CONTRATO PROMESSA
INCUMPRIMENTO
RESOLUÇÃO
BENFEITORIAS
DIREITO DE RETENÇÃO
Sumário


I – Não se verificando um inadimplemento definitivo do contrato-promessa, não pode ser decretada a sua resolução.
II – A restituição do sinal em dobro, nos termos do artigo 442º, nº 2, do CCiv, pressupõe o incumprimento definitivo e a resolução do contrato-promessa.
III – Tendo o autor entrado na posse da fração autónoma em virtude da celebração de contrato-promessa e realizado obras na coisa, o direito à indemnização com base na realização de benfeitorias apenas pode ser reconhecido no caso de ser declarada a resolução do contrato-promessa.
IV – Continuando o autor na posse lícita da fração autónoma, cuja restituição nunca lhe foi exigida e que não está obrigado a entregar, sem que seja titular de um direito de crédito exigível sobre a ré, promitente-vendedora, não lhe pode ser reconhecido o direito de retenção.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1.1. AA intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra EMP01..., Lda., formulando os seguintes pedidos:

«1- seja declarado resolvido o contrato-promessa de compra e venda, identificado no artigo 1º e seguintes desta petição inicial;
2- a condenação da demandada, a ver resolvido o contrato promessa aludido no artº 1º e seguintes desta petição inicial, bem como, a pagar ao demandante a importância de € 6.000,00€, correspondente ao dobro do sinal por ele prestado, acrescida de juros de mora à taxa legal contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento;
3- seja declarado que o demandante t[e]m direito de retenção sobre a fração autónoma descrita no artigo 1º e seguintes da petição inicial, para garantia do pagamento do montante de € 6.000,00€, e benfeitorias, no montante de 6.000,00€, acrescido de juros legais a contar da citação e até efetivo e integral pagamento;
subsidiariamente,
4- deve emitir-se sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, declarando-se transmitido para o demandante o direito de propriedade sobre a fração autónoma designada pela letra ..., destinada a garagem, do prédio urbano sito na Praça ..., ..., ..., ..., com entrada pelo nº ... da referida rua, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº ...74.... ..., inscrito na matriz sob o artigo ...97, pelo preço de 22.000,00€.»
Para o efeito, alegou ter celebrado com a Ré, em 30.05.2019, um contrato-promessa de compra e venda da fração autónoma designada pela letra ..., destinada a garagem, de um prédio urbano, pelo preço de € 22.000,00, do qual pagou então € 3.000,00 a título de sinal e a restante parte do preço seria paga no ato da escritura pública, a marcar pela demandada e a celebrar depois da Câmara Municipal ... deferir ou indeferir definitivamente o projeto de alteração da fração objeto do contrato, de garagem para loja (comércio e serviços), a apresentar pela demandada.
Tendo-lhe sido entregues as chaves em 30.05.2019, o Autor passou a utilizar a fração, requereu o fornecimento de água e eletricidade, e realizou obras no montante de € 6.000,00, em virtude de pretender destinar a fração a comércio e serviços.
Sucede que até à data, a Ré, injustificadamente, nem agendou a escritura nem notificou o demandante de qualquer deferimento/indeferimento do projeto de alteração da fração, apesar de ter sido reiteradamente interpelada pelo Autor, o que o impossibilita de exercer qualquer atividade comercial ou de prestar serviços.

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A Ré contestou, concluindo pela improcedência da ação, alegando que não incorreu em mora quanto a qualquer das obrigações para si decorrentes do contrato-promessa celebrado com o Autor, nomeadamente a de marcação da escritura pública do contrato prometido, porquanto tal obrigação não tinha prazo certo e o Autor nunca a interpelou para o cumprimento da mesma.
Mais alegou que, mesmo que tivesse incorrido em mora no cumprimento de tal obrigação, tal não constituiria um incumprimento definitivo do contrato, sendo que apenas este, e não a simples mora, constitui fundamento para a resolução do contrato-promessa entre eles celebrado.
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1.2. Dispensada a audiência prévia, proferiu-se despacho saneador, definiu-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Na fase de discussão e julgamento, o Autor desistiu do pedido subsidiário, desistência que foi judicialmente homologada.
A final, foi proferida sentença em que se decidiu julgar a ação improcedente e absolver a Ré dos pedidos.
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1.3. Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes conclusões:
«1ª Existe errónea apreciação da matéria de facto, porquanto da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, conjugada com o documento referido no artigo 8º dos factos provados, resultou assente que o indeferimento da alteração da fração, de garagem para comércio ou serviços, que constituía a condição suspensiva, se deveu a incúria grosseira da ré, ao não ter iniciado e instruído como devia o processo iniciado em 30/11/2022, apesar de ter sido expressamente notificada para o efeito pelo Município ..., em 04/01/2023;
2ª Consequentemente deve ser aditada à matéria de facto, por ser relevante e devia constar dos factos provados, o que se requer, nos termos do disposto no artigo 413º do CPC, a seguinte:

O pedido apresentado pela ré, não se encontrava devidamente instruído, dado faltar:
“. documento comprovativo da titularidade das frações ... e ...;
. memoria descritiva elaborada nos termos do nº 5 do Anexo I da Portaria 113/2015, de 22 de abril;
. Acresce que o ficheiro com as pecas desenhadas necessita de índice (página inicial) e síntese das camadas (página final), conforme estipulado nas normas técnicas para entrega de pedidos de Operações urbanísticas em formato digital, que se transcrevem:
A primeira folha de qualquer ficheiro DWFx deverá ser uma folha de índice, identificando todas as páginas que compõem o ficheiro”- cfr. doc. a que se alude no nº 8 dos factos provados, proferido pelo Departamento de Urbanismo do Município ....
3ª O incumprimento definitivo surge não apenas quando por força da não realização ou do atraso na prestação o credor perca o interesse objetivo nela ou quando, havendo mora, o devedor não cumpra no prazo que razoavelmente lhe for fixado pelo credor – mas igualmente nos casos em que o devedor declara expressamente não pretender cumprir a prestação a que está adstrito ou adota uma qualquer outra conduta manifestamente incompatível com o cumprimento.
4ª É suscetível de determinar a perda objetiva do interesse na prestação, a lesão grave e justificada da confiança do promitente-comprador na capacidade e vontade séria da contraparte na realização das prestações a seu cargo, resultante de demora claramente excessiva, segundo os padrões dominantes e as exigências de razoabilidade e da boa fé, agravada pela assunção pelo promitente vendedor de comportamentos evasivos, contrários às exigências da boa fé (esquivando-se a qualquer contacto e respostas, seja para com o promitente comprador, seja para com a Câmara Municipal para realização de diligências e prestação dos esclarecimentos devidos), reveladores de uma atuação não colaborante, demonstrativa de manifesta desconsideração pela confiança e pelos interesses legítimos da contraparte.
5ª A conduta da Ré traduz uma recusa absoluta, inequívoca e clara do cumprimento a que se comprometera. Ainda que assim não se entendesse, a verdade é que a violação dos deveres de diligência e boa-fé que sobre si impendiam e a lesão irremediável da confiança contratual da contraparte que despoletaram, permitem que se considere definitivamente incumprido o contrato-promessa, por perda objetiva do interesse na prestação – radicando, deste modo, na violação grave e culposa dos princípios da boa fé e da confiança a consequente existência de justa causa para a resolução do negócio. – Neste sentido, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06/10/2011, com o n.º de processo 2434/08.3TBSTS.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
6ª É típico da condição que o facto condicionante seja incerto. Por isso, se houver a certeza de que ele já não se poderá verificar no futuro, que a sua não verificação é definitiva, não terá qualquer sentido aguardar por mais tempo, e o nº 1 do artº 275º do Código Civil determina então que tal será equivalente à sua não verificação.
7ª Ora, perante este quadro factual, a ré não apenas incorreu em mora, como, ainda, em incumprimento definitivo do contrato, dessa forma se dispensando qualquer (adicional) interpelação admonitória – sendo que no que tange à recusa de cumprimento, temos como certo que na mesma se inclui não só a declaração de não querer cumprir, como, em geral, todo o comportamento do devedor suscetível de indiciar que não quer ou não pode cumprir, podendo a vontade de não cumprir resultar de uma declaração tácita, dedutível de factos concludentes -art. 217º do CC.
8ª Neste sentido pode ver-se o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 10.01.2012:
“Quando o devedor toma atitudes ou comportamentos que revelem, inequivocamente, a intenção de não cumprir a prestação a que se obrigou, porque não quer ou não pode, o credor não tem de esperar pelo vencimento da obrigação (se ainda não ocorreu), não tem de alegar e provar a perda de interesse na prestação do devedor, nem o tem de interpelar admonitoriamente, para ter por não cumprida a obrigação.”
9ª Á ré incumbia a obtenção de tal alteração e que, mesmo que encaremos a obrigação assim assumida como uma mera obrigação de meios (e não se resultado), tal circunstância sempre determinaria que se exigisse à ré que agisse com a diligência necessária à sua obtenção, respondendo pelo seu incumprimento.
10ª A conduta da ré traduz, afinal, uma recusa absoluta, inequívoca e clara do cumprimento a que se comprometera. Ainda que assim não se entendesse, a verdade é que a violação dos deveres de diligência e boa-fé que sobre si impendiam e a lesão irremediável da confiança contratual da contraparte que despoletaram, permitem que se considere definitivamente incumprido o contrato-promessa, por perda objetiva do interesse na prestação.
11ª O processo de aprovação da alteração do destino da fração ficou, desde 04/01/2023, completamente bloqueado no Município ..., não apenas por manifesta negligência, inabilidade e falta de empenho da ré, mas mesmo por recusa expressa e assumida por esta em acatar as determinações da autarquia, em conformidade com o legalmente estabelecido.
12ª As consequências legais para a resolução lícita do contrato de promessa de compra e venda em causa, por incumprimento da promitente vendedora, emerge da lei: o outro contraente tem a faculdade de exigir o dobro do que prestou (artº 442º, nº2 do CC).
13ª A prova há-de ser sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, tudo se resolvendo, afinal, na formação de juízos e raciocínios que, tendo subjacentes as ditas regras, conduzem a determinadas convicções refletidas na decisão dos pontos de facto sob avaliação. Deve ela ainda ser considerada globalmente, conjugando todos os elementos disponíveis e atendíveis (cfr. artigo 413º do CPC).
14ª Se o tribunal recorrido tivesse observado os enunciados critérios e regras, na apreciação do documento da autarquia, decretaria a resolução do contrato promessa por incumprimento definitivo da ré, pois, é evidente que esta nunca quis cumprir, sendo irrelevante a falta de interpelação do A.
15ª Neste contexto, afirmar-se que inexiste incumprimento definitivo, resulta de uma livre, mas errónea e arbitrária convicção, sem respaldo na realidade e no normal acontecer.
16ª Decretada a resolução do contrato promessa, deve a ré ser condenada a pagar o sinal em dobro, bem como, o montante a apurar em liquidação de sentença, a título de benfeitorias;
17ª Outrossim deve ser declarado o direito de retenção sobre a fração, para garantia do recebimento das referidas quantias;
18ª O Tribunal da Relação pode alterar outros pontos da matéria de facto, cuja apreciação não foi requerida, desde que essa alteração tenha por finalidade ou por efeito evitar contradição entre a factualidade que se pretendia alterar e foi alterada e outros factos dados como assentes em sede de julgamento.
19ª Independentemente da gravação dos depoimentos prestados, se o processo fornecer todos os elementos de prova que serviram de fundamento à decisão da questão de facto, o tribunal de recurso pode atender a quaisquer elementos de prova disponibilizados pelo processo, desde que imponham uma decisão diversa da impugnada. Nesta hipótese, a atuação pela Relação dos seus poderes de controlo obedece ao modelo de recurso de reponderação e de substituição, dado que se limita a reapreciar as provas produzidas em 1ª instância e, caso conclua pelo erro na sua apreciação, pode substituir a decisão impugnada por outra.
20 ª Não se compreenderia, por razões de justiça material, que o Tribunal de recurso, aquando da reapreciação e da formação do seu próprio juízo probatório sobre cada um dos pontos de facto objeto de impugnação, não pudesse interferir noutros pontos da matéria de facto cujo conteúdo se viesse a revelar afetado pelas respostas dadas àqueloutros por forma a evitar contradições.
21ª A sentença em crise, ao decidir como decidiu, fez errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 413, 615, nº 1, al. c) do CPC e 217, 275, 342, 343, 406º, 754, 762, 798, 801, 802, 808, 1273 do CC.
22ª Da correta interpretação e aplicação das referidas normas legais, resultará uma decisão materialmente justa desta causa – a que o tribunal está vinculado pelo artº 7º, nº 1 do CPC – devendo aditar-se à matéria de facto provada, os factos vertidos na 2ª conclusão supra, nos termos indicados e revogar-se e substituir-se a sentença em crise por outra, que julgue a ação totalmente procedente, assim se fazendo a habitual JUSTIÇA!»
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A Ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
O recurso foi admitido.
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1.4. Questões a decidir

Atentas as conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, constituem questões a decidir:

i) Nulidade da sentença;
ii) Erro no julgamento da matéria de facto (conclusões 1ª, 2ª, 13ª, 19ª e 20ª);
iii) Resolução do contrato-promessa com fundamento no incumprimento definitivo pela Ré do contrato-promessa por perda objetiva do interesse na prestação por parte do Autor (conclusões 3ª a 12ª);
iv) Consequências da resolução, quanto à restituição do sinal prestado em dobro;
v) Benfeitorias;
vi) Direito de retenção.
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II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto
2.1.1. Na decisão recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
«1.º) No dia 31 de maio de 2019, o Autor, como segundo outorgante, e a Ré, como primeira outorgante, celebraram um acordo escrito, nos termos do qual:
Primeira
A primeira outorgante é dona e legítima possuidora da fração autónoma designada pela letra ..., destinada a garagem, do prédio urbano sito na Praça ..., ..., ..., ..., com entrada pelo nº ... da referida rua, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº ...74.... ..., inscrito na matriz sob o artigo ...97.
Segunda
Pelo presente contrato, a primeira outorgante promete vender ao segundo outorgante, que por sua vez, promete comprar a fração autónoma identificada na cláusula anterior, livre de ónus ou encargos, pelo preço de 22.000,00€ (vinte e dois mil euros), preço que será pago da seguinte forma:
Nesta data e a título de sinal, é paga a quantia de 3.000,00€ (três mil euros), através do cheque bancário n.º ...71, sacado sobre a conta n.º ...00, do Banco 1..., de que a primeira outorgante dá desde já quitação.
A parte restante do preço, ou seja, a quantia de 19.000,00€ (dezanove mil euros), será paga no ato da escritura.
A escritura pública será marcada pela primeira outorgante, devendo notificar o segundo outorgante com a antecedência de quinze dias.
Terceira
A escritura pública será celebrada depois de a Câmara Municipal ..., deferir ou indeferir definitivamente, o projeto de alteração da fração objeto deste contrato, de garagem, para loja (comércio e serviços), apresentado pela primeira outorgante.
Fica a cargo do segundo outorgante a obtenção do certificado energético para a fração objeto deste contrato, bem como, o pagamento da escritura, IMT e IS.
Quarta
Os outorgantes subordinam o presente contrato promessa ao regime da execução específica, previsto no artigo 830.º do Código Civil.
Quinta
A primeira outorgante entregou ao segundo outorgante as chaves da fração e autoriza-o a entrar na posse da fração prometida vender, bem como, a requerer água e eletricidade.
Sexta
O presente contrato consta de duas páginas, sem rasuras, emendas ou entrelinhas, e é composto de dois exemplares, ficando um em poder de cada outorgante.
Os outorgantes agem de boa fé e prescindem do reconhecimento notarial das assinaturas.”.
2.º) Na data de assinatura do acordo, o Autor entregou à Ré a quantia de € 3.000,00.
3.º) Na data de assinatura do acordo, a Ré entregou ao Autor as chaves da fração e autorizou-o a utilizar a mesma.
4.º) Desde essa data que o Autor utiliza a referida fração.
5.º) O Autor realizou obras na fração, dividindo-a, com pladur, em hall, escritório, arquivo e armazém.
6.º) O Autor suportou os custos com os materiais necessários a tais obras.
7.º) Até à data, a Ré não agendou a escritura pública do contrato prometido, nem notificou o Autor do deferimento/indeferimento definitivo do pedido de alteração do uso da fração.
8.º) Por despacho de 26/01/2024, proferido pelo Departamento do Urbanismo do Município ..., foi indeferido definitivamente o pedido de alteração do uso da fração de garagem/estacionamento para comércio/serviços apresentado pela Ré.
9.º) A Ré foi citada para os presentes autos no dia 23/02/2024.»
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2.1.2. Factos não provados

O Tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos:
«a) O Autor despendeu a quantia de € 6.000,00 (seis mil euros) com as obras que realizou na fração em causa.
b) O autor interpelou a Ré para agendar a escritura pública do contrato prometido ou o informar do deferimento ou indeferimento do pedido de alteração do uso da fração.
c) O autor instalou na fração um estabelecimento comercial, com “reclame” e contactos telefónicos, onde publicita e vende produtos e serviços de geriatria e ortopédicos.
d) Antes da celebração do acordo escrito, a Ré tinha a fração arrendada por uma renda mensal de € 200,00 (duzentos euros).
e) Desde a entrega da fração ao Autor, a Ré suporta as respetivas despesas com administração de condomínio, no valor mensal de € 12,50 (doze euros e cinquenta cêntimos), e seguro, no valor anual de € 71,02 (setenta e um euros e dois cêntimos).»
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2.2. Do objeto do recurso
2.2.1. Nulidade da sentença
Na conclusão 21ª o Recorrente indica o artigo 615º, nº 1, al. c), do CPC como sendo uma das normas violadas pelo Tribunal recorrido.
Porém, nem nas conclusões nem na motivação do recurso indica o concreto fundamento da nulidade da sentença.
Dispõe o artigo 615º, nº 1, al. c), do CPC que é nula a sentença quando «os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível».
Quanto à contradição intrínseca, a mesma verifica-se quando os fundamentos estão em oposição com a parte decisória. Este vício é apreciado através do confronto entre os fundamentos e o dispositivo da sentença.
Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica. Se na fundamentação da sentença o julgador segue determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decide em sentido divergente, ocorre tal oposição. Trata-se de um erro lógico-discursivo nos termos do qual o juiz elegeu determinada fundamentação e seguiu um determinado raciocínio, mas decide em colisão com tais pressupostos.
Esta nulidade, enquanto vício de natureza processual, não se confunde com o erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide mal ou porque decide contrariamente aos factos apurados ou contra lei que lhe impõe uma solução jurídica diferente ou porque escolhe a norma errada para enquadrar o caso concreto. O erro de julgamento engloba o erro na qualificação (escolha da norma errada), o erro na subsunção (quando o erro se dá aquando da integração dos factos na norma aplicável) e o erro sobre a estatuição (aplicação ao caso de consequência jurídica distinta daquela que a norma aplicada define).
No que concerne à obscuridade e à ambiguidade, nas palavras de Alberto dos Reis[1], «a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido é ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe, ao certo, qual o pensamento do juiz».

Analisada a sentença, verifica-se que o dispositivo da sentença está em inteira consonância com os fundamentos aí expostos.
Também não se descortina qualquer contradição ou ambiguidade.
Termos em que improcede esta questão.
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2.2.2. Da impugnação da decisão da matéria de facto

O Autor impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância.
Pretende que se adite à factualidade assente o seguinte facto:
«O pedido apresentado pela ré, não se encontrava devidamente instruído, dado faltar:
“. documento comprovativo da titularidade das frações ... e ...;
. memoria descritiva elaborada nos termos do nº 5 do Anexo I da Portaria 113/2015, de 22 de abril;
. Acresce que o ficheiro com as pecas desenhadas necessita de índice (página inicial) e síntese das camadas (página final), conforme estipulado nas normas técnicas para entrega de pedidos de Operações urbanísticas em formato digital, que se transcrevem:
A primeira folha de qualquer ficheiro DWFx deverá ser uma folha de índice, identificando todas as páginas que compõem o ficheiro”- cfr. doc. a que se alude no nº 8 dos factos provados, proferido pelo Departamento de Urbanismo do Município ....»
 
A impugnação baseia-se exclusivamente no teor dos documentos juntos com a contestação, consistente na proposta submetida ao despacho de 26.01.2024, proferido pelo Vereador com o Pelouro do Planeamento e Ordenamento e da Gestão Urbanística do Município ..., que indeferiu definitivamente o requerimento nº ...22, de 30.11.2022, apresentado pela Autora, e a informação técnica que anteriormente incidiu sobre tal requerimento.
Como foi levada ao ponto 8º dos factos provados a decisão de indeferimento do Município ..., também se justifica que seja considerado o facto complementar relativo à fundamentação da proposta elaborada pelos serviços técnicos do Município. Só assim se fica a saber a razão de ser do decidido.
Porém, o facto tem um âmbito mais amplo do que o referido pelo Recorrente e justifica-se que seja desdobrado em dois, pois ocorreram dois atos administrativos.

Por isso, na parcial procedência da impugnação, determina-se o aditamento de dois novos pontos aos factos provados com o seguinte teor:

10º Na proposta dos serviços técnicos do Município ..., submetida ao despacho mencionado em 8º, refere-se:
«A.1. EMP01..., LDª apresentou pedido de aditamento ao alvará de loteamento titulado pelo ALVARÁ n.º ...3, sito na Quinta ..., da Freguesia ..., com o intuito de alterar o(s) LOTE(S) C7.
A.2. Em 4 de janeiro de 2023, através do ofício referenciado com o nº ...23, foi comunicado ao requerente que o pedido não reunia condições para obter parecer favorável, conforme teor da informação técnica n.º ...23, de 3 de janeiro.
A.3. Foi concedido prazo para, em sede de audiência prévia, apresentar alegações e/ou o aperfeiçoamento da proposta.
A.4. A requerente não se pronunciou durante o prazo concedido e mantêm-se os pressupostos que fundamentaram a emissão de parecer não favorável.
Proponho a toma de decisão desfavorável, com base na alínea a) do n.º 1 do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, na sua atual redação e o arquivamento do pedido.»
11º Na informação técnica nº ...23, de 3 de janeiro, referida no ponto 10º, consta:
«A.2.1. O pedido não se encontra devidamente instruído, dado faltar:
- documento comprovativo da titularidade das frações ... e ...;
- memória descritiva elaborada nos termos do n.º 5 do Anexo I da Portaria 113/2015, de 22 de abril;
A.2.2. Acresce que o ficheiro com as peças desenhadas necessita de índice (página inicial) e síntese das camadas (página final), conforme estipulado nas normas técnicas para entrega de pedidos de operações urbanísticas em formato digital, que se transcrevem:
“A primeira folha de qualquer ficheiro DWFx deverá ser uma folha de índice, identificando todas as páginas que compõem o ficheiro.
Este índice pode ser criado em qualquer programa de texto e “impresso” para DWFx usando o driver gratuito DWF Writer.
A última folha dos ficheiros DWFx, deverá conter uma lista de standards, nomeadamente a listagem de todos os nomes das camadas com as respetivas descrições.”
A.2.3. Não inclui autorização escrita dos titulares da maioria da área dos lotes constantes do alvará. Dado tratar-se de um loteamento em que o número de interessados é superior a 50, poderá ser efetuada a notificação por anúncio no Diário da República e publicação em jornal nacional ou local, bem como edital municipal e página de internet da autarquia.
(…)
A.3.2. A memória descritiva apresentada não demonstra o cumprimento do estabelecido no regulamento do PDM para o local, que permita viabilizar a ampliação proposta.
A.3.3. Acresce que, no que concerne ao estacionamento, a alteração funcional pretendida implica a criação de um lugar de estacionamento, que a proposta não contempla ou não justifica.
A.3.4. A alteração do uso das duas frações (... e ...) necessita de decisão do condomínio, pelo que deverá ser apresentado documento que ateste a respetiva anuência.
A.3.5. A planta de síntese deve ser retificada nos seguintes aspetos:
- Manter nome do requerente original (titular do alvará) na legenda (ao caso EMP02..., S.A.);
- Contemplar a alteração pretendida no lote respetivo.
A.3.6. O quadro sinótico carece das seguintes correções:
- Colocação dos dados do Lote ... na respetiva linha (evitando a criação de novo quadro anexo);
- Identificação correta do uso pretendido (aparece apenas comércio, quando se pretende comércio/serviços);
- Inserção dos valores totais nas colunas correspondentes.»
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2.2.3. Reapreciação de Direito

2.2.3.1. Incumprimento definitivo do contrato-promessa
Verifica-se que na petição inicial, depois de enunciar os elementos essenciais do contrato-promessa, a posse da coisa prometida vender e as obras que nela realizou, o Autor limitou-se a alegar nos artigos 10º a 13º da petição inicial:
«10. Sucede que até à data, a demandada, injustificadamente, nem agendou a escritura nem notificou o demandante de qualquer deferimento/indeferimento do projeto de alteração da fração, apesar de ter sido reiteradamente interpelada pelo demandante,
11.o que o impossibilita de exercer qualquer atividade comercial ou de prestar serviços.
12. Assim, ao demandante enquanto parte cumpridora, não lhe resta outra saída que não seja exigir o sinal em dobro, face ao incumprimento definitivo da demandada, e
13.subsidiariamente, peticionar a obtenção de sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso.»
Esta é a causa de pedir invocada pelo Autor e não qualquer outra.
Por conseguinte, o Autor limitou-se a alegar uma situação de incumprimento por parte da Ré, em virtude de esta não agendar a escritura relativa ao contrato definitivo e também não prestar informação sobre a decisão da autarquia quanto ao projeto de alteração da fração prometida vender.
É verdade que qualifica a situação como sendo um «incumprimento definitivo da demandada», mas dos factos alegados não se conseguia extrair tal conclusão, seja pela perda objetiva do interesse que tinha na prestação ou pelo facto de esta não ter sido realizada no prazo fixado (art. 808º, nº 1, do CCiv).
Por um lado, não alegou ter efetuado uma interpelação admonitória, isto é, que interpelou a Ré para cumprir num prazo razoável, convertendo a mora em incumprimento definitivo.
Por outro lado, do alegado não resultava a perda do interesse na prestação. Pelo contrário, do pedido de execução específica que então deduziu resultava precisamente a subsistência do seu interesse na realização do contrato definitivo.
A questão foi apreciada pelo Tribunal a quo em termos que consideramos inteiramente acertados, mas que parece não terem convencido o Autor, pelo que importa fazer um esforço argumentativo no sentido de esclarecer definitivamente a questão.
Ao credor incumbe alegar e provar os factos integrantes do incumprimento ou do cumprimento defeituoso da obrigação pelo devedor, e a este a alegação e a prova dos factos reveladores de que tal não depende de culpa sua (artigo 799º, nº 1, do CCiv).
Em conformidade com o disposto no artigo 762º, nº 1, do CCiv, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado, pelo que a não cumpre no caso contrário.
No que concerne ao contrato-promessa, estabelece o artigo 442º, nº 2, do CCiv que no caso de o constituinte do sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a quem recebeu o sinal, tem o primeiro a faculdade de lhe exigir o dobro do que prestou.
Conforme tem sido entendimento predominante, a referida perda ou restituição em dobro do sinal pressupõe o incumprimento da obrigação a título definitivo e a resolução do contrato, pelo que não se compagina com a simples mora ou atraso no cumprimento[2].
Portanto, no caso dos autos, o Autor só terá direito à restituição do sinal em dobro se for de concluir que a Ré incumpriu definitivamente o contrato-promessa e, consequentemente, que se deve operar a respetiva resolução lícita, fundamentada.
Na falta de cumprimento em sentido lato podem incluir-se, além de outras hipóteses (por exemplo, a cláusula resolutiva expressa) que ao caso não interessam, a recusa categórica de cumprir (incluindo no seu âmbito a declaração antecipada de não cumprir), a impossibilidade de cumprimento, o incumprimento definitivo derivado de termo essencial e o incumprimento oriundo da conversão da situação de mora.
Atento o fundamento invocado pelo Autor na petição inicial para a resolução do contrato, interessa-nos apenas as hipóteses de incumprimento definitivo derivado de termo essencial e de recusa aberta de cumprimento, pois não foi alegada a impossibilidade de cumprimento, a conversão da mora em incumprimento definitivo pela via da interpelação admonitória ou qualquer outra hipótese.
Sucede que não foi fixado no contrato-promessa um termo essencial.
Com efeito, de harmonia com a sua cláusula terceira, as partes acordaram no contrato-promessa em que «a escritura pública será celebrada depois de a Câmara Municipal ..., deferir ou indeferir definitivamente, o projeto de alteração da fração objeto deste contrato, de garagem, para loja (comércio e serviços), apresentado pela primeira outorgante.»
Como bem qualificou o Mmo. Juiz a quo, a obrigação de marcação da escritura ficou subordinada a uma condição suspensiva, traduzida no deferimento ou indeferimento definitivo, pelo Município ..., do pedido de alteração do uso da fração de garagem/estacionamento para comércio/serviços apresentado pela Ré.
A condição ainda não se verificava à data da propositura da ação e nem se podia considerar que a Ré estava em incumprimento quanto à obrigação que sobre si recaía de marcar a escritura de compra e venda.
Acresce que também não se demonstrou a recusa da Ré em cumprir. Aliás, o Autor não logrou sequer demonstrar que interpelou a Ré para agendar a escritura pública do contrato prometido ou o informar do deferimento ou indeferimento do pedido de alteração do uso da fração.
A este propósito, é de notar que a generalidade das conclusões formuladas pelo Autor alicerça-se numa tese factual que não tem qualquer correspondência nos factos apurados nesta ação, como sejam a «demora claramente excessiva», a «assunção pelo promitente vendedor de comportamentos evasivos», a esquiva «a qualquer contacto e respostas», etc.

Nesta conformidade, apreciada a causa de pedir tal como ela foi delineada pelo Autor na petição inicial, só se podia concluir pela improcedência da ação.

Posto isto, proposta a ação em 20.02.2024, constata-se que na contestação a Ré deu conhecimento nos autos de se ter verificado, em 16.01.2024, a condição suspensiva a que estava subordinada a obrigação de marcação da escritura pública do contrato definitivo, pois o do pedido de alteração do uso da fração de garagem para comércio/serviços apresentado pela Ré foi definitivamente indeferido pelo Município ....
Em rigor, a generalidade da argumentação apresentada pelo Recorrente alicerça-se precisamente neste último facto, supervenientemente conhecido nos autos e que não tinha sido alegado na petição inicial.
Apreciada essa fundamentação, concluímos que a mesma não conduz à procedência do recurso em matéria de direito.
Primeiro, a escritura pública do contrato definitivo continua viável. Não está sequer alegado qualquer obstáculo à celebração do contrato definitivo.
Segundo, a alteração do uso da fração não foi erigida no contrato como condição essencial para a celebração do contrato definitivo.
Terceiro, sendo certo que sobre a Ré recaí a obrigação de marcar a escritura, não se estipulou prazo para o efeito.
Quarto, o Autor não interpelou admonitoriamente a Ré. Por isso, a eventual mora da Ré não foi convertida em incumprimento definitivo, mecanismo a que o Autor podia recorrer, nos termos do artigo 808º, nº 1, do CCiv.
Quinto, não está demonstrado qualquer facto revelador de que o Recorrente perdeu interesse na prestação.
Sexto, sendo certo que a Ré não diligenciou no sentido de suprir as irregularidades do requerimento que tinha apresentado junto do Município ... com vista à alteração do uso da fração prometida vender, não foram esclarecidos os motivos por que isso aconteceu. Trata-se de matéria que não foi objeto de alegação e discussão.

Sendo assim, não se verifica um inadimplemento definitivo do contrato-promessa, pelo não pode ser decretada a sua resolução. Importa ter presente que o direito de resolução dum contrato, enquanto destruição da resolução contratual, quando não convencionado pelas partes, depende da verificação de um fundamento legal, correspondendo, nessa medida, ao exercício de um direito potestativo vinculado – artigo 432º do Código Civil. Inexistindo esse fundamento, a resolução não pode ser decretada.
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2.2.3.2. Sinal em dobro
A restituição do sinal em dobro, nos termos do artigo 442º, nº 2, do CCiv, pressupõe o incumprimento definitivo, que in casu não se verifica, e a resolução do contrato-promessa.
Inexistindo fundamento para decretar a resolução do contrato-promessa, não pode reconhecer-se ao Autor o direito de exigir o dobro do que prestou.
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2.2.3.3. Benfeitorias
Pretende o Autor que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 6.000,00, a título de benfeitorias realizadas na fração.
Demonstrou-se que o Autor está na posse da fração autónoma prometida vender desde a data da assinatura do contrato-promessa.
Com autorização da Ré, o Autor passou a utilizar a fração e realizou obras, cujos custos suportou, desconhecendo-se o seu exato valor.
Constituindo as benfeitorias «todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa» (art. 216º, nº 1, do CCiv) e sendo inequívoco que o Autor é possuidor de boa fé (art. 1260º, nº 1, do CCiv), de harmonia com o disposto no artigo 1273º, nº 1, do CCiv, terá direito a ser indemnizado das benfeitorias necessárias que haja feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na fração, desde que o possa fazer sem detrimento da fração. No caso de se poder considerar que as obras realizadas podem ser qualificadas como benfeitorias úteis e que não há lugar ao seu levantamento por forma a evitar o detrimento da fração, terá direito a ser indemnizado segundo as regras do enriquecimento sem causa (art. 1273º, nº 2, do CCiv).
Sucede que os elementos dos autos são insuficientes para poder qualificar as benfeitorias como necessárias ou úteis (art. 216º, nºs 2 e 3, do CCiv), bem como, sendo úteis, se podem ou não ser levantadas sem detrimento da fração.
Acresce que também não está demonstrado que as obras atuaram beneficamente sobre o prédio.
Além disso, o direito com base na realização de benfeitorias apenas podia ser reconhecido no caso de ser declarada a resolução do contrato-promessa, estando o Recorrente bem ciente disso como emerge da conclusão 16ª das suas alegações.
Faltando, desde logo, o referido pressuposto, improcedem as conclusões formuladas sobre esta questão.
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2.2.3.3. Direito de retenção
O Autor pediu na petição inicial que «seja declarado que o demandante t[e]m direito de retenção sobre a fração autónoma descrita no artigo 1º e seguintes da petição inicial, para garantia do pagamento do montante de € 6.000,00€, e benfeitorias, no montante de 6.000,00€, acrescido de juros legais a contar da citação e até efetivo e integral pagamento».

O direito de retenção é um direito real de garantia. Incidindo sobre coisa imóvel, o titular do direito de retenção, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor – art. 759º, nº 1, do CCiv.
O campo de aplicação do direito de retenção é definido, por um lado, por uma cláusula geral e, por outro, pela previsão de casos específicos de direito de retenção.
No artigo 755º do CCiv enumeram-se especificadamente os casos em que o credor goza do direito de retenção e um desses casos-tipo é o do «beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º» (nº 1, al. f)).

Analisado o quadro factual julgado provado, conclui-se que, por enquanto, o Recorrente não é titular de um direito de crédito exigível sobre a Recorrida, suscetível de alicerçar a invocação de direito de retenção da fração autónoma.
Por um lado, não se verifica o incumprimento definitivo do contrato-promessa por parte da Ré, nem foi declarada a resolução. Por isso, o Autor não tem o direito de exigir da Ré o pagamento da quantia de € 6.000,00, correspondente ao sinal em dobro.
É de destacar que apenas o crédito resultante do não cumprimento beneficia do direito de retenção ao abrigo do disposto no artigo 755º, nº 1, al. f), do CCiv.

Por outro lado, não foi reconhecido ao Autor qualquer crédito emergente da realização de benfeitorias.
Quanto a este pretenso crédito, estamos já no campo genérico de aplicação do direito de retenção, ou seja, as circunstâncias abstratas que a lei fixa, com recurso a uma cláusula geral, de cuja verificação depende a existência do direito de retenção.
A este propósito, dispõe o artigo 754º do CCiv que «o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.»
Desta disposição legal resulta que o direito de retenção depende da verificação dos seguintes três pressupostos:
- Detenção lícita de coisa que deva entregar a outrem;
- Crédito sobre o credor da entrega;
- Conexão causal entre o crédito do retentor e a coisa, no sentido de o crédito resultar de despesas feitas por causa da coisa detida ou de danos por ela causados (debitum cum re junctum).
Ora, o Autor detém licitamente a fração autónoma, mas não está obrigado a entregá-la à Ré. Como não está obrigado a entregar a fração à Ré nem isso lhe foi exigido, não faz qualquer sentido declarar o direito de retenção.
Depois, o Autor não é atualmente titular de qualquer crédito por benfeitorias feitas na fração autónoma, pelo que também não se verifica o terceiro pressuposto emergente da realização de benfeitorias.

Termos em que improcede igualmente esta questão.
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2.3. Sumário
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III – Decisão

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença.
Custas a suportar pelo Recorrente.
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Guimarães, 18.09.2025
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Maria Luísa Duarte Ramos
José Carlos Dias Cravo


[1] Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 151.
[2] Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra Editora, pág. 95, nota 2; João Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, 14ª edição, Almedina, págs. 98-120; Antunes Varela, Sobre o Contrato-Promessa, Coimbra Editora, pág. 150 e segs.