Não há oposição relevante, para efeitos de admissão do recurso ex artigo 14.º CIRE, entre o acórdão fundamento que decidiu que o juiz não pode levantar obstáculos à nomeação para administrador de insolvência da pessoa indicada pelo devedor, quando a própria lei não os levanta, e o acórdão recorrido que argumenta que o tribunal não está obrigado a nomear quem a devedora indicou para exercer tal incumbência, podendo privilegiar, quando houver motivos para isso, outras pessoas, designadamente a indicada pela requerente da insolvência.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
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Jodel Hygiene Products Manufacturing, Unipessoal Lda. reclamou para a conferência da decisão singular proferida pelo relator e do seguinte teor:
«Jodel Hygiene Products Manufacturing, Unipessoal Lda interpôs RECURSO DE REVISTA EXCECIONAL do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11 de Fevereiro de 2025, que negou provimento ao recurso interposto pela Recorrente, confirmando a sentença recorrida.
Refere designadamente na sua minuta que:
- O presente recurso é interposto ao abrigo do artigo 672.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
- no caso ocorrente, a relevância, jurídica e social, das questões, justifica que se esclareça o impacto da nomeação/escolha do Administrador de Insolvência;
- no caso em apreço, a recorrente entende que as questões subsumidas a este recurso assumem laivos de complexidade, implicando um importante e detalhado exercício de exegese, sendo susceptível de interpretações divergentes que coloquem em causa a boa aplicação do direito;
- nesta medida, a questão fundamental prende-se com o entendimento fixado pelos Tribunais de primeira e segunda instância, no sentido da correta escolha do Administrador de Insolvência, à luz do disposto nos artigos 32.º, n.º 1 e 52.º, n.º 2, do CIRE.
- o acórdão recorrido está em contradição com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra a 6 de Março de 2012 no âmbito do Processo n.º 1112/11.0TBTMR-C.C1.
Vejamos se o recurso é admissível.
O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 6.3.2012, Proc. 1112/11, reapreciou a questão sentenciada no tribunal da Comarca de Tomar, num processo de insolvência.
Os requerentes, no requerimento em que se apresentaram à insolvência, tinham indicado para as funções de administrador determinada pessoa.
A sentença que declarou a insolvência não atendeu ao pedido de nomeação do administrador de insolvência indicado pelos requerentes.
Inconformados, os requerentes recorreram dessa sentença, na parte em que não nomeou o Administrador de Insolvência indicado pelos apelantes, alegando que a decisão recorrida não fez a correcta interpretação e aplicação dos preceitos legais aplicáveis, nomeadamente dos arts. 36.º e 53.º do CIRE.
Importa pois, declarar nula a sentença recorrida, na parte atinente à nomeação do administrador da insolvência e, em conformidade, e nos termos do n.º 1 do art. 715.º do CPC, deve a Relação substituir-se ao Tribunal recorrido e, “in casu”, proceder à nomeação do administrador da insolvência em função dos elementos fácticos que decorrem dos autos.
Esses elementos são os seguintes:
1.º Na sentença que declarou a insolvência dos requerentes foi nomeado Administrador da Insolvência C...;
2.º Na sua petição inicial, os requerentes tinham indicado para o exercício dessas funções D...e E....
O Tribunal da Relação de Coimbra julgou procedente o presente recurso, anulou a decisão recorrida na parte em que nomeou Administrador da Insolvência C..., e designou, para exercer tais funções D...e AA, identificado na petição inicial.
Argumentou nos seguintes termos:
- A decisão recorrida alicerça-se, essencialmente, no argumento de que «por regra», não é aconselhável a nomeação como Administrador de Insolvência de pessoa que venha a ser indicada pelo próprio devedor.
- Quer isso dizer que a Meritíssima Juíza «por regra» nega ao devedor o que o n.º 2 do artigo 52.º CIRE lhe concede, pois esta norma, já atrás citada, é clara ao estabelecer que o juiz pode «ter em conta as indicações que sejam feitas pelo próprio devedor».
- Quando o legislador estipula que o juiz poderá ter «em conta as indicações que sejam feitas pelo próprio devedor» não lhe está a atribuir poder discricionário.
- Concede-lhe, sim, a possibilidade de não seguir a indicação feita, mas somente quando houver razões válidas e objectivas que, naquele caso aconselhem a que o Administrador da Insolvência não seja a pessoa indicada pelo devedor.
- Nesse caso, o juiz dirá quais os motivos concretos e palpáveis por que não nomeia para Administrador da Insolvência quem o devedor tinha indicado para esse cargo.
- Não basta a mera suspeição vaga e generalizada em virtude de a indicação ter proveniência no devedor, pois o legislador entendeu não haver fundamento para uma desconfiança fundada apenas nessa razão.
- Não pode a Meritíssima Juíza levantar obstáculos onde o legislador os não colocou e está enganada quando considera "que só razões muito fortes poderiam levar à nomeação como Administrador da Insolvência de alguém que seja indicado pelo próprio devedor", pois, na verdade, tal entendimento não tem o menor apoio no n.º 2 e daquele artigo 52.º.
- À luz do que se deixou dito, «o devedor pode indicar a pessoa que deve exercer a função de administrador da insolvência e, havendo tal indicação, o juiz pode tê-la em conta.
No acórdão recorrido, foi uma credora que requereu a declaração de insolvência da recorrente, tendo indicado o Dr. BB para ser nomeado administrador.
A devedora requereu a nomeação de outra pessoa para o cargo de administrador. A sentença do tribunal atendeu à indicação da requerente (e de alguns intitulados trabalhadores e credores da devedora em requerimentos apresentados nos autos).
Inconformada, a devedora recorreu, pretendendo a revogação da decisão do primeiro grau, e a nomeação da pessoa que indicou para exercer essas funções.
A Relação julgou improcedente o recurso, na base dos seguintes elementos de facto:
«Os constantes do Relatório, que se dão por integralmente reproduzidos, tendo
ainda sido dados como provados, na sentença proferida nos autos, os seguintes factos:
a) A Requerida Jodel Hygiene Products Manufacturing, Unipessoal, Lda. é uma sociedade comercial por quotas, com o NIPC .......19, que foi constituída em 20-10-1994 (com outra denominação), com sede na Localização 1, ... Aveiras de Cima, e tem por objecto social “fabricação de perfumes, de cosmética e de produtos de higiene; fabricação de sabões, detergentes e glicerina. Comércio por grosso de produtos de limpeza e conservação, de uso doméstico ou industrial. Comércio por grosso de perfumes, cosméticos e de artigos de higiene pessoal.
b) Tem o capital social de € 7 500 000, 00, realizado numa única quota, de igual valor nominal, da titularidade de Jodel – SGPS, S.A., NIPC .......31.
c) São seus gerentes: CC, NIF .......63, que preside, e DD, NIF .......16.
d) A sociedade obriga-se pela assinatura de: a) dois gerentes; b) um gerente e um mandatário da sociedade nas matérias compreendidas nos poderes a este conferidos por procuração; c) qualquer procurador da sociedade para atos em concreto expressa e integralmente identificados em procuração e em execução de deliberações do conselho de gerência ou da assembleia geral.
e) O último depósito de contas consta inscrito em 21-07-2023 e reporta-se ao ano de 2022.
f) A Requerida reconheceu o crédito da Requerente no montante de € 9 000, 00.
g) A Requerida reconheceu a sua situação de insolvência.
h) A Requerida indicou os cinco maiores credores: 1. Autoridade Tributária e Aduaneira - € 10 027 122, 18; 2. Banco BIC Português, S.A. - € 3 251 069, 18; 3. Banco Comercial Português, S.A. - € 3 739 816, 25; 4. IAPMEI, IP – Agência para a Competitividade e Inovação - € 1 950 526, 55; 5. Novo Banco, S.A. - € 4 199 692, 73.
i) A Requerida apresentou-se à insolvência no processo n.º 3337/24.0T8VFX, que
corre termos no J4 deste Juízo do Comércio.
Na base desta factualidade, o acórdão recorrido argumenta:
- O tribunal a quo pode privilegiar, na nomeação que faz do administrador da insolvência, o indicado pela requerente na petição inicial, tendo em consideração o disposto no art.º 32º, n.º 1, do CIRE, por via da remissão do art.º 52º, n.º 2, do CIRE.
- Está em causa, como se refere no Acórdão do Tribunal de Évora, de 17.03.2016, um poder discricionário, sendo que: “o juiz não é obrigado a acolher a indicação que lhe foi feita, desde que haja motivos que a desaconselhem».
- No entanto, na sentença proferida, a opção de nomeação a final é pelo
administrador da insolvência indicado pela requerente e pelos referidos trabalhadores, putativos credores.
- Não tendo ligação com a empresa, o Sr. Administrador Judicial indicado pelos credores apresenta-se como a nomeação que melhor assegurará os interesses da empresa e dos credores, sendo que já terá analisado elementos que permitam o conhecimento da situação em que a empresa se encontra.
- Ademais, caso assim não fosse decidido, não estaria precludida a possibilidade da sua designação em assembleia de credores, nos termos do art. 53, n.º 1, do CIRE, que seria o cenário mais plausível face à indicação manifestada nos autos.”
- É a posição dos credores que está aqui a ser salvaguardada, e bem, pelo tribunal a quo, considerando que não tendo o administrador da insolvência visado ligação com a empresa, a nomeação do mesmo apresenta-se como a que melhor assegurará os interesses da empresa e dos credores.
Cumpre, pois, concluir, que o tribunal a quo andou bem ao nomear o administrador da insolvência BB.
Vejamos então se, diante destes elementos, de facto e de direito, o recurso é de admitir.
A recorrente interpôs, como vimos, recurso de revista excepcional.
Tratando-se de uma decisão final proferida num processo de insolvência tem aplicação o artigo 14.º 1 do CIRE.
Nestas situações não tem aplicação o disposto nos artigo 672.º do CPC.
Na verdade, é orientação unanimemente seguida nesta secção especializada do STJ que «o recurso de revista em processo de insolvência tem um regime específico, previsto no art.14º do CIRE, que o afasta das regras comuns da revista previstas no CPC (incluindo da revista excecional prevista no art.672º)» (cfr. por todos, Ac. STJ de 9.11.2022, Proc. 13509/20).
Para que o recurso seja admitido, necessário se torna apurar se existe uma frontal oposição de entendimentos em dois acórdãos sobre a aplicação de determinada solução legal, e que tal divergência se projeta decisivamente no modo como os casos foram decididos.
Para que essa oposição seja relevante não basta uma fundamentação apenas diferente, exige-se mais exige-se uma oposição frontal, sobre elementos nucleares e não meramente periféricos ou laterais (obiter dicta).
No caso ocorrente não se verifica oposição relevante.
No acórdão fundamento decidiu-se que o juiz não pode levantar obstáculos á nomeação de um administrador indicado pelo devedor, quando a própria lei não os levanta. Quando o artigo 52.º, 2 CIRE estipula que o juiz tenha em conta as indicações feitas pelo devedor não está a conferir ao magistrado o pode discricionário de afastar essa com sideração.
O acórdão recorrido diz algo diferente, mas não essencialmente diferente. Isto é, argumenta que o tribunal não está obrigado a nomear quem a devedora indicou para exercer tal incumbência, podendo privilegiar, quando houver motivos para isso, outras pessoas, designadamente a indicada pela requerente da insolvência.
Dito de outro modo: o acórdão fundamento censura a «regra» de acordo com a qual não é aconselhável nomear a pessoa indicada pelo devedor, mas não transforma em regra a proposição contrária, regra essa que poderia estar, só nesse caso, em oposição com a doutrina do acórdão fundamento, se realmente tivesse sido formulada.
Não admito, por isso o recurso.
Sem tributação».
Conclui a reclamante no seu instrumento de reclamação:
A. A decisão singular que indeferiu liminarmente o recurso de revista excecional, com fundamento na alegada inexistência de oposição frontal de julgados, enferma de erro de julgamento, ao desvalorizar a real e substancial incompatibilidade entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento
B. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11.02.2025, perfilha o entendimento de que o juiz pode afastar a proposta de Administrador da Insolvência apresentada pela devedora, sem fundamentação concreta, com base em critérios genéricos e extralegais, como a alegada ausência de ligação à empresa insolvente
C. Por seu turno, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 06.03.2012 (proc. n.º 1112/11.0TBTMR-C.C1), estabelece entendimento diametralmente oposto, exigindo fundamentação concreta, objetiva e casuística para o afastamento da proposta apresentada pelo devedor, nos termos do artigo 52.º, n.º 2 do CIRE.
D. Tal oposição não é periférica nem formal, mas antes material, frontal e com impacto direto na solução jurídica adotada, configurando uma divergência jurisprudencial nos termos exigidos pelo artigo 672.º, n.º 1, alínea a), do CPC
E. O artigo 52.º, n.º 2 do CIRE consagra o direito do devedor e do(s) credor(es) a formular proposta de nomeação de Administrador de Insolvência, cujo afastamento apenas pode ter lugar mediante fundamentação específica, ancorada em elementos objetivos e sindicáveis.
F. A aceitação de critérios genéricos, como a ausência de ligação à empresa, desvirtua o princípio da paridade processual, fragiliza a independência do administrador nomeado e compromete a imparcialidade e a transparência da justiça insolvencial.
G- Adivergência de entendimentos identificada gera insegurança jurídica e desigualdade entre partes em situação idêntica, afetando a previsibilidade e coerência das decisões judiciais em matéria de nomeação de administradores judiciais.
H. A questão em apreço reveste-se de relevância jurídica e social significativa, dado o papel central do Administrador de Insolvência no processo, a natureza pública da função exercida e a necessidade de garantir padrões uniformes e objetivos na sua designação.
I. A jurisprudência deve ser uniformizada em torno da exigência de fundamentação objetiva e concreta para a preterição da proposta apresentada pelo devedor, sob pena de se institucionalizarem práticas discricionárias atentatórias da legalidade e da igualdade de armas no processo.
J. Por todo o exposto, encontram-se verificados os pressupostos legais para a admissão do recurso de revista excecional, devendo ser revogada a decisão singular e admitido o prosseguimento do recurso nos termos do artigo 672.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil
Nestes termos, e sempre com o douto suprimento de V. Exas., Venerandos Conselheiros, requer-se que a presente reclamação seja julgada procedente, por provada, e, em consequência, que a decisão singular de não admissão do recurso seja revogada, sendo a revista excecional admitida, prosseguindo os seus regulares termos.~
DECIDINDO NESTA CONFORMIDADE, SERÁ FEITA A SEMPRE COSTUMADA E NECESSÁRIA
JUSTIÇA»
A reclamante não tem razão.
Reitera-se que, no caso ocorrente, não têm aplicação as alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º CPC. O fundamento da revista só pode ser o do artigo 14.º do CIRE.
Queda prejudicada a invocação da relevância jurídica e social da questão em apreço, para efeitos de admissão de recurso.
No que se refere á oposição de acórdãos a reclamante, como é natural, discorda de uma decisão que lhe é desfavorável.
Mais uma vez sem razão.
Reafirma-se que:
«No acórdão fundamento decidiu-se que o juiz não pode levantar obstáculos á nomeação de um administrador indicado pelo devedor, quando a própria lei não os levanta. Quando o artigo 52.º, 2 CIRE estipula que o juiz tenha em conta as indicações feitas pelo devedor não está a conferir ao magistrado o poder discricionário de afastar essa consideração.
O acórdão recorrido diz algo diferente, mas não essencialmente diferente. Isto é, argumenta que o tribunal não está obrigado a nomear quem a devedora indicou para exercer tal incumbência, podendo privilegiar, quando houver motivos para isso, outras pessoas, designadamente a indicada pela requerente da insolvência.
Dito de outro modo: o acórdão fundamento censura a «regra» de acordo com a qual não é aconselhável nomear a pessoa indicada pelo devedor, mas não transforma em regra a proposição contrária, regra essa que poderia estar, só nesse caso, em oposição com a doutrina do acórdão fundamento, se realmente tivesse sido formulada».
Mantemos, por isso, que a fundamentação é diversa, mas não essencialmente diferente.
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Pelo exposto acordamos em indeferir a reclamação e, consequentemente, em confirmar a decisão do relator.
Custas pela reclamante com taxa de justiça de 2 UCs.
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23.9.2025
Luís Correia de Mendonça (Relator)
Anabela Luna de Carvalho
Luís Espírito Santo