I - Em sede de acidentes rodoviários, o ónus da prova da culpa, que impende sobre o lesado, tem sido jurisprudencialmente atenuado pela intervenção de uma prova de primeira aparência baseada em presunções judiciais simples (artigos 349.º e 351.º, do Código Civil), que permitem inferir que quem viola objectivamente uma regra de trânsito e, por causa disso, provoca danos a terceiros, o faz por razões que lhe são imputáveis, a menos que demonstre que tal violação se mostra alheia à sua vontade.
II – O lesado, que saiu do veículo que conduzia, após o mesmo ter ficado imobilizado na via mais à esquerda da autoestrada (depois de embater em outro veículo; rodopiado cerca de 180.º e ficado virado em sentido contrário), não pode ser juridicamente qualificado como um peão, parado ou a caminhar na autoestrada, mas como um utente de tal via rodoviária, que saiu para o exterior da sua viatura em decorrência da colisão.
III - O acto de fazer circular na autoestrada um veículo a, pelo menos, uma velocidade de 97 km/hora – que, de acordo com as circunstâncias concretas, se tem por excessiva, em violação do artigo 24.º, do Código da Estrada – mostra-se idóneo a, em abstracto, segundo a sua natureza geral, provocar, como veio a suceder, o atropelamento do lesado. Consequentemente, há que concluir que a morte do lesado ocorreu na esfera de risco criada pela velocidade a que seguia o veículo seguro, num circunstancialismo em que o veículo imobilizado era visível a cerca de 300 metros de distância - uma distância bastante superior à de 130 metros que seria suficiente para que o condutor do veículo seguro, caso circulasse a 120 km/hora, imobilizasse o veículo para não embater no lesado, que se encontrava próximo daquele veículo imobilizado.
IV - A regra da substituição prevista no artigo 665.º, do CPC, não tem aplicação na revista. Nessa medida, não pode o STJ conhecer no âmbito do recurso per saltum das questões cuja análise resultou prejudicada na sentença em virtude de um enquadramento jurídico que veio a ser afastado na revista, competindo, por isso, a sua apreciação ao tribunal recorrido.
I – relatório
1. AA, BB e CC, menores, representadas pela sua mãe DD, intentaram acção declarativa com processo comum contra Generali Companhia de Seguros, SA., pedindo a condenação da Ré a pagar-lhes o montante de €548.100,001 e juros, pelos danos (patrimoniais e não patrimoniais) decorrentes do acidente de viação causado por culpa do condutor do veículo seguro na Ré, ocorrido em 26-02-2019, na Autoestrada nº 2, sentido Sul/Norte, de que resultou a morte de EE, seu pai.
Alegaram fundamentalmente:
- serem filhas e as únicas e legítimas herdeiras de EE;
- ter o veículo V1, conduzido pelo falecido EE, entrado em despiste, levando-o a embater no veículo pesado de mercadorias de matrícula V2, que circulava na via da direita da Autoestrada nº 2, sentido Sul/Norte;
- ter o veículo embatente rodopiado sobre si mesmo, vindo a imobilizar-se na faixa da esquerda da referida via, virado com a frente para o sentido contrário àquele em que seguia e sem condições de se movimentar pelos seus meios.
- ter o mesmo veículo permanecido com as luzes de cruzamento médias ligadas, sendo visível a cerca de 300 metros de distância, para quem circulasse no mesmo sentido de trânsito;
- ter a vítima saído, ainda atordoada do interior do veículo, tendo sido atingida junto a este, na parte lateral direita do seu corpo, pela parte frontal direita do veículo V3, conduzido por FF, que circulava a velocidade superior a 120 quilómetros por hora, na via de trânsito da esquerda, sem que houvesse veículos à sua direita;
- ter a vítima, pela força do embate, sido projetada, pelo menos, a 57,67 metros, vindo a falecer no local, tendo o óbito sido declarado às 20h39.
2. Após citação, a Ré contestou imputando a responsabilidade do acidente ao falecido EE, impugnando, também, os montantes dos danos invocados.
3. Foi determinada a intervenção acessória do Ministério Público.
4. Após saneador, enunciado o objecto do litígio e seleccionados os temas de prova, foi realizado julgamento e proferida sentença, que julgou a acção improcedente, absolvendo a Ré do pedido.
5. Inconformada a Autora interpõe recurso per saltum para este supremo tribunal, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
“I - As Recorrentes requerem nos termos do artigo 678º do C.P.C. que o presente Recurso suba imediatamente ao Supremo Tribunal de Justiça, porquanto mostram-se cumulativamente reunidos todos os pressupostos para o efeito.
II - Da matéria de facto resulta que a infeliz vítima foi interveniente num acidente de viação, o qual atentas as condições da via:
6. A via encontrava-se em boas condições.
7. Estava bom tempo, não se verificando a presença de chuva, nevoeiro ou vento forte.
8. O trânsito de veículos no local era muito reduzido.
Era visível pelo condutor do veículo V3:
15. Atento o local onde o veículo V1 ficou imobilizado, o mesmo, para quem circulasse no mesmo sentido de trânsito, era visível a cerca de 300 (trezentos) metros de distância.
III - O veículo sinistrado da infeliz vítima, encontrava-se virado, em sentido contrário ao sentido normal de trânsito, sendo visível a uma distância de 300 (trezentos) metros!!!
IV - Qualquer condutor minimamente diligente, que circulasse com um mínimo de atenção visualizando a trezentos metros de distância um veículo parado na Auto estrada, na faixa da esquerda com as luzes viradas para si concluiria que estávamos perante um acidente!!!
V - para além do veículo conduzido pela infeliz vítima mostrava-se igualmente parado na berma da estrada, no local do acidente, um veículo pesado de mercadorias, com as luzes de perigo acionadas:
45.Encontrava-se também imobilizado, forada faixa de rodagem, à direita, o veículo pesado de mercadorias, matrícula V2, com as luzes de perigo ligadas.
VI - Dúvidas não podem restar de que qualquer condutor nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar em que se encontrava o condutor do veículo V4, não poderia deixar de ter a exata noção de um perigo eminente, qual fosse o de um grave acidente.
VII - Sempre seria de prever que naquelas circunstâncias pudessem existir pessoas na via, nomeadamente, os condutores dos veículos envolvidos procurando sinalizar o acidente, socorrerem-se mutuamente, ou eventuais passageiros, como também, passageiros ilesos que tivessem abandonado as viaturas sinistradas ou ainda passageiros projetados para o exterior das viaturas sinistradas.
VIII - Ora, no caso sub judice foi precisamente isso que ocorreu, ou seja, sabendo da situação de perigo o condutor do veículo V4, não tomou as devidas cautelas, nomeadamente, reduzindo a sua velocidade para que, sendo necessário, como era o caso, imobilizasse o veículo no espaço livre e visível á sua frente, artigo 24º do C.E.
IX - O corpo da infeliz vítima foi projetado mais de 50 metros do lcal onde foi colhido, o que, diz bem da força do embate, sendo certo que o facto de que o condutor do veículo V3 só conseguiu imobilizar o veículo 50 metros do local do atropelamento, também demonstra que a velocidade que imprimia o veículo era completamente desadequada.
X - O Tribunal a quo deu como provado que, mesmo naquelas circunstâncias de tempo e local, sendo a infeliz vítima uma pessoa negra, ainda, assim era visível a mais de 50 (cinquenta) metros de distância:
73. E que um peão durante a noite só é visível aos condutores a cerca de 53 metros, isto sem obstáculos à visibilidade.
XI - Acresce, ainda que ficou provado que o condutor do veículo V3, tinha a via da direita totalmente desobstruída, ou seja, se conduzisse com o mínimo de cuidado ao deparar-se com a infeliz vítima, não parando o veículo, poderia sempre desviar-se para a faixa da direita, a qual se encontrava completamente livre.
XII - Num processo em tudo idêntico ao dos presentes autos o Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo n.º 20121/16.7T8PRT.P1.S1, em que foi relatora a Senhora Juíza Conselheira Dr.ª Maria Graça Trigo, em sentido contrário á decisão proferida pelo Tribunal a quo, disponível em www.dgsi.pt , considerou:
Aqui chegados, tocamos no ponto essencial para que o presente litígio possa ser resolvido de forma rigorosa e justa. Para o efeito, é decisivo que se consiga esclarecer a seguinte dúvida que as decisões das instâncias suscitam: deve a vítima do acidente, a falecida EE, ser juridicamente qualificada como um peão que se encontrava na auto-estrada?
A pergunta deve ser respondida negativamente. Entende-se que a falecida EE não era juridicamente um peão, parado ou a caminhar na auto-estrada, mas uma utente de tal via rodoviária que, tendo imobilizado a viatura que conduzida por razão desconhecida, se encontrava no seu exterior, também por razão não apurada. Ora, o dever de regulação da velocidade dispõe que se atenda “à presença de outros utilizadores” da via e “a quaisquer outras circunstâncias relevantes”, de modo a que o condutor “possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”. Consequentemente deve concluir-se que a ocorrência do facto danoso dos autos - colisão do veículo seguro na R. com a vítima, enquanto utente ou utilizadora da via - se encontra abrangida pelo âmbito normativo em causa. Com efeito, tal como em qualquer outra via, ao conduzir numa auto-estrada a velocidade que o condutor imprime ao veículo automóvel deve ser regulada e moderada em função da necessidade de fazer parar o veículo caso surjam obstáculos imprevistos à circulação. O facto de, no caso dos autos, não ter sido feita prova de que a imobilização da viatura da vítima se deveu a uma avaria (conforme fora alegado pelos AA.) em nada altera tal conclusão. Porque o que está em causa no presente recurso, não é a atribuição da culpa pelo acidente exclusivamente ao condutor do veículo seguro na R., mas antes a repartição da culpa entre ambos os intervenientes no acidente. Por outras palavras, entende-se que o condutor do veículo seguro na R. estava obrigado a conduzir a uma velocidade mais reduzida para poder fazer parar o automóvel caso surgisse, como surgiu, algum obstáculo na via, ainda que com culpa de outro utente/utilizador da mesma via.
XIII - Assim, ao contrário daquele que foi o entendimento do Tribunal a quo, o artigo 24º do Código da Estrada visa proteger situações como aquela que é analisada nos presentes autos.
XIV - A responsabilidade do acidente, no caso sub judice é única e exclusivamente da responsabilidade do condutor do veículo V4.
XV - Imprimindo o condutor do veículo V4, num local de acidente, com pelo menos duas viaturas imobilizadas, uma delas a ocupar a via de trânsito da esquerda, com as luzes dianteiras ligadas e viradas para si e um veículo pesado de mercadorias parado, na berma, com os piscas de emergência ligados, sem iluminação pública no local a, pelo menos, uma velocidade 97 km/h é manifesta a sua responsabilidade no acidente.
XVI - A morte da infeliz vítima se ficou a dever única e exclusivamente à condução temerária, com total alheamento das concretas circunstâncias de tempo e local por parte do condutor do veículo V4. Contudo, caso assim não se entenda, o que apenas por mero dever de patrocínio se admite, e caso se considerasse que a infeliz vítima teve alguma responsabilidade no acidente do qual resultou a sua morte, a sua responsabilidade não pode ser superior a 20%.
XVII - Em face da matéria de facto dada como provada a Recorrida deveria ter sido condenada a pagar às Recorrentes:
f) A título de indemnização pela morte da infeliz vítima, o montante de €100 000,00 [Cem Mil Euros];
g) A título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima antes da morte, o montante global de 25 000€ (Vinte e Cinco Mil Euros).
h) A pagar a cada uma das Autoras, a título de danos não patrimoniais o valor de €80 000,00 (oitenta mil euros).
i) A pagar, a cada uma das Autoras a título de alimentos o montante global de 60.000€ [Sessenta Mil Euros]
Aos quais acrescem:
j) Os juros de mora à taxa legal, calculados sobre os montantes ora reclamados, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
XVIII - Ao ter absolvido a Recorrida o Tribunal a quo violou os artigos 13º e 24º do Código da Estrada bem como os artigos 483º, 495º, 496º, 562º, 563º, 564º e 566º, todos do Código Civil.”.
6. Em contra-alegações a Ré e o Ministério Público defendem a improcedência da revista.
II – APRECIAÇÃO DO RECURSO
De acordo com o teor das conclusões das alegações, impõe-se conhecer a seguinte questão:
• Da responsabilidade pelo acidente que vitimou EE
1. Os factos
1.1 Provados
1. As Autoras são filhas e as únicas herdeiras de EE.
2. As Autoras AA e BB, nasceram a ... de ... de 2018.
3. A Autora CC, nasceu a ... de ... de 2009.
4. No dia 26/02/2019, EE encontrava-se a circular na Autoestrada nº2, sentido Sul/Norte com o veículo V1
5. A Autoestrada nº 2, km 81.700 é uma recta, composta por duas vias de trânsito afectas ao mesmo sentido de trânsito (Sul/Norte), sendo as mesmas separadas por uma linha longitudinal descontinua.
6. A via encontrava-se em boas condições.
7. Estava bom tempo, não se verificando a presença de chuva, nevoeiro ou vento forte.
8. O trânsito de veículos no local era muito reduzido.
9. Por volta das 19:50H, no Km 81,730 o veículo V1 entrou em despiste.
10. O que o levou a embater no veículo pesado de mercadorias de matrícula V2, que circulava na via da direita.
11. Como consequência dessa colisão, o veículo V1 rodopiou sobre si mesmo vindo a imobilizar-se na faixa da esquerda atento o sentido de marcha Sul – Norte, virado com a frente para o sentido contrário àquele em que seguia.
12. Após o veículo V1 embater no veículo V2 ficou com danos na sua frente lateral direita que o impediam de se movimentar pelos seus meios.
13. Após o embate e imobilização, o veículo V1 permaneceu com as luzes de cruzamento médias da frente do lado esquerdo ligadas.
14. O condutor do veículo V1, EE, não se encontrava sob a influência do álcool ou substâncias psicotrópicas.
15. Atento o local onde o veículo V1 ficou imobilizado, o mesmo, para quem circulasse no mesmo sentido de trânsito, era visível a cerca de 300 (trezentos) metros de distância.
16. Após ser embatido pelo veículo V1, o condutor do veículo V2, imobilizou o seu veículo fora da faixa de rodagem na raia oblíqua ali existente.
17. Ficando completamente livre a via de trânsito mais à direita da faixa de rodagem.
18. Após o veículo V1, conduzido pela vítima, embater no veículo V2, rodopiou cerca de 180º e ficou virado em sentido contrário.
19. Depois de o veículo ficar imobilizado, ainda atordoado por aquilo que tinha acontecido, a vítima saiu do interior do veículo;
20. Pouco tempo após abandonar o veículo, EE é atingido pelo veículo V3.
21. O veículo V3 era conduzido por FF.
22. E circulava na via de trânsito da esquerda.
23. Não circulando quaisquer veículos à sua direita.
24. Eliminado.
25. O condutor do veículo V3 embateu com a parte frontal direita, próxima do centro, na parte lateral direita do corpo da vítima.
26. Quando esta se encontrava junto ao veículo V1, ainda na via de trânsito mais à esquerda.
27. Com a força do embate o veículo teve perfuração do radiador e partiu a óptica frontal direita.
28. A vítima, em consequência do embate do veículo V3, foi projetada, pelo menos, 57,67 metros.
29. Vindo a cair na via de trânsito à direita no final das Raias Oblíquas delimitadas por linha contínua existente no local.
30. O condutor do veículo V3 veio a imobilizar o mesmo a uma distância de mais de cinquenta metros do local do embate.
31. Em consequência do embate do veículo V3 EE veio a falecer no local.
32. O óbito foi declarado às 20:39 do dia 26/02/2019.
33. Eliminado.
34. O veículo da vítima encontrava-se imobilizado, ocupando parcialmente a via de trânsito do lado esquerdo e a berma do mesmo lado, com a parte da frente direccionada para sul.
35. Encontrava-se também imobilizado, fora da faixa de rodagem, à direita, o veículo pesado de mercadorias, matrícula V2, com as luzes de perigo ligadas.
36. Eliminado.
37. Por contrato de seguro, titulado pela apólice ........75, com data de início a 21/06/2018 e termo a 09/07/2020 o proprietário do veículo V3 tinha a responsabilidade civil por danos causados a terceiros transferida para a Ré.
38. Aquando do acidente a vítima EE vestia uma camisola vermelha, que não estava visível, umas calças e um casaco.
39. Todos esses artigos de vestuário ficaram completamente destruídos.
40. Eliminado.
41. EE nasceu a .../.../1984, pelo que à data da sua morte tinha 34 anos.
42 a 47. Eliminados.
48. Após o acidente as Autoras não receberam qualquer pensão de alimentos do pai.
49. As Autoras AA e BB tinham à data da morte de seu pai 7 (sete) meses de idade e a Autora CC, tinha 10 anos de idade.
50. As Autoras vão crescer e viver toda a sua vida sem um pai.
51. As Autoras vão viver e crescer sem poderem comemorar o dia do pai.
52. Sem terem o pai presente nas festas da escola.
53. Sem terem o sentimento protector de um pai.
54. As Autoras estarão, para sempre, confrontadas com a ausência do pai e privadas da sua companhia, afecto e carinho.
55. As Autoras foram privadas do crescimento ao lado do seu pai,
56. As Autoras ficarão privadas da presença do pai na sua educação e acompanhamento escolar.
57. No dia 26 de Fevereiro de 2019, pelas 20:00 horas, na A 2 Km 81,730, sentido Sul/Norte, circulava dentro da hemi-faixa de rodagem da via da direita o veículo pesado de mercadorias de matrícula V2.
58. Naquele momento e local era noite e não existia iluminação pública no local.
59. Por motivos não completamente determinados, o veículo tripulado pelo falecido de matrícula V1, foi embater no rodado traseiro esquerdo da galera do veículo V2.
60. Após este embate o veículo V1 conduzido pelo falecido, segue, desgovernado pela via, virado no sentido oposto ao que seguia.
61. Indo imobilizar-se na via da esquerda, junto ao separador central, com a frente virada para Sul e com as luzes do lado esquerdo ligadas.
62. Após o embate, o sinistrado saiu do veículo pelo próprio pé, sem fazer uso do colete reflector ou outro tipo de sinalização que o tornasse visível.
63. Tratando-se de um indivíduo de origem africana de pele negra e trajando roupas pretas.
64. O veículo pesado V2 imobilizou-se junto à berma direita.
65. Nos instantes antes deste embate o veículo seguro de matrícula V3, circulava na A2, sentido Sul/Norte, na faixa da esquerda, a uma velocidade mínima estimada de 97 Km/hora.
66. Eliminado.
67. Em momento não apurado, o condutor do veículo V4, apercebeu-se da presença do veículo V1 imobilizado dentro da faixa da esquerda, com a frente virada para si, sem qualquer sinalização.
68. Instintivamente, guinou para a direita para evitar o embate frontal com este veículo V1.
69. Eliminado.
70. Nesse mesmo instante, depara-se com o peão, sem qualquer sinalização, a atravessar a via de rodagem, imediatamente à sua frente.
71. Instintivamente travou a fundo; no entanto, atenta a proximidade e imprevisibilidade do peão, acaba por lhe embater com a frente do veículo seguro.
72. O sinistro foi objeto de instrução e investigação criminal pelo NICAV de Setúbal, o qual concluiu que a velocidade mínima estimada do veículo seguro antes do embate.
73. E que um peão durante a noite só é visível aos condutores a cerca de 53 metros, isto sem obstáculos à visibilidade.
74. E que ainda que o veículo seguro circulasse a 120 km/hora (velocidade máxima permitida no local) necessitaria de 130 metros para se imobilizar em segurança e não embater no peão.
75. EE agonizou no chão até falecer.
76. Na sequência do acidente foi instaurado inquérito com o nº 29/19.5GTSTB, que na apreciação da existência de um crime de homicídio por negligência, concluiu que não se apurou a existência de um comportamento ilícito por parte de FF e determinou o arquivamento do inquérito.
1.2 Não provados
A) Após o embate e imobilização o veículo V1 permaneceu com as luzes de cruzamento médias da frente do lado direito ligadas.
B) Após o facto referido em 61, o falecido aproximou-se do condutor do pesado, tendo-lhe explicado que tinha perdido o controlo do seu veículo.
C) Após essa conversa o peão dirigiu-se ao seu veículo, atravessando a faixa de rodagem da auto estrada.
D) Nesse instante o condutor do pesado apercebendo-se da proximidade de um veículo a circular na via, gritou ao peão.
E) Mas este não teve qualquer reacção, não parou, correu, ou desviou-se.
F) Junto ao local onde ocorreu o embate existe iluminação artificial pela existência de vários postes de iluminação.
G) Não foi efectuada qualquer travagem pelo veículo V3, conduzido por FF.
H) As peças de vestuário a que se alude em 38 tinham o valor de cerca de 200€ (duzentos euros).
I) Para além disso desapareceu aquando do acidente um relógio de marca Zenith modelo Elite Ultra Thin 40mm Automatic Full Set no valor de 2900€ (Dois mil e novecentos euros).
J) EE era uma pessoa alegre e bem-disposta.
K) Sempre disponível a ajudar as pessoas.
L) Gostava de sair com os amigos e divertir-se;
M) Era um pai muito atencioso e preocupado.
N) Tinha enorme vivacidade e apego à vida, empenhado em viver com as filhas os melhores momentos, partilhando alegrias com elas e com a sua companheira e amigos.
O) A vítima EE pagava a título de pensão de alimentos à menores suas filhas e ora autoras, o montante mensal de 150€ (Cento e Cinquenta Euros).
P) A dado momento a viatura V3, iniciou uma manobra de ultrapassagem a um veículo pesado que circulava à sua frente.
P-1) Tentando passar entre a lateral do veículo imobilizado ZB e o veículo pesado que circulava na via direita e que se encontrava a ultrapassar.
P-2) Que nas circunstâncias referidas em 65, o veículo V3, circulasse na faixa da direita.
Q) A via, no local do acidente, estava devidamente iluminada.
R) O condutor do veículo V3 conduzia a velocidade superior a 120 (cento e Vinte) quilómetros por hora.
S) Eliminada.
T) No momento do embate e nos instantes que o precederam, EE assustou-se e teve consciência de que, em consequência dele, lhe poderiam advir lesões, dada a sua iminência e a incapacidade de lhe escapar e, pela violência do embate, receou pela própria vida e sentiu angústia.
2. O direito
2.1 Da responsabilidade pelo acidente
O tribunal de 1.ª instância decidiu no sentido da improcedência da acção, não atribuindo ao condutor do veículo seguro na Ré qualquer responsabilidade pela produção do acidente que vitimou EE.
Alicerçou a decisão na circunstância de não poder ser assacada ao condutor do veículo seguro na Ré conduta violadora de regra estradal juridicamente apropriada (causa adequada) à produção do dano verificado (morte do peão).
No raciocínio jurídico que desenvolveu, a sentença afastou o pressuposto da ilicitude da conduta do condutor do veículo, desde logo, a violação das regras previstas nos artigos 27.º e 24.º, do Código da Estrada, por não ter resultado provado que o condutor do veículo seguro na Ré transitasse a velocidade superior a 120 km/hora, nem a distância a que o mesmo teve (ou deveria ter) percepção da existência de veículo imobilizado na via; nessa medida, considerou que não foi apurado “a partir de que momento lhe seria exigível que reduzisse a velocidade de forma mais vincada, ou parasse, e sobretudo, se essa atitude obviaria ao atropelamento do peão”.
No que toca à violação pelo condutor do veículo seguro na Ré da regra estradal prevista no artigo 13.º, do CE (dado ter sido provado que circulava na faixa da esquerda e não terem resultado apuradas quaisquer das circunstâncias que, de acordo com as mesmas normas legais, poderiam justificar a circulação nessa faixa), entendeu não lhe poder ser assacada responsabilidade pelas consequências do acidente por tal conduta violadora, atento o âmbito de protecção da norma, não se reportar a evitar o atropelamento de peões em auto-estrada e não constituir causa adequada do acidente. No seguimento de tal posicionamento referiu: “a presença de um peão numa auto estrada, sem estar devidamente sinalizado, é circunstância não corrente, logo extraordinária, pelo que o facto de o condutor circular na faixa da esquerda, ao invés de na direita, apesar de em termos naturalísticos ter sido causa do seu atropelamento, não o é em termos jurídicos, já que não é causa provável/adequada desse efeito, i. é, segundo as regras da experiência comum, ou conhecidas do lesante, não é condição apropriada à produção do dano verificado (morte do peão)”.
Pugnando pela procedência da acção, visando reverter tal decisão, insurgem-se as Autoras menores, representadas por sua mãe, defendendo a responsabilização da Ré Seguradora em virtude do contrato de seguro que cobria a responsabilidade civil do veículo V3, cujo condutor atropelou o seu pai, causando-lhe a morte.
Consideram as Recorrentes que o condutor do veículo seguro na Ré violou a norma estradal prevista no n.º 1 do artigo 24.º do Código da Estrada, ao não ter reduzido a velocidade quando não poderia deixar de ter noção de que existia um perigo iminente.
Vejamos.
2.1.1 Mostra-se incontroverso que o enquadramento jurídico dos factos se situa no domínio do instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos (artigo 483.º, n.º1, do Código Civil).
Como constitui entendimento pacífico, integram os pressupostos (cumulativos) dessa responsabilidade, que impõe ao lesante a obrigação de indemnizar, o facto voluntário; a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
A ilicitude é tratada pela dogmática civil como uma valoração objectiva da conduta enquanto negação dos valores tutelados pela ordem jurídica, sendo a culpa, sob a forma de dolo ou negligência, reconduzida a “todos os aspetos circunstanciais que interessam à maior ou menor censurabilidade da conduta do agente”, relevantes sob a perspectiva subjectiva, individual do facto ilícito - ainda que, na apreciação da negligência, a lei inclua elementos de carácter objectivo2.
Relativamente ao pressuposto atinente à ilicitude importa que se determine se o condutor do veículo seguro incorreu numa conduta desconforme com a ordem jurídica, por ter violado uma norma de protecção - disposição legal destinada a proteger interesses alheios, enquanto segunda modalidade da ilicitude a que faz alusão o n.º1 do artigo 483.º do Código Civil.
Como explicita Antunes Varela, esta segunda variante da ilicitude apresenta três requisitos indispensáveis: que exista violação de norma legal; que tal norma se destine a proteger interesses privados e não um mero reflexo da protecção de interesses coletivos; que o facto danoso tenha ocorrido no âmbito de protecção da norma violada, que deverá ser fixado mediante a sua interpretação adequada3.
Na análise da situação sob apreciação a norma legal cuja violação pelo condutor do veículo seguro se impõe ponderar é a prevista no artigo 24.º, do Código da Estrada, que estabelece, no seu n.º 1, um princípio geral de regulação da velocidade em função das circunstâncias, estipulando que “o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.” (realce nosso)
Importa evidenciar a matéria de facto relevante para a apreensão da dinâmica do acidente.
4. No dia 26/02/2019, EE encontrava-se a circular na Autoestrada nº2, sentido Sul/Norte com o veículo V1
5. A Autoestrada nº 2, km 81.700 é uma recta, composta por duas vias de trânsito afectas ao mesmo sentido de trânsito, Sul/Norte, sendo as mesmas separadas por uma linha longitudinal descontinua.
6. A via encontrava-se em boas condições.
7. Estava bom tempo, não se verificando a presença de chuva, nevoeiro ou vento forte.
8. O trânsito de veículos no local era muito reduzido.
9. Por volta das 19:50H, no Km 81,730 o veículo V1 entrou em despiste.
10. O que o levou a embater no veículo pesado de mercadorias de matrícula V2 que circulava na via da direita.
11. Como consequência dessa colisão, o veículo V1 rodopiou sobre si mesmo vindo a imobilizar-se na faixa da esquerda atento o sentido de marcha Sul – Norte, virado com a frente para o sentido contrário àquele em que seguia.
12. Após o veículo V1 embater no veículo V2 ficou com danos na sua frente lateral direita que o impediam de se movimentar pelos seus meios.
13. Após o embate e imobilização o veículo V1 permaneceu com as luzes de cruzamento médias da frente do lado esquerdo ligadas.
14. O condutor do veículo V1, EE não se encontrava sob a influência do álcool ou substâncias psicotrópicas.
15. Atento o local onde o veículo V1 ficou imobilizado, o mesmo, para quem circulasse no mesmo sentido de trânsito, era visível a cerca de 300 (trezentos) metros de distância.
16. Após ser embatido pelo veículo V1, o condutor do veículo V2, imobilizou o seu veículo fora da faixa de rodagem na raia obliqua ali existente.
17. Ficando completamente livre a via de trânsito mais à direita da faixa de rodagem.
18. Após o veículo V1, conduzido pela vítima embater no veículo V2, rodopiou cerca de 180º e ficou virado em sentido contrário.
19. Depois de o veículo ficar imobilizado, ainda atordoado por aquilo que tinha acontecido, a vítima saiu do interior do veículo;
20. Pouco tempo após abandonar o veículo INAUDINO é atingido pelo veículo V3.
21. O veículo V3, era conduzido por FF.
22. E circulava na via de trânsito da esquerda.
23. Não circulando quaisquer veículos à sua direita.
25. O condutor do veículo V3 embateu com a parte frontal direita, próxima do centro, na parte lateral direita do corpo da vítima.
26. Quando esta se encontrava junto ao veículo V1, ainda na via de trânsito mais à esquerda.
27. Com a força do embate o veículo teve perfuração do radiador e partiu a óptica frontal direita.
28. A vítima em consequência do embate do veículo V3 foi projectada, pelo menos, 57,67 metros.
29. Vindo a cair na via de trânsito à direita no final das Raias Obliquas delimitadas por linha contínua existente no local.
30. O condutor do veículo V3 veio a imobilizar o mesmo a uma distância de mais de cinquenta metros do local do embate.
31. Em consequência do embate do veículo V3 EE veio a falecer no local.
32. O óbito foi declarado às 20:39 do dia 26/02/2019.
34. O veículo da vítima encontrava-se imobilizado, ocupando parcialmente a via de trânsito do lado esquerdo e a berma do mesmo lado, com a parte da frente direcionada para sul.
35. Encontrava-se também imobilizado, fora da faixa de rodagem, à direita, o veículo pesado de mercadorias, matrícula V2, com as luzes de perigo ligadas.
38. Aquando do Acidente a vítima EE vestia uma camisola vermelha, que não estava visível, umas calças e um casaco.
57. No dia 26 de Fevereiro de 2019, pelas 20:00 horas, na A 2 Km 81,730, sentido Sul/Norte, circulava dentro da hemi-faixa de rodagem da via da direita o veículo pesado de mercadorias de matrícula V2.
58. Naquele momento e local era noite e não existia iluminação publica no local.
59. Por motivos não completamente determinados, o veículo tripulado pelo falecido de matrícula V1, foi embater no rodado traseiro esquerdo da galera do veículo V2.
60. Após este embate o veículo V1 conduzido pelo falecido, segue, desgovernado pela via, virado no sentido oposto ao que seguia.
61. Indo imobilizar-se na via da esquerda, junto ao separador central, com a frente virada para Sul e com as luzes do lado esquerdo ligadas.
62. Após o embate o sinistrado saiu do veículo pelo próprio pé, sem fazer uso do colete reflector ou outro tipo de sinalização que o tornasse visível.
63. Tratando-se de um indivíduo de origem africano de pele negra e trajando roupas pretas.
64. O veículo pesado V2 imobilizou-se junto à berma direita.
65. Nos instantes antes deste embate o veículo seguro de matrícula V3, circulava na A.2, sentido Sul/Norte, na faixa da esquerda, a uma velocidade mínima estimada de 97 Km/hora.
67. Em momento não apurado, o condutor do veículo V4, apercebeu-se da presença do veículo V1 imobilizado dentro da faixa da esquerda, com a frente virada para si, sem qualquer sinalização.
68. Instintivamente guinou para a direita para evitar o embate frontal com este veículoV1.
70. Nesse mesmo instante, depara-se com o peão, sem qualquer sinalização, a atravessar a via de rodagem, imediatamente à sua frente.
71. Instintivamente travou a fundo; no entanto, atenta a proximidade e imprevisibilidade do peão, acaba por lhe embater com a frente do veículo seguro.
72. O sinistro foi objecto de instrução e investigação criminal pelo NICAV de Setúbal, o qual concluiu que a velocidade mínima estimada do veículo seguro antes do embate.
73. E que um peão durante a noite só é visível aos condutores a cerca de 53 metros, isto sem obstáculos à visibilidade.
74. E que ainda que o veículo seguro circulasse a 120 km/hora (velocidade máxima permitida no local) necessitaria de 130 metros para se imobilizar em segurança e não embater no peão.
Na sequência do acima referido, a sentença recorrida afastou a violação da norma ínsita no n.º 1 do artigo 24.º do Código da Estrada, com o fundamento de que, não obstante ter resultado provado que o veículoV1, conduzido pelo lesado, estava imobilizado na via da esquerda, junto ao separador central, e que era visível, para quem circulasse no mesmo sentido de trânsito, a cerca de 300 metro de distância (ponto 15 da matéria de facto provada), não tinha sido provado (nem alegado) a inexistência de redução de velocidade por parte do condutor do veículo seguro na Ré. Encontra-se referido a este propósito: “não foi alegado, nem se apurou que o condutor do V3, teve, a essa distância perceção do que estava realmente a ocorrer (veja-se primeira parte do ponto 67), pelo que se desconhece a partir de que momento lhe seria exigível que reduzisse a velocidade de forma mais vincada, ou parasse, e sobretudo, se essa atitude obviaria ao atropelamento do peão.”
Não podemos acompanhar este entendimento.
Com efeito, se é certo que, como realçado no acórdão do STJ de 20-01-20094, “a regra de que o condutor deve adoptar velocidade que lhe permita fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente (art. 24.º, n.º l, do CEst), pressupõe, obviamente, na sua observância, que não se verifiquem condições anormais ou factos imprevisíveis que alterem de súbito essa visibilidade ou prosseguimento da marcha”, não pode ser descurada, no caso, a matéria de facto apurada no referido ponto 15, ou seja, de que o veículo, que se encontrava imobilizado na via, com as luzes de cruzamento médias da frente do lado esquerdo ligadas, era visível a 300 metros. Na verdade, esta realidade fáctica constitui, indubitavelmente, uma “circunstância relevante” que, nos termos do artigo 24.º, n.º1, do Código da Estrada, fez nascer ao condutor do veículo seguro na Ré a obrigação de regular a velocidade, fazendo-a diminuir para valores seguramente inferiores à velocidade de 97 km/hora com que circulava (ponto 65 da matéria de facto provada). Cabe ter presente que o lesado se encontrava num local próximo ao local onde estava imobilizado o seu veículo, dado que foi embatido no momento em que o condutor do veículo seguro guinou para a direita para evitar o embate frontal contra aquela viatura (pontos 67 a 71 da matéria de facto provada).
A visibilidade de um obstáculo na via a uma distância de 300 metros apresenta a virtualidade de anular a imprevisibilidade do mesmo e de determinar o surgimento, na esfera do condutor, do dever de reduzir a velocidade de circulação, num contexto em que, caso aquele circulasse à velocidade máxima permitida no local, de 120 km/hora, teria suficiente oportunidade para evitar o embate, uma vez que apenas necessitaria de 130 metros para se imobilizar em segurança (ponto 74 dos factos provados).
Assim sendo, não obsta ao preenchimento da previsão de ilicitude contida no n.º 1 do artigo 24.º do Código da Estrada, a circunstância de não ter sido provado que o condutor do veículo seguro não reduziu a velocidade, já que este facto não avulta como constitutivo do direito invocado pelas Recorrentes. Na verdade, ao provarem o facto consistente na visibilidade do veículo presente na via a 300 metros, as Autoras demonstraram, como lhes competia (artigo 342.º, n.º1, do Código Civil), um dos pressupostos da previsão normativa contida na norma em análise (a “circunstância relevante”). Cabia, por isso, à Ré, demonstrar o facto impeditivo do direito das Autoras (artigo 342.º, n.º2, do Código Civil) reportado à redução adequada da velocidade ante a visibilidade de tal obstáculo – ónus que a Recorrida não cumpriu.
Ainda no que toca ao requisito ilicitude por violação de normas de protecção – embora não tenha sido colocado em causa pela sentença relativamente à norma prevista no n.º 1 do artigo 24.º do Código da Estrada, apenas quanto ao artigo 13.º do mesmo diploma -, é para nós seguro que o atropelamento do lesado ocorreu no âmbito de protecção daquela referida norma violada. Com efeito, na linha do sustentado pelo acórdão do STJ de 21/03/20195, mencionado pelas Recorrentes, não obstante a regra legal da proibição de circulação de peões em autoestradas (artigo 72.º, n.º1, do Código da Estrada), é de considerar que o falecido não pode ser, no contexto do acidente, juridicamente qualificado como um peão, parado ou a caminhar na autoestrada, mas como um utente de tal via rodoviária, que saiu para o exterior da sua viatura em decorrência da colisão desta com outra.
Importa ainda realçar que, não obstante a sentença ter afastado a violação, no caso, da norma constante do n.º 1 do artigo 24.º do Código da Estrada, uma vez que, embora a título de argumentação subsidiária, teceu considerações (disputadas no recurso) a respeito da exigibilidade da redução da velocidade e da sua aptidão para obviar ao atropelamento, impõe-se-nos analisar neste âmbito as questões reportadas aos pressupostos da responsabilidade da Ré relativos à culpa e ao nexo de causalidade.
2.1.2 A culpa, como é consabido, traduz um juízo de reprovação ou de censura dirigido a determinado agente por ter agido como agiu, quando podia ter agido de forma diversa, atentas as circunstâncias do caso concreto. No âmbito da responsabilidade por factos ilícitos em que nos situamos, na ausência de presunção de culpa – inaplicável in casu -, compete ao lesado provar a culpa do autor da lesão, sendo a mesma apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487.º, do Código Civil).
Em sede de acidentes rodoviários este ónus da prova tem sido jurisprudencialmente atenuado pela intervenção de uma prova de primeira aparência baseada em presunções judiciais simples – artigos 349.º e 351.º, do Código Civil – que permitem inferir que quem viola objectivamente uma regra de trânsito e, por causa disso, provoca danos a terceiros, o faz por razões que lhe são imputáveis, a menos que demonstre que tal violação se mostra alheia à sua vontade.
Como explicita Vaz Serra “a jurisprudência tem facilitado a prova da culpa: basta para provar a culpa que o prejudicado possa estabelecer factos que, segundo os princípios da experiência geral, tornem muito verosímil a culpa. Mas o autor do prejuízo pode afastar a prova “prima facie”, demonstrando, por seu lado, outros factos que tornem verosímil ter-se produzido o dano sem culpa sua. Com isto destrói a aparência a ele contrária e força o prejudicado a demonstrar completamente a culpa, já que ao admitir-se a prova “prima facie”, só se dá uma facilidade para produção do encargo da prova.”6
É neste sentido que se tem pronunciado a jurisprudência do STJ que, a este propósito, tem considerado que “II - A prova da inobservância de leis ou regulamentos de natureza rodoviária faz presumir a culpa na produção dos danos decorrentes de tal inobservância, dispensando a concreta comprovação da falta de diligência. III - É que, embora em matéria de responsabilidade civil extracontratual a culpa do autor da lesão em princípio não se presuma, tendo de ser provada pelo lesado (art.º 487, n.º 1, do CC), a posição deste é frequentemente aliviada por intervir aqui, facilitando-lhe a tarefa, a chamada prova de primeira aparência (presunção simples): se esta prova aponta no sentido da culpa do lesante, passa a caber a este o ónus da contraprova. IV - Para provar a culpa, basta, assim, que o prejudicado possa estabelecer factos que, segundo os princípios da experiência geral, a tornem muito verosímil, cabendo ao lesante fazer a contraprova, no sentido de demonstrar que a actuação foi estranha à sua vontade ou que não foi determinante para o desencadeamento do facto danoso (…)” - acórdão do STJ de 20-11-20037, argumentação também acolhida pelos acórdãos do STJ de 08-04-20108 e de 02-06-20169.
Revertendo estas considerações para a situação dos autos, evidencia-se que a sentença recorrida afastou a culpa do condutor do veículo seguro por não se ter apurado que o mesmo se tivesse apercebido à distância de 300 metros que o veículo acidentado se encontrava imobilizado.
Ao invés do concluído pelo tribunal a quo, somos de entender que esta circunstância de modo algum se mostra suficiente para excluir o juízo de culpa em relação ao condutor lesante, porquanto a culpa, na modalidade de negligência (a que releva para o caso), é medida em abstracto pelo modelo do homem-tipo, e não por referência ao figurino real do próprio lesante10. Assim, para aferir do conteúdo do dever de diligência supostamente violado não é necessário determinar a capacidade da pessoa do lesante, sendo suficiente que se entre em linha de conta com o padrão de diligência que um homem normal teria em face do condicionalismo do caso concreto. Daí que não se mostre consubstancial à formulação de um juízo de censura, no caso concreto, aquilatar se o condutor do veículo seguro se apercebeu que existia um veículo imobilizado na via da autoestrada a 300 metros.
O percurso metodológico a seguir para aferição deste juízo de censura deverá, ao invés, ser configurado nos seguintes termos: estando provado que, atento o local onde o veículo V1 ficou imobilizado, tal veículo, para quem circulasse no mesmo sentido de trânsito – isto é, para qualquer condutor médio - era visível a cerca de 300 metros de distância, a omissão da redução da velocidade de circulação afasta-se do padrão de actuação diligente que um homem, normalmente prudente e sagaz, teria, tendo em conta os contornos peculiares da situação dos autos.
No caso, encontrando-se demonstrado que o veículo acidentado (nas imediações do qual, reitere-se, se encontrava o lesado, que veio a ser atropelado) era visível a 300 metros para um condutor médio (é este o sentido que, por interpretação, se retira do ponto 15 dos factos provados, sendo irrelevante ainda apurar se a via estava devidamente iluminada), importará concluir no sentido de que era exigível a um homem medianamente prudente que diminuísse a velocidade, num contexto em que a via se encontrava em boa condições, estava bom tempo e não se verificava a presença de chuva, nevoeiro ou vento forte.
Há a este respeito que convocar as regras da chamada prova de primeira aparência, nos termos supra expostos.
Como se fez notar no acórdão de 01/10/202411, a doutrina tem salientado que “em matéria de acidentes de viação, estará sobretudo em causa a omissão daquelas regras ou cautelas de que a lei procura rodear certa actividade perigosa como é a da circulação rodoviária mecânica; estará também em causa uma perícia e uma destreza mínimas, absolutamente necessárias a essa actividade. Consequentemente, o dever de diligência terá de atingir então um grau maior em face das circunstâncias ou das exigências do caso concreto (…) Por isso, desde que o evento seja previsível e a conduta se mostre adequada (dentro da problemática da causalidade adequada) à produção dele, a omissão do dever de diligência destinado a evitá-lo configura a negligência ou mera culpa.”12
Como resulta do acima exposto, no caso, demonstrada está a inobservância da norma estradal prevista no artigo 24.º, n.º1, do Código da Estrada, pelo condutor do veículo seguro na Ré. Entendemos, pois, que nesta infracção se pode fundar, de acordo com as regras da experiência comum, a prova de primeira aparência no sentido da culpa do infractor.
O facto de ter ficado provado que o lesado se encontrava na via não fazendo uso de qualquer colete reflector ou sinalização que o tornasse visível, poderá/deverá impor ponderação na determinação da responsabilidade concreta de cada um dos intervenientes na produção do acidente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 570.º, do Código Civil. Trata-se, porém, de aspecto que ainda não foi realizado pelo tribunal recorrido e que, como tal, não pode ser sindicado nesta revista.
E em sede de culpa e de nexo de causalidade importa ainda fazer realçar que não podemos concordar com a sentença na parte em que esta considerou que “não pode concluir-se que não houve redução de velocidade, ou que a não redução mais pronunciada, ou mesmo a não paragem do veículo, tiveram uma relação de causalidade adequada com o atropelamento da vítima, em termos de responsabilizar o seu condutor por esse evento.”.
Vejamos.
Estatui o artigo 563.º, do Código Civil, que “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.”
De acordo com o que constitui o entendimento doutrinário13 e jurisprudencial14 dominante, a citada norma consagra, pelo menos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual subjetiva, a chamada doutrina da adequação – concretamente, na sua formulação negativa -, segundo a qual o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercedam no caso concreto.
Na situação sob apreciação evidencia-se que o acto de fazer circular um veículo a, pelo menos, uma velocidade de 97 km/hora – que, de acordo com as circunstâncias concretas, se tem por excessiva – mostra-se idóneo a, em abstracto, segundo a sua natureza geral, provocar, como veio a suceder, o atropelamento do lesado. É sobre esta acção (e não sobre o seu simétrico comportamento omissivo), que constituiu a causa naturalística do acidente, que se deverá estabelecer o nexo de adequação jurídica. De resto, parece-nos cristalina a conclusão de que a morte do lesado ocorreu na esfera de risco criada pela velocidade a que seguia o veículo seguro na Ré, num circunstancialismo em que o veículo imobilizado era visível a cerca de 300 metros de distância - uma distância bastante superior à de 130 metros que, de acordo com o ponto 74 da factualidade assente, seria suficiente para que o condutor do veículo seguro, caso circulasse a 120 km/hora, imobilizasse o veículo para não embater no lesado que se encontrava próximo daquele veículo imobilizado.
Verificam-se, pois, à luz do que fica exposto, a ilicitude, a culpa do lesante e o nexo de causalidade entre facto e dano, enquanto pressupostos necessários da obrigação de indemnizar.
Todavia, este tribunal não pode analisar os requisitos constitutivos da responsabilidade civil da Ré pelas consequências do acidente sobre os quais ainda não incidiu prévia decisão.
Como reiteradamente tem vindo a ser afirmado pela jurisprudência do STJ, a regra da substituição prevista no artigo 665.º, do CPC, não tem aplicação na revista, considerando que tal norma surge expressamente excluída da remissão operada pelo artigo 679.º, do mesmo diploma (neste sentido, cfr. os acórdãos de 01-10-201515, de 04-04-201716, de 17-11-202117 e, na doutrina, Abrantes Geraldes18).
De acordo com este entendimento – que se acolhe -, não poderá o STJ apreciar as questões cuja análise resultou prejudicada pelo tribunal recorrido em virtude de um enquadramento jurídico que veio a ser afastado na presente revista. Assim, a análise de matérias relativas à verificação dos demais requisitos da responsabilidade civil (danos e sua quantificação) e à eventual redução da indemnização a arbitrar em decorrência da conduta concausal do lesado (artigo 570.º, do Código Civil – cfr. artigos 30.º a 35.º da contestação, que será, certamente, apreciada à luz da mais recente jurisprudência do STJ sobre o tema) competirá ao tribunal recorrido.
Procedem, assim, ainda que parcialmente, as conclusões da revista.
IV. DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar parcialmente procedente o recurso de revista per saltum, revogando-se em conformidade a sentença recorrida (por verificação dos pressupostos necessários à obrigação de indemnizar reportados à ilicitude e culpa do lesante e o nexo de causalidade entre facto e dano), ordenando a baixa do processo ao tribunal de 1.ª instância para apreciação das questões cujo conhecimento resultou prejudicado em virtude da solução jurídica dada à causa, relacionadas, nomeadamente, com o preenchimento dos demais requisitos da responsabilidade civil e com a eventual redução da indemnização a arbitrar em decorrência da conduta concausal do lesado (artigo 570.º, do Código Civil).
Custas pela Recorrida.
Lisboa, 18 de Setembro de 2025
Graça Amaral (Relatora)
Anabela Luna de Carvalho
Maria Olinda Garcia
________________________________________________
1. Indicando € 100 000,00, a título de indemnização pela morte da vítima; €25 000, a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima antes da morte; € 3 100,00, de danos patrimoniais; € 80 000,00 (a cada uma das autoras), por danos não patrimoniais e €60.000 (a cada uma das autoras), a título de alimentos.↩︎
2. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, volume 1, 10.ª edição, Coimbra, Almedina, p. 586.↩︎
3. João de Matos Antunes Varela, vol. I, Coimbra, Almedina, 10.ª edição, 2000, pp. 539-542.↩︎
4. Processo n.º 3825/08, inédito.↩︎
5. Processo n.º 20121/16.7T8PRT.P1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎
6. Adriano Vaz Serra, “A culpa do devedor ou do agente”, Separata do Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, 1957, pp. 78-79.↩︎
7. Processo n.º 3450/03, publicado em Coletânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, tomo III, ano XI, 2003, pp. 149-154.↩︎
8. Processo n.º 608/06.OTBPMS.C1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎
9. Processo n.º 3987/10.1TBVFR.P1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎
10. João de Matos Antunes Varela, vol. I, Coimbra, Almedina, 10.ª edição, 2000, p. 574.↩︎
11. Processo n.º 758/22.6T8VRL.G1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎
12. Dario Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 2.ª Edição, Coimbra, Almedina, 1980, p. 73.↩︎
13. Na doutrina, cfr. João de Matos Antunes Varela, vol. I, Coimbra, Almedina, 10.ª edição, 2000, pp. 898-901; Ana Prata, Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2022, p. 759; Henrique Sousa Antunes, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações, Universidade Católica Portuguesa, 2018, p. 555.↩︎
14. Cfr., entre outros, acórdãos do STJ de 01-07-2003 (Processo n.º 03A1902) de 27-01-2004 (Processo n.º 03A3883), de 17-04-2007 (Processo n.º 07A701) e de 18-12-2013 (Processo n.º 1749/06.0TBSTS.P1.S1), acessíveis através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎
15. Processo n.º 6626/09.0TVLSB.L1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎
16. Processo n.º 5371/15.1T8OAZ.P1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎
17. Processo n.º 8344/17.6T8STB.E1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎
18. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição, Coimbra, Almedina, 2022, p. 498.↩︎