IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
Sumário


I – O princípio in dubio pro reo constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos: em tal situação, impõe-se que o Tribunal decida pro reo, a favor do arguido;
II – A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável;
III – O tribunal de recurso só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido.

Texto Integral


Acordam na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

1. No processo comum singular n.º 91/21.0GABTC, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real – Juízo Local Criminal de ..., realizado o julgamento, foi proferida sentença em 24-02-2025, depositada na mesma data, com o dispositivo seguinte (transcrição):

«IV. Decisão
Em face do exposto, decide-se:
A. ABSOLVER os arguidos AA, BB, CC e DD da prática, em coautoria, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, com referência ao art. 132.º, n.º 2, al. h), do Código Penal.
B. ABSOLVER os arguidos AA, BB, CC e DD da prática, em coautoria, na forma consumada, de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181.º do Código Penal.
C. JULGAR TOTALMENTE IMPROCEDENTE o pedido de indemnização civil formulado por EE contra os arguidos AA, BB, CC e DD e, em consequência, absolvê-los de todo o peticionado.
D. CONDENAR a assistente EE no pagamento de custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
E. CONDENAR a assistente EE ao pagamento de custas cíveis.

*
Declara-se extinta a medida de termo de identidade e residência à qual se mostram sujeitos os arguidos (cfr. art. 376.º, n.º 1, do CPP).
*
Notifique e deposite.»
2. Inconformada com a decisão, recorreu a assistente EE, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
«1ª) Por erro de leitura, análise, interpretação crítica-reflexiva de toda a prova carreada e produzida no âmbito dos presentes autos e; apreciada e julgada, à luz das regras da experiência comum, do bom senso e do normal do acontecer; revelam-se, salvo o devido respeito e melhor opinião, erroneamente julgados os pontos de facto, tidos como apreciados e, não provados, os enunciados sob as alíneas: a); b); c); d); e); f); g); h); i); j); k); l) e m), aqui dados por integralmente reproduzidos.
2ª) As concretas provas existentes, sem elementos, nos autos documentais; tais como:
- o auto de ocorrência,
- o auto de participação,
- a informação do pedido de socorro à GNR ...,
- a solicitação ao Serviço Nacional de Saúde,
- a ficha clínica de urgência do Centro Hospitalar ...,
- as lesões observadas nos exames médicos com os tratamentos prescritos,
- o relatório de avaliação em dano corporal elaborado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal ... / Gabinete de ...; com a confirmação do nexo de causalidade imprimido, entre a informação prestada nos exames realizados e; entre os traumatismos contundentes e as lesões,
- os registos fotográficos obtidos à assistente do corpo atingido, em consequência das agressões infligidas pelos arguidos, como;
- a transacção judicial com sentença homologatória, bem assim;
- os registos fotográficos obtidos no Google Earth, sobre o local onde se localiza os prédios urbanos da assistente/demandante civil e, dos arguidos, além das;
- declarações e depoimentos prestados, fosse em fase de inquérito, de instrução e/ou da audiência final, designadamente, as evidenciadas nas passagens concretas, transcritas nesta Motivação, e aqui; impetradas e dadas por reproduzidas que;
Globalmente conjugadas, revelam de forma insofismável, credível e verosímil; pelo que, impunham decisão diversa da proferida. Na verdade,
3ª) Quanto à matéria de facto impugnada, no entender da assistente/demandante cível, não é assertiva, nem consentânea, com a verdade material e a realidade dos factos articulados e, as circunstâncias vivenciadas, relatadas e documentadas nos autos.
4ª) A decisão que, no entender da assistente/demandante cível, quanto à prova produzida que, se impunha na matéria de facto impugnada e, que, devia ser antes considerado provado, que:
a) Ao aperceber-se do referido em 1., interpelou-os para não o fazerem sem a sua autorização da mãe, conforme o acordado e sentenciado no âmbito do processo de ação comum, cujos termos correram pelo Juízo Local Cível de ... - J..., sob o n.º 2265/19.5T8VRL.
b) De comum acordo e em conjugação de esforços e propósitos, investiram na sua direção, atiraram-na ao chão e desferiram-lhe vários pontapés nas costas e a cabeça.
c) Em seguida, acorreram os arguidos AA e BB, tendo aquela puxado os cabelos, tendo, ambos, pontapeado e, o último com uma pá, em riste na mão.
d) Como consequência direta e necessária da conduta dos arguidos, a ofendida EE sofreu dores, escoriações, hematomas nas zonas atingidas que, lhe determinaram um período de doença de 21 (vinte e um) dias.
e) Fizeram-no de forma livre, deliberada e voluntária, concertada e conscientemente, que eram em número superior à ofendida EE, que sozinha, se viu totalmente incapaz de se defender contra quatro pessoas, arguidos, no propósito concretizado de molestar o corpo da ofendida EE causando-lhe as ditas dores e, as lesões verificadas, o que representaram e quiseram.
f) Todos os arguidos sabiam que as respetivas condutas, eram proibidas e punidas por lei penal.
Da acusação particular:
g) Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, os arguidos dirigiram à assistente, de viva e alta voz, as seguintes expressões: «puta», «vaca do caralho», «filha da puta», «és uma ladra», «já devias estar de baixo da terra que nem o diabo a queria!».
h) Os arguidos atuaram de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção de a ofender, bem sabendo que tais condutas não eram permitidas, mas ilícitas e punidas por lei penal.
Do pedido de indemnização civil:
i) A demandante e a mãe residem sozinhas, sendo que a mãe daquela tem 94 anos, pois nasceu a ../../1929.
j) Os arguidos são pessoas agressivas, retaliadoras e quezilentas, não se conformando em virtude de terem sido forçados a remover uma churrasqueira que emitia fumos e fuligens para o interior da casa de habitação da mãe do falecido pai.
k) A demandante sofreu vexame e humilhação.
l) A demandante esteve sujeita a situação de angústia, medo e sofrimento.
m) Em virtude da situação de doença, não pode prestar os cuidados de assistência e apoio à sua mãe que deles necessita e que tiveram de ser prestados pelo apoio social.”;
Devendo ser eliminados dos factos “não provados” e, antes, serem aditados nos factos “provados”, com a subsequente numeração de 13º a 24º, aqui dados por reproduzidos.
Aliás, também;
4ª) Face ao registo da prova documental, por meio de gravação digital áudio, no sistema Citius, utilizado pelos tribunais, o Tribunal Superior pode reproduzir as declarações e depoimentos prestados e, fazer por si próprio (perante a sua audição), a sua própria apreciação e julgamento, com vista à descoberta da verdade material e, um efetivo e eficaz 2º grau de jurisdição da decisão, quanto à matéria de facto impugnada.
5ª) A decisão de absolver os arguidos dos crimes de que vinham pronunciados; bem como, do pedido de indemnização civil deduzido, não se mostra consentânea, nem assertiva, com a realidade dos factos, as circunstâncias ocorridas e demonstradas, sendo uma denegação da Justiça. Porquanto,
6ª) Viola os mais elementares e fundamentais princípios constitucionais, quer quanto ao direito criminal e processual penal e, os comandos aplicáveis, concretamente, quanto à vida e saúde da pessoa, o disposto nos arts. 25º; 26º; 202º, nº 2 da Constituição República Portuguesa; o disposto nos arts. 132º, nº 2, al. b); 143º; 145º, nº 2; 181º do Código Penal e; arts. 70º; 483º; 469º; 497º e 562º do Código Civil, visto; os arguidos/demandados terem praticado os atos ilícitos, a eles imputados, de forma voluntária, consciente, culposa e danosa.
7ª) Com o douto suprimento que se invoca, a douta sentença deverá ser revogada e substituída por acórdão, a julgar procedente a pronúncia e a acusação pública; o pedido cível procedente, sendo os arguidos/demandados, condenados em conformidade.

Termos em que;
- Deve, o presente recurso ser admitido e, merecer provimento e, em consequência a sentença recorrida ser revogada, condenando os Recorridos pela prática – em coautoria – na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada e; também,
em coautoria, na forma consumada, de um crime injúria;
- E, quanto ao pedido de indemnização civil formulado ser atribuída a compensação à Recorrente, em consequência, da incapacidade sofrida, dano patrimonial e moral, no montante não inferior a 5.000,00 € (cinco mil euros).
JUSTIÇA»
3. Os arguidos AA, BB, CC e DD responderam ao recurso, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões (transcrição):
«1. A sentença recorrida fez correta valoração da prova produzida e a correcta aplicação do direito aos factos provados, não violando quaisquer normas legais;
2. A impugnação da matéria de facto não infirma os fundamentos da decisão absolutória, que assentou em juízo crítico da prova validamente produzida;
3. O princípio in dubio pro reo foi corretamente aplicado perante a incerteza sobre os factos imputados aos arguidos.
4. O recurso deve, pois, ser julgado improcedente e mantida a douta sentença proferida.
Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser negado provimento ao recurso interposto por EE, mantendo-se na íntegra a sentença recorrida, por não padecer de qualquer vício de facto ou de direito, assim se fazendo inteira e sã JUSTIÇA!»

4. O Ministério Público junto da 1ª instância também respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado.
5. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se refere o artigo 416.º do Código de Processo Penal([1]), emitiu parecer, afirmando, em síntese, que, nos termos do disposto no artigo 431.º, b) do Código de Processo Penal, se impõe a alteração da matéria de facto, nos termos preconizados pela assistente, no sentido da imputação da prática dos factos aos arguidos que sustentem a sua condenação pela prática dos crimes que lhes eram imputados.
Concluiu dizendo que o recurso da assistente EE deverá obter provimento.
5. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP.
6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.
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II - FUNDAMENTAÇÃO

1. A sentença recorrida

1.1. Na sentença proferida na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
«Constantes do despacho de pronúncia:
1. No dia 20/01/2021, pelas 16:15h, na Rua ..., ..., ..., os arguidos CC e o filho DD, procediam à escavação do solo junto à parede da casa de habitação da assistente.

Do pedido de indemnização civil:
2. A mãe da demandante é de proveta idade.

Mais se apurou:
3. Os arguidos não têm antecedentes criminais.

Das condições socioeconómicas da arguida AA:
4. A arguida tem o 9.º ano de escolaridade, e empeçou, recentemente, a laborar como empregada de limpeza, a tempo parcial.
5. Reside com o marido, o arguido CC, e o filho, o arguido DD, em casa própria, pela aquisição da qual o casal liquida empréstimo bancário em prestações mensais de cerca de 200,00€ a 300,00€.
6. O casal de arguidos, AA e CC, detém dois veículos automóveis: um ... e um ..., e, ainda, uma mota da marca ....

Das condições socioeconómicas do arguido BB:
7. O arguido BB tem o 4.º ano de escolaridade e encontra-se reformado, auferindo pensão no valor de 300,00€.
8. O arguido ocupa-se, atualmente, na agricultura de subsistência.
9. Reside com a esposa em casa própria.

Das condições socioeconómicas do arguido CC:
10. O arguido CC tem o 6.º ano de escolaridade e labora como maquinista de corte, auferindo o salário mínimo nacional.

Das condições socioeconómicas do arguido DD:
11. O arguido DD tem o 9.º ano de escolaridade e encontra-se desempregado há dois meses, após ter exercido a profissão de sapador florestal.
12. O mesmo verbalizou não deter quaisquer rendimentos, dependendo total e economicamente dos progenitores.»
*
1.2. Quanto a factos não provados consta da sentença recorrida (transcrição):

«Além daqueles que se mostram em contradição com a factualidade provada, resultam os seguintes factos não provados:

Constantes do despacho de pronúncia:
a) Ao aperceber-se do referido em 1., interpelou-os para não o fazerem sem a sua autorização da mãe, conforme o acordado e sentenciado no âmbito do processo de ação comum, cujos termos correram pelo Juízo Local Cível de ... - J..., sob o n.º 2265/19.5T8VRL.
b) De comum acordo e em conjugação de esforços e propósitos, investiram na sua direção, atiraram-na ao chão e desferiram-lhe vários pontapés nas costas e a cabeça.
c) Em seguida, acorreram os arguidos AA e BB, tendo aquela puxado os cabelos, tendo, ambos, pontapeado e, o último com uma pá, em riste na mão.
d) Como consequência direta e necessária da conduta dos arguidos, a ofendida EE sofreu dores, escoriações, hematomas nas zonas atingidas que, lhe determinaram um período de doença de 21 (vinte e um) dias.
e) Fizeram-no de forma livre, deliberada e voluntária, concertada e conscientemente, que eram em número superior à ofendida EE, que sozinha, se viu totalmente incapaz de se defender contra quatro pessoas, arguidos, no propósito concretizado de molestar o corpo da ofendida EE causando-lhe as ditas dores e, as lesões verificadas, o que representaram e quiseram.
f) Todos os arguidos sabiam que as respetivas condutas, eram proibidas e punidas por lei penal.

Da acusação particular:
g) Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, os arguidos dirigiram à assistente, de viva e alta voz, as seguintes expressões: «puta», «vaca do caralho», «filha da puta», «és uma ladra», «já devias estar de baixo da terra que nem o diabo a queria!».
h) Os arguidos atuaram de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção de a ofender, bem sabendo que tais condutas não eram permitidas, mas ilícitas e punidas por lei penal.

Do pedido de indemnização civil:
i) A demandante e a mãe residem sozinhas, sendo que a mãe daquela tem 94 anos, pois nasceu a ../../1929.
j) Os arguidos são pessoas agressivas, retaliadoras e quezilentas, não se conformando em virtude de terem sido forçados a remover uma churrasqueira que emitia fumos e fuligens para o interior da casa de habitação da mãe do falecido pai.
k) A demandante sofreu vexame e humilhação.
l) A demandante esteve sujeita a situação de angústia, medo e sofrimento.
m) Em virtude da situação de doença, não pode prestar os cuidados de assistência e apoio à sua mãe que deles necessita e que tiveram de ser prestados pelo apoio social.»
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1.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
«Cumpre afirmar que toda a prova valorada é aquela validamente produzida em audiência de julgamento, tendo a mesma sido analisada criticamente à luz das máximas da experimentação, de acordo o livre e prudente arbítrio do Tribunal, conforme decorre do artigo 127.º do Código de Processo Penal (doravante CPP).
A convicção do Tribunal formou-se pela análise conjugada dos relatórios periciais/documentos constantes dos autos, e indicados no despacho de pronúncia, nomeadamente, relatórios preliminar e final de perícia de avaliação de dano corporal de fls. 37-39 e 91-93; carta de fls. 16-17; auto de participação de fls. 21-26; fotografias de fls. 41-52; informação clínica de fls. 86-87; auto de fls. 131-136; fotografias juntas com a acusação particular (de 04/10/2023); levantamento topográfico junto com o requerimento de 10/10/2023; informação clínica de fls. 354-355; informação INEM de fls. 394; fotografias juntas com o requerimento de 28/01/2025; certificados de registo criminal juntos a 23/01/2025 e 03/02/2025.
Bem como as declarações dos arguidos, da assistente, e os depoimentos das testemunhas FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, e MM.
Inicie-se por dizer que a prova produzida foi altamente contraditória e não permitiu convencer da realidade narrada quer no despacho de pronúncia, quer na acusação particular deduzida pela assistente.
Atentando, desde logo, nas declarações da assistente, importa considerar que esta produziu um relato incongruente, e não sustentado pela demais prova pericial e documental junta aos autos.
Assim, a assistente narrou uma versão que só de si é inverosímil, aventado que teria sido atacada por todos os arguidos ao mesmo tempo à sua chegada à surreira que dividia a sua casa de habitação daquela dos arguidos sem que nada o fizesse prever.
Olhando à relação conturbada que já intercedia entre a assistente e os arguidos, em virtude um processo judicial de natureza cível que correu termos quanto a um litígio existente entre a família da assistente e a dos arguidos, não é natural que a assistente, diante de uma situação provocada pelos arguidos (obras no seu logradouro) que entendia ser violadora da transação firmada naquele processo judicial, tivesse permanecido em silêncio, ou muito menos que, sem motivo algum, os arguidos tivessem todos eles investido sobre si.
Tal desavença vincada é patente, desde logo, pela carta enviada por herdeiros de NN (no que se incluem a assistente e seu irmão, a testemunha JJ) aos arguidos CC e AA (de fls. 16-17), datada de 14/07/2021, na qual aqueles dão nota de já serem conhecedores de que os arguidos se preparavam para proceder à escavação que, no dia em questão, se encontravam a fazer.
Na qual intimam também os arguidos a lhes comunicar previamente das obras que pretendiam executar.
O litígio em questão que notoriamente divide a assistente e os arguidos põe, igualmente, em causa a credibilidade da assistente, suscitando dúvida quanto ao interesse desta na condenação dos arguidos, isto é, se virá fundado em malquerença.
A assistente diz que foi agredida por todos com pontapés nas costas, nas pernas, na cabeça, nos braços, e nos joelhos, enquanto se encontrava no chão de «cabeça para baixo».
Se não se percebe como é que alguém consegue agredir alguém que se encontra de posição de barriga para o solo nos joelhos, também não se compreende como a assistente, naquela posição, conseguiria visualizar quem a agredia.
Por outro lado, referiu que os arguidos só pararam quando a sua mãe, II, e o seu primo, GG, chegaram e visualizaram a mesma a ser agredida, para, logo a seguir, dizer que quando estes chegaram já teria terminado a agressão e estaria sentada numa pedra.
A corroborar (em parte) o aventado apenas se contabilizam os seus parentes imediatos, mãe e irmão, sendo que o primo GG afirmou não ter assistido a qualquer agressão, mas tão-somente à assistente a chorar a queixar-se de ter sido agredida.
É de notar que a assistente avançara que só se deslocara à residência dos arguidos no momento em que se apercebera de que se encontravam a realizar as ditas escavações, o que foi, inclusive, infirmado pela pessoa do seu irmão, que referiu que já no período da manhã teria conversado com esta sobre tal assunto, em que a mesma lhe teria dado nota do início das obras.
São pormenores importantes que não se percebe o porquê da assistente os querer dissimular, que não fosse pelo seu propósito de procurar transmitir uma imagem deturpada e imaculada do seu envolvimento na situação.
Imagem essa que fica, irremediavelmente, posta em causa quando se atenta no que resultou do depoimento da testemunha FF, militar da GNR, e pessoa que, ao quanto se afigurou e pode apurar, nenhuma relação detém com qualquer um dos sujeitos processuais, de que, realmente, naquelas circunstâncias de tempo e lugar apostas no auto de fls. 131-136, eram duas as senhoras que apresentavam ferimentos.
O que inculca a ideia de que a versão dos arguidos não é descabida: a de que a arguida e assistente se terão envolvido em agressões mútuas após a resistência da assistente em sair do perímetro residencial dos arguidos.
Acresce que, pese embora a assistente, a sua mãe e irmão tenham afirmado que a assistente teria ficado muito ferida, inclusive impedida de cuidar daquela sua mãe e se deslocar normalmente (o irmão referiu mesmo que em dezembro, a mesma, ainda, mancava), tal não encontra qualquer respaldo no relatório pericial preliminar elaborado com base em examinação ocorrida a 09/12/2021.
Com efeito, naquele relatório não só se inscreve que a assistente não apresentava quaisquer lesões ou sequelas, como ainda se faz menção à absoluta ausência de alterações na postura, deslocamentos, ou de outras queixas funcionais, inclusive fazendo-se expressa referência ao facto da assistente apresentar «marcha normal, sem apoio nem claudicação».
De resto, das fotografias juntas aos autos a fls. 41-52 – que a assistente afirmou terem sido tiradas no dia dos factos ou no dia imediatamente posterior – não se vislumbram lesões com a magnitude e intensidade que certamente adviriam do tipo de lesões narrado pela assistente, mas tão somente pequenas escoriações ou marcas vermelhas.
Fotografias essas que, importa mencionar, não se encontram sequer datadas.
Por seu turno, os arguidos apresentaram uma versão que também ela encontra suporte não só nas declarações do militar da GNR FF, como se fez referência, mas também na informação clínica de fls. 354-355 (de onde também se colhe que no dia em questão também a arguida exibia lesões no seu corpo).
Mas que também ela contém as suas fragilidades, o que sucede desde logo pelo facto de todos (exceto o arguido DD que se cingiu ao silêncio) terem referido que nenhum dos arguidos se envolveu na contenda física que se despoletou entre a arguida e a assistente.
Tendo em conta que a arguida teria tido um problema oncológico recente que a levara a ser intervencionada cirurgicamente (como a própria e seu marido, CC referiu, e decorre da informação clínica de fls. 354-355), e a especial relação que intercedia entre todos os arguidos – sendo que a arguida é mãe de DD, esposa de CC e nora de BB – não é crível que os arguidos tenham somente assistido à luta em que se envolveram aquela e a assistente.
Sob outro enfoque, seria equacionável que a hipótese em que a arguida procurasse assumir sozinha a autoria dos factos ou de parte destes, assim procurando inocentar o seu marido, filho e genro.
Inexiste, de resto, uma correspondência entre aquilo que a arguida diz ter feito à assistente (empurrado e causado a sua queda no solo, seguida de empurrão nas nádegas) e aquilo que a assistente diz ter sofrido às mãos desta (puxões de cabelos).
Sendo que, de todo em todo, nunca a assistente imputa a direção das expressões descritas na acusação particular aos arguidos, mas tão-somente as expressões «puta», «vaca», e «reca» à arguida.
Decorre de todo o exposto que não é possível conferir credibilidade a uma das partes em detrimento da outra, sendo que ambas as versões fácticas apresentadas são, por um lado, passíveis de terem ocorrido, e, por outro, dissonantes à luz das regras da experimentação comum, o que sugere que a realidade não tenha ocorrido de nenhuma das formas recontadas.
As demais testemunhas ouvidas não presenciaram os factos, nem declararam nada que permitisse aclarar a dúvida insanável que paira sobre a realidade narrada tanto no despacho de pronúncia, como na acusação particular.
Pelo que, defronte da dúvida, resolveu-se a mesma em abono dos arguidos.
A não demonstração da factualidade imputada culminou, necessária e logicamente, no não apuramento da facticidade atinente à consciência e vontade de praticar os factos, bem como aquela articulada no pedido de indemnização civil formulado em ambos os articulados – do que se excetua o único facto provado articulado no PIC, o qual procedeu da perceção direta do Tribunal aquando da inquirição da progenitora da assistente.
A ausência de antecedentes criminais procede dos certificados de registo criminal juntos a 23/01/2025 e 03/02/2025.
As condições socioeconómicas dos arguidos resultam das declarações dos próprios que, nessa medida, se afiguraram credíveis, não se vislumbrando motivos para declararem inveridicamente.»
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2. Apreciando

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso([2]), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso([3]).
No caso em apreço, atenta a conformação das conclusões formuladas pela recorrente, a questão a apreciar e decidir consiste em saber se a decisão proferida sobre a matéria de facto deve ser alterada nos termos que indica e quais as consequências a extrair dessa alteração.
O legislador concebeu o recurso de facto como um remédio para sanar o que tem por excepcional no julgamento feito pela 1ª instância, o erro na definição do facto, razão pela qual o recurso não pode nem deve ser perspectivado como um novo julgamento, como se o efectuado na 1ª instância não tivesse existido.
Por outro lado, sentindo-se o recorrente afectado pela decisão recorrida que considera incorrecta, a ele cabe, exclusivamente, fixar o objecto do recurso, com a precisa indicação do erro ou dos erros que entende terem sido cometidos pelo julgador.
Para a indicação do suposto erro fixa a lei procedimentos a observar pelo recorrente, essencialmente, no artigo 412.º, nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, que prevê a principal regulamentação do recurso de facto ou, preferindo-se, da impugnação ampla da matéria de facto.
Assim, o regime exige a observância pelo recorrente do ónus de uma tripla especificação, a saber: a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; a especificação das provas que devem ser renovadas [esta, nos termos do art. 430.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, apenas quando se verificarem os vícios da sentença e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio], acrescendo, relativamente às concretas provas, que quando tenham sido gravadas, as duas últimas especificações devem ser feitas por referência ao consignado na acta, com a concreta indicação das passagens em que se funda a impugnação e devendo todas estas especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (cfr. art. 417.º, n.º 3 do Código de Processo Penal).
Não basta, porém, para a procedência da impugnação e, portanto, para a modificação da decisão de facto, que as provas produzidas permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal. Com efeito, este decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção [o que, com frequência, é ignorado pelos recorrentes], tornando-se por isso necessário que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida.
A demonstração desta imposição recai igualmente sobre o recorrente que deve relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado([4]).
Em sede da valoração da prova vale o princípio da livre apreciação da prova, dispondo o artigo 127.º do Código de Processo Penal, onde tem assento que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
A apreciação da prova é, pois, nos termos da lei, tarefa exclusiva do julgador mas a livre convicção que a fundamenta não tem o sentido de o juiz a poder valorar conduzido por um convencimento exclusivamente subjectivo, pois ela não significa arbítrio ou decisão irracional, bem pelo contrário.
A valoração da prova impõe ao julgador uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, da lógica e da ciência e na percepção [no que respeita à prova por declarações] da personalidade dos depoentes, tendo sempre como horizonte a dúvida inultrapassável que conduz ao princípio in dubio pro reo.
Naturalmente que para esta apreciação, para além da actividade meramente cognitiva, contribuem elementos subjectivos, v.g., intuição do julgador, mas é da conjugação de todos estes elementos que tem que resultar uma convicção ainda assim, objectivável e motivável, únicas características que vão permitir que a decisão se imponha, intraprocessualmente e extraprocessualmente([5]).
A convicção do tribunal vai, assim, resultar da conjugação dos dados objectivos consubstanciados nos documentos e em outras provas constituídas, com as impressões proporcionadas pela prova por declarações, tendo em conta a forma como esta foi produzida, relevando designadamente, a razão de ciência de declarantes e depoentes, a sua serenidade e distanciamento, as suas certezas, hesitações e contradições, a sua linguagem e cultura, os sinais e reacções comportamentais revelados, e a coerência do seu raciocínio.
Esta conjugação só pode ser obtida, pelo menos, no grau desejável, através da imediação e da oralidade da prova pois só o contacto directo do julgador com esta, só o ‘frente a frente’ entre o juiz e o declarante ou a testemunha, o coloca em perfeitas condições de proceder, primeiro, à avaliação individual, e depois, à avaliação global da prova.
Vigorando o princípio da livre apreciação da prova em todas as instâncias que conhecem de facto, uma dificuldade acrescida surge na fase do recurso pois não pode ser ignorada a substancial diferença entre a valoração da prova por declarações efectuada na 1ª instância e a apreciação que sobre ela pode ser feita pelo tribunal de recurso, limitado que está à audição – mais raramente, à visualização – das passagens concretamente indicadas pelos intervenientes processuais e de outras, que eventualmente considere relevantes, ficando, nesta medida, incapaz de apreender parte substancial dos elementos atrás enunciados, dada a impossibilidade do seu registo áudio, elementos que, porém, foram, ou podiam ter sido, apreendidos, interiorizados e valorados na sua globalidade por quem os presenciou, pelo juiz do julgamento.
Por isso, quando a 1ª instância atribui, ou não, credibilidade a uma fonte de prova por declarações, fundando a opção tomada na imediação, o tribunal de recurso, em princípio, só a deve censurar quando seja feita a demonstração de que a opção tomada carece de razoabilidade ou viola as regras da experiência comum.
Aqui chegados.
A recorrente, dizendo que deve ser dada como provada a matéria vertida nas alíneas a), b), c), d), e), f), g), h), i), j), k), l) e m) dos factos não provados, sustenta que as provas existentes nos autos, designadamente o auto de ocorrência, o auto de participação, a informação do pedido de socorro à GNR ..., a solicitação ao Serviço Nacional de Saúde, a ficha clínica de urgência do Centro Hospitalar ..., as lesões observadas nos exames médicos com os tratamentos prescritos, o relatório de avaliação em dano corporal elaborado pelo INML .../Gabinete de ..., os registos fotográficos do corpo da assistente, a transacção judicial com sentença homologatória, os registos fotográficos obtidos no Google Earth sobre o local onde se localizam os prédios urbanos da assistente e dos arguidos, além das declarações e depoimentos prestados, permitiriam formar convicção segura de que os factos ocorreram nos precisos termos, circunstâncias e modo como constam quer do despacho de pronúncia quer da acusação particular.
Analisando a motivação e as conclusões constata-se que a recorrente não alega que a descrição que a sentença recorrida faz do conteúdo das declarações da assistente e dos arguidos e dos depoimentos das testemunhas, assim como a análise que faz da prova documental e pericial, não corresponde ao que, na realidade, disseram a assistente, os arguidos e as testemunhas, nem ao que consta daquela prova documental e pericial.
O que a recorrente defende, como corolário do erro de julgamento que invoca, é que o tribunal a quo fez indevida aplicação do princípio in dubio pro reo.
O princípio in dubio pro reo constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos: em tal situação, impõe-se que o Tribunal decida pro reo, a favor do arguido, pois.
Como acentua Jescheck “serve para resolver dúvidas a respeito da aplicação do direito que surjam numa situação probatória incerta”([6]) ou, dito de outro modo, significa que a persistência de dúvida razoável, após a produção de prova, tem de actuar em sentido favorável ao arguido([7]).
A dúvida que há-de levar o tribunal a decidir «pro reo», tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária. Por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal([8]) ([9]).
Não é assim toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio. Mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada (…) A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio([10]).
A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável([11]).
Daí que o tribunal de recurso só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido([12]).
O princípio in dubio pro reo encerra, portanto, uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
Como resulta da análise da motivação de facto acima transcrita, o tribunal a quo recorreu às regras de experiência e apreciou a prova de forma objectiva e motivada, expondo de forma clara e segura as razões que fundamentam a sua opção, permitindo aos sujeitos processuais e a este tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional que subjaz à convicção do julgador.
Uma dúvida como a do tribunal a quo que se apoia na circunstância de existirem duas versões antagónicas sobre os factos ocorridos no dia 20-11-2021, traduzidas nas declarações prestadas pela assistente e pelo arguidos (com excepção do arguido DD que se remeteu ao silêncio), de existir um litígio entre a família da assistente e a dos arguidos por causa de um processo judicial de natureza cível, entendendo a assistente que a situação provocada pelos arguidos (obras no seu logradouro) era violadora da transacção firmada naquele processo judicial, de o relato da assistente se mostrar incongruente ao referir que teria sido atacada por todos os arguidos, ao mesmo tempo, à sua chegada à surreira que dividia a sua casa de habitação daquela dos arguidos sem que nada o fizesse prever, de não se perceber, dizendo a assistente que foi agredida por todos os arguidos com pontapés nas costas, nas pernas, na cabeça, nos braços e nos joelhos, enquanto se encontrava no chão de «cabeça para baixo», como é que alguém consegue agredir outrem que se encontra de posição de barriga para o solo nos joelhos, assim como também não se compreende como é que a assistente, na referida posição, conseguiria visualizar quem a agredia, de a assistente afirmar que os arguidos só pararam quando a sua mãe II e o seu primo GG chegaram e visualizaram a mesma a ser agredida, para, logo a seguir, dizer que quando estes chegaram já teria terminado a agressão e estaria sentada numa pedra, de a testemunha FF, militar da GNR, que elaborou o auto de participação de fls. 131 a 136 e nenhuma relação tem com qualquer um dos sujeitos processuais, ter dito que, nas descritas circunstâncias de tempo e lugar, eram duas as senhoras que apresentavam ferimentos, de as fotografias juntas aos autos de fls. 41 a 52 – que a assistente afirmou terem sido tiradas no dia dos factos ou no dia imediatamente posterior – não evidenciarem lesões com a magnitude e intensidade que adviriam do tipo de lesões narrado pela assistente, mas tão somente pequenas escoriações ou marcas vermelhas, registadas no episódio de urgência a que a assistente foi sujeita no Hospital ... (fls. 86 a 87vº), de a versão dos arguidos, segundo a qual a arguida AA e a assistente se terão envolvido em agressões mútuas após a resistência da assistente em sair do perímetro residencial dos arguidos, encontrar suporte não só no depoimento da testemunha FF, militar da GNR, mas também no episódio de urgência a que a arguida AA foi sujeita no Hospital ... de onde resulta que no dia em questão também a arguida exibia lesões no seu corpo (fls. 354-355), de a versão dos arguidos apresentar fragilidades pelo facto de todos (excepto o arguido DD que se remeteu ao silêncio) terem referido que nenhum dos arguidos se envolveu na contenda física que se despoletou entre a arguida AA e a assistente e não ser crível, tendo em conta que a arguida AA teria tido um problema oncológico recente que a levara a ser intervencionada cirurgicamente e a relação familiar que intercedia entre todos os arguidos, que os arguidos tenham somente assistido à luta em que se envolveram a arguida AA e a assistente, de, noutra perpectiva, ser equacionável que a arguida AA procurasse assumir sozinha a autoria dos factos ou de parte destes, assim procurando ilibar o seu marido, filho e genro, de inexistir uma correspondência entre aquilo que a arguida AA diz ter feito à assistente (empurrado e causado a sua queda no solo, seguida de empurrão nas nádegas) e aquilo que a assistente diz ter sofrido às mãos desta (puxões de cabelos), de nunca a assistente ter imputado a direção das expressões descritas na acusação particular aos arguidos mas tão-somente as expressões «puta», «vaca» e «reca» à arguida AA, é uma dúvida que não pode deixar de se considerar objectivada e, portanto, tem a virtualidade de, racionalmente, convencer quem quer que seja da bondade da sua justificação.
Como sublinha o tribunal a quo existe uma relação conturbada entre a assistente e os arguidos, em virtude um processo judicial de natureza cível que correu termos quanto a um litígio existente entre a família da assistente e a dos arguidos, sendo tal desavença patente, desde logo, pela carta enviada pelos herdeiros de NN (nos quais se incluem a assistente e seu irmão, a testemunha JJ) aos arguidos CC e AA (fls. 16/17), datada de 14/07/2021, na qual aqueles dão nota de já serem conhecedores de que os arguidos se preparavam para proceder à escavação que, no dia em questão, se encontravam a fazer, assim como intimam também os arguidos a lhes comunicar previamente das obras que pretendiam executar.
Salienta ainda o tribunal a quo que o litígio em questão que notoriamente divide a assistente e os arguidos põe, igualmente, em causa a credibilidade da assistente, suscitando dúvida quanto ao interesse desta na condenação de todos os arguidos, isto é, se virá fundado em malquerença.
Assim, perante a conjugação e análise crítica de toda a prova produzida, o tribunal a quo concluiu que não é possível conferir credibilidade a uma das partes em detrimento da outra, sendo que ambas as versões fácticas apresentadas são, por um lado, passíveis de terem ocorrido, e, por outro, dissonantes à luz das regras da experimentação comum, o que sugere que a realidade não tenha ocorrido de nenhuma das formas recontadas.
O mesmo é dizer que, por se mostrar racional, razoável e insuperável, tal dúvida legitima a aplicação do princípio in dubio pro reo pelo que não merece censura o seu uso pelo tribunal a quo ao dar como não provados os factos constantes quer do despacho de pronúncia quer da acusação particular, e bem assim do pedido de indemnização civil, que são desfavoráveis a todos os arguidos.
Através da motivação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida fica-se ciente do percurso efectuado pela Mma. Juiz a quo onde seguramente a racionalidade se impõe mas onde a livre convicção se afirma com apelo ao que a imediação e a oralidade, e só elas, conseguem conceber, espelhando aquela decisão a apreciação crítica da prova produzida, explicitando o resultado dessa apreciação e justificando a convicção formada quanto à matéria em causa de forma lógica e de acordo com as regras da experiência comum e o princípio in dubio pro reo.
Por isso, não se evidenciando qualquer afrontamento às regras da experiência comum, ou qualquer apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, nem o uso censurável do princípio in dubio pro reo, nenhum reparo merece o juízo valorativo acolhido na 1ª instância.
Na decorrência da impugnação ampla da matéria de facto, pretende a recorrente que os arguidos sejam condenados pela prática – em co-autoria e na forma consumada – de um crime de ofensa à integridade física qualificada e de um crime de injúria, bem como no pedido de indemnização civil, sendo atribuído à recorrente, em consequência da incapacidade sofrida, dano patrimonial e moral, um montante não inferior a 5.000,00 € (cinco mil euros).
Como liminarmente se poderá concluir, resultando improcedente o recurso quanto à impugnação ampla da matéria de facto, mantendo-se os pontos de facto impugnados nos exactos termos em que foram fixados pela 1ª instância, o mesmo terá que necessariamente improceder também no que se refere a esta pretensão.
Nestes termos, é mister concluir que não se demonstraram os elementos constitutivos dos tipos legais de crime imputados aos arguidos no despacho de pronúncia e na acusação particular, já analisados na sentença recorrida, assim como a demandante não logrou demonstrar a existência de qualquer facto ilícito praticado pelos arguidos em que pudesse assentar a responsabilidade civil que lhes é assacada - artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil.
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III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso da assistente EE e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
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Custas na parte crime pela assistente EE, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC´s (arts. 515.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa a este último diploma).
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Custas na parte cível pela demandante EE (arts. 523.º do Código de Processo Penal e 527.º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).
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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do C. P. P.)
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Guimarães, 16.09.2025

Os Juízes Desembargadores
Fernando Chaves (Relator)
Cristina Xavier da Fonseca (1ª Adjunta)
Carlos da Cunha Coutinho (2º Adjunto)
      

[1] - Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem.
[2]  - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 107; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/09/1997 e de 24/03/1999, in CJ, ACSTJ, Anos V, tomo III, pág. 173 e VII, tomo I, pág. 247 respectivamente.
[3] - Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995.
[4] - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 3ª edição, pág. 1122, nota 9.
[5] - Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Edição, 1974, Reimpressão, Coimbra Editora, 2004, pág. 205.
[6] - Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4ª edição, pág. 127.
[7] - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, edição de 1974, pág. 215.
[8] - Cf. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo, página 166.
[9] - No mesmo sentido, entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 05.02.2009, 14.10.2009 e de 15.04.2010, proferidos nos processos nºs 2381/08 - 5, 101/08.7PAABT.E1.S1 - 3 e 154/01.9JACBR.C1.S1 - 5, in www.stj.pt/jurisprudencia/sumáriosdeacórdãos/secçãocriminal.
[10] - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.11.1998, in BMJ n.º 481, pág. 265.
[11] - Neste sentido, Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (1966), pág. 25.
[12] - Acórdão do STJ de 02.05.1996, CJ, ACSTJ, 1996, Tomo II, pág. 177.