PROCESSO JUDICIAL DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
PERÍCIA
Sumário


1. Num processo judicial de promoção e protecção de crianças e jovens em perigo, a instrução visa habilitar o juiz a decidir pelo arquivamento do processo ou pelo prosseguimento dos autos com vista à aplicação de uma medida, e à recolha de elementos que permitam aferir a adequação da medida a aplicar.
2. Numa situação em que: a) as duas menores se encontram institucionalizadas; b) o MP requereu a sua adopção, encontrando-se os autos em fase de audiência de discussão e julgamento com vista à prolação de tal decisão; c) a recorrente, avó materna das menores, apresentou proposta de reintegração familiar das netas, sustentando a sua pretensão numa mudança de residência e projecto de vida autónomo relativamente ao seu ex-companheiro; d) os relatórios sociais mostram-se desfavoráveis à proposta da recorrente, com fundamento em larga medida na circunstância de esta ter mantido uma relação com indivíduo condenado por um crime de abuso sexual de menor em 11/02/2016”,
deve ser indeferido o pedido de realização de perícia médico-legal a esse indivíduo, para “aferir das eventuais tendências pedófilas deste e da perigosidade que poderá representar para as menores aqui em causa”.
3. Tal diligência afigura-se desactualizada (trata-se alegadamente de ex-companheiro) e desnecessária (a sentença penal condenatória, pelo peso dos factos dados como provados e seu significado jurídico/penal torna inútil a requerida perícia), e como tal, ao abrigo do disposto no art. 476º,1 CPC, deve ser rejeitada.

Texto Integral


I- Relatório

A Magistrada do Ministério Público junto do Juízo de Família e Menores de Braga do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, a 17/05/2021 requereu, nos termos dos arts. 2.º, 4.º, n.º 1, al. i) e 9.º, n.º 1, al. d), todos do EMP, aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27/08, e arts. 3.º, n.ºs 1 e 2, als. b) e f), 6.º, 11.º, al. d), 72.º, 79.º, n.º 1, 81.º, n.º 1, 101.º, n.º 1 e 105.º, n.º 1, todos da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1/09 e alterada pela Lei n.º 142/2015, de 8/09, a instauração de processo judicial de promoção e protecção relativamente às menores AA, nascida a ../../2009, BB, nascida a ../../2016 e CC, nascida a ../../2020.

Declarada aberta a fase de instrução do processo judicial de promoção e protecção pelo despacho de 18/05/2021, subsequentemente, por despacho de 9/06/2021, foi decidido, nos termos do disposto no art. 92º da LPCJP, confirmar o procedimento urgente levado a cabo pelo ISS - a medida cautelar de acolhimento residencial, pelo período de seis meses, no Centro Social ..., nos termos do art. 35º, nº 1, al. f), 37º e 49º e ss. da LPCJP.

Por despacho de 15/07/2021, foi decidido homologar o acordo de promoção e protecção com a aplicação da medida de acolhimento residencial, relativo às mencionadas menores.

A medida de promoção e protecção de acolhimento residencial aplicada a favor das referidas menores, a ser executada na Casa de Acolhimento ..., foi sucessivamente prorrogada por mais seis meses, nos termos do disposto no art. 62º, n.ºs 1 e 3, al. c), da LPCJP.

A 10/12/2024, os intervenientes acordaram a aplicação à menor AA da medida de Acolhimento Residencial, a executar na C.A. Centro Social ....

Por decisão de 27/12/2024, foi homologado o acordo que aplicou à jovem AA a medida de medida de promoção e protecção de Acolhimento Residencial, a executar na C.A. Centro Social ..., prevista no art. 35º, n.º 1, al. f), da L.P.C.J.P, onde já se encontra acolhida, com as condições e pelo prazo ali previstos.

Por despacho de 9/01/2025, a fim de garantir a estabilidade e segurança das crianças, CC e a BB, foi determinada a prorrogação, excepcional, por quatro meses, da medida aplicada (cfr. art. 37.º e 62.º, n.º 6, ambos da LPPCJP).

Frustrada a possibilidade de acordo, por despacho de 10/02/2025 foi determinado o cumprimento do n.º 1 do artigo 114.º da LPPCJP.

Nas alegações apresentadas, o Ministério Público defende que as menores BB e CC deverão ser confiadas ao ISS, com vista à sua futura adopção conjunta – arts. 35º, n.º 1, al. g), e 38º-A, al. b), ambos da LPCJP.

Por sua vez, nas alegações deduzidas a avó materna defende que a medida prevista no arts. 35º, n.º 1, al. g), e 38º-A, al. b), ambos da LPCJP não é adequada para a protecção do superior interesse das crianças, e a mãe das menores sustenta que as menores deverão ser confiadas à avó materna.

Foi agendado e iniciado debate judicial.

Na sequência da informação prestada pela Segurança Social, a 5/05/2025 a avó materna requereu a realização de perícia médico-legal ao seu ex-companheiro, DD.
O MP formulou a seguinte promoção: “
(…) De igual modo, não vislumbramos também qual a necessidade da requerida perícia médico legal ao senhor DD, desconhecendo-se qual o âmbito e efeito pretendido para a mesma, pelo que promovo que se indefira as diligências de prova ora requeridas. (…)”.

Datado de 28/05/2025, a Mm.ª Juíza “a quo” proferiu o seguinte despacho:
“Vistas as exposições da avó e dos pais. (…) Inexistindo, do mesmo modo, fundamento para a requerida perícia ao (ex) companheiro da avó, cujo objecto, conforme salienta o Ministério Público, não foi apresentado e não se vislumbrando qual a sua utilidade, até na medida em que a avó declara que cessou a relação entre ambos, indefere-se ao requerido. (…)”.

Inconformada com este despacho, dele interpôs recurso a avó materna, tendo, a terminar as respectivas alegações, formulado as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1. A Recorrente é avó materna das menores institucionalizadas e apresentou proposta de reintegração familiar.
2. Essa proposta foi desfavoravelmente avaliada, com destaque para a circunstância de a Recorrente ter mantido relação com pessoa condenada por abuso sexual de menor e actualmente residir a cerca de 50 / 100 metros do ex-companheiro.
3. Com o objectivo de afastar qualquer dúvida sobre risco actual, a Recorrente requereu a realização de perícia médico-legal ao ex-companheiro, com o seu consentimento.
4. O Tribunal a quo indeferiu tal pedido, com base em alegada imprecisão do objecto da perícia e cessação da relação amorosa.
5. Com o devido respeito, tal decisão incorre em erro de julgamento, ao considerar irrelevante uma prova que visa esclarecer questão central para a decisão do caso.
6. A perícia requerida é admissível nos termos do artigo 104.°, n.º 1 da Lei n.º 147/99 de 1 de Setembro, e tem utilidade clara para apurar o grau de perigosidade do indivíduo em causa.
7. A cessação da relação não elimina a relevância da convivência passada na análise do contexto protectivo da avó.
8. O indeferimento prejudica o exercício do contraditório e a busca pela verdade material, violando os princípios constitucionais do processo justo e equitativo.
9. Em caso de insuficiência ou imprecisão no requerimento, o Tribunal a quo deveria convidar a Recorrente a aperfeiçoar o pedido de perícia, nos termos do artigo 590.°, n.º 2, al. b), nº 4 do Código de Processo Civil.
10. Deve ser revogado o despacho recorrido, por violação do disposto nos artigos 104.° da Lei 147/99, 3.°,7.° e 590.°, n.º 2, al. b), n.º 4 do Código de Processo Civil e 20.° da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos, requer-se a admissão do presente recurso com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, e, a final, a revogação do despacho recorrido, com a consequente ordem de realização da prova pericial médico-legal ou psiquiátrica ao Sr. DD, por se tratar de prova essencial à justa decisão da causa».

O Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando pelo não provimento do recurso e confirmação da decisão recorrida.

O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.

Chegados os autos a esta Relação, o M.mo Desembargador de turno proferiu decisão sumária a julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

A avó materna não se conformou com esta decisão e requereu que a questão fosse submetida à conferência, nos termos do art. 652º,3 CPC.

Cumpridos os vistos legais, cumpre decidir.

Como escreve Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª edição, fls. 246, “das decisões do relator podem as partes, em regra, reclamar para a conferência. Mais do que encarar esta iniciativa como uma forma de impugnação da decisão singular, trata-se de um instrumento que visa a substituição dessa decisão por uma outra com intervenção do colectivo, passo fundamental para que possa ser interposto recurso de revista”.
Assim sendo, e uma vez que subscrevemos integralmente a solução jurídica constante do despacho reclamado, vamos aqui transcrever tal decisão, assumindo-a como nossa:

“Assim, no caso, a questão a decidir que se coloca à apreciação deste Tribunal consiste em saber se deverá ser revogado o despacho que indeferiu a realização de perícia médico-legal ao ex-companheiro da avó materna.

Fundamentos

Fundamentação de facto.
As incidências fáctico-processuais relevantes para a decisão do presente recurso são as que decorrem do relatório supra (que, por brevidade, aqui se dão por integralmente reproduzidos).

Fundamentação de direito
1. Da revogação do despacho que indeferiu a realização de perícia médico-legal.
A apelante/avó materna recorre do despacho proferido no dia 28/05/2025, que indeferiu a realização de uma perícia médico-legal ao seu ex-companheiro.
Perícia que, no dizer da recorrente, se destinava a “aferir das eventuais tendências pedófilas do companheiro e da perigosidade que poderá representar para crianças, incluindo para as menores aqui em causa”.
No caso concreto, está em causa uma diligência probatória – perícia médico-legal – requerida no âmbito dum processo judicial de promoção e protecção de crianças e jovens em perigo.
Comecemos por uma breve referência ao essencial do quadro legal a considerar na apreciação do recurso.
Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos, não podendo estes deles ser separados, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial (art. 36.º, n.ºs 5 e 6, da Constituição da República Portuguesa - CRP). Incumbe, ainda, aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento e dirigir a sua educação até à respectiva maioridade ou emancipação (arts. 1877.º e 1878.º do CC).
O art. 69.º, n.º 1, da CRP reconhece às crianças o direito “(...) à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão (…)”.
Dando consecução a esse princípio constitucional, a Lei n.º 147/99, de 1/09, aprovou a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, designada por LPCJP – entretanto alterada pela Lei n.º 31/2003, de 22/08, pela Lei n.º 142/2015, de 08/09, pela Lei n.º 23/2017, de 23/05 e pela Lei n.º 26/2018, de 05/07 –, a qual tem por objecto “a promoção dos direitos e a protecção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral” (art. 1.º).
A intervenção para a promoção dos direitos e a protecção da criança e do jovem em perigo cabe às entidades com competência em matéria de infância e juventude, às comissões de protecção de crianças e jovens e aos tribunais [art. 6.º da LPCJ], sendo legítima quando se verifiquem os pressupostos enunciados na lei [art. 3.º da LPCJ], nomeadamente, “quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de acção ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo” [n.º 1], exemplificando o legislador várias situações em que se considera que a criança ou jovem está em perigo, designadamente quando está abandonada ou vive entregue a si própria, não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal, assume comportamentos ou se entrega a actividades ou consumos que afectem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação [n.º 2, als. a), c) e g)].

A intervenção daquelas entidades para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo está sujeita à obediência dos princípios elencados no art. 4.º da LPCJ, dos quais se destacam:
a) Interesse superior da criança e do jovem;
e) Proporcionalidade e actualidade;
f) Responsabilidade parental;
h) Prevalência da família;

As finalidades das medidas de promoção dos direitos e protecção das crianças e dos jovens em perigo encontram-se enunciadas no art. 34º da LPCJ, consistindo em “afastar o perigo em que estes se encontram” [al. a)]; “proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral” [al. b)]; e “garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso” [al. c)].
De uma leitura articulada das normas supra citadas resulta o seguinte: por mais desejável que seja a prevalência da família [art. 4.º, al. h)], o mais importante, nestas situações, é o interesse superior da criança ou do jovem [art. 4.º, al. a)], devendo, em qualquer caso, a medida a aplicar ser a necessária e a adequada a salvaguardar a criança ou o jovem do perigo em que se encontra no momento da aplicação da medida [art. 4.º, al. e)].
A lei tipifica as diferentes medidas de promoção e protecção (art. 35.º, n.º 1), distinguindo, em função da sua natureza, entre as medidas a executar em meio natural de vida e as medidas de colocação (art. 35.º, n.ºs 2 e 3).
Entre elas consta a medida de “acolhimento residencial” [art. 35.º, n.º 1, al. f)], resultando do n.º 2 que é considerada a executar em regime de colocação.
A mencionada medida de promoção e protecção pode ser aplicada a título cautelar (art. 35.º, n.º 2), tem um prazo (art. 61.º) e está sujeita a revisão (art. 62.º).
Como se consigna no art. 49.º da LPCJ, sob a epígrafe “Definição e finalidade”, a «medida de acolhimento residencial consiste na colocação da criança ou jovem aos cuidados de uma entidade que disponha de instalações, equipamento de acolhimento e recursos humanos permanentes, devidamente dimensionados e habilitados, que lhes garantam os cuidados adequados» (n.º 1).
E «tem como finalidade contribuir para a criação de condições que garantam a adequada satisfação de necessidades físicas, psíquicas, emocionais e sociais das crianças e jovens e o efectivo exercício dos seus direitos, favorecendo a sua integração em contexto sociofamiliar seguro e promovendo a sua educação, bem-estar e desenvolvimento integral» (n.º 2 do citado artigo).
A medida de acolhimento residencial – à semelhança do que sucede com o acolhimento familiar – é executada tendo por base a previsibilidade da reintegração da criança ou do jovem na família de origem ou em meio natural de vida; caso não seja possível esta solução, constitui igualmente pressuposto da execução a preparação da criança ou do jovem para as medidas de autonomia de vida ou de confiança com vista a adopção, nos termos previstos na LPCJP, ou o apadrinhamento civil (art. 2º, n.ºs 2 e 3 do Dec. Lei n.º 164/2019, de 25 de Outubro).
A execução da medida de acolhimento residencial obedece aos princípios referidos no art. 4.º da LPCJP e, ainda, aos seguintes: individualização, adequação, normalização, participação e audição, privacidade, intervenção diligente, preservação dos vínculos parentais e fraternos, corresponsabilização da família de origem e colaboração interinstitucional (art. 4º do Dec. Lei n.º 164/2019).
As medidas previstas nas alíneas e) e f) do n.º 1 do art. 35.º têm a duração estabelecida no acordo ou na decisão judicial (art. 61º da LPCJ).
O processo judicial de promoção dos direitos e protecção é de jurisdição voluntária (art. 100º da LPCJ), sendo-lhes aplicável, por conseguinte, o disposto no art. 986º do CPC, onde se prescreve que o “tribunal pode (…) investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias” (n.º 2).
Sobre a matéria da produção de provas – por referência ao pretérito regime processual civil, mas cuja actualidade perdura face ao presente regime adjectivo –, o Prof. Alberto dos Reis referiu a propósito dos processos de jurisdição voluntária que «(…) o art. 1448.º concede ao juiz a faculdade latitudinária de recusar a produção de quaisquer provas, requeridas ou oferecidas pelas partes, quando as julgue desnecessárias.
Também neste ponto se nota uma ampliação considerável dos poderes do juiz em matéria de jurisdição contenciosa. O juiz pode repelir o que for impertinente ou meramente dilatório (art. 266.º); pode recusar a junção de documentos impertinentes ou desnecessários (art. 556.º); mas não lhe é lícito, no processo comum, privar a parte do direito de produzir prova por depoimento de parte, por arbitramento, por testemunhas, a título de que essas provas não são necessárias.
Vê-se, pois, que, de um modo geral, o juiz goza na jurisprudência voluntária, em matéria de facto, de poderes mais extensos do que na jurisdição contenciosa».
Donde se conclui que, no âmbito destes processos (de jurisdição voluntária), e atenta a flexibilidade da tramitação processual preconizada no n.º 2 do art. 986º do CPC, o juiz pode por isso restringir os meios de prova oferecidos pelas partes ou diligenciar para além deles, numa vertente de intervenção discricionária, fundamentada na avaliação do que, no seu prudente arbítrio, considere útil para a decisão da causa. Daqui decorre que não é obrigatória a produção de todas as provas apresentadas ou requeridas pelas partes, tudo dependendo da apreciação que o juiz faça da sua pertinência e interesse para a causa.
A liberdade e iniciativa probatória do juiz tem como limite o objectivo prosseguido pelo processo especial em causa, bem como a adequação da medida a adoptar à finalidade pretendida.
Contudo, do citado n.º 2 do art. 986º do CPC não resulta, obviamente, um poder discricionário do juiz, mas tão só um poder/dever de orientar o processo, designadamente no que toca à realização de diligências ou a admissão das provas, em função do seu objecto e tendo em conta o seu fim último, que, no caso, é a promoção dos direitos e a protecção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral, tendo sempre presente o interesse superior da criança e do jovem.

No tocante às especificidades do processo judicial de promoção dos direitos e protecção, o art. 104.º (“Contraditório”) da LPCJ dispõe:
«1- A criança ou jovem, os seus pais, representante legal ou quem tiver a guarda de facto têm direito a requerer diligências e oferecer meios de prova.
2- No debate judicial podem ser apresentadas alegações escritas e é assegurado o contraditório.
3- O contraditório quanto aos factos e à medida aplicável é sempre assegurado em todas as fases do processo, designadamente na conferência tendo em vista a obtenção de acordo e no debate judicial, quando se aplicar a medida prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 35.º».

E o art. 106.º (“Fases do processo”) prescreve:
«1- O processo de promoção e protecção é constituído pelas fases de instrução, decisão negociada, debate judicial, decisão e execução da medida.
2- Recebido o requerimento inicial, o juiz profere despacho de abertura de instrução ou, se considerar que dispõe de todos os elementos necessários:
a) Designa dia para conferência com vista à obtenção de acordo de promoção e protecção ou tutelar cível adequado;
b) Decide o arquivamento do processo, nos termos do artigo 111.º; ou
c) Ordena as notificações a que se refere o n.º 1 do artigo 114.º, seguindo-se os demais termos aí previstos».

No citado art. 104º é estabelecido o mais amplo alcance à possibilidade de a criança ou jovem, seus pais, representantes legais ou quem tenha a sua guarda de facto poderem participar no desenrolar do processo, tendo o “direito” de requerer diligências e oferecer os meios de prova que tenham por necessários e ajustados.
O denominado “princípio do contraditório” está genericamente definido no art. 3º do CPC, aplicável subsidariamente (arts. 549º, n.º 1, e 986 e ss. do CPC, bem como art. 100º da LPCJ) e do mesmo afigura-se decorrer que qualquer decisão relevante sobre a vida da criança ou jovem que haja de ser ponderada pelo juiz ou que lhe haja sido requerida por algum interveniente processual ou promovida pelo Ministério Público, seja ela de natureza estritamente jurídica e/ou respeitante a matéria de facto, não deve ser proferida sem, previamente, ser dada a possibilidade de pronúncia/oposição aos progenitores, representante legal ou de quem tenha a guarda de facto da criança/jovem (bem como ao Ministério Publico, se requerida por outros intervenientes).
Este muito amplo poder de intervenção dos participantes processuais referidos nos processos de promoção e protecção não pode, porém, contrariar a natureza específica destes processos e a relevância própria dos seus princípios.
De assinalar que a instrução do processo visa habilitar o juiz a decidir o arquivamento do processo, caso conclua que se tornou desnecessária a aplicação de qualquer medida de promoção e protecção ou, demonstrando-se a situação de perigo, ordenar o prosseguimento dos autos com vista à aplicação de uma medida (arts. 110º e 111º da LPCJ).
A esta finalidade primeira da instrução acresce ainda a da recolha de elementos que permitam aferir a adequação da medida a aplicar através da decisão negociada, assim criando as condições necessárias à realização da conferência a que alude o art. 112º da LPCJ.
Ora, tendo em conta estas finalidades, impõe-se concluir que apenas devem ter lugar as diligências que se mostrem essenciais para a sua concretização, devendo por isso ser rejeitados os actos que não se enquadrem dentro de tal escopo.
Reservado para as situações em que não é possível obter uma decisão negociada, o debate judicial corresponde à chamada audiência de discussão e julgamento, onde se produz a prova, a par da audição das pessoas presentes e se discute a causa, tendo o Ministério Público e os advogados oportunidade de alegaram oralmente, após o que o tribunal colectivo misto toma a decisão, que deverá ser lida em publico (arts. 114º a 122º da LPCJ).
Quanto à actividade probatória, o art. 117º da LPCJ estabelece um regime segundo o qual na formação da sua convicção e na fundamentação da decisão, o tribunal só pode considerar as provas que puderem ter sido contraditadas durante o debate judicial.
Importa ainda considerar os seguintes normativos da lei civil (substantiva e adjectiva):
As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (art. 341º do Código Civil/CC).
Segundo o estatuído no art. 388° do CC, a «prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial».
Esta prova tem como figura central o perito que se distingue da testemunha, pois enquanto esta descreve as suas percepções sobre factos passados, o perito serve-se de princípios científicos, de critérios artísticos, de máximas de experiência para fazer valer a sua apreciação ou valoração dos factos passados ou presentes, valoração que constitui precisamente o acto característico da prova pericial.
Atribui-se, pois, a técnicos especializados a verificação/inspecção de factos não ao alcance directo e imediato do julgador, já que dependem de regras de experiência e de conhecimentos técnico-científicos que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se ser aquele possuidor.
A prova pericial pode visar a percepção indiciária de factos por inspecção de pessoas (ex., exame médico-legal) ou de coisas, móveis ou imóveis (ex., exame duma máquina ou vistoria dum prédio), como a determinação do valor das coisas ou direitos (ex., determinação do valor dum prédio ou duma quota social), ou ainda a verificação da origem dum documento (ex., assinatura, letra, data, genuinidade, alteração), a revelação do seu conteúdo (ex. os livros e documentos da escrita comercial).
A prova pericial é livremente apreciada pelo tribunal (art. 389º do CC e arts. 489º e 607.º, n.º 5 do CPC), não estando o mesmo, por isso, adstrito às asserções e conclusões dessa perícia.
O procedimento da prova pericial em juízo mostra-se regulado pelos arts. 467º a 489º do CPC.
«Ao requerer a perícia, a parte indica logo, sob pena de rejeição, o respectivo objecto, enunciando as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da diligência» (art. 475º, n.º 1, do CPC), podendo a perícia «reportar-se, quer aos factos articulados pelo requerente, quer aos alegados pela parte contrária» (n.º 2).
A perícia pode ser oficiosamente ordenada pelo juiz ou requerida por qualquer das partes (art. 467º, n.º 1, do CPC).
Ao tribunal compete apreciar se a diligência não é impertinente ou dilatória e conceder à parte contrária a faculdade de se pronunciar sobre o objecto da perícia (n.º 1 do art. 476.º do CPC).
O tribunal só poderá dispensar a produção de quaisquer elementos probatórios requeridos, quando já se encontre esclarecido sobre os factos controvertidos ou quando tais elementos probatórios não sejam de alguma forma aptos para atingir a finalidade de esclarecer tais factos.

Como se refere no Acórdão desta Relação de 16/02/2017 (relator Pedro Damião e Cunha), in www.dgsi.pt., “uma diligência de prova só pode considerar-se impertinente se não for idónea para provar o facto que com ela se pretende provar, se o facto se encontrar já provado por qualquer outro meio de prova, ou se carecer de todo de relevância para a decisão da causa”.
Feitos estes considerandos teóricos, evidencia-se, no caso em apreço, estar em causa a (in)admissibilidade e/ou (im)pertinência da realização de uma perícia médico legal ao Sr. DD, ex-companheiro da avó materna, referindo esta no seu requerimento probatório que o mesmo lhe comunicou «que dará o seu consentimento e prestará toda a colaboração requerida, a fim de se apurar das eventuais tendências pedófilas e da perigosidade que poderá representar para crianças».
Não oferece contestação que o Ministério Público requereu, quanto às menores BB e CC – as quais se encontram institucionalizadas –, a sua adopção, encontrando-se os autos, presentemente, em fase de audiência de discussão e julgamento com vista à prolação de tal decisão.
A recorrente, avó materna das menores, apresentou proposta de reintegração familiar das netas BB e CC, sustentando a sua pretensão numa mudança de residência e projecto de vida autónomo relativamente ao seu ex-companheiro, DD.
Os relatórios sociais da Segurança Social juntos aos autos mostram-se desfavoráveis à proposta apresentada pela recorrente, referindo esta que os mesmos “(…) sustentam-se, em larga medida, na circunstância de a avó ter mantido uma relação com o Sr. DD, condenado por um crime de abuso sexual de menor em 11/02/2016.”.
Nessa decorrência. a recorrente requereu nos autos a realização de uma perícia médico-legal ao referido ex-companheiro, «a fim de se apurar das eventuais tendências pedófilas e da perigosidade que poderá representar para crianças».
Pois bem, não obstante mencionar o propósito ou a finalidade da requerida perícia médico-legal, a verdade é que a recorrente não definiu ou individualizou o objecto da mesma, pois omitiu a enunciação das concretas questões de facto que pretendia ver apuradas através da perícia, o que constitui fundamento da sua rejeição, nos termos do disposto no art. 475º, n.º 1, do CPC.
Mas ainda que assim não se entendesse, sempre seria de concluir pela impertinência e/ou desnecessidade da realização da requerida perícia médico-legal.
Desde logo pela sua falta de actualidade.
Isto porque aludindo a requerente/recorrente ao seu ex-companheiro (que “foi o companheiro da avó materna”) e à cessação da relação que mantinha com o sr. DD, não se vislumbra em que termos a referida diligência probatória possa assumir foros de relevância e pertinência para a questão a decidir.
Tendo essa relação alegadamente cessado deixa de fazer sentido qualquer exame médico-legal ao seu ex-companheiro a fim de indagar se o mesmo padece de eventual transtorno psiquiátrico que possa conduzir à prática de crimes sexuais tendo como vítimas crianças/jovens, bem como para aferir “da perigosidade que [o mesmo] poderá representar para crianças”.
Como bem assinala o Ministério Público na resposta ao recurso: «Mas perícia médico-legal para quê, para que objectivo, pergunta-se? A avó já nem mantém, conforme afirmou, qualquer relacionamento com o mesmo…»
Sem embargo do que antecede, não podemos deixar de sobrelevar o facto da recorrente parecer olvidar – ou, pelo menos, desvalorizar – um dado objectivo incontornável constante dos autos, qual seja, o de o seu ex-companheiro, DD, ter sido condenado, por sentença datada de 11/02/2016, pela prática de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelo art. 171º, n.º 1 e 177º, n.º 1, ambos do Cód. Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de três anos e seis meses.
E não é curial afirmar que o receio manifestado pelas entidades intervenientes, no caso as técnicas da Segurança Social, se funda meramente em presunções, afastadas de um qualquer indício concreto e efectivo de evidente perigo. Tão pouco que – no tocante aos riscos e à perigosidade que o ex-companheiro possa constituir para as crianças – as conclusões do relatório da SS se fundam em meros pré-juízos de valor, em juízos de prognose de comportamentos futuros e em factos sem qualquer correspondência com a realidade.
Como é bom de ver, atenta a natureza dos presentes autos, que têm por objecto a promoção dos direitos e a protecção das crianças em perigo – no caso, a BB com 8 anos e a CC com 5 anos, institucionalizadas desde 2021 –, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral, aquele facto objectivo – consistente, repita-se, numa sentença transitada em julgado que condenou o ex-companheiro da recorrente pela prática de um crime de abuso sexual de criança agravado p. e p. pelo art. 171º, n.º 1 e 177º, n.º 1, ambos do Cód. Penal, numa pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de três anos e seis meses –, de modo algum pode ser menosprezado ou depreciado na aferição do contexto familiar e vivencial da recorrente – independentemente do seu ex-companheiro residir a cerca de 50/100 metros da residência actual da avó materna – para efeitos da escolha da medida de promoção e protecção. Tal risco objectivo mostra-se devidamente fundado num facto definitivamente consolidado no processo, traduzido na dita sentença condenatória.
A sentença penal condenatória inutiliza ou preclude a pertinência da requerida perícia. Esta mostra-se prejudicada ou desnecessária por força daquela.
A evidência de tais factos, dada a sua natureza e a particular gravidade, dispensa uma fundamentação acrescida.
Acresce que, nos termos aduzidos pelo Ministério Público na resposta ao recurso, não obstante os relatórios sociais juntos aos autos mostrarem-se desfavoráveis à proposta apresentada pela recorrente, neles se referindo, em parte, ao relacionamento e/ou ex relacionamento da recorrente com o Sr. DD, a verdade é que os relatórios versam igualmente sobre outras questões relevantes atinentes à descrição e caracterização do contexto familiar da avó materna e dos respectivos membros, bem como do seu quadro comportamental, dos valores morais e culturais.
Especificamente, salientam, também, a permissividade da recorrente que, anteriormente e na sua própria casa, permitiu, inclusivamente, um relacionamento entre a sua outra neta – AA, nascida ../../2009 - com um indivíduo maior de idade.
Bem como aludem ao facto de ter permitido que a menor BB dormisse na mesma cama do casal.
Em suma, e circunscrevendo-nos ao objecto do recurso, impõe-se concluir pela impertinência ou pelo cariz dilatório da requerida diligência probatória, posto a mesma carecer de todo de relevância para a decisão da causa, visto ser irrelevante para a concretização e definição das medidas de promoção e protecção a adoptar.
Como vimos, o juiz pode/deve recusar o que for impertinente ou meramente dilatório (art. 476.º, n.º 1, do CPC).
Consequentemente, é de confirmar a decisão recorrida que indeferiu a realização de perícia médico-legal ao ex-companheiro da avó materna.

DECISÃO

Perante o exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando a decisão singular reclamada, e, simultaneamente, a decisão recorrida.

Custas da apelação a cargo da apelante (art. 527º,1,2 CPC).

Data: 18/9/2025

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Raquel Baptista Tavares)
2º Adjunto (António Manuel Antunes Figueiredo de Almeida)