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PROCEDIMENTO CAUTELAR
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
ESBULHO VIOLENTO
CONVOLAÇÃO
Sumário
I – A violência que releva para a qualificação do esbulho como violento é apenas aquela que é utilizada para obter a posse. II – Um esbulho que não foi antecedido ou acompanhado de violência aquando da aquisição da posse não pode ser qualificado como violento. III – Atos praticados pelo esbulhador cerca de um mês depois da concretização do esbulho não caracterizam este como violento.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:
I – Relatório
1.1. AA instaurou procedimento cautelar de restituição provisória de posse contra BB, pedindo que lhe seja restituída provisoriamente a posse «do prédio melhor identificado no retro artigo 6.º do petitório», isto é, «do prédio urbano, composto por casa de rés-do-chão, andar, coberto e logradouro, sito em ..., Rua ..., freguesia ..., concelho ..., com a área total de 1000m2, a área de implantação de 352m2 e a área descoberta de 648m2, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...29 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...11 proveniente do artigo ...».
Para fundamentar a sua pretensão, alegou ser proprietário do aludido prédio urbano, correspondente à morada atual do Requerido, seu irmão. No mês de abril de 2025, o Requerido entrou no prédio urbano afirmando que pretendia visitar a mãe de ambos e passou a ali residir, e no mês de maio o Requerido mudou a fechadura do prédio urbano e partiu um cadeado que estava colocado no local de estacionamento do prédio urbano. Posteriormente, o Requerido construiu novas paredes e portas no prédio urbano.
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1.2. Por despacho de 21.07.2025, foi indeferido liminarmente o requerimento inicial com os seguintes fundamentos:
«O procedimento cautelar de restituição provisória da posse tem como requisitos a posse, o esbulho e a violência (art. 377º do Cód. de Processo Civil). Como acontece com todos os procedimentos cautelares, também o procedimento cautelar de restituição provisória da posse visa facultar ao requerente, em termos céleres e abreviados, a defesa do seu direito e o impedimento da continuação de uma situação danosa ou o agravamento dos danos. Todavia, o que caracteriza este procedimento cautelar é a circunstância de ser uma compensação pela violência do requerido por aplicação da regra spoliatus ante omnia restituendus. É este aspecto que justifica a existência de um procedimento cautelar específico para a defesa da posse e o facto de a providencia ser decretada sem a audição prévia do requerido. Na doutrina e na jurisprudência foi discutida a questão de saber se a violência tinha de ser exercida sobre a pessoa do requerente ou bastava uma acção do requerido que fosse geradora de coacção ou constrangimento no sentido de o forçar a aceitar a situação contra a sua vontade. Actualmente pode considerar-se assente o entendimento de que o requisito da violência deve ser entendido com este sentido amplo. A este propósito pode ver-se, entre muitos outros, o Ac. da Relação de Guimarães de 13 de Fevereiro de 2020, de acordo com o qual 'a violência que para este efeito releva é não só a que a exercida sobre as pessoas, mas também a que é exercida sobre as coisas, sendo de considerar o esbulho como violento se o esbulhado fica impedido de contactar com a coisa em face dos meios usados pelo esbulhador, se a acção física exercida sobre a coisa se traduz num meio de coagir a pessoa a suportar uma situação contra a sua vontade'. No caso dos autos, mesmo adoptando o entendimento amplo que tem vindo a ser aceite pela doutrina e pela jurisprudência, não pode falar-se em violência. O requerido limitou-se a entrar no prédio urbano afirmando que ia visitar a sua mãe, o que não configura uma conduta minimamente violenta. Os actos posteriores que consistiram em mudar a fechadura, partir um cadeado e construir novas paredes e portas ocorreram quando o requerido já estava a residir no prédio urbano há cerca de um mês, como o requerente alega expressamente. Não podendo afirmar-se o requisito da violência e não sendo aplicável o procedimento cautelar de restituição provisória da posse, importa ponderar a possibilidade de a pretensão do requerente ser atendida no âmbito do procedimento cautelar comum (art. 379º do Cód. de Processo Civil). O procedimento cautelar comum tem como requisitos a probabilidade séria da existência do direito invocado (fumus boni juris), o fundado receio de que outrem, antes de a acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a este direito (periculum in mora), a adequação da providência à situação de lesão iminente e não ser o prejuízo resultante da providência superior ao dano que com ela se pretende evitar. A factualidade que foi alegada pelo requerente não permite o preenchimento do requisito do periculum in mora. O requerente já intentou contra o requerido a acção dos autos principais em que estão em causa os mesmos factos e uma pretensão idêntica à do presente procedimento cautelar. Esta acção foi intentada no dia 13 de Maio de 2025 e o requerido já foi citado e apresentou a contestação. Na altura em que intentou a acção, o requerente não considerou que a situação revestia uma urgência que justificava a utilização do procedimento cautelar de restituição provisória da posse ou do procedimento cautelar comum. Nada tendo ocorrido de novo desde aquela altura, não pode afirmar-se agora que surgiu esta urgência. Entendemos, assim, que o pedido formulado pelo requerente é manifestamente improcedente.»
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1.3. Inconformado, o Requerente interpôs recurso de apelação daquela decisão, formulando as seguintes conclusões:
«I. Decidindo como decidiu, o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo não fez uma correta apreciação e julgamento da matéria de facto.
II. Decidindo como decidiu, o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo não fez uma correta interpretação e aplicação da lei ao caso sub judice, designadamente, dos artigos 3.º, n.º 3, 377.º, 379.º, 1376.º, 1377.º e 1378.º, do Código do Processo Civil, artigo 1279.º, do Código Civil, entre outros.
III. Se a matéria de facto e de direito fosse devidamente apreciada e julgada, a providência cautelar especificada de restituição provisória de posse teria de ser decretada.
IV. A decisão recorrida ao julgar a providência cautelar de restituição provisória de posse manifestamente improcedente, enferma de erro na apreciação e julgamento da matéria de facto e de erro na aplicação e na interpretação do direito, pelo que terá inevitavelmente de ser revogada, e consequentemente, ser substituída por outra decisão que admita e decrete a providência cautelar especificada de restituição provisória de posse, com todas as legais consequências.
V. Como se comprova pela petição inicial que se anexa e se dá por integralmente reproduzida, a Ação Declarativa de Condenação com o número de Processo 2872/25.7T8BRG, foi intentada não pelo aqui Recorrente, mas sim pelo Recorrido, BB
VI. Este erro de facto vicia a fundamentação da decisão recorrida.
VII. Ao atribuir ao Recorrente a propositura da ação principal, o Tribunal a quo errou, e a sua conclusão sobre a não verificação do requisito da violência e a falta de urgência é, por conseguinte, insustentável e infundada.
VIII. A sentença recorrida partiu de uma premissa fáctica errada para indeferir liminarmente o procedimento cautelar.
IX. A decisão do Tribunal a quo baseou-se num facto errado.
X. Num facto que não corresponde à verdade.
XI. Facto que viciou a fundamentação da decisão do Tribunal a quo.
XII. A decisão proferida pelo Tribunal a quo padece de erro na apreciação e julgamento da matéria de facto, por isso, tem inevitavelmente de ser revogada e substituída por outra decisão que julgue a providência cautelar de restituição provisória de posse procedente com todos as legais consequências.
XIII. O Recorrente sempre deteve a posse legítima e pacífica do prédio urbano, composto por casa de rés-do-chão, andar e logradouro, sito em ..., Rua ..., freguesia ..., concelho ..., com a área total de 3297m2, e área de implantação de 823m2, e área descoberta de 2474m2, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...93 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...15 proveniente do artigo 5.
XIV. O pressuposto posse resulta, assim, provado no caso em apreço. Do mesmo modo,
XV. Resultam preenchidos, por provados, no caso sub judice os demais pressupostos da providência cautelar especificada de restituição provisória de posse, designadamente o esbulho e violência.
XVI. O "esbulho" é a privação da posse.
XVII. No caso em apreço evidente é, ainda, o ato de esbulho praticado pelo Recorrido, que privou, bem como priva o Recorrente do exercício da fruição da coisa possuída e da possibilidade de o continuar ao mudar as fechaduras de todas portas e o cadeado do portão, para além de ter construído novas paredes e aberto novas portas.
XVIII. No caso em apreço o esbulho tem de ser qualificado como violento, desde logo, porque constitui violência sobre o imóvel o ato consubstanciado na troca da fechadura, em partir um cadeado do portão, na construção de paredes e na abertura de novas portas, culminando com a ocupação do imóvel.
XIX. Com tais atos o Recorrido visou coagir o Recorrente.
XX. No caso em apreço o esbulho tem de ser qualificado como violento, desde logo, porque constitui violência sobre o imóvel o ato consubstanciado na troca da fechadura, em partir um cadeado do portão, na construção de paredes e na abertura de novas portas, culminando com a ocupação do imóvel.
XXI. Com tais atos o Recorrido visou coagir o Recorrente.
XXII. Assim, em síntese, em função do que se entende por esbulho violento há que considerar que o conceito em causa se encontra preenchido com a conduta do Recorrido, na medida em que, com a sua conduta criou um obstáculo físico que impede o Requerente (possuidor) de aceder ao imóvel objeto da sua posse.
XXIII. No circunstancialismo descrito é de concluir que o Requerente alegou e provou factualidade integradora de esbulho violento para efeitos dos arts. 1279.º, do Código Civil e 377.º, do Código de Processo Civil, assim se preenchendo o requisito da violência, o que justifica o decretamento da restituição provisória de posse.
XXIV. É, claramente, prevalecente o entendimento de que é suficiente que do esbulho resulte um obstáculo à continuidade do exercício da posse, que a violência (ação física) exercida sobre as coisas seja meio adequado de constranger uma pessoa a suportar uma situação contra a sua vontade.
XXV. Nesta perspetiva, a mudança de fechadura da porta de acesso a um imóvel, mesmo na ausência do possuidor, constitui esbulho violento, logo, está justificado o acesso à tutela cautelar nominada – vide Ac. do TRP de 12-09-2022, proc. n.º 1507/22.4T8MTS.P1, in www.dgsi.pt.
XXVI. A ação do Recorrido (mudança das fechaduras das portas de acesso ao prédio, partir um cadeado do portão e substituir por outro, construção de paredes e abertura de novas portas no prédio, cuja posse pertence ao Recorrente) configura, sem qualquer dúvida, uma situação de violência sobre coisa que constrange o Recorrente a suportar o desapossamento, impedindo-lhe o acesso ao imóvel.
XXVII. Ora, a referida factualidade permite e obriga ainda assim, concluir (pelo menos implicitamente e em razão das regras da experiência, da normalidade e do senso comum – id quod plerumque accidit) que o Recorrido, para ter logrado apoderar-se das coisas ou para ter tido acesso à posse da propriedade do Recorrente, teve necessariamente que vencer vários obstáculos (v.g. as anteriores fechaduras que existiam, sendo que umas foram trocadas) que à data existiam e que o impedia de aceder livremente ao referido prédio.
XXVIII. Também não se descortina existir razão pertinente - bem pelo contrário – para afastar o requisito da violência quando, ainda em razão das máximas da experiência e do senso comum, não se vê como alterar e mudar fechaduras e do cadeado sem que as fechaduras e o cadeado mudados tenham sido objeto de alguma violência/força, mínima que seja, pois que certamente estariam – anteriormente - a desempenhar a sua função, logo a “fechar”, tendo assim e necessariamente sido forçadas, arrombadas ou violentadas.
XXIX. Ao alegar-se que, em consequência da mudança das fechaduras, do cadeado e da sua substituição, bem como construção de paredes e abertura de novas portas, está o Recorrente impedido de aceder à sua propriedade, forçoso é concluir que a impossibilidade de o Recorrente contactar com a coisa possuída é consequência dos meios usados pelo Recorrido, esbulhador, justificando-se, portanto, a pretensão do primeiro de lograr a restituição da posse.
XXX. O Recorrido foi agente de atos de violência que incidiram sobre coisas (as fechaduras, o cadeado, o portão) que constituíam o obstáculo ao esbulho, e, bem assim, de atos (a colocação de diferentes/novas fechaduras e cadeado as paredes e novas portas) que impede o Recorrente (o esbulhado) de contactar e de aceder às coisas possuídas.
XXXI. Atentos todos estes referentes jurídicos, poucas dúvidas restam de que, efetivamente, in casu, estamos perante uma situação de esbulho violento por parte do Recorrido sobre o Recorrente, encontrando-se reunidos todos os pressupostos do decretamento da providência cautelar requerida, a qual deverá ser decretada.
XXXII. Não obstante o Tribunal a quo ter decidido com fundamento em premissas erradas, facto é que no caso em apreço verifica-se o requisito do "periculum in mora".
XXXIII. A urgência para a aplicação da providência cautelar é real, e o "periculum in mora" existe e é evidente.
XXXIV. A falta de proteção judicial da posse do Recorrente acarreta perigos de natureza grave e irremediável, não só para os seus bens, mas, acima de tudo, para a sua integridade física e vida do Recorrente.
XXXV. O perigo, embora já existisse na altura em que o Recorrido propôs a ação principal, agravou-se de forma substancial e perigosa, conforme, aliás, resulta do Requerimento Inicial.
XXXVI. A situação de conflito, ameaças e agressões, que já existia, evoluiu para um nível de maior perigosidade.
XXXVII. A conduta do Requerido é imprevisível e perigosa, e a sua presença no prédio, propriedade do Recorrente, confinante com a casa de morada de família do Recorrente é um fator de risco constante.
XXXVIII. A ação principal levará meses, ou até anos, a ser decidida.
XXXIX. Durante esse período, o Recorrente ficaria exposto a uma situação de risco iminente.
XL. A providência cautelar, pelo contrário, permite uma intervenção judicial célere e efetiva para cessar a situação de perigo de forma imediata.
XLI. A decisão recorrida ao julgar a providência cautelar de restituição provisória de posse manifestamente improcedente, enferma de erro na apreciação e julgamento da matéria de facto e de erro na aplicação e na interpretação do direito, pelo que terá inevitavelmente de ser revogada.
XLII. Consequentemente, ser substituída por outra decisão que admita e decrete a providência cautelar especificada de restituição provisória de posse, com todas as legais consequências.
Nestes termos, e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, requer-se que seja o presente recurso julgado procedente, e, em consequência, se revogue a douta sentença recorrida, ordenando-se o decretamento da providência cautelar especificada de restituição provisória de posse, fazendo assim Vs. Exas. a habitual e costumada Justiça!»
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O recurso foi admitido.
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1.4. Questões a decidir
Atentas as conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, importa apreciar duas questões:
a) se os factos alegados permitem considerar verificados os pressupostos necessários ao decretamento da restituição provisória da posse do prédio;
b) caso não se possa qualificar o esbulho como violento, se deve ser convolado o procedimento de restituição provisória de posse num procedimento cautelar comum.
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II – Fundamentos
2.1. Fundamentação de facto
Os factos a considerar são os expostos no antecedente relatório.
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2.2. Do objeto do recurso
O Requerente sustenta no recurso que os factos alegados permitem concluir que tem a posse do prédio, que ocorreu um esbulho e que o mesmo foi violento. Por isso, entende estarem reunidos os requisitos que permitem o decretamento de uma providência cautelar de restituição provisória de posse.
A este propósito, em consonância com o estabelecido no artigo 1279º do Código Civil (CCiv), dispõe o artigo 377º do Código de Processo Civil (CPC):
«No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência».
Portanto, a procedência da providência cautelar de restituição provisória de posse depende da alegação e prova dos três requisitos indicados nos artigos 377º e 378º do CPC:
- a posse (o tribunal tem de concluir que o requerente é, pelo menos, aparentemente, titular da posse, ou seja, que atua por forma correspondente ao exercício de determinado direito real);
- o esbulho (é preciso mais do que uma turbação da posse; é necessário que o requerente seja privado da posse que tenha sobre a coisa, ficando impedido de a continuar);
- a violência.
A questão mais delicada nesta espécie de providência de cautelar está em determinar o alcance do conceito de violência usado nos aludidos preceitos legais.
Na verdade, esbulhar alguém de uma certa coisa, em certo sentido já constitui uma violência, uma vez que se trata de privar alguém do que é seu ou relativamente à qual tem uma posição jurídica que a lei tutela. Porém, não é esta a “violência” a que se referem os artigos 1279º do CCiv e 377º do CPC, pois aí exige-se mais do que o esbulho, ou seja, o privar da coisa: além do esbulho a lei exige que este seja violento.
À violência refere-se o artigo 1261º, nº 2, do CCiv, nos seguintes termos:
«Considera-se violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coação física, ou de coação moral nos termos do artigo 255º».
Nos termos do nº 1 do artigo 255º do CCiv, «Diz-se feita sob coação moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração». E o nº 2 acrescenta: «A ameaça tanto pode respeitar à pessoa como à honra ou fazenda do declarante ou de terceiro».
Pensamos que o conceito legal de violência emerge dos dois preceitos legais com mediana clareza.
Com efeito, se é certo que a violência tanto pode ser exercida sobre as pessoas como sobre as coisas (o artigo 255º é claro ao dizer que a ameaça tanto pode respeitar à pessoa como à honra ou fazenda do declarante), também não deixa de ser menos acertado que a violência sobre as coisas tem de reunir os requisitos referidos nos dois últimos preceitos legais citados.
Na verdade, há sempre que relacionar a coisa objeto de violência com o possuidor que vem pedir a restituição da posse.
Quer dizer: exigindo a lei a “coação”, esta só se pode referir a pessoas, pois as coisas, em si mesmas, não são suscetíveis de coação, ou seja, a lei exige que quando se verifique essa violência sobre a coisa, se amedronte ou ameace o possuidor.
Admite-se, pois, que atos de força contra coisas possam configurar a violência referida nos artigos 377º e 378º do CPC, mas só se forem um instrumento de coação sobre o possuidor, no sentido de lhe impor o ato usurpativo contra a sua vontade.
É essa violência que justifica que a providência cautelar de restituição provisória da posse possa ser decretada sem citação nem audiência do esbulhador, o que constitui uma exceção ao princípio basilar do contraditório. Mais: para obter a restituição, o requerente não precisa de alegar e provar que corre um risco, que a demora da decisão definitiva na ação possessória o expõe à ameaça de dano jurídico, basta que alegue e prove a posse, o esbulho e a violência.
O benefício da providência é concedido, não em atenção a um perigo de dano iminente, mas como compensação da violência de que o possuidor foi vítima.
O Requerente começa por alegar que «a sentença partiu de uma premissa fáctica errada para indeferir liminarmente o procedimento cautelar», na parte em que se afirma que a ação dos autos principais foi intentada pelo Requerente contra o Requerido, quando na realidade a ação foi proposta pelo Requerido contra o Requerente e a mãe de ambos.
É verdade que na decisão recorrida se afirma que «O requerente já intentou contra o requerido a acção dos autos principais em que estão em causa os mesmos factos e uma pretensão idêntica à do presente procedimento cautelar. Esta acção foi intentada no dia 13 de Maio de 2025 e o requerido já foi citado e apresentou a contestação. Na altura em que intentou a acção, o requerente não considerou que a situação revestia uma urgência que justificava a utilização do procedimento cautelar de restituição provisória da posse ou do procedimento cautelar comum. Nada tendo ocorrido de novo desde aquela altura, não pode afirmar-se agora que surgiu esta urgência.»
Sucede que esta fundamentação foi aduzida para justificar o decidido quanto ao procedimento cautelar comum (art. 379º do CPC) e não propriamente quanto à restituição provisória da posse. Isto porque se destinou a fundamentar o não «preenchimento do requisito do periculum in mora.»
Por isso, o erro argumentativo não tem as repercussões que o Recorrente lhe atribui.
A questão essencial do recurso consiste em saber se o esbulho foi violento.
Em face dos factos alegados (e estamos apenas a considerar o alegado), o Requerente era possuidor do prédio urbano e foi do mesmo esbulhado.
Esse esbulho ocorreu no dia 21.04.2025, quando o Requerido se introduziu no imóvel sob o alegado pretexto de ir visitar a mãe (art. 11º do requerimento inicial) e passou a ocupá-lo (arts. 9º, 11º e 12º), privando o Requerente da respetiva posse.
Porém, tal esbulho não foi antecedido ou acompanhado de qualquer violência. O Requerido limitou-se a ocupar o imóvel. Nenhum meio de coação, de natureza física ou moral, foi então utilizado para impedir o Requerente de aceder ao prédio.
E a violência que releva é apenas aquela que é utilizada para obter a posse. É isso que expressamente resulta do artigo 1261º, nº 2, do CCiv, ao considerar «violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coação física, ou de coação moral nos termos do artigo 255º». Por conseguinte, o momento relevante é o da aquisição da posse: se os atos necessários à sua aquisição forem violentos, no sentido atrás referido, o esbulho será considerado violento e permite ao esbulhado recorrer à tutela da providência cautelar de restituição provisória de posse; se não revestir forma violenta, é-lhe facultado o recurso ao procedimento cautelar comum regulado no artigo 362º e segs. do CPC, se reunido ainda o requisito do periculum in mora.
No caso a posse foi obtida sem violência, pelo que inexiste esbulho violento[1].
Para o efeito aqui em causa, inerente ao decretamento de uma providência cautelar de restituição provisória da posse, é irrelevante o que posteriormente veio a ocorrer passado um mês de se ter verificado o esbulho, quando no dia 21.05.2025 o Requerido «alterou as fechaduras e as chaves do imóvel» (art. 14º do requerimento inicial), bem como no dia 24.05.2025, quando «partiu o cadeado do portão que dava acesso ao local destinado a estacionamento do prédio» (art. 15º) e «colocou um cadeado novo no referido portão» (art. 16º).
Estes factos ocorreram depois de o Requerente já se encontrar esbulhado do prédio. É o próprio Requerente que alega no artigo 11º do requerimento inicial que «O Requerido entrou no imóvel, alegando que iria visitar a Mãe, e desde então, tem ocupado o imóvel».
Ora, como bem salienta Carlos Gabriel da Silva Loureiro, em comentário ao acórdão do STJ de 19 de maio de 2020[2], «para a qualificação do esbulho como violento só relevarão os comportamentos do esbulhador que sejam anteriores ou contemporâneos ao início da sua posse, pois só esses atos poderão considerar-se adequados a constranger o possuidor a não se opor ao ato de desapossamento.»
Pelo exposto, inexistindo esbulho violento, nenhuma censura merece a decisão recorrida na parte em que considerou manifestamente improcedente o procedimento cautelar de restituição provisória da posse.
Resta saber se cabe convolar o procedimento de restituição provisória de posse num procedimento cautelar comum (arts. 379º e 362º segs.).
Dispõe o artigo 193º, nº 3, do CPC, que «o erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados.»
Na decisão recorrida equacionou-se «a possibilidade de a pretensão do requerente ser atendida no âmbito do procedimento cautelar comum», mas concluiu-se que «a factualidade que foi alegada pelo requerente não permite o preenchimento do requisito do periculum in mora.»
Nas conclusões do seu recurso, o Recorrente apenas propugna pelo decretamento da «providência cautelar de restituição provisória de posse». Em nenhum das conclusões defende a aludida convolação em procedimento cautelar comum, apesar de sustentar que se encontra preenchido o requisito do periculum in mora. Apenas o fez na motivação das alegações e, como se sabe, são as conclusões que delimitam o objeto do recurso.
Em todo o caso, sempre se dirá que o fundamento específico do procedimento cautelar comum é o chamado periculum in mora, isto é, «a necessidade de evitar uma “lesão grave e dificilmente reparável” resultante da demora na obtenção de uma tutela definitiva para um direito (o chamado direito acautelado)»[3]. Destinando-se os procedimentos cautelar a «acautelar o efeito útil da ação» (art. 2º, nº 2, do CPC), trata-se apenas de «obstar a que, por motivos relacionados com a demora na obtenção da tutela definitiva, a tutela jurisdicional seja inútil qd seja obtida pelo titular ou interessado.»[4]
Portanto, no âmbito deste recurso, importa apreciar se o quadro factual alegado torna fundado o receio de que o Requerido cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito do Requerente.
Quanto a este requisito, refere Abrantes Geraldes[5] que, «não é toda e qualquer consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera jurídica da contra-parte. Só lesões graves e dificilmente reparáveis têm essa virtualidade de permitir ao tribunal, mediante solicitação do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão (…) o juiz deve convencer-se da seriedade da situação invocada pelo requerente e da carência de uma forma de tutela que permita pô-lo a salvo de danos futuros. A gravidade da lesão previsível deve ser aferida tendo em conta a repercussão que determinará na esfera jurídica do interessado», acrescentando mais adiante[6] que «[a] protecção cautelar não abarca apenas os prejuízos imateriais ou morais, por natureza irreparáveis ou de difícil reparação, mas ainda os efeitos que possam repercutir-se na esfera patrimonial do titular. Quanto aos prejuízos materiais o critério deve ser bem mais restrito do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva. (…) Apenas merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum as lesões graves que sejam simultaneamente irreparáveis ou de difícil reparação».
Analisado o requerimento inicial, verifica-se, em primeiro lugar, que o Requerente não alegou qualquer prejuízo imaterial ou moral.
Depois, como bem resulta dos artigos 57º («A privação do uso de um bem que o proprietário se encontrava, ou poderia encontrar-se, a utilizar confere-lhe o direito a uma indemnização, correspondente ao valor locativo do imóvel durante o período de ocupação ilícita, ou a outros danos concretamente demonstrados.») e 58º («Tal indemnização encontra fundamento nos princípios da responsabilidade civil extracontratual, previstos nos artigos 483.º e seguintes do Código Civil, uma vez que a conduta ilícita do Requerido (ocupação sem título) causa danos ao Requerente (privação do uso).») do requerimento inicial, o dano material invocado é apenas o decorrente da «privação do uso» de um prédio urbano que, como decorre do alegado no artigo 11º, era habitado pela mãe do Requerido e do Requerente, e não por este último. Sustenta que o seu prejuízo corresponde «ao valor locativo do imóvel», mas a realidade é que o prédio, de harmonia com o alegado, não se encontrava arrendado e nada se aduziu sobre a intenção de o dar de locação.
Daí que, no nosso modesto entendimento, não se possa considerar preenchido o requisito do fundado receio de lesão grave e de difícil reparação.
Em face do alegado, o direito do Requerente não exige uma tutela imediata (embora provisória), podendo aguardar pela posterior tutela definitiva, o que o bom senso também aconselha, na medida em que a situação é substancialmente complexa.
Finalmente, importa deixar bem claro que o ora alegado pelo Requerente nas conclusões XXXIII a XXXIX do seu recurso não consta do requerimento inicial, pois em lado algum havia alegado anteriormente a existência de perigo «para a sua integridade física e vida do Recorrente», decorrente de «ameaças e agressões».
Pelo exposto, também não existe fundamento para convolar o procedimento cautelar para providência cautelar não especificada nos termos previstos nos artigos 376º, nº 3, e 379º do CPC.
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2.3. Sumário
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III – Decisão
Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, julga-se improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Joaquim Boavida
Maria Luísa Duarte Ramos
José Carlos Dias Cravo
[1] O esbulho violento atribui ao esbulhador uma posse violenta (art. 1261º, nº 1, do CCiv). [2]O conceito de violência no âmbito do procedimento cautelar de restituição provisória da posse: reflexão a propósito do acórdão do STJ de 19 de maio de 2020, entrada de 10.11.2020, inhttps://www.direitoemdia.pt/magazine/show/90. [3] Miguel Teixeira de Sousa, CPC Online, vol. 2, pág. 1, acessível em https://blogippc.blogspot.com. [4] Obra e local assinalados na precedente nota. [5]Temas da Reforma do Processo Civil, vol. III, 3ª edição, Almedina, pág. 35. [6] Pág. 101.