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INSOLVÊNCIA
APRESENTAÇÃO DO DEVEDOR
CASO JULGADO
Sumário
I. A extensão do caso julgado define-se através da tríplice identidade – de sujeitos, do pedido e da causa de pedir. II. Na insolvência desencadeada por iniciativa ou apresentação do devedor, até à prolação da decisão que declara ou não a respetiva insolvência, não há outra parte que não o próprio devedor/apresentante, pelo que, independentemente da diversidade de credores relacionados em ambas as ações, voltando o processo a ser iniciado por apresentação do devedor que se apresentou anteriormente à insolvência, verifica-se a identidade de sujeitos. III. Se no anterior processo de insolvência, como no presente processo, o requerente pretende a declaração judicial da respetiva insolvência e a concessão do benefício de exoneração do seu passivo restante, é de concluir que o requerente pretende, naquele e no presente processo de insolvência, obter o mesmo efeito jurídico, e, por conseguinte, que se verifica a identidade de pedido. IV. Considerando que três dos créditos relacionados pelo requerente na presente ação, cujo montante total incumprido corresponde a 71,65% dos créditos relacionados, já existiam por reporte ao anterior processo de insolvência, e que o ativo, então constituído por um imóvel e um veículo automóvel, é atualmente constituído pelo vencimento auferido pelo requerente e por um veículo automóvel, tal alteração do passivo e do ativo não apresenta relevância bastante para se poder concluir que estamos perante uma situação de insolvência nova e diferente da situação de insolvência anteriormente declarada, mantendo-se que o requerente se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, dada a impossibilidade de o seu ativo lhe permitir cumprir o passivo vencido; e por isso se infere que a causa de pedir invocada na presente ação procede do mesmo facto jurídico da causa de pedir do anterior processo de insolvência, e, por conseguinte, que se verifica a identidade de causa de pedir.
Texto Integral
Acordam os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães no seguinte: I. RELATÓRIO
BB, divorciado, residente na Rua ..., ..., ..., ..., apresentou-se à insolvência e requereu a exoneração do passivo restante.
Alegou, em síntese, que se encontra «a desenvolver actividade por contra própria como prestador de serviços, como Inspector de instalação de gás»; que «incapaz de honrar os seus compromissos, foi conduzido a uma situação de incumprimento. Isto apesar da ajuda financeira que o Requerente tem vindo a receber de familiares e amigos»; que «tem uma filha menor e uma filha maior» e «sempre que é possível ao Requerente, ajuda a filha maior monetariamente». «Relativamente à filha menor, foi acordado em sede de Regulações Parentais que este deve efetuar o pagamento a título de alimentos no valor de 200,00€».
Acrescenta que «[a]ctualmente, e apesar de já ter liquidado várias dívidas, ainda vê o seu salário penhorado e, por isso, a sua economia pessoal está de tal forma degradada ao ponto de não existir qualquer possibilidade de liquidar as restantes dívidas»; «socorreu-se de vários créditos bancários no passado, para fazer face às despesas que iam acumulando. Contudo, e após uma rápida análise financeira, depressa se chegou à conclusão que, neste momento, não consegue cumprir as obrigações que pontualmente se vão vencendo.».
Conclui que «se encontra impossibilitado de cumprir a generalidade das suas obrigações vencidas e vincendas, uma vez que não existe, actualmente, a possibilidade de vir a gerar novas receitas para fazer face às suas obrigações, sendo o passivo muito superior ao activo. E não obstante os esforços que tem procurado fazer para cumprir com o pagamento das suas dívidas, estas continuam a acumular-se, sendo o seu património insuficiente para fazer face ao seu passivo.».
Declarou pretender beneficiar da exoneração do passivo restante, encontrando-se nas condições legalmente exigidas para o efeito.
Indicou como principais credores, os seguintes:
1) Autoridade Tributária e Aduaneira;
2) Banco 1..., S.A., com data de entrada em incumprimento de 28.10.2009;
3) Banco 2..., C.R.L., com data de entrada em incumprimento de 03.10.2011;
4) Banco 3..., C.R.L., com data de entrada em incumprimento de 08.10.2009;
5) CC e DD, com data de entrada em incumprimento em 11.05.2017.
Notificado por despacho proferido em 15.05.2025 para juntar aos autos, além do mais, certidão do seu assento de nascimento e relação dos bens de que fosse titular, juntou a referida certidão, da qual resulta ter sido declarado insolvente, nos termos da sentença proferida em 3 de outubro de 2013, às 12.00 horas, pelo Tribunal Judicial de Peso da Régua, ... Juízo; ter sido declarado o encerramento de insolvência, em virtude de se encontrar realizado o rateio final, nos termos da decisão judicial proferida em 15 de setembro de 2015 e transitada em julgado em 3 de novembro de 2015; e ter sido decretada a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, por despacho proferido em 11 de setembro de 2018, transitado em julgado em 28 de setembro de 2018, proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real – Juízo de Competência Genérica de Peso da Régua – Juiz .... Juntou ainda relação de bens contendo uma única verba constituída pelo veículo automóvel da marca ..., com a matrícula ...BL-.., com o valor atribuído de € 3.500,00, penhorado no âmbito do processo executivo 90/25.3T8SRE.
Notificado por despacho proferido em 29.05.2025 para informar, por reporte ao processo em que foi declarado insolvente, se existem créditos novos, identificando as datas de vencimento dos créditos e respetivos montantes, declarou que, «tendo em consideração o seu historial no Banco de Portugal, não lhe são conhecidos créditos desde a data de (Ano: 2008/2009)» e, assim, «que não existem créditos novos».
Notificado por despacho proferido em 05.06.2025 «para se pronunciar quanto à eventual verificação da exceção dilatória do caso julgado (cfr. artigo 577.º, al. i), do CPC ex vi artigo 17.º, n.º 1, do CIRE), pelo facto de já ter sido declarado insolvente – no âmbito do processo n.º 612/13.2TBPRG, por sentença proferida a 03/10/2013, no âmbito do qual não lhe foi concedida a exoneração do passivo restante» –, expôs o seguinte:
«A) Notificado do despacho com a referência n.º ...83, não podemos deixar de referir que se entende que, nos autos em apreço, não se verificam os pressupostos do caso julgado entre o processo anterior e o presente. Tal como se reconhece no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra Proc. n.º 1023/24.0T8LRA.C1:
“(…) é incontroverso que a declaração de insolvência de um devedor/pessoa singular, com trânsito em julgado, não o impede de vir a ser objeto de nova declaração de insolvência, desde que, baseada numa realidade fáctica distinta, que o fizesse incorrer em novo estado de insolvência – visto este enquanto situação de insuficiência patrimonial, de incapacidade de um património pagar as suas dividas ou situação deficitária do património do devedor.
(…) O novo pedido de declaração de insolvência não pode, assim, consistir na mera repetição da ação anterior, sendo que uma causa considerar-se-á repetida quando é proposta uma outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (art. 581.º, n.º 1, CPC).” Também o Acórdão de TRC de 05.04.2022, Proc. n.º 4386/18.2T8LRA-G.C1, considera verificada a exceção de caso julgado, não servindo de fundamento a novo pedido de insolvência, se o devedor “não invoca novo passivo, mas apenas a existência e quantificação do passivo já considerado na anterior insolvência, o qual se mantém, com a impossibilidade de pagar.” Ora, a causa de pedir atual não consiste (definitivamente) na mera repetição da causa de pedir da ação anterior. Pelo que, confrontando os credores e créditos agora indicados com os credores e créditos reconhecidos no processo anterior, é possível verificar que o passivo invocado pelo Requerente não é o mesmo, bem como os Credores mencionados na P.I. atual não são os mesmos da ação anterior. Para além disso, no primeiro pedido, o aqui Requerente, não beneficiou da Exoneração do Passivo Restante o que veio agravar a sua situação financeira. Não existe por isso caso julgado, pelo que, deve o processo ser aceite e prosseguir os seus termos. B) Acresce ainda informar que, pela análise da Declaração remetida no requerimento anterior, em resposta ao despacho n.º ...41, verificou-se que existiu um lapso de escrita. Ou seja, Na Declaração consta “Que tendo em consideração o seu historial no Banco de Portugal, não lhe são concedidos créditos desde a data de (Ano: 2008/2009).” Quando na realidade deveria constar que o último crédito do Requerente teve início a 21.03.2011, o que é possível verificar através do Documento 4 da P.I. Assim, pelo exposto, REQUER-SE respeitosamente a RETIFICAÇÃO da Declaração em conformidade, sendo que, onde se lê: “Que tendo em consideração o seu historial no Banco de Portugal, não lhe são concedidos créditos desde a data de (Ano: 2008/2009)”. Deve ler-se: “Que tendo em consideração o seu historial no Banco de Portugal, não lhe são concedidos créditos desde a data de (21.03.2011)”. Roga e espera de V. Exa. Deferimento.».
Notificado por despacho proferido em 02.07.2025 para informar acerca da data de constituição do crédito da Banco 2..., informou o requerente que «[a] informação comunicada pela instituição Banco 2..., C.R.L. é de que o crédito pessoal teve início no dia 21/03/2011, tendo entrado em incumprimento no dia 03/10/2011.».
Foi junta aos autos, na data de 10.07.2025, certidão extraída dos autos de insolvência com o n.º de processo 612/13.2TBPRG, da qual emerge que BB e EE apresentaram-se à insolvência alegando que: não exercerem qualquer profissão remunerada; o requerente foi sócio gerente de uma sociedade, cuja quota cedeu em 2010; contraíram diversos financiamentos junto da banca, entre outras dívidas, tendo entrado em incumprimento das suas obrigações contratuais em junho de 2013, ascendendo o valor do seu passivo a € 221.300,00; e cujo pagamento, dada a inexistência de rendimentos e insuficiência de bens, não conseguem satisfazer, apesar do requerente ter encontrado, entretanto, trabalho no estrangeiro, não dispondo de bens ou rendimentos suficientes, sendo apenas titulares de um imóvel e de um veículo automóvel, cujo valor global ascende a € 73.885,00.
Declaram pretender a exoneração do passivo restante.
Nos referidos autos de insolvência, figuraram como credores, Banco 1..., S.A., Banco 4..., S.A., EMP01..., Banco 3..., CRL, Banco 5..., Unipessoal, Lda., EMP02... Limited e Banco 6..., S.A..
Por sentença proferida em 3 de outubro de 2013, que transitou em em julgado em 22.10.2013, foi declarada a insolvência dos requerentes.
Por despacho proferido em 16.12.2013, que transitou em julgado em 03.01.2014, foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes.
Por despacho proferido em 15.09.2015, que transitou em julgado em 06.11.2015, foi declarado encerrado o processo de insolvência, e dado início ao período de cessão.
E por despacho proferido em 11.09.2018, que transitou em julgado em 02.10.2018, foi recusada a exoneração do passivo restante dos insolventes BB e EE e, em consequência, foi determinada a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
Com data de 14.07.2025, foi proferido o seguinte despacho:
«BB, divorciado, contribuinte n.º ...78, residente na rua ..., ..., ..., apresentou-se à insolvência, com pedido de exoneração do passivo restante, alegando encontrar-se em situação de insolvência atual e ainda que se havia apresentado à insolvência em 2013, tendo a mesma sido decretada, e liminarmente admitida a exoneração do passivo restante, que veio a cessar antecipadamente, dado o incumprimento dos deveres impostos. O Tribunal ordenou junção de certidão relativa ao anterior processo de insolvência e solicitou informação sobre a data de constituição dos créditos reclamados. Foi ordenada a notificação do devedor para querendo, se pronunciar quanto a eventual situação de caso julgado, perante a informação do requerente da inexistência de créditos novos, não abrangidos pela insolvência anterior. O insolvente veio pronunciar-se, defendendo a inexistência de caso julgado, por não ter beneficiado da exoneração do passivo restante, dada a respetiva cessação antecipada e reportar-se o seu último crédito a 2011.
Vejamos.
São os seguintes os factos a considerar: 1. Por ação apresentada em juízo a 12.05.2025, neste Juízo de Comercio, BB requereu a declaração do seu estado de insolvência, com pedido de exoneração do passivo restante. 2. Na lista de credores que acompanhou a petição inicial, pelo requerente foram indicados os seguintes credores e pelos seguintes montantes: a) Autoridade Tributária e Aduaneira, um crédito no valor de € 8.444,18; b) Banco 3..., CRL, um crédito no valor de € 4.101,67, contrato datado de 07.03.2008, fundamento do crédito: cartão de crédito; incumprimento datado de 08.10.2009; c) Banco 2..., C.R.L., um crédito no valor de € 20.621,85, contrato datado de 21.03.2011, fundamento do crédito: crédito pessoal, incumprimento datado de 03.10.2011; d) Banco 1..., S.A., um crédito no valor de € 62.079,31, contrato datado de 7 de agosto 2012, fundamento do crédito: crédito renovável, incumprimento datado de 01.04.2014; e) CC e DD, um crédito no valor €25.894,98, locação financeira mobiliário, contrato datado de 28.04.2008, incumprimento datado de 28.10.2009. 3 – O Requerente declarou não possuir outros rendimentos ou bens, além do seu vencimento. 4 - O Requerente foi já declarado insolvente no âmbito do processo que correu termos no Tribunal Judicial de Peso da Régua, sob o n.º 612/13.2TBPRG, por sentença proferida a 03.10.2013, na sequência de apresentação pelo requerente e à data, a sua esposa, à insolvência. 5 – Nos referidos autos de insolvência foi igualmente apresentado pedido de exoneração do passivo restante, que foi objeto de despacho de admissão, por decisão proferida a 16.12.2013. 6- Por decisão proferida nos identificados autos de insolvência a 11.09.2018 veio a ser declarada a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, por violação das obrigações impostas. 7 – Os autos de insolvência que correram termos sob o n.º 612/13.2TBPRG, no J... de ..., foram encerrados por realização do rateio final, em 15.09.2015. 8- Nesses autos de insolvência foram reconhecidos os seguintes credores e pelos seguintes montantes: a) Banco 1..., S.A., um crédito no valor de € 165.703,88; b) Banco 6..., S.A., um crédito no valor de € 31.871,17; c) Banco 3... CRL, um crédito no valor de € 5.883,69; d) Banco 7..., CRL, um crédito no valor de € 30.353,65; e) Condomínio ..., um crédito no valor de € 1.284,74; f) Ministério Público, um crédito no valor de € 501,37; g) EMP03..., S.A., um crédito de € 2.924,76; h) Banco 5..., Instituição Financeira de Crédito, S.A., um crédito no valor de € 40.531,10; EMP04..., S.A., um crédito no valor de € 1.145,53. 9 - O fundamento da globalidade dos créditos referidos em 2 e 7 é anterior à declaração de insolvência referida em 4, datada de 03.10.2013.
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É incontroverso que a declaração de insolvência de um devedor/pessoa singular, com trânsito em julgado, não o impede de vir a ser objeto de nova declaração de insolvência, desde que, baseada numa realidade fáctica distinta, que o fizesse incorrer em novo estado de insolvência – visto este enquanto situação de insuficiência patrimonial, de incapacidade de um património pagar as suas dividas ou situação deficitária do património do devedor. Os limites do caso julgado material reportam-se à medida em que a decisão transitada em julgada possa obstar à proposição de uma nova ação sobre a mesma questão já julgada. O novo pedido de declaração de insolvência não pode, assim, consistir na mera repetição da ação anterior, sendo que uma causa considerar-se-á repetida quando é proposta uma outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (artigo 581º, nº1, CPC). O objeto da ação é definido pela providência concretamente solicitada em juízo (pedido), como, sobretudo da situação jurídica material causa de pedir (ato ou facto jurídico de que dimana o pedido), desempenhando esta a função de individualização da pretensão material. Segundo o nº2 do artigo 581º, do CPC, “há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico”. E não é pelo facto de, com o novo pedido de declaração de insolvência, ter sido indicado outro crédito, cujo fundamento é anterior à data da declaração de insolvência da qual foi sujeito o aqui requerente, em 2013, que a pretensão exercida se pode considerar distinta. Aliás é o próprio requerente que, a convite do Tribunal, reconhece expressamente não existirem créditos novos desde a declaração da última insolvência, facto que se pode comprovar pelos documentos juntos, mormente através do mapa de responsabilidades do Banco de Portugal. Com a instauração de um processo de insolvência, a pretensão do requerente, seja ele o devedor, seja um credor (ou qualquer outro sujeito a que a lei atribua legitimidade para tal), “é, invariavelmente, a obtenção de uma sentença judicial que declare a situação de insolvência e desencadeie o funcionamento dos mecanismos jurídicos adequados às necessidades especiais de tutela criadas pela situação” - cfr. Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, p. 104. O efeito jurídico visado com a propositura da ação especial de insolvência é o reconhecimento judicial da situação de insolvência em que se encontra o devedor. Tal como declara o nº1 do artigo 1º do CIRE, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores. Conforme dispõe o art. 47º do Cire são considerados créditos sobre o insolvente aqueles cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração e por ela abrangidos, independentemente de nele reconhecidos ou reclamados, tal como decorre expressamente para os efeitos da exoneração, do disposto no art. 245º n.º 1 do mesmo código. Quanto à causa de pedir, e face à alegação do requerente, a situação de insolvência do devedor é exatamente a mesma que já se configurava no mesmo processo – o passivo que determinou a declaração de insolvência do devedor coincide com o passivo indicado nos presentes autos, sendo que nos presentes autos inexiste a indicação de qualquer património a partilhar –, alega o requerente que não baseia o seu pedido exclusivamente em dívidas anteriores, mas sim ao estado em que atualmente se encontra, também devido ao facto de não ter beneficiado da exoneração do passivo restante. De tal alegação, em conjugação com os factos dados como provados, constata-se que o alegado “estado atual” do requerente, corresponde ao passivo não satisfeito no âmbito do anterior processo de insolvência (no qual viu ser recusada a concessão do benefício da exoneração do passivo restante aí por si formulado), sem que alegue ter adquirido qualquer novo bem. Quanto à alegação de que se tem vindo “a agravar a sua situação financeira”, é perfeitamente conclusiva e irrelevante para configurar um novo estado de insolvência: sendo o passivo exatamente o mesmo e não tendo adquirido qualquer outro património, o facto de, eventualmente, se encontrar em pior situação (por ex., terem aumentado as suas despesas), agravamento que também não concretiza em quaisquer factos, em nada altera o seu estado de insolvência. Como tem sido entendimento da jurisprudência, na ausência de passivo constituído posteriormente à declaração de insolvência e de aquisição de novos ativos, não pode ser formulado novo pedido de declaração de insolvência, uma vez que a situação de insolvência em que o devedor permanece foi já apreciada com força de caso julgado: “a causa de pedir do pedido de declaração de insolvência corresponde, por regra, ao concreto passivo e ativo que exista em determinado momento temporal e à impossibilidade de o ativo do devedor lhe permitir cumprir o passivo que nesse momento se encontra vencido” - cfr. a título exemplificativo Ac. da RC de 03.12.2019, in www.dgsi.pt. A tal respeito se pronunciou o Acórdão da RC de 24-01-2023, relatado por Maria Catarina Gonçalves, in www.dgsi.pt, onde se afirma que “A pretensão de ver declarada a insolvência nos presentes autos será idêntica à pretensão obtida na ação anterior se a realidade a que se reporta – balizada pelo ativo e pelo passivo existente e pela impossibilidade de esse ativo assegurar a satisfação do passivo – for a mesma, ou seja, se o passivo em questão for o mesmo que já existia à data anterior de declaração de insolvência e se nenhum outro ativo tiver acrescido àquele que existia naquele momento”. A realidade fáctica que constituiu a causa de pedir desse primeiro processo e que determinou a declaração de insolvência, manteve-se a mesma – não há qualquer alteração relevante no passivo e no ativo do devedor (o passivo aqui alegado é o passivo não satisfeito no âmbito da sua declaração de insolvência, sendo que o crédito constituído em 2011 é prévio a essa declaração e ora mencionado, sem que tenha adquirido qualquer bem desde então) –, encontrando-se abrangida pela declaração de insolvência aí decretada. Por fim, apesar do requerente invocar de que não beneficiou da exoneração, o que veio a agravar a sua situação financeira, pretendendo retirar da norma prevista no art. 238º n.º 1 al. c), a ilação de que o insolvente que não tenha beneficiado da exoneração possa, passados 10 anos, interpor novo processo de insolvência e requerer a sua exoneração, não é esse o alcance de tal normativo. Dele se retira unicamente que, em novo processo de insolvência, se o devedor não tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos últimos 10 anos, poderá neste formular pedido de exoneração do passivo restante. Ou seja, é um mero pressuposto negativo de admissibilidade do pedido de concessão do beneficio da exoneração do passivo restante. Tal norma nada nos diz sobre as condições em que um devedor pode vir a ser sujeito a novo processo de insolvência, mas, tão só, que, interposto validamente novo processo de insolvência, pode o devedor formular pedido de exoneração do passivo restante caso dele não tenha beneficiado nos 10 anos anteriores ao pedido de declaração de insolvência. Ou seja, apenas se prescreve que o devedor que haja beneficiado da concessão do beneficio da exoneração do passivo restante, fica impedido de formular novo pedido por 10 anos. Pelo exposto, nos termos do disposto no art. 27º nº1, al. a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, mostra-se verificada a excepção do caso julgado e consequentemente indefere-se liminarmente a petição inicial. Custas pelo requerente por lhes ter dado causa, sendo a taxa de justiça reduzida a um quarto (arts. 527º nº1 do Código de Processo Civil, 301º e 302º nº1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa). Notifique.».
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Não se conformando com o assim decidido, o requerente interpôs o presente recurso concluindo as suas alegações nos seguintes termos (que aqui se reproduzem ipsis verbis, com exceção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redação):
«A- Vem o presente recurso ser interposto devido a Sentença datada de 15/07/2025, proferida nos autos suprarreferidos, que indeferiu liminarmente a Insolvência Pessoal Singular formulada pelo Requerente/Recorrente, por verificação da excepção dilatória caso julgado. B- Porém, as condições financeiras do Recorrente continuaram a piorar, aumentando os valores das dívidas existentes, surgindo novas dívidas e surgindo, não só, um processo executivo que levou a uma penhora de salário, mas também uma Regulação das Responsabilidades Parentais que resultou em novo compromisso de pagamento de pensão de alimentos a menor. C- O segundo pedido de insolvência é interposto no Tribunal do Comércio de Vila Real, cumprindo todos os preceitos legais elencados no CIRE. D- O Recorrente/Requerente não beneficiou da exoneração do passivo restante nos dez anos anteriores à data do início do processo de insolvência, E- O Requerente/Recorrente não foi condenado, por sentença transitada em julgado, por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal, nos dez anos anteriores à data de entrada em juízo do pedido de declaração de insolvência, F- O Requerente/Recorrente não tem contabilidade organizada, conforme o artigo 24º, nº 1, f) do CIRE. G- Todavia, apesar de preencher os requisitos legais previstos por lei, o tribunal a quo considerou, por Sentença, existir a excepção de caso julgado. H- Sentença da qual se discorda. I- Pois, analisando pormenorizadamente o incidente jurídico do caso julgado entre os dois processos em causa, não se pode nunca concluir a identidade de sujeitos, a identidade de pedidos e a identidade causa de pedir. J- Aliás, o Requerente não baseia o seu pedido exclusivamente em dívidas anteriores ao processo de insolvência, mas sim, no seu estado – actual – devido a não ter beneficiado da exoneração do passivo restante e ao agravar da sua situação financeira. K- E embora não diga directamente respeito à questão do caso julgado, afigura-se incongruente, face à lei em vigor, vedar ao insolvente o pedido de exoneração do passivo restante, quando, caso tivesse beneficiado da exoneração, poderia voltar a formular esse pedido ao fim de dez anos, como decorre da al. c) do nº1 do art. 128º do CIRE. L- Não existe por isso caso julgado pelo que, deve o processo ser aceite e prosseguir os seus termos.
O Recorrente beneficia de Apoio Judiciário. Nestes termos e nos demais de Direito, sempre com o douto suprimento de V. Exa., deve o presente recurso judicial ser julgado procedente, por provado e, em consequência, o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que admita o Pedido de Apresentação à Insolvência apresentada pelo Recorrente. Fará V. Exa. serena, sã e objetiva Justiça. Como é de Direito e de Justiça.».
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1ª parte e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC) – sendo que o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de apreciar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, cumpre ao Tribunal ad quem apreciar a questão de saber se o Tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação do art.º 27.º, n.º 1, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), inexistindo fundamento legal para se indeferir liminarmente o pedido de declaração de insolvência formulado pelo requerente (nomeadamente, por a tanto não obstar o reconhecimento judicial da sua insolvência, e a recusa do benefício de exoneração do passivo restante, em sede de prévio processo de insolvência a que se apresentou).
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O factualismo a considerar para decisão do recurso é o que dimana do antecedente relatório.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
O Tribunal a quo julgou verificada a exceção de caso julgado e, consequentemente, indeferiu liminarmente a petição inicial, em síntese e além do mais, porque «[a] realidade fáctica que constituiu a causa de pedir desse primeiro processo e que determinou a declaração de insolvência, manteve-se a mesma – não há qualquer alteração relevante no passivo e no ativo do devedor (o passivo aqui alegado é o passivo não satisfeito no âmbito da sua declaração de insolvência, sendo que o crédito constituído em 2011 é prévio a essa declaração e ora mencionado, sem que tenha adquirido qualquer bem desde então) –, encontrando-se abrangida pela declaração de insolvência aí decretada.».
O recorrente insurge-se contra o assim decidido com o argumento de que as suas condições financeiras «continuaram a piorar, aumentando os valores das dívidas existentes, surgindo novas dívidas e surgindo, não só, um processo executivo que levou a uma penhora de salário, mas também uma Regulação das Responsabilidades Parentais que resultou em novo compromisso de pagamento de pensão de alimentos a menor»; que «analisando pormenorizadamente o incidente jurídico do caso julgado entre os dois processos em causa, não se pode nunca concluir a identidade de sujeitos, a identidade de pedidos e a identidade causa de pedir», «[a]liás, o Requerente não baseia o seu pedido exclusivamente em dívidas anteriores ao processo de insolvência, mas sim, no seu estado – actual – devido a não ter beneficiado da exoneração do passivo restante e ao agravar da sua situação financeira.».
Atentemos.
Uma decisão considera-se transitada em julgado, nos termos do artigo 628.º do CPC, “logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação”.
Transitada em julgado, a decisão judicial fica a ter força obrigatória, nos termos dos artigos 619.º, n.º 1 e 620.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, dentro do processo e fora dele, se estiver em causa uma sentença ou despacho saneador que decida do mérito da causa (caso julgado material), ou apenas dentro do processo, se estiver em causa uma sentença ou despacho saneador que recaia apenas sobre a relação processual (caso julgado formal).
Como vem sendo salientado quer pela doutrina[1] quer pela jurisprudência[2], o caso julgado material implica dois efeitos – um negativo e outro positivo – distinguindo-se, em face deles, a exceção de caso julgado e a autoridade de caso jugado.
Miguel Teixeira de Sousa[3] sintetiza a diferença que ocorre entre elas do seguinte modo: «[a] excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a exceção de caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objeto duas vezes de maneira diferente (…), mas também a inviabilidade do tribunal decidir sobre o mesmo objeto duas vezes de maneira idêntica (…). Consequentemente, a excepção de caso julgado tem por fim obstar que o órgão jurisdicional da acção subsequente seja colocado perante a situação de contradizer ou de repetir a decisão transitada (…)»
Acrescenta o mesmo autor[4] que, «[q]uando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspeto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de ação ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjetiva, à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente (…)».
Pode assim extrair-se de tais ensinamentos que a exceção de caso julgado se destina a evitar uma nova decisão inútil (a que subjazem, pois, razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova ação, pressupondo uma total identidade (quer subjetiva quer objetiva) entre ambas as causas. Já a autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, que se insere, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença (relevando então primacialmente razões de certeza ou segurança jurídica)[5].
A exceção de caso julgado constitui um pressuposto processual de índole negativa e, por conseguinte, uma exceção dilatória, que conduz à absolvição da instância (cf. artigos 278.º, n.º 1, al. e) e 577.º, al. i), ambos do CPC).
A propósito, salienta Miguel Teixeira de Sousa[6], que, «[c]oerentemente com a dupla proibição de contradição e de repetição, o tribunal da acção posterior deve abster-se de qualquer pronúncia sobre o mérito. Ou seja, a excepção de caso julgado constitui, tal como a litispendência, um pressuposto processual negativo e, portanto, uma excepção dilatória (…). A função da excepção de caso julgado é tanto a de proibir que o tribunal da segunda acção, dada a sua vinculação ao caso julgado da decisão transitada, profira uma decisão contraditória com a anterior, como a de obviar que esse órgão seja obrigado, numa situação de identidade de causas, a repetir a decisão transitada. A abstenção de pronúncia de qualquer decisão sobre o mérito é, por isso, a única coerente com a dupla função da excepção de caso julgado.».
Como decorre do exposto, a exceção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, e a causa repete-se, “quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir” (cf. art.º 581.º, n.º 1, do CPC).
É através desta tríplice identidade – de sujeitos, do pedido e da causa de pedir – que se define a extensão do caso julgado.
Desde logo, há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
Na insolvência desencadeada por iniciativa ou apresentação do devedor, até à prolação da decisão que declara ou não a respetiva insolvência, não há outra parte que não o próprio devedor/apresentante[7].
Precisa-se, no acórdão da Relação de Coimbra de 24.01.2023[8], relativamente a esta matéria, que «o processo de insolvência – nos termos em que está legalmente configurado – inicia-se com uma fase (a que poderemos chamar declarativa) que se destina a verificar se existe situação de insolvência e a declarar (ou não) tal insolvência e durante a qual o processo se desenrola apenas entre o devedor e o credor requerente ou apenas com a intervenção do devedor quando é este que se apresenta à insolvência – cfr. artigos 27º a 35º – e, se terminar com uma sentença que indefira o pedido de declaração de insolvência, não haverá intervenção de outros credores. Assim, independentemente da qualificação da posição jurídica dos credores que virão a ter intervenção na fase processual posterior à declaração de insolvência – em que o processo se assume como execução universal com intervenção dos credores da insolvência –, a verdade é que esses credores não são partes na fase inicial do processo, com ressalva, naturalmente, daqueles que, nessa qualidade, tenham requerido a declaração de insolvência do devedor.».
Destarte, independentemente da diversidade de credores relacionados em ambas as ações, voltando o processo a ser iniciado por apresentação do devedor que se apresentou anteriormente à insolvência, verifica-se a identidade de sujeitos.
Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico, e há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico (cf. art.º 581.º, n.ºs 2, 3 e 4 do CPC).
Como observa o Professor Alberto dos Reis[9], «[q]uando se diz que a causa de pedir é o acto ou facto jurídico de que emerge o direito que o autor se propõe fazer valer, tem-se em vista, não o facto jurídico abstracto, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico concreto, cujos contornos se enquadram na configuração legal.».
Na ação de insolvência, escreve-se no acórdão desta Relação de 03.03.2022[10] que «a causa de pedir é constituída pela facticidade essencial ou nucelar que integra a previsão da norma do ar. 3º do CIRE (que contém a noção base de insolvência) ou pelos factos essenciais que integram um dos factos índices de insolvência previstos numa das alíneas do n.º 1 do art. 20º» do CIRE.
Na mesma linha de entendimento, escreve-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.07.2025[11] que, «[r]elativamente ao pressuposto da identidade da causa de pedir, para melhor contextualização cumpre fazer referência à definição da situação de insolvência. Ao que aqui releva (pedido de insolvência de pessoa singular), o art. 3º, nº 1 do CIRE define-a como a impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas por falta de liquidez para as satisfazer. Ser devedor insolvente significa ser incapaz de cumprir pontualmente as suas obrigações vencidas por não dispor de rendimentos ou de outros recursos monetários próprios e suficientes e/ou acesso a crédito que lho permita. Assim sendo, ao pedido de declaração da insolvência corresponde uma causa de pedir (mais ou menos) complexa, formada por um conjunto de factos – os atinentes com a existência de obrigações vencidas e não cumpridas, e os atinentes com a impossibilidade de cumprimento das mesmas.».
No caso vertente, verifica-se que o requerente foi declarado insolvente por sentença proferida em 3 de outubro de 2013, transitada em julgado em 22.10.2013.
Apresentou pedido de exoneração do seu passivo restante, que foi objeto de despacho de admissão, por decisão proferida a 16.12.2013, vindo a ser declarada a cessação antecipada do procedimento, por decisão proferida a 11.09.2018, por violação das obrigações impostas.
Na presente ação, apresentada em juízo a 12.05.2025, o requerente pretende ver novamente declarado o seu estado de insolvência e concedida a exoneração do seu passivo restante.
Considerando, como supradito, que na insolvência desencadeada por iniciativa ou apresentação do devedor, até à prolação da decisão que declara ou não a respetiva insolvência, não há outra parte que não o próprio devedor/apresentante, voltando o processo a ser iniciado por apresentação do devedor que se apresentou anteriormente à insolvência, verifica-se a identidade de sujeitos, independentemente da diversidade de credores relacionados em ambas as ações.
Quer no anterior processo de insolvência quer no presente, o requerente pretende a declaração judicial da respetiva insolvência e a concessão do benefício de exoneração do seu passivo restante, pelo que naquele e no presente processo de insolvência, pretende o requerente obter o mesmo efeito jurídico, e, por conseguinte, verifica-se igualmente a identidade de pedidos
Resta-nos, então, apurar se a causa de pedir invocada na presente ação – a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas alegada como causa de pedir do novo pedido de insolvência – procede, ou não, do mesmo facto jurídico da causa de pedir do anterior processo de insolvência – ou, em outras palavras, se é, ou não, a mesma que já se verificava no anterior processo.
Do cotejo dos credores indicados em cada um dos processos, constata-se que quatro dos credores indicados na presente ação, – Autoridade Tributária e Aduaneira, Banco 2..., C.R.L., CC e DD –, não figuravam como credores no anterior processo de insolvência.
Não obstante, verifica-se que o crédito titulado por Banco 2..., C.R.L. entrou em incumprimento na data de 03.10.2011, ou seja, em momento anterior à declaração de insolvência datada de 03.10.2013.
Constata-se, assim, que créditos relacionados pelo requerente na presente ação já existiam por reporte ao anterior processo de insolvência, créditos esses que perfazem 71,65379238032989% do total dos créditos aqui relacionados, acrescendo ainda novos créditos, que perfazem 28.34620761967011% do total de todos os créditos relacionados.
O ativo, que era constituído, à data, por um imóvel e um veículo automóvel, é atualmente constituído apenas pelo vencimento auferido pelo requerente e por um veículo automóvel que se encontra penhorado no âmbito de um processo executivo.
A alteração verificada no passivo e no ativo não apresenta, no entanto, relevância bastante para se poder concluir que estamos perante uma situação de insolvência nova e diferente da situação de insolvência anteriormente declarada, por se reportar a um passivo e ativo que divergem, em termos relevantes, daqueles que existiam aquando daquela declaração de insolvência, mantendo-se, por conseguinte, que o requerente se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, dada a impossibilidade de o seu ativo lhe permitir cumprir o passivo vencido.
A alegação do requerente no sentido de ter «acordado em sede de Regulações Parentais que este deve efetuar o pagamento a título de alimentos no valor de 200,00€» e de ver o seu salário penhorado, em nada contende com a existência e quantificação do passivo, que, no essencial, se mantém o mesmo, pese embora agravado pelo decurso do tempo, mas apenas com a impossibilidade de o pagar.
Ora, sendo a causa de pedir do processo de insolvência constituída pela impossibilidade de cumprimento pelo devedor do passivo que já se encontrava vencido, na sua quase totalidade, quando o requerente foi declarado insolvente em 3.10.2013, não podemos deixar de concluir que a causa de pedir invocada na presente ação procede do mesmo facto jurídico que constituiu a causa de pedir do anterior processo de insolvência.
Com efeito, a impossibilidade de cumprimento das dívidas vencidas que na altura motivou a sua insolvência manteve-se depois do encerramento do processo em que foi declarada, porquanto, esgotado o produto do património penhorável de que o requerente era titular e que ali foi apreendido e liquidado, manteve a situação de ausência de meios líquidos para satisfazer parte do passivo que determinou a situação de insolvência que foi declarada em 2013 e que não foi pago pelo produto daquele património, persistindo, assim, tal situação de insolvência.
Como se escreve no sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.10.2021[12], «II) A causa de pedido do processo de insolvência é constituída pela impossibilidade de cumprimento pelo devedor das obrigações vencidas que, concretamente, tenha sido alegada. III) Decretada a insolvência do devedor num determinado processo por si impulsionado, a existência de uma nova causa de pedido necessária à instauração pelo mesmo devedor de um segundo processo de insolvência não se basta com a mera invocação de novas dívidas. IV) Para se poder falar de uma nova causa de pedido é necessário que o devedor tivesse conseguido por alguma forma eliminar o passivo cuja impossibilidade de satisfação serviu de razão à anterior declaração de insolvência. V) Persistindo esse passivo e a impossibilidade de sua satisfação, mantém-se necessariamente a situação de insolvência anteriormente declarada, de nada importando que ela se tenha agravado com o vencimento de novas obrigações ou que o ativo do devedor se tenha modificado para mais.»[13].
O facto de acrescer ao ativo o vencimento auferido pelo requerente – a par da existência de novo passivo – não é, só por si, suficiente para se poder falar de uma nova de causa de pedir.
Neste sentido, refere-se na fundamentação do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.01.2023[14] que «a pretensão de ver declarada a insolvência será idêntica à pretensão já obtida na acção anterior se o passivo existente for o mesmo que já existia à data da anterior declaração de insolvência e se nenhum outro activo tiver acrescido àquele que existia naquele momento. Isso não significa, porém, que qualquer acréscimo de activo ou qualquer alteração do passivo deva conduzir necessariamente à conclusão de que estão em causa pretensões diferentes; importará ainda saber, nesse caso, se a alteração existente tem ou não a relevância bastante para concluir que está em causa uma realidade de facto diferente daquela que ocorria aquando do primeiro processo que configure uma situação de insolvência distinta e que, como tal, possa justificar e conferir alguma utilidade a uma nova declaração de insolvência. Ou seja, para que se possa concluir pela existência de uma nova e diferente situação de insolvência será necessário que a impossibilidade (agora existente) de satisfazer o passivo vencido seja uma realidade diferente daquela que existia aquando do primeiro processo por se reportar a um passivo e a um activo que, não obstante possam ser parcialmente coincidentes com os que existiam anteriormente, apresentam alterações com relevância bastante para concluir que não estamos perante um mero prolongamento ou agravamento da situação de insolvência que já foi declarada, mas sim perante uma situação de insolvência nova e diferente por se reportar a passivo e activo que divergem, em termos relevantes, daqueles que existiam aquando da primeira declaração de insolvência.
(…) A existência de novo passivo – que veio acrescer ao anterior e cujo valor nem sequer é significativo no contexto global do passivo que já existia – não tem relevância e aptidão para conferir à actual impossibilidade de satisfação do passivo um qualquer carácter de novidade e diferença relativamente à impossibilidade que existia e que fundamentou a primeira declaração de insolvência. A impossibilidade de satisfação das obrigações vencidas e a consequente situação de insolvência que existia naquela data mantém-se e perdura actualmente e o mais que se pode dizer é que essa impossibilidade se agravou. Não está em causa, portanto, uma realidade de facto diferente daquela que ocorria aquando do primeiro processo que configure uma situação de insolvência distinta e que, como tal, possa justificar e conferir alguma utilidade a uma nova declaração de insolvência; a situação de insolvência que é agora invocada pelo Requerente – traduzida na impossibilidade de satisfação das obrigações vencidas, tendo como referência o concreto passivo e activo actualmente existentes – é a mesma que existia aquando da primeira declaração de insolvência e é um mero prolongamento desta.».
Na mesma linha de entendimento, o acórdão da Relação de Évora de 25.10.2024[15], de cujo sumário consta que «[v]erificar-se-á uma situação de identidade de causas de pedir se, em processos de insolvência distintos, a situação de impossibilidade de cumprimento das dívidas vencidas pelo devedor for a mesma, ainda que o valor e a composição do passivo e do activo (quando haja) apresente alguma diferença» e que «[e]staremos perante causas de pedir distintas se a situação de impossibilidade de o devedor cumprir, em determinado momento, as suas obrigações vencidas, se configure como distinta de uma situação de impossibilidade de cumprimento anterior e não como um mero prolongamento desta.».
Conclui-se, assim, que se repete, na presente ação, o anterior processo de insolvência, com a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir, verificando-se, assim, a exceção de caso julgado, insuprível e de conhecimento oficioso, que impede a apreciação do novo pedido de declaração de insolvência do mesmo devedor, por força do efeito negativo do caso julgado, e conduz à absolvição do réu da instância (ou ao indeferimento, havendo despacho liminar), à luz do disposto nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. i), 578.º e 278.º, n.º 1, al. e), todos do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 17.º do CIRE.
Por conseguinte, nenhum reparo nos merece a decisão do Tribunal a quo de indeferimento liminar da petição de insolvência, ao abrigo do disposto no artigo 27.º, n.º 1, al. a), do CIRE.
Indeferido o pedido de declaração de insolvência, não pode ser apreciado o pedido de exoneração do passivo restante que dele depende, uma vez que do indeferimento do pedido de insolvência resulta o não prosseguimento do processo de insolvência[16].
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V. DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
*
Custas do presente recurso a cargo do recorrente, que no mesmo ficou vencido (cf. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC), sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Notifique.
Guimarães, 25 de setembro de 2025
Susana Raquel Sousa Pereira – Relatora
Maria João Marques Pinto de Matos – 1ª Adjunta
Pedro Maurício – 2º Adjunto
[1] Vide, entre outros, JOÃO DE CASTRO MENDES, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, pp. 38-39; MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 572 e JOSÉ LEBRE DE FEREITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, 2.º volume, Almedina, 3.ª edição, 2017, pp. 599-600. [2]Vide, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30.03.2017 (processo n.º 1375/06.3TBSTR.E1.S1), de 28.03.2019 (processo n.º 6659/08.3TBCSC.L1.S1), de 09.4.2019 (processo n.º 4148/16.1T8BRG.G1.S1), de 04.07.2019 (processo n.º 252/14.9T8GRD-G.C1.S1) e de 24.10.2019 (processo n.º 5629/17.5T8GMR.G1.S2). [3] «O objecto da sentença e o caso julgado material (o Estudo sobre a Funcionalidade Processual)», BMJ n.º 325 – abril – 1983, pp. 176. [4] Trabalho citado, p. 179. [5] Vd. o acórdão da Relação de Coimbra de 28.09.2010 (processo n.º 392/09.6TBCVL.C1). [6]Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª Edição, Lex, Lisboa 1997, p. 575. [7] Vd., entre outros, o acórdão da Relação de Coimbra de 26.10.2021 (processo n.º 3009/21.7T8CBR.C1). [8] Processo n.º 3245/22.9T8LRA-A.C1. [9]Código Civil anotado, Volume III, 4.ª edição – reimpressão, Coimbra Editora, LIM., Coimbra 1985, p. 123. [10] Processo n.º 3546/21.3T8VCT.G1.G1. [11] Processo n.º 3195/25.7T8LSB.L1-1. [12] Processo n.º 3009/21.7T8CBR.C1. [13] Posição partilhada no acórdão da mesma Relação de 23.11.2021 (processo n.º 2926/21.9T8VIS.C1). [14] Processo n.º 3245/22.9T8LRA-A.C1. [15] Processo n.º 74/24.9T8LGA.E1. [16] Vd., entre outros, os acórdãos da Relação de Coimbra de 23.11.2021 (processo n.º 2926/21.9T8VIS.C1) e da Relação do Porto de 10.07.2025 (processo n.º 3638/24.7T8STS.P1).