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CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
CONVOLAÇÃO
LEGITIMIDADE PARA O EXERCÍCIO DA ACÇÃO PENAL
Sumário
I – A degradação do crime de violência doméstica para o crime de ofensa à integridade física simples suscita a questão da legitimidade do Ministério Público para a promoção do processo neste particular, já que tal legitimidade não é absoluta, antes sofrendo as restrições constantes dos Artºs. 49º e 50º do C.P.Penal, o que significa que, nos crimes de natureza semipública, a intervenção do Ministério Público está dependente do exercício atempado do direito de queixa e, quanto aos crimes de natureza particular, está ainda dependente da constituição como assistente e oportuna dedução de acusação particular (cfr. Artº 285º do C.P.Penal). II – Naquelas situações que começam por ser qualificadas como crime de violência doméstica e que, pelas vicissitudes inerentes à produção de prova, acabam por permitir apenas o preenchimento de um crime natureza particular, seria injusto que o assistente fosse penalizado por ter omitido um ato processual que nem sequer lhe era legalmente permitido praticar (a dedução de acusação particular por crime de natureza pública). III - Nesse decorrência, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 9/2024, de 29/05/2024, veio fixar a seguinte jurisprudência: “O Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da ação penal e o assistente a legitimidade para a prossecução processual, nos casos em que, a final do julgamento, por redução factual de acusação pública por crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152º, nº 1, do Código Penal, são dados como provados os factos integrantes do crime de injúria p. e p. no artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público”. IV – Esta solução deverá ser transposta para os crimes semipúblicos. Pois, embora a questão ali colocada pressuponha estar-se perante um crime de natureza particular, como é o crime de injúria, o entendimento nele expresso no que tange aos seus fundamentos aplica-se, em larga medida, aos crimes de natureza semipública. Isso mesmo é afirmado por aquele Alto Tribunal no mencionado Acórdão de Fixação de Jurisprudência, nos seguintes termos: «Como se sabe, o princípio da oficialidade do processo consagrado no artigo 219.º, n.º 1, da CRP, refletido nos artigos 48.º do CPP, 2.º e 4.º da L. 68/2019, de 27/08, (EMºPº) e 3.º da L. 62/2013, de 26/08,(LOSJ), segundo o qual a promoção processual dos crimes é tarefa estadual a realizar oficiosamente e em completo alheamento da vontade e da atuação dos particulares, atribuindo-se ao MºPº a iniciativa e promoção processuais, não vale para os crimes semipúblicos, cujo procedimento está dependente de prévia queixa, nem para os crimes particulares, cujo procedimento, além da prévia queixa e da prévia constituição como assistente, depende também de dedução de acusação particular. (48.º, 49.º e 50.º CPP). Quer a queixa (...) quer a acusação particular são pressupostos positivos de punição e, nos casos em que o procedimento depende das respetivas pré-existências, sem elas falha a legitimidade do MP para o exercício da ação penal.».
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães I. RELATÓRIO
1. No âmbito do Processo Comum Colectivo nº 1077/23.6PBGMR, do Juízo Central Criminal de Guimarães, Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi submetido a julgamento o arguido:
AA, solteiro, filho de BB e CC, natural da freguesia ..., concelho ..., nascido em ../../1985, residente na Avenida ..., ..., ..., ..., ..., ....
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2. Em 17/03/2025 foi proferido o acórdão constante de fls. 518 / 538 Vº, depositado no mesmo dia, do qual se extrai o seguinte dispositivo (transcrição [1]):
“Em conformidade com o exposto, decide este tribunal: --- Absolver o arguido AA da prática de um crime de violência doméstica, na pessoa do seu filho DD, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, al. e), n.º 2, 4 e 5, do Código Penal, pelo qual vinha acusado; --- Condenar o arguido AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1, do Código Penal, no qual se convolou o crime de violência doméstica supra referido e do qual o arguido foi absolvido, na pena de 1 (um) ano de prisão; --- Condenar o arguido AA pela prática de um crime de violência doméstica, agravado, na pessoa da sua ex-companheira, EE, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alíneas b) e nº 2, al. a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão; --- Condenar o arguido AA pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art. 153º, n.º 1 e art. 155º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão, absolvendo-o da prática do remanescente crime de ameaça pelo qual vinha acusado;
--- Condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão; --- Suspender a execução da pena de prisão aplicada por igual período de 3 (três) anos e 8 (oito) meses, com sujeição a regime de prova, assente num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social [art. 53.º, nº 1 e 2 do Código Penal], com a condição de, nesse período, se submeter a uma avaliação psiquiátrica especializada e a todos os tratamentos que se venham a revelar necessários para controlo da(s) patologia(s) e/ou distúrbio(s) que se venha a apurar que padece e, ainda, à condição de não contactar com a ofendida EE e com o ofendido FF, por qualquer meio e deles se manter afastado, nomeadamente, da sua residência e local de trabalho; --- Condenar o arguido na pena acessória de proibição de contactos, por qualquer meio, com a assistente EE, pelo período de 3 (três) anos, com fiscalização desta pena acessória através de meios técnicos de controlo à distância, nos termos do art. 152º, n.º 4 e 5, do Código Penal; --- Condenar o arguido no pagamento das custas criminais, nos termos do artigo 512.º, n.º 1, n.º 2 e n.º 3 do Código de Processo Penal, incluindo os encargos (artigo 513.º do CPP), fixando-se a taxa de justiça em duas unidades de conta, nos termos do artigo 8.º, n.º 9 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.
(...)”.
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3. Inconformado com tal decisão, dela veio o arguido interpor o presente recurso, nos termos da peça processual junta a fls. 542/550, cuja motivação remata com as seguintes conclusões e petitório (transcrição):
“I. O presente recurso tem como objecto os segmentos do Acórdão recorrido em que se condenou o Recorrente pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1, do C. Penal, na pena de um ano de prisão, e pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art. 153º, n.º 1 e art. 155º, n.º 1, al. a), do C. Penal, na pena de oito meses de prisão. II. O arguido Recorrente não se conforma com a sua condenação pela prática do crime de ofensa à integridade física, na pessoa do menor DD, desde logo porque, nos termos do n.º 3, do artigo 143º, do C.Penal, o respetivo procedimento criminal depende de queixa. III. Por outro lado, o Recorrente foi condenado pela prática de tal crime na sequência do facto provado 1.10 do Acórdão recorrido, ocorrido, por isso, «durante o ano de 2021», do qual teve conhecimento imediato a progenitora e representante legal do ofendido, menor. IV. Estando em causa crimes dependentes de queixa (crimes semipúblicos e particulares – como é o caso do crime de ofensa à integridade física), a queixa tem de ser apresentada no prazo de 6 meses, sob pena de extinção do respetivo direito, cfr. n.º 1, do art. 115º, do C.Penal. V. Ora, no presente caso, conforme resulta do Acórdão recorrido, e resultava já da acusação, os factos em causa ocorreram «durante o ano de 2021», e a primeira notícia dos mesmos apenas surge, nos autos, em 19.04.2024, no âmbito da inquirição da mãe do ofendido menor, EE, conforme auto de inquirição de fls. 83, sob a refª ...35, na qual esta assume, inclusive, que não havia apresentado queixa. VI. Assim, não foi apresentada qualquer queixa no prazo de 6 meses a contar da data em que o titular do direito à queixa teve conhecimento de tais factos (durante o ano de 2021), pelo que o Ministério Público carecia de legitimidade para a investigação, sendo legalmente inadmissível o procedimento criminal - cfr. artigos 48º e 49º do C.Penal e 113º e 115º, n.º 1, do Cód. Penal. VII. E, sendo inadmissível o procedimento criminal, no caso dos autos, o mesmo é inválido, e até ineficaz, em consequência do que também a condenação do Recorrente pela prática de um crime de ofensa à integridade física deverá ser declarada inválida e ineficaz, devendo, consequentemente, ser revogado o Acórdão recorrido, declarando-se extinto o procedimento criminal e absolvendo-se o recorrente do crime de ofensa à integridade física. VIII. O arguido Recorrente também não se conforma com a sua condenação pela prática do crime de ameaça agravada, na pessoa do ofendido FF, na sequência dos factos provados 1.33, 1.36 e 1.38 do Acórdão recorrido. IX. Para que se preencha o tipo objetivo do crime de ameaça é necessário que exista uma ameaça de um mal futuro que constitua crime, de natureza pessoal ou patrimonial, cuja ocorrência dependa da vontade do agente. X. Sucede que da prova produzida, e atentas as circunstâncias em que foram proferidas as expressões ameaçadoras, não resulta inequivocamente se o mal anunciado é, ou não, futuro, ou, sequer, que qualquer homem médio, com as características do ofendido, o entendesse como exprimindo uma ideia de futuro. XI. Além do mais, o Acórdão recorrido é omisso quanto à verificação, ou não, desta premissa, nada concluindo sobre se o mal anunciado pelo arguido Recorrido era, afinal, ou não, um mal futuro. XII. Assim, levanta-se uma dúvida séria sobre a verificação de tal elemento de facto, dúvida essa que deverá, consequentemente, ser solucionada a favor do arguido, em obediência ao princípio “in dubio pro reo”, absolvendo-se o Recorrente da prática do crime de ameaça. XIII. Por outro lado, a ameaça, conforme entendimento vertido no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 19.06.2017, no Proc. n.º 28/16.4T9MDL.G1, disponível in www.dgsi.pt, «tem de revestir carácter de seriedade, acompanhado da intenção de causarmedo ou inquietação no ofendido, no enquadramento da aparência externa de o agente estar resolvido a praticar o facto, e o mal nela contido deve ser adequado a vencer a vontade doameaçado, segundo um critério objectivo-individual: (…) individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das sub-capacidades do ameaçado)». XIV. Ora, também no que respeita à verificação deste requisito o Acórdão recorrido é omisso, nada concluindo, afinal, sobre se a(s) ameaça(s) proferida(s) revestiu(ram), ou não, o carácter de seriedade necessário, se foi acompanhada da intenção de causar medo ou inquietação no ofendido, e se o mal nela contido foi adequado a vencer a vontade do ameaçado, segundo o indicado critério objectivo-individual, nem porquê. XV. Pelo que, levantando-se uma dúvida séria sobre a verificação de tal requisito, a mesma deverá, consequentemente, ser solucionada a favor do arguido, em obediência ao princípio “in dubio pro reo”, absolvendo-se o Recorrente da prática do crime de ameaça. XVI. Além do mais, tudo indica, a avaliar pelas declarações do próprio ofendido em julgamento (do minuto 15.13 ao minuto 15.20 do seu depoimento), não se ter verificado, afinal, tal requisito, porquanto delas resulta que as expressões do arguido recorrente não lhe causaram, ou não lhe provocaram, afinal, qualquer tipo de medo, o que significa que as mesmas não revestiram a intensidade e a seriedade necessárias e adequadas a causar-lhe qualquer tipo de medo ou inquietação, não foram suscetíveis de o intimidar ou intranquilizar (de acordo com o referido critério individual, relevando as características psíquico-mentais do ofendido, ameaçado). XVII. Pelo exposto, mal andou o Acórdão recorrido ao ter condenado o Recorrente pela prática do crime de ameaça (agravado), por força do principio “in dubio pro reo” e da não verificação do requisito do carácter de seriedade da ameaça, devendo, por isso, ser revogado e substituído por outro que absolva o recorrente da prática de tal crime.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se parcialmente o Acórdão recorrido, substituindo-o por outro que extinga o procedimento criminal no que respeita ao crime de ofensa à integridade física, absolvendo-se o Recorrente da prática de tal crime, e que absolva o Recorrente pela prática do crime de ameaça, só assim se fazendo INTEIRA E COSTUMADA JUSTIÇA!”.
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4. Cumprido o disposto no Artº 411º, nº 6, do C.P.Penal [2], apenas se apresentou a responder o Ministério Público. O que fez nos termos que constam de fls. 552/559, pugnando pela improcedência do recuso e pela manutenção do acórdão recorrido, rematando o Exmo. Procurador da República subscritor a sua douta peça processual com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):
“1.ª – No que envolve o alegado erro de julgamento no assacar à decisão a omissão “sobre se o mal anunciado pelo arguido Recorrido era, afinal, ou não, um mal futuro”, e bem assim “se a(s) ameaça(s) proferida(s) revestiu(ram), ou não, o carácter de seriedade necessário, se foi acompanhada da intenção de causar medo ou inquietação no ofendido, e se o mal nela contido foi adequado a vencer a vontade do ameaçado, segundo o indicado critério objectivo-individual, nem porquê”, com todo o respeito que nos merece a opinião contrária, em face do teor da motivação será de considerar que o recurso interposto pelo ora recorrente terá de ser considerado como restrito a matéria de direito, no que de inequívoco resulta a falta de cumprimento do disposto no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal para se afirmar estar perante a impugnação ampla da matéria de facto;
2.ª - Como se escreveu no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18 de Dezembro de 2024 no processo: 604/19.8JABRG.G1 (…) será de considerar que uma vez que o recorrente “não cumpre o estabelecido nos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, omitindo a indicação dos concretos meios de prova que impõe decisão diversa, em face do disposto no art. 431.º, al. b), do CPP” fica o tribunal superior impossibilitado de modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto, e assim “devendo ter-se por fixada e intocável” e os “seus poderes de cognição circunscritos à matéria de direito e à apreciação dos vícios de conhecimento oficioso (v.g. os previstos nas als. do n.º 2 do art. 410.º do CPP), devendo ser rejeitado o recurso no tocante à impugnação da matéria de facto.”
3.ª - E neste ponto e aqui situados é possível observar que, para além de não terem sido invocados, também nós não verificamos que a decisão proferida padeça de qualquer dos vícios previstos nas diversas alíneas do n.º2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, pois que o que o recorrente fez foi o recorrente trabalho (na nossa perspectiva inglório) de pretender colocar em causa o exame crítico da prova realizado pelo tribunal, contrapondo o seu ponto de vista, mas ainda assim sem qualquer concreto e específico dado objectivo mas apenas alicerçado em meras generalidades que podem ser aplicadas a todas, quaisquer ou nenhumas decisões judiciais ou ainda àquilo que constituiu a pretensão de ver acolhida a sua própria versão dos factos mas que naquela fundamentação explanada pelo tribunal a quo claudica de forma exuberante em função dos elementos de prova ali mencionados.
4.ª – Assume-se a argumentação aduzida como uma visão redutora e simplista na forma como surge analisado o conjunto de prova pessoal produzida no julgamento condensando em meros 7 segundos de um depoimento com largos minutos, sempre sendo de afirmar que na forma como surge o todo explanado na motivação de recurso a propósito do invocado erro de julgamento em comparação com a respetiva extensão e daquilo que surge refletido na explanação da fundamentação da matéria de facto do acórdão proferido nos autos e para a qual remetemos para a sua íntegra surge inequívoco que, para além do que surge referido no douto acórdão a propósito do que foram as diversas declarações não surge minimamente beliscado por aquilo que o recorrente refere na sua motivação.
5.ª - Resulta do acórdão que a matéria de facto dada como provada faz pleno, justo e adequado eco da prova efetivamente produzida em audiência de julgamento, em obediência ao o princípio da livre apreciação da prova no adequado juízo de valoração, fundamentado de modo lógico e racional.
6.ª - E perante o todo exposto no douto acórdão condenatório em contraposição com aquilo que é referido na motivação de recurso é nosso modesto entendimento que a prova produzida em audiência, não desmente, minimamente, o juízo efetuado pelos MM.ºs Juizes a quo quanto à credibilidade daquele conjunto de declarações e na qual estribou a sua convicção e que ali consta expressamente vertido e à análise da prova documental na sua integração e compreensão para a afirmação daquela convicção.
7.ª - E naquilo que aliás surge referido na fundamentação do douto acórdão, o tribunal firmou a sua convicção, justificando-a, tendo decidido com base na certeza alcançada sobre a realidade dos factos, no quadro de uma verdade histórico-prática e processualmente válida, pelo que não vislumbramos razões para que seja alterada a matéria de facto provada com base nas provas indicadas.
8.ª - E no que envolve a alegada violação do princípio do in dubio pro reo para além de, na nossa perspetiva (que também parece ser a perspetiva do recorrente) a decisão sobre a matéria de facto assentar exclusivamente em provas válidas, produzidas em audiência, temos para nós que o Tribunal a quo considerou provados todos os factos relevantes relativos ao agora recorrente o que fez para além de qualquer dúvida razoável sobre qualquer deles, sem dúvidas em fixar a ocorrência dos factos tal como se encontram descritos, seja no plano dos elementos objetivos seja no plano dos elementos subjectivos com relação ao crime de ameaça em causa;
9.ª - Não decorre do acórdão a existência ou confronto do julgador com qualquer dúvida insanável sobre factos dados como provados, motivo pelo qual não houve nem há dúvida para ser valorada a seu favor, não tendo aqui aplicação o princípio in dubio pro reo e não tendo, em consequência, sido violado aquele princípio constitucional que é a presunção de inocência.
10.ª - Nestes termos na consideração que inexiste fundamento para que seja alterada a matéria de facto dada como provada relativamente ao crime em causa resulta pacífico no nosso entendimento que se verifica o preenchimento dos elementos do tipo do crime de ameaça agravado pelos quais o arguido, ora recorrente, foi condenado, aderindo-se sem rebuços ao teor da fundamentação de direito explanada do acórdão colocado em crise;
11.ª - No que envolve a questão colocada pelo recorrente a propósito da matéria atinente ao crime de ofensa à integridade física simples pelo qual foi condenado, como é bom de ver que tal como o acórdão assim espelha, mas naquilo que não transparece da argumentação aduzida pelo recorrente, com a acusação publica e a submissão a julgamento do arguido não estava em causa a imputação de um singelo e mero crime de ofensa à integridade física na pessoa daquele mas sim a imputação de um crime de violência doméstica numa factualidade vertida nos particularmente nos artigos 12 e 46 (cfr. referência ...63);
12.ª – E perante o que ocorreu por virtude do julgamento foi a “degradação” do imputado crime de violência doméstica num crime de ofensa à integridade física na pessoa de DD e trazendo à colação o decidido no AUJ n.º 9/2024 e em face dos elementos que os autos incorporam – cfr. designadamente fls. 4 a 8, 59, 83, 84, 132 a 143 e 500, e na doutrina que constitui aquele AUJ de afirmar que in casu o Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da ação penal e legitimidade para a prossecução processual, por redução factual de acusação pública por crime de violência doméstica e onde são dados como provados os factos integrantes do crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo artigo 143.º, n.º1 do Código Penal.
13.ª - O douto acórdão não violou qualquer preceito legal e nele se decidiu conforme a lei e o direito.
Deve, assim, o recurso interposto ser julgado improcedente e, desta forma, mantido o douto acórdão recorrido nos seus precisos termos.
Assim farão Vossas Excelências,
Senhores Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães
como sempre,
JUSTIÇA”.
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5. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal da Relação emitiu o douto parecer junto a fls. 561/564, sustentando, em síntese, assistir razão ao recorrente no que tange à falta de legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal quanto ao crime de ofensa à integridade física na pessoa do menor DD, mas que, quanto ao mais, deve improceder o recurso.
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6. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, veio o recorrente declarar não pretender responder ao aludido parecer do Ministério Público, prescindindo, assim, do prazo para o efeito (cfr. fls. 565/566)
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7. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. É hoje pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal [3].
Assim sendo, na situação em apreço, atenta a conformação das conclusões formuladas pelo recorrente, são as seguintes as questões que basicamente importa decidir:
- Saber se o Ministério Público carecia de legitimidade para a promoção do processo relativamente ao crime de ofensa à integridade física, uma vez que não foi apresentada queixa relativamente a tais factos; e
- Saber se [não] se verificam os elementos constitutivos do crime de ameaça.
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2. Porém, para uma melhor compreensão das questões colocadas e uma visão exacta do que está em causa, vejamos, antes de mais, quais os factos que o Tribunal a quo deu como provados, e bem assim a fundamentação acerca de tal factualidade. 2.1. O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):
“1.1. O arguido e a ofendida EE mantiveram uma relação análoga às dos cônjuges, com coabitação, em data não concretamente apurada do período de 2008 e 2018. 1.2. Desta união nasceram dois filhos: DD e GG, em 14/01/2013 e 01/11/2014, respetivamente. 1.3. DD é portador de síndrome de autismo, grau médio, e de défice de atenção e hiperatividade. 1.4. Em data não concretamente apurada de finais do ano de 2018 no interior da residência comum do casal o arguido desferiu uma bofetada na face da ofendida, causando-lhe dores. 1.5. Durante o referido período no interior da residência comum o arguido apodou a ofendida de vaca e puta, ao mesmo tempo que lhe dizia que era uma péssima mãe. 1.6. Após essa data a ofendida e o arguido terminaram o seu relacionamento, partilhando, porém, a mesma habitação até data não apurada do mês de Agosto de 2020. 1.7. Em data não concretamente apurada do mês de Agosto de 2020, a ofendida deixou de residir em ..., alterando a sua residência para .... 1.8. Em data não apurada do mês de março de 2021 o arguido dirigiu-se à sua residência sita em ... e, na presença dos filhos de ambos solicitou à ofendida as chaves do carro, tendo a mesma dito que não; 1.9. De imediato o arguido desferiu um número indeterminado de pontapés e murros na porta. 1.10. Em data não concretamente apurada, durante o ano de 2021, o arguido foi até à residência da ofendida tomar conta dos filhos, enquanto esta foi trabalhar; em razão de o filho ter recusado estudar, o arguido desferiu-lhe um estalo na cara, deixando-a marcada, com o formato da sua mão, marca essa que se manteve durante algumas horas. 1.11. Desde Março de 2021, pelo menos em 6 ocasiões distintas, quando se deslocava à residência da ofendida em ..., na presença dos seus filhos ou quando estabelecia contacto telefónico com a mesma o arguido dirigia-se a si e dizia-lhe “puta, vaca, és uma merda, não vales nada”, “Se te apanho na rua, passo-te com o carro por cima! Não és mãe nenhuma! Só andas com homens!”. 1.12. Durante o referido período, o arguido foi até à residência da ofendida e, em Agosto de 2022, porque esta não lhe abriu a porta, tentou forçar a fechadura, deixando a mesma em pânico. 1.13. Em datas não concretamente apuradas, mas em Dezembro de 2022 e Janeiro de 2023, o arguido enviou mensagens à ofendida, dizendo que se ia matar. 1.14. No período compreendido do início do ano de 2023 até Junho de 2023, diariamente quando se deslocava à residência da ofendida em ..., ou quando estabelecia contacto telefónico com a mesma o arguido dirigia-se a si e dizia-lhe “puta, vaca, és uma merda, não vales nada”; 1.15. Desde data não apurada do início do ano de 2023 e, pelo menos até ao Verão de 2023 o arguido através de contacto telefónico e envio de mensagens solicitou à ofendida, semanalmente, para reatar a relação, para desistir dos processos judiciais, tendo ainda lhe solicitado dinheiro. 1.16. Nas referidas circunstâncias o arguido dirigia-se a si e dizia-lhe que a ia matar, que lhe passava o carro por cima, que lhe cortava o pescoço e lhe roubava as crianças. 1.17. Entre Fevereiro e Março de 2023 e até Novembro de 2023, mês em que a ofendida bloqueou o seu contacto, o arguido, pelo menos uma vez por mês, telefonou-lhe, dizendo “Passo-te o carro por cima! Ninguém me pára! Estou na merda por tua causa! Filha da puta! És uma puta!”. 1.18. Em data não apurada do mês de Março ou Abril de 2023, o arguido telefonou à ofendida e, a propósito de um perfil falso de Facebook em seu nome, que enviaria mensagens insultuosas ao arguido, este disse-lhe “eu vou-vos limpar!”, referindo-se à ofendida e aos pais do próprio. 1.19. No dia 17/11/2023, realizou-se conferência de pais, no âmbito de processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais dos filhos de ambos, e, nessa sequência desagradado com o desfecho, nesse mesmo dia, pelas 17h00, o arguido foi ao encontro da ofendida, no momento em que saía do Centro Escolar ..., acompanhada dos filhos. 1.20. Nas referidas circunstâncias o arguido em tom alto e agressivo disse-lhe, que não seria nenhum Juiz, Procurador ou Polícia que o impediria de estar com os filhos, após o que abandonou o local. 1.21. De seguida a ofendida seguiu caminho, apeada, até casa e ao aproximar-se da sua residência, viu o arguido parado no meio da rua e, com receio, colocou os filhos no interior de um estabelecimento comercial denominado “EMP01...”, enquanto telefonou à PSP. 1.22. Nesse momento, o arguido aproximou-se e, encostando-se à ofendida, disse-lhe que lhe ia limpar o sebo, que lhe ia passar com o carro por cima, que lhe ia dar duas chapadas apodando-a ainda de mentirosa. 1.23. No início do corrente ano de 2024, o arguido, pelo menos de 10 números diferentes telefonou à ofendida e, esta após atender e ouvir a sua voz, desligou a chamada e bloqueou os contactos. 1.24. Em data não apurada de Janeiro de 2024 no Centro de Saúde ... o arguido ligou para a ofendida e disse-lhe para voltar para si. 1.25. Nas referidas circunstâncias disse-lhe ainda “eu vou-te fazer a vida negra”; 1.26. Em 27/02/2024, foi o arguido constituído nesta mesma qualidade, pela GNR. 1.27. Assim no dia 05/04/2024, enviou uma mensagem à ofendida dizendo “Ganhaste tudo parabéns eu desisti de todo fica bem adeus”. 1.28. No dia 13/05/2024, através de contacto telefónico com a Técnica da CPCJ, Srª Drª HH, o arguido disse-lhe: “Pode avisar a EE para olhar bem para os lados quando atravessar a estrada! Eu posso ir preso, mas vou tomar uma atitude!”. 1.29. Na sequência da conduta do arguido a Técnica transmitiu à ofendida tais palavras do arguido. 1.30. No dia 22.05.2024 em hora não concretamente apurada o arguido através de contacto telefónico com a Técnica da CPCJ, Srª Drª HH, e referindo-se à ofendida disse-lhe: “Eu hoje vou a casa dela. Posso ir preso mas daqui a algum tempo saio. Eles vão acabar debaixo da terra” 1.31. Acresce que, no dia 22/05/2024, pelas 13h00, o arguido deslocou-se à clínica EMP02..., em ..., querendo saber os horários das terapias do filho e, perante a recusa da informação, aquele exaltou-se, vindo os funcionários da clínica a alertarem a ofendida para ali não comparecer. 1.32. Pelas 17h00, a ofendida saía de casa, acompanhada da filha e do atual namorado, FF, no interior do veículo automóvel de matrícula ..-IZ-.., momento em que constatou que ali estava estacionado o automóvel do arguido. 1.33. De seguida o arguido dirigiu-se a II e disse-lhe “eu mato-te meu filho da puta. Corto-te o pescoço a ti e aos teus pais”. 1.34. Ato contínuo dirigiu-se à ofendida e disse-lhe:” eu mato-te minha puta e os meninos vão para uma instituição que é o sítio deles” 1.35. Com receio, a ofendida contactou a PSP e deslocou-se para um parque de estacionamento do estabelecimento comercial EMP03.... 1.36. Instantes depois, a ofendida, a sua filha e FF regressaram à residência, acompanhados por Agentes da PSP, vindo a ser surpreendidos pelo arguido que, no início da rua, se colocou à frente do veículo, impedindo a sua circulação, e gritou: “Vou-te matar! Vou-te passar com o carro por cima! Vou-te cortar a cabeça, a ti e a esse filho da puta!”. 1.37. Com o veículo já parado, o arguido abeirou-se da janela do passageiro da frente, onde seguia a ofendida e repetiu essas mesmas expressões. 1.38. Interpelado que foi por Agente da PSP para cessar, de imediato, tal conduta, o arguido prosseguiu: “Vou acabar com eles! A ti e a esse filho da puta! Já sei quem és, vou-te matar!”. 1.39. Em data não apurada do mês de Maio de 2024, quando regressavam do ... de uma consulta do filho de ambos o arguido encetou uma discussão e perdeu o controlo da viatura por si tripulada. 1.40. Após, parou o carro na Estação ..., saiu da viatura e abandonou o local apeado para parte incerta, tendo a mãe do mesmo conduzido a viatura até à residência da ofendida. 1.41. Agiu sempre o arguido com o propósito concretizado de ofender a ofendida na sua privacidade, sossego, integridade física e na mais elementar dignidade enquanto ser humano, humilhando-a, molestando-a física e psicologicamente, indiferente à relação de partilha de leito, mesa e habitação que haviam mantido, ao especial dever de respeito que sobre si impendia nessa sequência, bem como ao facto de terem filhos em comum, como quis e fez. 1.42. Sabia o arguido que, ao atuar na residência comum, ampliava o sentimento de receio da vítima, visto que violava o espaço reservado da respetiva vida privada de família e o seu carácter securitário. 1.43. Bem sabia o arguido que violava, reiteradamente, a dignidade da sua ex-companheira e mãe dos seus dois filhos menores, anunciando-lhe, diretamente e através de interposta pessoa, mal futuro contra a sua integridade física e vida, humilhando-a e provocando-lhe sentimentos de pânico e tristeza, e na presença dos filhos menores, como tudo quis e conseguiu. 1.44. O arguido agiu com o propósito concretizado de ofender, como ofendeu, o seu filho DD no seu corpo, molestando-o e fisicamente, o que fez sabendo da circunstância de o mesmo padecer de síndrome de autismo, grau médio, e de défice de atenção e hiperatividade, do que estava ciente e que não o inibiu de prosseguir; 1.45. Ao proferir as expressões referidas o arguido agiu com o propósito concretizado de causar medo a FF bem sabendo que a sua conduta era suscetível de afetar a sua liberdade e quietude, levando-o a crer que estava disposto a atentar contra a sua integridade física e vida. 1.46. Em todas as supra descritas condutas, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por Lei como crime.
(...) 1.47. À data dos fatos constantes da presente acusação, AA residia sozinho em casa arrendada situada em ..., ..., de onde saiu depois de ter recebido uma carta de despejo do proprietário do móvel por ter rendas em atraso. 1.48. Passou a pernoitar no seu automóvel, pouco tempo depois, frequentando a casa de JJ, uma namorada/amiga onde fazia as refeições e a sua higiene pessoal. 1.49. Incompatibilizado com os seus pais e irmãos, o arguido, não tinha à data dos factos, apoio do seu agregado de origem, situação que viu alterada aquando da aplicação da medida de coação de prisão preventiva. 1.50. Actualmente, os seus progenitores reaproximaram-se do arguido, e disponibilizaram-se a custear a renda de uma casa de tipologia T2, no valor de 230,00€, situada na morada suprarreferida, para onde poderá residir se for restituído à liberdade. 1.51. Num primeiro momento, o arguido poderá contar com o apoio dos pais, não só dos custos com a habitação, como também ao nível da alimentação e pagamentos de bens e serviços como água, luz e gás. 1.52. Este apoio está condicionado à necessidade de AA retomar o seu percurso laboral regular e, desde logo, assumir todos estes encargos. 1.53. AA, operário na construção civil na colocação de andaimes, não trabalhava regularmente neste setor de atividade. 1.54. Beneficiou do subsídio de desemprego e trabalhava em feiras e romarias nos carrocéis e pistas de gelo em várias localidades, revelando dificuldade na estruturação de rotinas em função da preservação de um trabalho estável e autonomia de vida. 1.55. À data da sua prisão preventiva, AA trabalhava na empresa de construção civil “EMP04... Unipessoal, Lda”, situação que poderá retomar logo que beneficie de liberdade, conforme foi confirmado junto do gerente da referida empresa. 1.56. AA não se encontra conotado com problemas de consumos de álcool e/ou de estupefacientes, antes pela dificuldade de autocontrolo e impulsividade no trato interpessoal. 1.57. À data dos factos, o arguido sinalizou estar em acompanhamento médico, na especialidade de psiquiatria/psicologia, no Hospital ... em ..., com último agendamento de consulta para o dia 28.08.2024, espoletado por uma tentativa de suicídio, que na atualidade referiu ter sido por si simulado. 1.58. Ter-lhe-á sido proposto um internamento em ambiente hospitalar, mas foi por si recusado. 1.59. De acordo com os Serviços de Reeducação do Estabelecimento Prisional ..., AA continua a ser acompanhado em psicologia/psiquiatria nos respetivos serviços clínicos. 1.60. No meio para onde se propõe residir, o arguido não é conhecido, porém, no meio social mais alargado, nomeadamente junto de algumas instituições públicas, o arguido detém uma imagem associada à impulsividade, agressividade e atitudes desafiadoras na sua interação com os demais. 1.61. Parte integrante de um conjunto de três filhos, o arguido sinalizou um percurso de vida condicionado na infância/adolescência por um relacionamento conturbado com o seu progenitor, pessoa de trato difícil e agressivo. 1.62. Tem como habilitações literárias o 5º ano de escolaridade, com referência a cinco reprovações, dificuldades de aprendizagem e problemas disciplinares em contexto escolar, iniciando o seu percurso laboral como operário na construção civil aos 15 anos de idade. 1.63. Trabalhou noutros setores de atividade e vivenciou alguns períodos de inatividade laboral. 1.64. Em 2008 iniciou uma relação afetiva com a ofendida neste processo, na constância da qual nasceram os dois filhos do casal. 1.65. Decorrente da presente situação processual, AA assume um discurso de vitimização, manifestando sentimentos de injustiça direcionados à ofendida como sendo a causadora de não poder estar a sós com os filhos. 1.66. Salienta, no entanto, que o tempo em que está privado da sua liberdade o permitiu fazer uma reflexão sobre o seu comportamento. 1.67. Em abstrato, e tendo em conta a natureza da tipologia criminal subjacente ao presente processo, AA manifesta diminuto sentido crítico ou consciência da ilicitude dos mesmos, revelando dificuldades no reconhecimento de vítimas e danos. 1.68. No estabelecimento prisional ... recebe visitas dos seus pais. 1.69. O arguido tem diagnóstico de Perturbação de Personalidade do Tipo Cluster B, caracterizada, por pensamentos, comportamentos e interacções com outras pessoas, dramáticas excessivamente emocionais e imprevisíveis. 1.70. É capaz de avaliar a ilicitude dos seus comportamentos, mas existe perigo de repetição de comportamentos semelhantes, por haver várias tentativas de tratamento sem sucesso, baixa adesão à terapêutica, personalidade disfuncional e envolvimento prévio com o sistema de justiça.
(...) 1.71. O arguido foi condenado no processo 350/15.1GBGMR, por decisão datada de 2018/06/15, transitada em julgado em 2019/09/30, pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), por referência ao art.º 131.º todos do Código Penal, em 2015/05/, um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), por referência aos art. 143.º e 144.º todos do Código Penal, em 2015/05, e um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143º, n.º 1 do Código Penal, em 2015/05/30, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 6,00, que perfaz o total de 900,00 euros, declarada extinta em 2021/05/07, pelo pagamento.”.
*
2.2. E motivou a essa decisão de facto nos seguintes moldes (transcrição):
“O tribunal fundou a sua convicção na globalidade da prova produzida em sede de audiência de julgamento, analisada à luz das regras da experiência e da lei.
Começou o tribunal por atentar na prova documental junta aos autos, nomeadamente, nas certidões de assento de nascimento relativas aos menores DD e GG, constantes de fls. 47 e 48, dos autos, para prova da filiação e data de nascimento dos mesmos.
Foi ainda relevante para a convicção do tribunal, nomeadamente, acerca da condição de saúde do menor DD, o teor dos relatórios médicos de fls. 207 e 208, nos quais se dá conta que a criança sofre, além do mais, de Perturbação do Espectro do Autismo (PEA), moderado, de Perturbação de Hiperactividade e Défice de Atenção (PHDA), tendo-lhe sido atribuída uma Incapacidade Permanente Global de 62% (cfr. Atestado Médico de Incapacidade Multiuso, de fls. 212).
O arguido AA prestou declarações em sede de audiência de julgamento, admitindo parte dos factos, mas negando a sua maioria, nomeadamente, ter proferido ameaças contra a sua ex-companheira e tê-la insultado, como consta da acusação, de puta e vaca. Negou, ainda, peremptoriamente, ter alguma vez batido na sua ex-companheira, dizendo ser incapaz de o fazer. Admitiu que, por vezes, se descontrolava, nas discussões que tinham acerca dos filhos, o que fez, por exemplo bater com força na porta de casa, porque a ofendida não lha abria e não lhe dava as chaves do seu carro, mas nunca nela. Admitiu, no entanto, que bateu no filho, com uma chapada, tal como consta da acusação porque ele se recusou a estudar, dizendo ainda que, tal como da acusação consta, o menino ficou com uma marca na cara, durante algum tempo, por, segundo disse, “ter a mão pesada”.
Segundo o arguido, a relação com a ofendida não terminou em 2018, como consta da acusação, afirmando que se mantiveram juntos, como um casal, mesmo depois da mudança da ofendida para ..., já que segundo afirma, passaram apenas a ter duas casas, uma no campo (a de ...), para passar férias e fins-de-semana e outra mais perto da cidade, para o dia-a-dia.
Das declarações prestadas em sede de 1.º interrogatório judicial, cuja reprodução foi efectuada em sede de audiência, a requerimento do Ministério Público, nada resultou de diferente daquilo que o arguido aqui já havia dito, notando-se apenas que, à data do referido primeiro interrogatório, o arguido denotava uma atitude muito mais descontrolada do que aquela que, agora, volvidos mais de 10 meses sobre a sua prisão preventiva, apresentou em sede de audiência de julgamento.
A atitude de descontrole do arguido é, aliás, confirmada pelo teor do relatório médico-legal de perícia psiquiátrica forense efectuada na sua pessoa, no qual se afirma que o mesmo tem diagnóstico de Perturbação de Personalidade do Tipo Cluster B, caracterizada, precisamente, por pensamentos, comportamentos e interacções com outras pessoas, dramáticas excessivamente emocionais e imprevisíveis (cfr. relatório de fls. 376 a 378).
Ora, a negação dos factos, tal como efectuada pelo arguido, não nos convenceu, como bem se alcança do teor da factualidade dada como provada e, para isso, contribuíram, em grande parte, as declarações para memória futura prestadas pela ofendida, a cuja visualização procedemos e que se encontram transcritas a fls. 214 a 215 dos autos.
Destas declarações resultou, no essencial, a convicção do tribunal acerca da veracidade dos factos constantes da acusação.
A ofendida EE, confirmou, todos os factos, de forma bastante sincera e emotiva, relatando-os, sempre que possível, de forma enquadrada no tempo e no espaço e, não obstante, a evidente, má relação que tem com o arguido, não denotou, no seu discurso qualquer intenção de o prejudicar, nomeadamente, exagerando situações ou empolando consequências. Note-se que, não obstante, o estado de deterioração da relação entre a ofendida e o arguido, a primeira ainda acudiu ao mesmo, em finais de 2022, inícios de 2023, quando este lhe enviou uma mensagem a dizer que se ia matar, com fotos de vários comprimidos que tinha tomado, conforme o arguido bem confirmou.
Em relação aos filhos de ambos foi evidente o desgosto da ofendida acerca da forma como o arguido por vezes os tratava, mas, mais uma vez, isso não a levou a exagerar as respectivas actuações e nem consequências, mesmo quando se referiu à agressão de que o DD foi vítima por parte do arguido, que descreveu da mesma forma que o arguido, referindo-se à marca deixada no rosto da criança como sendo evidente, ainda passadas algumas horas depois do sucedido.
O ofendido FF, actual companheiro da ofendida, confirmou, no essencial, os factos descritos na acusação, ocorridos no dia 22 de Maio de 2024. É certo que nem sempre se referiu às expressões exactas que da acusação constam, mas tal deve-se obviamente, ao decurso do tempo e à circunstância de o arguido ter proferido várias expressões semelhantes, nesse dia, e ter já proferido outras de idêntico teor em datas prévias, em relação à ofendida, que esta relatou ao ofendido FF, o que, inevitavelmente, interferirá com a sua memória, sem que lhe retire credibilidade, pois o sentido percebido foi indiscutivelmente o de que lhe tiraria a vida.
Sobre os factos desse dia, depôs ainda, KK, Agente da PSP, que ao local acorreu, na sequência da chamada efectuada pela ofendida. Esta testemunha confirmou o teor do auto que elaborou e consta de fls. 3 do apenso B, reiterando que, mesmo na sua presença, o arguido não se acalmou, continuando de forma muito agressiva a proferir expressões ameaçadoras, quer contra a ofendida, EE, quer contra o ofendido FF. Esta testemunha fez constar do auto que o arguido disse várias vezes, à sua frente “vou-te passar com o carro em cima, vou-te cortar a cabeça, a ti e a esse filho da puta” e, ainda, “já sei quem és, vou-te matar”, referindo-se ao FF. Confirmou, ainda, o agente KK, que procedeu à detenção do arguido, nessa mesma altura.
Quanto à restante prova produzida, trazida pela acusação, ela foi toda, corroborante com as declarações dos ofendidos, nomeadamente, com as declarações da ofendida EE.
A testemunha HH, técnica da CPCJ ... que tinha a cargo o processo referente aos filhos do arguido e da ofendida, confirmou que o arguido lhe ligou e proferiu as ameaças constantes da acusação contra a ofendida – “ela que olhe bem para os lados quando atravessar a estrada!”, numa das vezes e, em 22 de Maio de 2024 (data da detenção) “posso ir preso, mas eles vão para debaixo da terra” e que, nessa sequência, avisou a ofendida do sucedido, para que tivesse cuidado, já que, o arguido lhe pareceu bastante descontrolado, como, aliás, referiu não ser estranho.
A testemunha LL, amiga da ofendida, confirmou, desde logo, que a ofendida se queixava já há muito tempo, que o arguido era violento consigo e que lhe ligava insistentemente. Mais confirmou que, em determinada ocasião, estando a ofendida consigo, no Centro de Saúde ..., pediu-lhe para atender uma chamada que tinha a certeza seria do arguido – embora o número não estivesse identificado – ao que a testemunha cedeu e, assim pode ouvir, do outro lado, o arguido a ameaçar a ofendida
Por seu turno a testemunha MM, melhoramiga da ofendida, que conhece há 10 anos, confirmou que aquela se queixou que o arguido lhe deu um estalo. A testemunha não recordava em que data tal sucedeu, mas sabia que o filho da ofendida teria cerca de 5, 6 anos, quando tal sucedeu. Relatou a testemunha que, no início da separação, davam-se bem, mas que depois a ofendida se começou a queixar do afastamento do arguido, que ele não queria saber dos meninos, que sempre que falava com eles era no sentido de saber se a ofendida tinha namorado, zangando-se se eles não respondessem. Relatou ainda que chegou a ouvir o arguido, em videochamada com a ofendida, a ameaça-la de morte e a chamá-la de “puta”.
A irmã da ofendida, NN, confirmou que, quando a irmã se mudou para ..., fê-lo sozinha, com os seus filhos, já que tinha pedido a casa à Câmara, precisamente, por já não ter uma relação conjugal com o arguido e querer ter a sua própria casa.A testemunha confirmou, no entanto, que o arguido ajudou na mudança e ia ver os filhos, no início, mas que depois, o seu comportamento, mudou. Acrescentou que, já antes, quando estavam em ..., a sua irmã se queixava da agressividade do arguido, chegando relatar-lhe que ela a empurrou contra uma porta. A testemunha confirmou, ainda, que a irmã se queixava que o arguido, já quando ela morava em ..., a apelidava de “puta” e de “má mãe” e que chegou ainda a ouvir um áudio que ele deixou à irmã em que ele dizia que lhe passava pelo carro por cima.
Como se vê, da conjugação das declarações das testemunhas de acusação ouvidas, que não demonstraram qualquer hostilidade para com o arguido que as levasse a mentir, com as declarações da ofendida EE e do ofendido FF, o tribunal convenceu-se, sem qualquer dúvida dos factos descritos na acusação, por ser toda a referida prova coincidente e congruente, no sentido de o arguido ter praticado os referidos factos.
No que se refere aos elementos psicológicos e volitivos imputados ao arguido, considerou-se que estes factos decorriam de forma segura, por inferência e com apoio nas regras da normalidade, das suas descritas condutas.
Da parte da defesa, ouvimos OO, foi patrão do arguido e afirmou que este era bom trabalhador e que, quando ele sair da prisão, lhe volta a dar trabalho.
As testemunhas CC, pai do arguido e BB, mãe do mesmo, afirmaram a sua disposição para ajudar a arguido a retomar a sua vida quando foi libertado, para o que já lhe arrendaram, inclusivamente, uma casa. Os pais do arguido, embora pretendendo dar dele uma imagem positiva, acabaram por referir episódios em que o mesmo se mostrou agressivo, inclusivamente, com a própria mãe, embora esta culpe a ofendida pela atitude do filho. O pai disse que muitas vezes tem de dizer ao filho para se acalmar porque ele se descontrola muito quando o assunto são os filhos.
A testemunha PP, que teve umarelação amorosa com o arguido de Janeiro a Abril de 2024, reportou que o mesmo nunca foi agressivo consigo, desconhecendo o motivo que levou à bertura de um inquérito por violência doméstica, em que aquele figurava como agressor e ela, como vítima, processo que, como consta do documento junto pela defesa, foi arquivado, por falta de indícios (cfr. despacho de arquivamento do processo 282/24.2T9GMR, constante de fls. 512 e 513 dos autos)
Esta testemunha, à semelhança das demais, descreveu o arguido como sendo muito trabalhador e, disse ainda, que a ofendida não o deixava ver os filhos, pelo que ele tinha muitas saudades.
A testemunha QQ, senhoria dospais do arguido relatou que sempre o achou um bom rapaz e muito trabalhador.
Estas testemunhas de defesa serviram, além do mais, para reforçar o teor do relatório social elaborado pela DGRSP, que consta de fls. 509 a 510, ao qual se atendeu para dar como provadas as condições de vida do arguido.
Os antecedentes criminais do arguido resultaram do teor do CRC junto aos autos a fls. 501 a 502.”.
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3. Posto isto, passemos, então, à análise das concretas questões suscitadas pelo arguido no seu recurso.
Começando pela invocada ilegitimidade do Ministério Público para prossecução do procedimento criminal relativamente ao crime em que é ofendido DD, filho menor do arguido e da sua ex-companheira, a assistente EE.
Como emana dos autos, no libelo acusatório oportunamente deduzido, o Ministério Público imputou ao arguido a prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelos Artºs. 14º, nº 1, 26º, 30º, nº 1, 152º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), 4 e 5, do Código Penal [na pessoa da ex-companheira, EE], em concurso efectivo com um crime de violência doméstica agravado, na forma consumada, p. e p. pelos Artºs. 14º, nº 1, 26º, 30º, nº 1, 152º, nº 1, al. e) e nº 2, 4 e 5, todos do Código Penal [na pessoa de seu filho menor, DD], e com dois crimes de ameaça agravada, na forma consumada, p. e p. pelos Artºs. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, al. a), do Código Penal [na pessoa de FF, actual namorado da sua ex-companheira, EE].
Sucede que, produzida a pertinente prova em sede de audiência de discussão e julgamento, o tribunal a quo, no acórdão final, entendeu que os factos imputados ao arguido, atinentes ao seu filho menor, DD, não consubstanciam a prática do imputado crime de violência doméstica, mas antes a autoria de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo Artº 143º, nº 1, do Código Penal, acabando por condená-lo, a esse título, na pena de 1 (um) ano de prisão.
Tendo o tribunal colectivo justificado a possibilidade [legal] dessa “transmutação / degradação” nos seguintes moldes (transcrição):
“Uma última nota para referir que, uma vez que da acusação resultava a atribuição do crime de violência doméstica, a condenação por crime de ofensa à integridade física, não implica qualquer alteração relevante, pois o arguido defendeu-se em relação a todos os factos, embora venha a ser condenado por diferente crime (mas consumido pela acusação). Ou seja, o arguido defendeu-se em relação a todos elementos de facto e normativos que lhe eram imputados em julgamento, pelo que nada há a notificar, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358.º, nº 1 e 3 do Código de Processo Penal [assim, Ac. STJ de 7/11/2002 (rel. Simas Santos), disponível em www.dgsi.pt].”.
O que é refutado pelo arguido no seu recurso, que nesse âmbito aduz (transcrição):
“IV. Estando em causa crimes dependentes de queixa (crimes semipúblicos e particulares – como é o caso do crime de ofensa à integridade física), a queixa tem de ser apresentada no prazo de 6 meses, sob pena de extinção do respetivo direito, cfr. n.º 1, do art. 115º, do C.Penal. V. Ora, no presente caso, conforme resulta do Acórdão recorrido, e resultava já da acusação, os factos em causa ocorreram «durante o ano de 2021», e a primeira notícia dos mesmos apenas surge, nos autos, em 19.04.2024, no âmbito da inquirição da mãe do ofendido menor, EE, conforme auto de inquirição de fls. 83, sob a refª ...35, na qual esta assume, inclusive, que não havia apresentado queixa. VI. Assim, não foi apresentada qualquer queixa no prazo de 6 meses a contar da data em que o titular do direito à queixa teve conhecimento de tais factos (durante o ano de 2021), pelo que o Ministério Público carecia de legitimidade para a investigação, sendo legalmente inadmissível o procedimento criminal - cfr. artigos 48º e 49º do C.Penal e 113º e 115º, n.º 1, do Cód. Penal. VII. E, sendo inadmissível o procedimento criminal, no caso dos autos, o mesmo é inválido, e até ineficaz, em consequência do que também a condenação do Recorrente pela prática de um crime de ofensa à integridade física deverá ser declarada inválida e ineficaz, devendo, consequentemente, ser revogado o Acórdão recorrido, declarando-se extinto o procedimento criminal e absolvendo-se o recorrente do crime de ofensa à integridade física.”.
Adiantando a nossa posição, cremos que, neste aspecto, a razão está do lado do recorrente.
Tal como, aliás, preconiza o Exmo. PGA no seu douto parecer, cujas considerações jurídicas, pela sua clareza e assertividade, subscrevemos inteiramente.
Efectivamente, como bem assinala o Distinto Magistrado do Ministério Público, “(...) o crime de violência doméstica tem natureza pública, enquanto que o crime de ofensa à integridade física simples reveste natureza semipública (art.º 143.º n.º 3, do Código Penal).
É certo que, tendo o procedimento criminal sido instaurado por factos que indiciavam a prática de um crime de violência doméstica na pessoa da ofendida EE e tendo o Ministério Público, no decurso da tomada de declarações à ofendida, tomado conhecimento superveniente de outros factos que abstratamente poderiam consubstanciar a prática de um outro crime de violência doméstica na pessoa do filho menor do casal, não seria exigível a obtenção de uma queixa da progenitora do menor (em representação deste) para que o Ministério Público, enquanto titular da ação penal (art.º 48.º do Código de Processo Penal) promovesse o processo penal também nesta parte.
Acontece que a degradação do crime de violência doméstica para o crime de ofensa à integridade física simples vem agora suscitar a questão da legitimidade do Ministério Público para a promoção do processo neste particular, já que tal legitimidade não é absoluta, antes sofrendo as restrições constantes dos art.ºs 49.º e 50.º do Código de Processo Penal, isto é, nos crimes de natureza semipública a intervenção do Ministério Público está dependente do exercício atempado do direito de queixa e, quanto aos crimes de natureza particular, está ainda dependente da constituição como assistente e oportuna dedução de acusação particular (art.º 285.º do Código de Processo Penal).
Ora, naquelas situações que começam por ser qualificadas como crime de violência doméstica e que, pelas vicissitudes inerentes à produção de prova, acabam por permitir apenas o preenchimento de um crime natureza particular, seria injusto que o assistente fosse penalizado por ter omitido um ato processual que nem sequer lhe era legalmente permitido praticar (a dedução de acusação particular por crime de natureza pública).
Nesse decorrência, o AUJ do STJ n.º 9/2024 veio fixar a seguinte jurisprudência: “O Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da ação penal e o assistente a legitimidade para a prossecução processual, nos casos em que, a final do julgamento, por redução factual de acusação pública por crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152º, nº 1, do Código Penal, são dados como provados os factos integrantes do crime de injúria p. e p. no artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público” (sublinhado nosso).
No nosso modesto entendimento, esta solução deverá ser transposta para os crimes semipúblicos. Na verdade, embora a questão ali colocada pressuponha estar-se perante um crime de natureza particular como é o crime de injúria, o entendimento nele expresso no que tange aos seus fundamentos, aplica-se, em larga medida aos crimes de natureza semipública. Isso mesmo é afirmado pelo STJ no mencionado Acórdão Uniformizador: «Como se sabe, o princípio da oficialidade do processo consagrado no artigo 219º, nº 1, da CRP, refletido nos artigos 48º do CPP, 2º e 4º da L. 68/2019, de 27/08, (EMºPº) e 3º da L. 62/2013, de 26/08,(LOSJ), segundo o qual a promoção processual dos crimes é tarefa estadual a realizar oficiosamente e em completo alheamento da vontade e da atuação dos particulares, atribuindo-se ao MºPº a iniciativa e promoção processuais, não vale para os crimes semipúblicos, cujo procedimento está dependente de prévia queixa, nem para os crimes particulares, cujo procedimento, além da prévia queixa e da prévia constituição como assistente, depende também de dedução de acusação particular. (48º, 49º e 50º CPP). Quer a queixa quer a acusação particular são pressupostos positivos de punição e, nos casos em que o procedimento depende das respetivas pré-existências, sem elas falha a legitimidade do MP para o exercício da ação penal”.
No caso dos autos, nunca chegou a ser apresentada queixa relativamente aos factos aqui em discussão. O processo teve origem no “auto de notícia” de fls. 4 e seguintes, onde a PSP dá conta da prática de factos integrativos de um crime de violência doméstica pelo arguido relativamente à ofendida EE. Somente aquando da respetiva inquirição (fls. 83) é que a ofendida relatou que o arguido, por uma única vez (no ano de 2021), desferiu um estalo na cara do filho, acrescentando que, na altura, não apresentou queixa quanto a tais factos “por ter tido receio que a censurassem por ter deixado os filhos com o arguido”. Por outro lado, não ressuma das suas declarações que a mesma pretendesse agora procedimento criminal nesse particular.
Ora, a queixa não se confunde com a denúncia (cf. art.ºs 242.º a 244.º do CPP) nem com a participação de autoridade pública (art.ºs 188.º, n.º 1, al. b), 319.º, n.º 2, 324.º e 383.º, n.º 3, do CP). E, sendo a queixa um pressuposto positivo de punição, nos casos em que o procedimento depende da respetiva pré-existência, sem ela falha a legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal.
Não estão, pois, reunidos os pressupostos legais que permitam retirar consequências punitivas do crime de ofensa à integridade física que, de acordo com a matéria de facto fixada no Acórdão recorrido, o arguido cometeu, impondo-se, assim, se declare a extinção do procedimento criminal quanto a tal ilícito, por falta de legitimidade do Ministério Público para a ação penal.
No sentido por nós aqui defendido cf. o recente Acórdão do TRL de 6/2/2025, Proc. n.º 349/22.1PALSB.L1-3.”.
Neste conspecto, constatando-se que, na realidade, como se deu como assente no acórdão recorrido [e como já se fazia menção na acusação pública deduzida], os factos em causa ocorreram durante o ano de 2021, e que a primeira notícia dos mesmos apenas surge nos autos em 19/04/2024, no âmbito da inquirição de EE, mãe do menor DD, conforme auto de inquirição de fls. 83/85, na qual esta assume que não havia apresentado queixa [por ter tido receio que a censurassem por ter deixado os filhos com o arguido], em face da jurisprudência emanada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 9/2024, de 29/05/2024, publicado no Diário da República nº 131/2024, Série I, 09/07/2024, cujos fundamentos se aplicam, em larga medida aos crimes de natureza semi-pública, como é o caso do crime de ofensa à integridade física simples, e visto o disposto nos Artºs. 113º, nºs. 1 e 4, 115º. nº 1 e 143º, nº 2 [na redacção em vigor à data da prática dos factos], do Código Penal, e 48º e 49º do C.P.Penal, temos de concluir não se mostrar verificada a legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal relativamente ao ilícito criminal em causa, imputado ao arguido e ora recorrente.
Pelo que, sem necessidade de outras considerações acerca desta temática [que se tornariam repetitivas e fastidiosas], impõe-se se declare a extinção do procedimento criminal quanto a tal ilícito, com a inerente revogação do acórdão recorrido, nessa parte, e com a eventual reformulação do cúmulo jurídico das penas subsistentes, exercício a efectuar mais adiante, após a apreciação da segunda questão trazida à liça pelo recorrente.
Com efeito, como se viu, sustenta também o recorrente que não se mostram preenchidos os elementos constitutivos do crime de ameaça agravada que lhe foi imputado no acórdão recorrido, na pessoa do ofendido FF.
Quer porque – diz – da prova produzida – atentas as circunstâncias em que foram proferidas as expressões ameaçadoras –, não resulta inequivocamente se o mal anunciado é, ou não, futuro, ou, sequer, que qualquer homem médio, com as características do ofendido, o entendesse como exprimindo uma ideia de futuro, quer porque não se comprovou que as ameaças proferidas revestiram o carácter de seriedade necessário, nem que foram acompanhadas da intenção de causar medo ou inquietação no ofendido, e tampouco que o mal nelas contido foi adequado a vencer a vontade do ameaçado.
Vejamos, pois.
Liminarmente se sublinhando que a factualidade dada como assente no acórdão recorrido deve considera-se definitivamente estabilizada, pois que o recorrente não a questionou lançado mão de qualquer uma das formas que a lei prevê para impugnar a matéria de facto [não se socorreu minimamente do “esquema” previsto no Artº 412º, nºs. 3 e 4, nem tampouco invocou a ocorrência de qualquer um dos vícios decisórios a que alude o nº 2 do Artº 410º, os quais, aliás, este tribunal não vislumbra].
Atentemos, antes de mais, nas pertinentes normas jurídicas aplicáveis ao caso.
Desde logo no Artº 153º, nº 1, do Código Penal, que sob a epígrafe “Ameaça” dispõe:
“1 - Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.
(...)”.
E em segundo lugar o Artº 155º, do mesmo diploma legal, que sob a epígrafe “Agravação”, estatui:
“1 - Quando os factos previstos nos artigos 153.º a 154.º-C forem realizados:
a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos;
(...)
o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, nos casos dos artigos 153.º e 154.º-C, com pena de prisão de 1 a 5 anos, nos casos dos n.º 1 do artigo 154.º e do artigo 154.º-A, e com pena de prisão de 1 a 8 anos, no caso do artigo 154.º-B.
(...)”.
O bem jurídico protegido com a incriminação em causa, a que alude o Artº 153º do Código Penal, é a liberdade pessoal, a liberdade de decisão e de acção, como resulta do conteúdo do tipo e da sua inserção no capítulo IV (Dos crimes contra a liberdade pessoal), do título I (Dos crimes contra as pessoas), do Livro II ( Parte especial ) do Código Penal.
São elementos constitutivos do crime de ameaça, p. e p. pelo citado Artº 153º, nº 1:
- A ameaça a outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor;
- Que a ameaça seja de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação; e
- O conhecimento e vontade de realização do facto antijurídico, com consciência da ilicitude da conduta.
Na versão do Código Penal de 1982, o crime de ameaças, que estava previsto no Artº 155º, era configurado como um crime de resultado, pelo que a sua incriminação dependia da verificação, no espírito da vítima, de um estado de agitação e incerteza, relativamente à sua integridade física, saúde ou património, considerado este resultado como o critério mais idóneo para se aferir da seriedade da ameaça (cfr., neste sentido, v.g., o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20/04/1983, in BMJ 286-78, e o acórdão da Relação do Porto, de 12/12/1984, in CJ IX-V-291).
Porém, com a revisão do Código Penal levada a cabo pelo Dec.-Lei nº 48/95, de 15 de Março, o preceito legal em causa passou a referir a expressão «de forma adequada a provocar-lhe ...», pelo que o crime deixou de ser um crime de resultado, passando a constituir um crime de mera acção e de perigo - cfr., neste sentido, o Prof. Américo Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, págs. 348/349.
Ou seja, não se exige, hoje, a ocorrência do dano (efectiva perturbação da liberdade do ameaçado), mas também não basta a simples ameaça da prática do crime, exigindo-se, ainda, que esta ameaça seja, na situação concreta, adequada a provocar medo ou inquietação.
Ademais, como salienta o mesmo Autor, «O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo - individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades” do ameaçado».
Como ensina o Prof. Eduardo Correia, in “Direito Criminal”, Volume I, Reimpressão, Almedina, 2004, págs. 257/258, o nexo de causalidade adequada deve “ser referido ao momento em que a acção se realiza, como se a produção do resultado não se tivesse ainda verificado, isto é de um juízo “ex ante”, juízo este que deve ser feito “Segundo as leis, as regras da experiência comum aplicadas às circunstâncias concretas da situação” (...), “segundo as regras da experiência normais e as circunstâncias concretas em geral conhecidas”, não se devendo, porém, “abstrair, para a sua determinação, daquelas regras ou das circunstâncias que o agente efectivamente conhecia”.
“São três as características essenciais do conceito ameaça: mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente. O mal tanto pode ser de natureza pessoal (p. ex., lesão da saúde ou da reputação social) como patrimonial (…). O mal tem de ser futuro. Isto significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coacção, entre ameaça (de violência) e violência. Assim, p. ex., haverá ameaça, quando alguém afirma: “hei-de-te matar”; já se tratará de violência, quando alguém afirma: "vou-te matar já”. Que o agente refira, ou não, o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o, este seja curto ou longo, eis o que é irrelevante. Necessário é só (…) que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos da tentativa (cf. art. 22º-2 c)). Indispensável é, em terceiro lugar, que a ocorrência do “mal futuro” dependa (ou apareça como dependente…) da vontade do agente. Esta característica estabelece a distinção entre a ameaça e o simples aviso ou advertência” – cfr. o Prof. Américo Taipa de Carvalho, ibidem, pág. 343.
Já o Artº 155º, nº 1, do Código Penal, como salienta o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, no seu “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2021, pág. 667, prevê “(...) crimes qualificados ao nível do tipo de ilícito, pois as circunstâncias agravantes revelam um maior desvalor da ação, são de funcionamento automático e constituem um elenco taxativo.”, consistindo a circunstância agravante da alínea a) “(...) na especial gravidade da ameaça, ou seja, na ameaça da prática de um crime punível com pena de prisão superior a três anos”, como é o caso do crime de homicídio simples, que é abstractamente punido com pena de prisão de 8 a 16 anos, nos termos do disposto no Artº 131º do Código Penal.
No plano do tipo subjectivo, o crime de ameaça exige o dolo, em qualquer uma das modalidades a que alude o Artº 14º do Código Penal.
Ora, no caso vertente, atenta a factualidade dada como assente, dúvidas não há de que a actuação do arguido, nas circunstâncias de tempo e de lugar ali mencionadas, ao proferir as expressões descritas no ponto 1.33. [“eu mato-te meu filho da puta. Corto-te o pescoço a ti e aos teus pais” (dirigindo-se a referindo-se ao ofendido FF)], no ponto 1.36. [“vou-te matar! Vou-te passar com o carro por cima! Vou-te cortar a cabeça, a ti(dirigindo-se e referindo-se à ofendida EE) e a esse filho da puta! (dirigindo-se a referindo-se ao ofendido FF)”, e bem assim no ponto 1.38. [“vou acabar com eles! (referindo-se aos ofendidos EE e FF) A ti (referindo-se à ofendida EE)e a esse filho da puta! Já sei quem és, vou-te matar!”(referindo-se ao ofendido FF)], mediante um juízo objectivo, foram idóneas a provocar medo ou inquietação ao ofendido FF, e a colocar em causa a sua paz individual, sendo certo que ficou a temer pela sua integridade física, e pela sua vida.
Sendo inelutável que tais ameaças, atendendo às respectivas conjugações temporais, aos tempos verbais utilizados, e às circunstâncias em que ocorreram, denotam claramente que elas se dirigiam a uma execução futura.
Não estando em causa, pois, “uma execução iminente”, como alega o recorrente, e não tendo qualquer sustentação a tese que a esse propósito esgrime segundo a qual “(...) o Acórdão recorrido é omisso quanto à verificação, ou não, desta premissa, nada concluindo sobre se o mal anunciado pelo arguido Recorrido era, afinal, ou não, um mal futuro”, nem tampouco a invocação, a seu favor, do princípio “in dubio pro reo”, pois que dúvida(s) alguma(s) existe(m) acerca da temática em causa.
Salvo o devido respeito, basta ler a analisar o acórdão recorrido para se concluir que assim é.
Subscrevendo-se, inteiramente, ademais, as assertivas considerações do Exmo. PGA quando a este propósito, no seu douto parecer, afirma:
“(...) com tais expressões, pretendeu o arguido anunciar que iria infligir ao ofendido FF um mal que constitui crime (de homicídio).
A seriedade das ameaças decorre de toda a envolvência que rodeou a prática dos atos e da sua própria reiteração e persistência. De resto, se dúvidas houvesse (e não há!), bastaria atentar na circunstância de o arguido ter sido interpelado pelo agente de autoridade para cessar as ameaças e, ainda assim, ter prosseguido com as mesmas, no propósito arreigado de perturbar o ofendido no seu sentimento de segurança.
O homem médio comum, se confrontado com tais factos, sentiria medo – nesse momento e no futuro – e veria prejudicada a sua paz individual. Todavia, tais factos não integram atos de execução de um crime de homicídio, ou seja, dos atos e das expressões proferidas pelo arguido não decorre necessariamente que o mesmo pretendesse atentar contra a vida do ofendido naquele preciso momento.
Como bem se refere no Acórdão desta Relação de 02-06-2014 (Processo n.º 127/12.6PAPTL.G1) “o mal anunciado será de considerar como futuro quando não se tratar duma tentativa criminosa, nos termos em que o art.º 22.º do Código Penal a descreve, ou seja, enquanto o agente não praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer”.
Em suma, é apodítico que aquelas expressões representam uma ameaça de mal futuro.”.
Por outro lado, ficou demonstrado que, ao proferir as referidas expressões, o arguido agiu com o propósito concretizado de causar medo a FF, bem sabendo que a sua conduta era susceptível de afectar a sua liberdade e quietude, levando-o a crer que estava disposto a atentar contra a sua integridade física e a sua vida.
Outrossim tendo sido dado como provado que, em todas as supra descritas condutas, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as mesmas são proibidas e punidas por lei como crime.
O que perfectibiliza os elementos subjectivos do ilícito criminal em análise.
Finalmente, dúvidas não há de que o arguido concretizou as suas condutas por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos, in casu, com a prática de um crime de homicídio, pelo que há lugar ao agravamento previsto no Artº 155°, n° 1, al. a) do Código Penal, tal como decidiu, correctamente, o tribunal a quo.
Não se verificando, ademais, quaisquer causas de exclusão de ilicitude e/ou da culpa, nem a falta de qualquer condição de punibilidade.
Nestas circunstâncias, não merecendo qualquer reparo o enquadramento jurídico-penal levado a cabo pelo tribunal a quo relativamente ao ilícito criminal em causa, cujos elementos objectivos e subjectivos se mostram inteiramente preenchidos, improcede o recurso do arguido, nesta parte.
Aqui chegados, e dado que, para além do crime de ofensa à integridade física [que deixa de subsistir, pelas razões supra analisadas], o arguido foi também condenado, como autor material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, agravado, na pessoa da sua ex-companheira, EE, p. e p. Artº 152º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), do Código Penal, e como autor material, na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos Artºs. 153º, nº 1, e 155º, nº 1, al. a), do Código Penal, nas penas parcelares de, respectivamente, 3 (três) anos de prisão, e 8 (oito) meses de prisão, tendo-lhe sido cominada, em cúmulo jurídico dessas duas penas de prisão com a pena de 1 (um) ano de prisão referente ao crime de ofensa à integridade física, a pena única de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução pelos mesmo período, sujeita a regime de prova e às demais obrigações/regras de conduta estipuladas na decisão recorrida, o que o recorrente não questiona, impõe-se a reformulação do respectivo cúmulo jurídico, de molde a encontramos a pena única pela prática dos dois ilícitos criminais subsistentes.
As regras de punição do concurso de crimes estão consignadas no Artº 77º do Código Penal.
Estatuindo o seu nº 1 que, na opção da medida da pena conjunta devem ser considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, e o seu nº 2 que a pena aplicável tem como limite superior a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicáveis aos vários crimes.
Segundo a lição do Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, 3ª Reimpressão, Coimbra Editora, 2011, págs. 290/292, para além dos critérios gerais de determinação da medida da pena contidos actualmente no artigo 71º do Código Penal, e dentro dos limites da moldura do concurso, a medida da pena conjunta deve ser encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção.
Sublinhando o mesmo Autor, no § 421:
“Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.
Este modo de encontrar a pena conjunta de entre várias penas parcelares, é descrito de forma paradigmática no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/10/2007, proferido no âmbito do Proc. nº 07P3223, in www.dgsi.pt, em cujo sumário se escreve:
“1 – Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é aplicada uma pena única conjunta determinada atendendo, em conjunto, aos factos e à personalidade do agente, mas são também atendíveis os elementos a que se refere o art. 71º do C. Penal.
2 – Importa, então, ter em atenção a soma das penas parcelares que integram o concurso, atento o princípio de cumulação, a fonte essencial de inspiração do cúmulo jurídico em que são determinadas as penas concretas aplicáveis a cada um dos crimes singulares, construindo-se depois uma moldura penal do concurso, dentro do qual é encontrada a pena unitária, mas não esquecer, no entanto, que o nosso sistema é um sistema de pena única conjunta em que o limite mínimo da moldura atendível é constituído pela mais grave das penas parcelares, numa concessão minimalista ao princípio da exasperação ou agravação.
3 – Nessa lógica, há que partir da pena parcelar mais grave e, considerando as circunstâncias do caso, a personalidade do agente, as suas condições de vida, caminhar em direcção ao somatório das restantes penas parcelares "comprimidas" em função do limite máximo a ter em conta e da imagem global dos factos unificados pelo concurso.
(...)”.
Ora, no caso vertente, há que atentar desde logo à acentuada ilicitude do conjunto dos factos relativos aos crimes em causa, em número de dois, bem como ao mudus operandi que subjaz à prática de tais ilícitos, sendo certo que estamos em presença de crimes contra a integridade física (o de violência doméstica) e contra a liberdade pessoal (o de ameaça).
Como é sabido, estes crimes geram grande alarme social, dadas as nefastas consequências para as vítimas e para a sociedade em geral, revelando os factos praticados uma personalidade de certa forma propensa para o crime por banda do arguido AA.
São, pois, elevadas as necessidades de prevenção geral sentidas, atenta a frequência com que ocorrem factos semelhantes aos supra descritos.
Da factualidade provada ressalta que o arguido agiu com dolo directo em ambas as apontadas condutas, apresentando-se num elevado nível o grau de culpabilidade demonstrado nesses factos.
Acresce que não se pode olvidar a gravidade das condutas do arguido conjuntamente apreciadas nestes autos, dirigidas à sua ex-companheira e ao namorado desta, revelando o mesmo, como se provou, um discurso de vitimização, e manifestando sentimentos de injustiça direccionados à ofendida como sendo a causadora de não poder estar a sós com os filhos.
Outrossim temos de salientar que, no meio social alargado do arguido, nomeadamente junto de algumas instituições públicas, o mesmo detém uma imagem associada à impulsividade, agressividade e atitudes desafiadoras na sua interação com os demais.
Que o arguido manifesta diminuto sentido crítico ou consciência da ilicitude dos factos, revelando dificuldades no reconhecimento de vítimas e danos.
Que o arguido tem diagnóstico de Perturbação de Personalidade do Tipo Cluster B, caracterizada por pensamentos, comportamentos e interacções com outras pessoas, dramáticos e excessivamente emocionais e imprevisíveis.
E que existe perigo de repetição de comportamentos semelhantes, por haver várias tentativas de tratamento sem sucesso, baixa adesão à terapêutica, personalidade disfuncional e envolvimento prévio com o sistema de justiça.
Não obstante isso, a factualidade apurada demonstra existir conexão relevante entre ambos os ilícitos, quer em termos temporais, quer em termos motivacionais.
Por outro lado, há que sublinhar não serem despiciendas as necessidades de prevenção especial, já que o arguido se apresentou em Juízo registando uma condenação penal.
Pois, como se provou, no âmbito do processo nº 350/15.1GBGMR, por decisão datada de 15/06/2018, transitada em julgado em 30/09/2019, o arguido foi condenado pela prática, em Maio de 2015, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos Artºs. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, al. a), por referência ao Artº 131º, todos do Código Penal, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo Artºs. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, al. a), por referência aos Artºs. 143º e 144º, todos do Código Penal, e pela prática, em 30/05/2015, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo Artº 143º, nº 1, do Código Penal, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, num total de € 900,00 euros.
Importando realçar que as infracções ora em apreciação foram já cometidas depois de o arguido ter sido condenado pela prática dos aludidos crimes, e após ter sido solenemente advertido para respeitar os bens jurídicos violados pelas suas condutas, o que constitui um factor agravativo.
Em conclusão, diremos que os crimes praticados, pela sua conexão, natureza e persistência, denotam gravidade acentuada na violação dos bens jurídicos atingidos, e a personalidade do arguido projectada nos factos e revelada por estes, associada ao seu passado criminal, revela que o mesmo tem alguma propensão para o crime.
No entanto, e em benefício do arguido, há que relevar, como se provou, o [actual] apoio dos seus pais, as perspectivas de trabalho, bem como a circunstância de não se encontrar conotado com problemas de consumos de álcool e/ou de estupefacientes.
Pelo que, considerando o número e a natureza das infracções, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto os factos e personalidade do arguido, tendo em conta a gravidade dos factos, a personalidade do arguido projectada nos factos e perspectivada por eles, as exigências de prevenção geral sentidas, as exigências de prevenção especial de forma a dissuadir a reincidência, os efeitos previsíveis da pena a aplicar no comportamento futuro do arguido, e, sem prejuízo do limite da culpa que é intensa, tendo em conta os limites das penas aplicáveis [cuja moldura legal está balizada entre 3 (três) anos de prisão e 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão], julgamos inteiramente justa, adequada e proporcional para o recorrente a pena única de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão.
Mantendo-se, evidentemente, para além da pena acessória aplicada, a suspensão da execução dessa pena de prisão, pelo período fixado, o regime de prova que a condicionou, bem como as demais obrigações / regras de conduta impostas, tudo nos exactos termos constantes do acórdão recorrido.
III. DISPOSITIVO
Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o presente recurso e, consequentemente:
A) Julgam extinto o procedimento criminal, por falta de legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal, relativamente ao crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo Artº 143º, nº 1, do Código Penal e, concomitantemente, revogam o acórdão recorrido na parte em que condenou o arguido AA pela prática desse ilícito criminal; B) Revogam o acórdão recorrido no segmento em que, em cúmulo jurídico, condenou o arguidoAA na pena única de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão; C) Condenam o arguido AA na pena única de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão, cúmulo jurídico da pena de 3 (três) anos de prisão atinente ao crime de violência doméstica, p. e p. pelo Artº 152º, nºs. 1, al. b), e 2, al. a), do Código Penal [em que é ofendida EE], com a pena de 8 (oito) meses de prisão referente ao crime de ameaça agravada, p. e p. pelos Artºs. 153º, nº 1, e 155º, nº 1, al. a), do Código Penal [em que é ofendido FF]; e D) Mantêm o acórdão recorrido, quanto ao demais.
Sem custas (Artº 513º, nº 1, a contrario sensu, do C.P.Penal).
(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos, contendo na primeira página as assinaturas electrónicas certificadas dos signatários – Artºs. 94º, nº 2, do C.P.Penal, e 19º, da Portaria nº 280/2013, de 26 de Agosto).
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Guimarães, 16 de Setembro de 2025
Os Juízes Desembargadores:
António Teixeira (Relator)
Anabela Varizo Martins (1ª Adjunta)
Florbela Sebastião e Silva (2ª Adjunta)
[1] Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator. [2] Diploma ao qual pertencem todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem. [3] Cfr., neste sentido, o Prof. Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo) ”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e sgts., e o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém actualidade.