causa, que apresentou nos autos no dia 17/10/2024, e que supra se mostra transcrito, sempre teria de ser rejeitado, como foi, por não cumprir minimamente os requisitos previstos no Artº 287º, nº 2, do C.P.Penal.

Vejamos.

Como prescreve o Artº 286º, nºs. 1 e 2, a instrução, que tem carácter facultativo, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
A este propósito, sublinha o Prof. Germano Marques da Silva [4] que, no nosso Código de Processo Penal, a fase de instrução foi estruturada com uma dupla finalidade: obter a comprovação jurisdicional dos pressupostos jurídico-factuais da acusação, por uma parte, e o controlo judicial da decisão processual do Ministério Público de acusar ou arquivar o inquérito, por outra.

Ora, dispõe o Artº 287º, nº 2, que o requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º.
Ou seja, sendo [a instrução] requerida pelo assistente, o respectivo requerimento deverá conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada - al. b) - e a indicação das disposições legais aplicáveis – al. c).
O que significa que, tendo-se abstido o Ministério Público de acusar (é este um pressuposto essencial para legitimar a intervenção do assistente), o requerimento de abertura da instrução apresentado por este tem de conter, substancialmente, uma verdadeira acusação, de molde a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório, bem como a elaboração da decisão instrutória [5].
Há que ter ainda em conta o disposto no Artº 303º, que vincula o juiz aos factos descritos no requerimento de abertura de instrução, prescrevendo o nº 3 desse preceito legal que uma alteração substancial dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em curso, nem implica a extinção da instância.
Bem como o nº 3 do citado Artº 287º, que nos aponta as três causas de rejeição do requerimento de abertura de instrução: extemporaneidade; incompetência do juiz; ou inadmissibilidade legal da instrução.
Cabem no conceito de inadmissibilidade legal da instrução realidades diversas, como a circunstância de o requerimento do assistente “não conformar uma verdadeira acusação”, não sendo o mesmo admissível se dele não constar a descrição da conduta típica (com os seus elementos objectivos e subjectivos) com a indicação das disposições legais violadas ou indicação do arguido, pois é o próprio procedimento que não pode prosseguir por falta dos pressupostos de objecto e de arguido [6].
Cumpre referir, também, não se afigurar inconstitucional a norma em causa, do Artº 283º, nº 3, als. b) e c), quando interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas.

Entendimento esse que já foi expressamente afirmado pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 358/2004, de 19/05/2004 [7], no qual a propósito se expendeu:
“Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe (...) uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.

Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre (...) de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada.
Será, porém, aceitável a exigência de que tal menção seja feita por remissão para elementos dos autos, ou pelo contrário, será inconstitucional, por violação do direito ao acesso aos tribunais, que seja vedada a possibilidade de tal indicação ser feita por remissão para elementos dos autos?
A resposta é negativa.
Com efeito, a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.
De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.
Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.
Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.”.
Sufragando-se inteiramente este entendimento, poderá, no entanto, perguntar-se: perante um requerimento de abertura de instrução que não contenha tais elementos, ou que os contenha em termos deficientes, não deverá o juiz de instrução convidar o assistente a aperfeiçoar essa peça processual?
A resposta é negativa.
Na verdade, de acordo com o consignado no Acórdão de Fixação de Jurisprudência de nº 7/2005, de 12/05/2005, in DR I Série A, de 04/11/2005, “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.
Ali se expendendo que “o preenchimento das lacunas em processo penal pelo recurso ao processo civil, ao princípio da cooperação, conhece um intransponível limite: o da não harmonização das finalidades descritas quanto ao último ramo de direito àqueloutro, por força do artigo 4º do CPP.
Que (…) A falta de narração de factos na acusação conduz à sua nulidade e respectiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada, nos termos dos artigos 283º, nº 3, alínea b), e 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do CPP. A manifesta analogia entre a acusação e o requerimento de instrução pelo assistente postularia, em termos de consequências endoprocessuais, já que se não prevê o convite à correcção de uma acusação estruturada de forma deficiente, quer factualmente quer por carência de indicação dos termos legais infringidos, dada a peremptoriedade da consequência legal desencadeada – o ser manifestamente infundada, igual proibição de convite à correcção do requerimento de instrução, que deve, identicamente, ser afastado.”.
Que (…) O convite à correcção encerraria, isso sim, uma injustificada e desmedida, por desproporcionada, compressão dos seus direitos fundamentais, em ofensa ao estatuído no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da CRP, que importa não sancionar.”.
Que “Sem acusação formal o juiz está impedido (...) de pronunciar o arguido, por falta de uma condição de prosseguibilidade do processo, ligada à falta do seu objecto, e, mercê da estrutura acusatória em que repousa o processo penal, substituindo-se o juiz ao assistente no colmatar da falta de narração dos factos, enraizaria em si uma função deles indagatória, num certo pendor investigatório, que poderia ser acoimado de não isento, imparcial e objectivo, mais próprio de um tipo processual de feição inquisitória, já ultrapassado, consequenciando, como, com proficiência, salienta a ilustre procuradora-geral-adjunta neste Supremo Tribunal de Justiça, «uma necessária e desproporcionada diminuição das garantias de defesa do arguido», importando violação das regras dos artigos 18.º e 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, colocando, ao fim e ao cabo, nas mãos do juiz o estatuto de acusado do arguido, deferindo-se-lhe, contra legem, a titularidade do exercício da acção penal.”.
E que “(…) O requerimento de abertura de instrução nenhuma similitude apresenta com a petição inicial em processo cível, em termos de merecer correcção, enfermando de deficiências, nos termos do artigo 508.º, n.º 1, alínea b), do CPC, por, se com aquela se introduz, inicia, o pleito em juízo, é com a queixa que se inicia o processo, cabendo ao requerimento de abertura de instrução uma exposição dos factos que, comprovados, com a maior probabilidade, tal como sucede com os vertidos na acusação, sugerem que o arguido, mais do que absolvido, será condenado, numa óptica de probabilidade em alto grau de razoabilidade, inconfundível com uma certeza absoluta, aquela excludente de as coisas terem acontecido de dada forma prevalente, em detrimento de outra”.           
Também o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta temática, designadamente através do Acórdão nº 175/2013, de 20/03/2013 [8], considerando “Não julgar inconstitucional a norma resultante do artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal, com referência ao artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), do mesmo Código, segundo a qual não é admissível a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente e que não contenha o essencial da descrição dos factos imputados aos arguidos, delimitando o objecto fáctico da pretendida instrução”.
Do exposto, extrai-se claramente que, quando o requerimento do assistente para a abertura de instrução não narra os factos que integram um crime, ou não os narra de modo suficiente, não pode haver pronúncia, sob pena de violação dos Artºs. 303º, 283º, nº 3, als. b) e c), do C.P.Penal, e 32º, nºs. 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, a pronunciar-se o arguido por factos que não constam do requerimento de abertura de instrução e que importam uma alteração substancial dos mesmos, tal configuraria também uma nulidade, prevista no Artº 309º, nº 1.
Finalmente, há que ter também em consideração a jurisprudência constante do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015, de 20/11/2014, in DR I Série, nº 18, de 27/01/2005, segundo a qual “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358º do Código de Processo Penal.”.
Jurisprudência essa que vale, naturalmente, para o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, pois que este funciona como uma verdadeira acusação (cfr. Artº 303º, nº 3).
Isto posto, passando à análise da concreta situação verificada nos presentes autos, facilmente se constata que o requerimento de abertura de instrução (RAI) oportunamente apresentado pelo queixoso BB efectivamente não contém os elementos objectivos e subjectivos do crime de burla tributária, p. e p. pelo Artº 87º, nº 1, do RGIT, que imputa às herdeiras de AA, falecido sócio-gerente da sociedade “EMP01..., Unipessoal, Lda.”, já supra sumariante enunciados.
Com efeito, transcorrendo o RAI apresentado pelo queixoso BB verifica-se que o mesmo começa por não identificar, sequer, de forma suficiente, as ditas herdeiras do sócio-gerente falecido, referenciando apenas os seus nomes como sendo “DD e EE, concretamente cônjuge e filha do falecido sócio-gerente da sociedade “EMP01..., Unipessoal, Lda.”.
E, quanto ao mais, o queixoso BB, basicamente, limita-se a tecer críticas ao despacho de arquivamento por banda do Ministério Público, a formular juízos de valor, a tecer considerações sobre a inadequação da conduta das herdeiras do aludido sócio-gerente, não descrevendo, como se impunha, a actuação concreta das mesmas, sendo certo que nos poucos factos que objectivamente relata, fá-lo de uma forma totalmente genérica e insuficiente para preencher cabalmente os elementos objectivos do imputado ilícito criminal.
Ou seja, e dito de outro modo, naquela peça processual o queixoso BB não narra com o mínimo de objectividade que se impunha os factos concretos que conduziriam à pretendida incriminação, isto é, as circunstâncias de tempo, de modo e de lugar da sua prática, limitando-se aí a afirmar que as pessoas em causa “encerraram a sociedade comercial quando tiveram conhecimento dos processos judicias pendentes contra a mesma“, bem como a colocar diversas questões sobre a sua segurança jurídica no cenário de tal encerramento, tecendo considerações teóricas várias sobre esse conceito.
Perpassando por todo o RAI uma forma descritiva com imprecisões, considerações e comentários que não são juridicamente aceitáveis num libelo com as características que, inexoravelmente, deve evidenciar um requerimento de abertura de instrução, documento que, na indispensável parte de imputação, tem de ser uma narração enxuta dos factos, que enuncie em que consistiu, no concreto, a conduta do(s) arguido(s), segundo a composição do tipo legal de crime convocado, o qual poderia considerar-se satisfatório se vocacionado para veicular uma denúncia, ou mesmo uma intervenção hierárquica, mas nunca como requerimento de abertura de instrução.
Ademais, há que referir que o RAI apresentado pelo queixoso BB também é manifestamente deficitário na descrição factual quanto aos elementos subjectivos do ilícito criminal em causa, o que seria essencial e decisivo para a eventual punibilidade do comportamento do(s) arguido(s).
Verifica-se, pois, uma clara omissão na alegação factual decisiva ao preenchimento dos elementos do tipo de crime em causa, quer ao nível objectivo, quer ao nível subjectivo.
Não podendo o juiz de instrução, pelas razões jurídicas anteriormente aduzidas - mesmo que durante as diligências de instrução concluísse pela existência de indícios da prática por banda do(s) arguido(s) de um ou mais crimes - alterar ou criar por si a factualidade em falta, nem tampouco convidar o assistente [se esse estatuto lhe tivesse sido conferido] a suprir as falhas detectadas.
Bem andou, pois, o Mmº Juiz a quo em rejeitar liminarmente o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo queixoso BB, por não descrever “factos equivalente a uma acusação”, tal como definida no Artº 283º, transformando a fase de instrução – se admitido o recorrente a intervir nos autos como assistente e se equacionasse a abertura de instrução –  numa fase processual inútil e inexequível, por não possuir objecto.
Pelo que, sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, não tendo sido violada nenhuma das normas legais e/ou constitucionais trazidas à liça pelo recorrente [9], nem qualquer outra, nenhuma censura nos merecem os despachos recorridos, que se confirmam, sendo manifesta a improcedência do recurso.
           
III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo queixoso BB, confirmando-se, consequentemente, as decisões recorridas.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 (quatro) UC a taxa de justiça - Artºs. 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, do Reg. Custas Processuais, e Tabela III anexa ao mesmo.

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos, contendo na primeira página as assinaturas electrónicas certificadas dos signatários – Artºs. 94º, nº 2, do C.P.Penal, e 19º, da Portaria nº 280/2013, de 26 de Agosto).
*
Guimarães, 16 de Setembro de 2025

Os Juízes Desembargadores:          
António Teixeira (Relator)
Carlos da Cunha Coutinho (1º Adjunto)
Bráulio Martins (2º Adjunto)


[1] Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
[2] Diploma ao qual pertencem todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem.
[3] Cfr., neste sentido, o Prof. Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e sgts., e o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém actualidade.
[4] In “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 126.
[5] Cfr., neste sentido, o Prof. Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 133 e sgts.
[6] Cfr. o Prof. Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, págs. 141/142.
[7] Disponível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040358.html.
[8] Disponível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130175.html.
[9] Não se vislumbrando em que medida foram violados o direito de acesso à justiça e o princípio do contraditório. Pois, se o recorrente se vê privado, como diz, “de ver os factos devidamente investigados e apurados em sede de instrução”, tal circunstância apenas se deve a si próprio, por ter falhado, de forma flagrante, na descrição factual dos elementos objectivos e subjectivos do ilícito criminal que convocou no seu RAI, ou seja, do crime de burla tributária, p. e p. pelo Artº 87º, nº 1, do RGIT.