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CONTRATO DE EMPREITADA
REGULAMENTO ROMA I
RESOLUÇÃO ILÍCITA
DESISTÊNCIA
CONDENAÇÃO GENÉRICA
Sumário
(i) A impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face a esta, pelo que o seu conhecimento deve ser rejeitado quando os factos objeto de impugnação não forem suscetíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual inútil. (ii) O contrato de empreitada para a construção de edifício, em que o dono da obra é de nacionalidade espanhola e o empreiteiro é uma sociedade comercial de direito português, rege-se, na falta de convenção em contrário, pela lei do país onde a obra é realizada (no caso, em Espanha), por ser esse o local onde é executada a prestação característica do contrato, conforme resulta do disposto no art. 4.º/3 do Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Regulamento Roma I). (iii) A resolução unilateral do contrato pelo dono da obra, sem que se verificasse um incumprimento definitivo imputável ao empreiteiro, configura uma desistência do contrato de empreitada, figura que é reconhecida no art. 1594 do Código Civil Espanhol em termos que não apresentam diferença de tomo com os do art. 1229 do Código Civil Português. (iv) Em qualquer um dos dois ordenamentos jurídicos, a desistência do dono da obra é um direito potestativo que não depende de causa e constitui-o na obrigação de indemnizar o empreiteiro pelos gastos, trabalhos realizados e pelo proveito que este deixou de ter. (v) Sem prejuízo, tendo a desistência eficácia ex nunc, um eventual direito do dono da obra à restituição do preço adiantadamente pago ao empreiteiro, na parte em que o mesmo exceder o valor das despesas e dos trabalhos realizados, tem de ser enquadrado no instituto do enriquecimento sem causa – mais concretamente, na conditio ob causam finitam. (vi) Deste modo, a condenação, ainda que genérica, do empreiteiro na obrigação de restituir apenas é admissível quando tenha ficado demonstrado um enriquecimento da sua parte, por o valor da prestação que recebeu adiantadamente do dono da obra ser inferior ao valor do trabalho e dos materiais que incorporou na obra.
Texto Integral
I.
1). AA e BB intentaram a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra EMP01..., Lda., pedindo que, na procedência:
Seja declarado válida e eficazmente resolvido o contrato de empreitada celebrado entre as partes;
Seja a Ré condenada no pagamento aos Autores da quantia de € 40 000,00 ou, assim não se entendendo, da quantia de € 35 534,14, acrescida de juros de mora, desde a resolução contratual e até efetivo e integral pagamento;
Seja a Ré condenada no pagamento de quantia não inferior a € 5 000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
Alegaram, em síntese, que: celebraram com a Ré, em 3 de fevereiro de 2020, um contrato pelo qual esta se obrigou a proceder à construção de uma casa modular de 110 m2 em estrutura de madeira, designada Gama Premium, num prédio dos Autores, tendo como contrapartida o pagamento de um preço fixado em € 105 000,00; a Ré obrigou-se a iniciar a obra logo que fosse aprovado o competente licenciamento e emitido o respetivo alvará e a concluí-la num prazo de 12 meses; os Autores obrigaram-se a pagar o preço de forma escalonada; tendo o alvará sido emitido em agosto de 2020, a Ré deu início aos trabalhos por alturas de setembro / outubro desse ano; acontece que a Ré não concluiu a obra nos 12 meses subsequentes, tendo mesmo comunicado aos Autores que não a iria concluir; nessa ocasião, os Autores já tinham feito pagamentos que totalizavam € 70 000,00, valor superior ao dos trabalhos realizados, que não excede € 30 000,00; para a reparação dos trabalhos mal executados pela Ré e para a conclusão daqueles que estão em falta, os Autores terão de despender um total de € 35 534,14; perante a recusa da Ré em concluir a obra, os Autores comunicaram-lhe a resolução do contrato; têm sofrido ansiedade, angústia e tristeza em virtude do atraso na conclusão da obra, vendo-se impedidos de usar, fruir e desfrutar de uma casa que há muito ambicionavam.
A Ré contestou dizendo, também em síntese, que: em resultado da pandemia por Covid-19 e das medidas de controlo e contenção adotadas, teve de enfrentar confinamentos e limitações de deslocações transfronteiriças; teve inclusive de encerrar as suas instalações por existirem casos de infeção entre os seus trabalhadores; naquele período faltaram matérias-primas, o que implicou o aumento dos respetivos preços; tentou junto dos Autores uma solução equitativa para ambas as partes, explicando as vicissitudes referidas, o que estes sempre recusaram; foram os Autores que impediram a entrada dos trabalhadores da Ré na obra para darem continuidade aos trabalhos; nesse momento, a obra encontrava-se pronta quanto à estrutura, coincidindo com o mapa de pagamentos previsto, tal como os trabalhos de eletricidade e pichelaria, pelo que o valor pago corresponde aos trabalhos efetivamente executados; não se verificou incumprimento da sua parte; de qualquer modo, a ter existido, ele apenas poderia considerar-se como definitivo depois de lhe ter sido concedido um prazo razoável para a conclusão da obra, nos termos do art. 808 do Código Civil, o que não sucedeu; a exigência dos Autores de construção de uma nova casa de banho, não contemplada no projeto inicial, levou que fosse efetuada uma nova parede, mais duas portas e as correspondentes instalações elétricas e de pichelaria, o que teve um custo de € 6 000,00, cujo pagamento lhe é devido; por ter sido impedida de voltar à obra, deixou no local materiais no valor de € 4 503,00.
Ademais da improcedência da ação pediu, em sede de reconvenção, (i) a resolução do contrato, por aplicação do disposto no art. 437/1 do Código Civil, (ii) a condenação dos Autores no pagamento da quantia de € 6 000,00 e (iii) a condenação dos Autores a entregarem os materiais de construção que ficaram no local ou a pagarem o valor dos mesmos.
Não foi apresentada réplica.
Realizou-se audiência prévia, na qual foi proferido despacho a: admitir liminarmente a reconvenção; fixar o valor processual em € 45 000,00; afirmar tabularmente verificados os pressupostos processuais; identificar os termos do litígio [“verificação dos pressupostos da responsabilidade civil contratual da ré pelo pagamento aos Autores, das quantias peticionadas”]; e enunciar os temas da prova [“- Da celebração, entre a Autora e Ré do contrato alegado na petição inicial, data, termos e forma do mesmo, e das obrigações decorrentes desse contrato para cada uma das partes contratantes; - Incumprimento, pelo Réu, das obrigações decorrentes do contrato alegado na p.i por que forma e em que data(s); - Abandono da obra pela ré; - Danos não patrimoniais sofridos e respetivo quantum indemnizatório; - Da alteração das circunstâncias decorrentes da pandemia da Covid19 e da invasão da Ucrânia pela Federação Russa e suas consequências no cumprimento pela ré das obrigações decorrentes do contrato de empreitada; - Da execução pela Ré, de trabalhos não previstos no contrato inicial e respetivos valores.”].
Realizou-se a audiência final e, após o seu encerramento, foi proferida sentença, datada de 18 de abril de 2025, a julgar: (1.) a ação parcialmente procedente e condenar a Ré a pagar aos Autores “o montante correspondente ao valor pago e que exceda o valor da obra realizada pela Ré, até ao limite de € 40 000,00€ peticionado, relegando-se a sua quantificação para posterior liquidação de sentença, acrescido de juros de mora desde liquidação até pagamento integral e efetivo”, absolvendo-a do demais peticionado; (2.) julgar a reconvenção parcialmente procedente, condenando os Autores (Reconvindos) a (2.1.) pagarem à Ré “o montante correspondente aos custos da alteração do projeto para incluir mais uma casa de banho, da construção de mais duas paredes, instalações elétricas e dos trabalhos de pichelaria extra, até ao montante de € 6 000,00€ peticionado, relegando-se a sua quantificação para posterior liquidação de sentença”, e a restituírem à Ré os materiais descritos no ponto 20. da fundamentação de facto ou a “procederem ao pagamento correspondente de € 4 503,00”, absolvendo-os do demais peticionado.
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2). Inconformada com o decidido quanto à ação, a Ré (daqui em diante, Recorrente), interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):
“1ª-) O presente recurso versa sobre matéria de direito e de facto, visando, nesta parte, a reapreciação da prova gravada, de acordo com o disposto no artigo 638º, n. os 1 e 7 do C.P.C.
2ª-) A Recorrente considera que o Tribunal a quo julgou incorretamente os factos constantes dos pontos 11, 16 e 18 do elenco dos factos provados com relevância para a decisão da causa.
3ª-) Começando pelo ponto 11 dos factos provados, entende a aqui Recorrente verificar-se uma fundamentação insuficiente por parte do Tribunal a quo.
4ª-) Isto porque, embora seja verdade que a Recorrente, por não ter conseguido contratar uma empresa que procedesse à colocação de capoto, sugeriu aos Recorridos que contratassem diretamente outra empresa para efetuar esse trabalho,
5ª-) Não resultou provado que esse trabalho tenha sido contratado à empresa “EMP02..., S.L.”, nem tampouco que tenha custado aos Recorridos o valor de € 5 005,00.
6ª-) Desde logo, nenhuma das testemunhas arroladas pelos Recorridos falou sobre os trabalhos de colocação do capoto, nomeadamente sobre que empresa que foi contratada para o efeito e sobre o valor que os Recorridos pagaram pela prestação desse serviço.
7ª-) Além disso, não foi junta qualquer fatura ou comprovativo de pagamento que ateste que esse foi o preço efetivamente pago por esse serviço.
8ª-) Na verdade, os Recorridos apenas carrearam para os autos um orçamento da referida empresa onde conta que o valor estimado para a colocação de “175,00 m2 de pasta e rede para revestimento de sate com pintura acrílica branca, remate das janelas, etc” seria, à data, de € 4 550,00 + IVA, perfazendo a quantia global de € 5 005,00, o qual foi de resto frontalmente impugnado pela aqui Recorrente.
9ª-) Sucede que, um orçamento é por natureza um documento provisório, não podendo servir de base, sem mais, a um cálculo com custo final de uma obra ou serviço.
10ª-) Note-se, aliás, que a descrição do trabalho alegadamente efetuado - “175,00 m2 de pasta e rede para revestimento de sate com pintura acrílica branca, remate das janelas, etc” – nem sequer corresponde, pelo menos não de forma clara, aos trabalhos de colocação de capoto no telhado supostamente executados por essa terceira empresa.
11ª-) Assim, entende a Recorrente que não existe qualquer prova testemunhal e/ou documental que sustente tal facto, motivo pelo qual o Tribunal a quo deveria ter julgado o facto constante do ponto 11 como não provado.
12ª-) No que respeita ao ponto 16 dos factos provados, salvo melhor e douto entendimento de V. Exas., não ficou provado que os materiais/serviços constantes dos orçamentos juntos pelos aqui Recorridos (cf. doc. n.º 8 junto com a petição inicial) fossem, efetivamente, os trabalhos que faltavam concluir.
13ª-) Na verdade, da análise dos referidos orçamentos facilmente se percebe que foram orçamentados vários materiais/serviços que não estavam inicialmente previstos no contrato de empreitada celebrado com a Recorrente.
14ª-) Ademais, foram orçamentados trabalhos que já tinham sido feitos, como, por exemplo, as instalações de eletricidade.
15ª-) Por fim, note-se que orçamento de carpintaria da empresa EMP03...” no montante de €12.417,19 não foi adjudicado à empresa responsável pelo orçamento, tendo sido feito na verdade pela testemunha CC ao serviço da empresa “EMP04...” que executou os trabalhos constantes do orçamento pelo valor de €9.600,00.
16ª-) Das declarações prestadas pela referida testemunha constata-se que, na verdade, os trabalhos de carpintaria em falta não eram no valor de €12.417,19 e sim no valor de €9.600,00, que foi quanto os Recorridos pagaram à empresa “EMP04...” para a execução dos mesmos.
17ª-) Posto isto, salvo melhor entendimento, não se pode considerar, sem mais, que tais orçamentos, cujo valor probatório é diminuto, dada a sua natureza provisória, correspondessem aos trabalhos em falta, muito menos que os valores constantes dos mesmos correspondessem ao montante que os Recorridos teriam de despender para terminar a obra.
18ª-) Na realidade, conforme veremos infra, o valor dos trabalhos em falta era inferior ao valor orçamentado pelos Recorridos.
19ª-) Assim, o Tribunal a quo deveria ter julgado o facto constante do ponto 16 como não provado.
20ª-) Já no que respeita ao ponto 18 dos factos provados, tal apenas se poderia aceitar se não tivessem sido os próprios Recorrentes a impedir a conclusão da obra.
21ª-) Após a revisão dos preços espoletada pelo aumento exponencial dos preços causado pela pandemia de Covid-19 os Recorridos não aceitaram nenhuma das soluções propostas pela Recorrente (cf. ponto 8 dos factos provados), o que atrasou sobremaneira a conclusão da obra.
22ª-) Aliás, foram os Recorridos que, posteriormente, decidiram resolver o contrato de empreitada, impedindo de todo que a Recorrente terminasse a empreitada.
23ª-) Não podem os Recorridos alegar que em virtude da demora na conclusão da obra se sentiram nervosos, tristes e angustiados, na medida em que foram eles próprios quem causaram a referida demora.
24ª-) Nesta senda, o Tribunal a quo deveria ter julgado o facto constante do ponto 18 como não provado.
25ª-) Por fim, passando ao elenco dos factos não provados, entende a aqui Recorrente que o Tribunal a quo deveria ter dado como não provado que o preço pago pelos Autores excede os trabalhos efetivamente executados pela Recorrente.
26ª-) Alegam os Recorridos, nos artigos 26º a 28º da sua petição inicial, que pagaram à aqui Recorrente proporcionalmente muito mais do que a obra que a mesma executou a seu favor, alegando, para o efeito, que os trabalhos concluídos não deveriam ter-lhes custado mais do que €30.000,00.
27ª-) Analisada a prova carreada para o processo, mormente documental e testemunhal, bem o andou Tribunal a quo quando julgou não provado, no ponto d) que os trabalhos executados pela Ré têm o custo de €30.000,00.
28ª-) A Meritíssima Juíza a quo entendeu que “face ao valor que os próprios Autores indicam custar a conclusão da obra, parece-nos pouco razoável e crível que os trabalhos já efetuados tivessem apenas o custo de 30.000,00€ como alegam os Autores, porquanto isso significaria que a construção da casa modular teria um custo global pouco superior a 65.000,00€ - preço muito inferior ao preço contratado com a Ré. Cremos, pelo contrário, que o valor indicado pelos Autores quanto ao custo da conclusão da obra indicia a adequação/justeza dos valores já pagos ao estado da obra (serão necessários cerca de 35.000,00€ para concluir a obra, o que corresponde ao montante que faltaria pagar no preço global acordado entre as partes)” (sublinhado e negrito nosso).
29ª-) Sufragamos inteiramente tal entendimento, no entanto, salvo o devido respeito, deveria o Tribunal a quo ter continuado a desenvolver esta linha de raciocínio de modo a perceber se, tal como alegado pelos Recorridos, o montante pago por estes é superior aos trabalhos efetivamente executados pela Recorrente.
30ª-) Os Recorridos pagaram à Recorrente a quantia global de €70.000,00 (cf. ponto 10 dos factos provados), sendo que o preço inicialmente previsto para a empreitada era de €105.000,00.
31ª-) De acordo com o plano de pagamentos previsto na cláusula sétima do contrato de empreitada, estava ainda por pagar a quantia total de €35.000,00.
32ª-) Este plano de pagamentos, ao contrário do entendimento da Meritíssima Juíza a quo, é feito pela Recorrente de modo a fazer corresponder os montantes pagos aos trabalhos executados.
33ª-) Uma prova disso é precisamente o facto de os próprios Recorrentes terem alegado que os trabalhos em falta para terminar a obra ascendiam ao valor de €35.534,14, o que, acrescido do valor já pago, resulta na quantia de €105.534,14 (aproximadamente o preço global da empreitada)!!
34ª-) Aliás, os orçamentos juntos pelos Recorridos para comprovar que os trabalhos em falta corresponderiam à quantia de €35.534,14, previam, conforme referido supra, além de trabalhos já executados pela Recorrente, materiais/serviços que não estavam inicialmente previstos.
35ª-) Assim, na verdade, os trabalhos feitos pela Recorrente são superiores ao montante efetivamente pago pelos Recorridos, pelo que a haver alguma quantia a restituir no caso sub judice, não será a cargo da Recorrente, mas sim a cargo dos Recorridos pelos trabalhos executados por aquela que excederam os €70.000,00 pagos.
36ª-) A este propósito note-se que o próprio Tribunal a quo entendeu que a prova testemunhal produzida pelos Recorridos no que respeita aos trabalhos executados pela Recorrente, foi “claramente tendenciosa e pouco distante, pretendendo passar uma ideia de que a obra se encontrava num estado mais inicial do que resulta das fotografias e do próprio relatório de medição de obra”.
37ª-) Desta feita, seguindo a lógica supra explanada, o Tribunal a quo deveria ter julgado não provado que o preço pago pelos Autores excede os trabalhos efetivamente executados pela Recorrente.
38ª-) Contudo, sem prescindir, ainda que se entenda que a matéria de facto foi corretamente julgada pelo Tribunal a quo, a verdade é que, ainda assim, não poderia a aqui Recorrente ser condenada nos termos em que foi.
39ª-) A douta decisão ora recorrida condenou a aqui Recorrente a pagar aos Recorridos a quantia que se vier a liquidar posteriormente, nos termos do artigo 609º, n.º 2, do C.P.C.
40ª-) Sucede que, a aplicação do artigo 609º, n.º 2, do C.PC. depende da verificação, em concreto, de uma indefinição de valores, mas como pressuposto primeiro da sua aplicação deverá ocorrer a prova da existência do facto gerador desse direito, o que não sucedeu in casu!!
41ª-) Como se disse, no entendimento da aqui Recorrente, não ficou provado que os Recorridos pagaram mais do que os trabalhos efetivamente executados pela Ré.
42ª-) Na verdade, a Meritíssima Juíza a quo avaliou a prova produzida e considerou que os Recorridos não lograram provar que a obra feita pela Recorrente equivale a €30.000,00.
43ª-) Aliás, os próprios Recorridos entendem que apenas faltavam realizar trabalhos no valor de €35.534,14, o que acrescido do montante efetivamente pago, €70.000,00, perfaz aproximadamente à quantia de €105.000,00 que corresponde ao preço inicial da empreitada.
44ª-) Além disso, da fundamentação da sentença decorre que a Meritíssima Juíza a quo entendeu que os trabalhos executados pela Recorrida eram manifestamente superiores aos €30.000,00 alegados pelos Recorridos.
45ª-) Se os trabalhos executados pela Recorrente eram superiores a €30.000,00 a aqui Recorrente nunca poderia ser condenada até ao limite de €40.000,00, na medida em que isso iria ultrapassar manifestamente os €70.000,00 pagos pelos Recorridos.
46ª-) Assim, salvo o devido respeito, que é muito, o artigo 609º, n.º 2, do C.P.C. não é aplicável in casu, uma vez que os Recorridos não lograram provar o valor dos trabalhos realizados, muito menos que esse valor é inferior a €70.000,00.
47ª-) Além disso, os Recorridos já possuíam todos os elementos necessários para essa prova uma vez que os trabalhos executados pela Recorrente já eram conhecidos à data da propositura da ação e não estavam em evolução.
48ª-) Pelo que, tendo à sua disposição todos os elementos necessários para formular um pedido específico, deveriam os Recorridos ter alegado e provado os valores correspondentes aos trabalhos executados pela aqui Recorrente.
49ª-) Não podendo a aplicação o disposto no artigo 609.º, n.º 2, do C.P.C. servir como uma forma de suprir a falta de prova.
50ª-) Destarte, da resolução do contrato de empreitada não se deve retirar nenhuma consequência legal já que os Recorridos não demonstraram que pagaram mais do que o que consta na obra!
51ª-) Face ao vindo de expender, a douta sentença deve ser revogada na parte em que condenou a Recorrente a restituir aos Recorridos o montante correspondente ao valor pago e que exceda o valor da obra realizada pela Ré, até ao limite de 40.000,00€ peticionado.
52ª-) O douto acórdão, ao decidir como decidiu, violou os artigos 556º, 607º, n.º 5 e 609º, n.º 2 todos do C.P.C.”
Pediu que a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por decisão julgue a ação totalmente improcedente, por não provada.
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3). Os Autores (daqui em diante, Recorridos) responderam, pugnando pela rejeição da impugnação da decisão quanto à matéria de facto, por inobservância dos ónus enunciados no art. 640/1 do CPC, e, em qualquer caso, pela improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida na parte impugnada.
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4). O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
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5). Realizou-se a conferência, previamente à qual foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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II.
1). As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final,ex vi do art. 663/2, parte final, do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo Recorrente ou pelo Recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas decisões-surpresa (art. 3.º/3 do CPC).
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2). Tendo presente o que antecede, as questões que se colocam no presente recurso podem ser sintetizadas nos seguintes termos, seguindo a ordem lógica do seu conhecimento:
1.ª: Impugnação da decisão da matéria de facto: observância dos ónus consagrados no art. 640/1 do CPC; em caso afirmativo, erro sobre a matéria de facto no que tange à apreciação das provas (cf. art. 662/1 do CPC) relativamente: aos enunciados dos pontos 11, 16 e 18 do rol dos factos provados, os quais devem ser considerados como não provados; omissão no rol dos factos não provados do enunciado “o preço pago pelos Autores excede os trabalhos efetivamente executados pela Ré” (sic);
2.ª Impugnação da apreciação jurídica da ação: saber se a sentença recorrida, na parte em que, julgando a ação parcialmente procedente, condenou a Recorrente a restituir aos Recorridos o preço que recebeu destes como contrapartida pela realização da obra, em montante a liquidar em momento ulterior, até ao limite de € 40 000,00, incorreu em erro quanto à aplicação do disposto nos arts. 556 do Código Civil e dos arts. 607/5 e 609/2 do CPC, por tal obrigação não estar constituída na esfera jurídica dos últimos.
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III.
1). Antes de avançarmos com a resposta às questões enunciadas, respigamos a fundamentação de facto da sentença recorrida.
Assim, foram ali considerados como factos provados os seguintes enunciados (transcrição):
“1. Os Autores são donos e legítimos possuidores de um terreno para construção urbana, sito em ... - ..., ... 61, parcela ...96, ...30 ..., ..., em Espanha, inscrito com a referência cadastral n.º 36001A0610.
2. A Ré é uma sociedade comercial que se dedica, entre o mais, à fabricação de mobiliário de cozinha e para outros fins, bem como ao fabrico e construção de casas de madeira e modulares.
3. A Ré, na qualidade de primeira outorgante, e os Autores, como segundos outorgantes, celebraram, em 03.02.2020, um acordo que visava a construção, pela Ré, de uma casa modular de 110m2, em estrutura de madeira, da sua designada “gama Premium”, aí prevendo:
“TERCEIRA O preço global da empreitada é de €105.000,00 (cento e cinco mil euros), o que inclui o IVA à taxa legal. QUARTA As alterações introduzidas à obra, se requeridas pelos SEGUNDOS OUTORGANTES, implicarão revisão de preço e prazos a convencionar entre os outorgantes. (…) SEXTA A PRIMEIRA OUTORGANTE obriga-se a iniciar a obra de empreitada logo que seja aprovado o competente processo de obras e emitida a respetiva licença de construção, e a entregá-la, executada e concluída dentro do prazo de 12 (doze) meses. SÉTIMA O pagamento do preço estipulado na cláusula TERCEIRA do presente contrato de empreitada será efetuado da seguinte forma: a) Com a assinatura do presente contrato, a entrega do valor de 10.000,00€ (…) b) O restante do preço será efetuado da seguinte forma: 1 - Para o início da obra, com a emissão da competente licença de construção, a entrega de €30.000,00; 2 - Pronta de estrutura, a entrega de €30.000,00; 3 - A terminar acabamentos, a entrega de €30.000,00; 4 - Com a entrega da obra o pagamento do remanescente de €5.000,00
(…) NONA O prazo para a execução e conclusão da obra estipulado na cláusula SEXTA do presente contrato de empreitada poderá ser revisto em função e por força dos trabalhos extra-empreitada cuja realização seja ordenada pelos SEGUNDOS OUTORGANTES” - cf. doc. 2 junto com a petição inicial que aqui se dá por integralmente reproduzido.
4. Nos termos do documento anexo ao acordo referido em 3., no preço da referida obra incluía-se, entre o mais, o seguinte:
a) Base, estrutura e divisórias de madeira em pinho nórdico;
b) Tetos e interior revestido em pladur;
c) Isolamento interior das paredes com espuma;
d) Portas interiores completas, em MDF hidrófugo lacado ao folheado em madeira e envernizado;
e) Tijoleira na cozinha e nas casas de banho;
f) Colocação de pavimento flutuante;
g) 2 casas de banho com 2 sanitas, 1 duche, 1 banheira, 2 móveis com lavatório e espelho;
h) Porta de entrada e janelas em PVC, com vidro duplo e estores elétricos;
i) Acabamento exterior em capoto e madeira tratada;
j) Acabamento interior em pladur;
k) Eletricidade e pichelaria;
l) Cozinha aberta com ilha mobilada e tampo em granito;
m) Roupeiros embutidos com portas de abrir.
5. A licença camarária foi emitida no mês de agosto de 2020, tendo a Ré dado início à execução da obra pelo setembro/outubro desse ano.
6. No período de realização da obra, verificaram-se vários constrangimentos à atividade da Ré, desde confinamentos, limitações de circulações, aumentos dos preços de matérias-primas e atrasos no fornecimento e dificuldades na aquisição de materiais e matérias-primas.
7. A 08.02.2022, a Ré enviou uma carta aos Autores na qual comunicava: “Conforme é do conhecimento geral, a pandemia ocasionada pela Covid-19 que ainda nos encontramos a enfrentar, com sucessivos confinamentos, causou vários constrangimentos na vida das empresas e a nossa empresa não é exceção. (…) fomos afetados pela falta de matérias-primas, cujos preços foram também inflacionados, além dos atrasos e incumprimentos por parte dos nossos fornecedores, não nos foi possível dar integral cumprimento ao contrato celebrado. Como já tínhamos transmitido a V/Exas., e perante todas estas situações, foi proposto a resolução do contrato em causa, o que não foi aceite por V/Exas. (…) Assim sendo, e a fim de encontrarmos uma solução equitativa para ambas as partes, vimos trazer à consideração de V/Exas. Duas propostas (…): 1ª Proposta: Pelo valor já liquidado por parte de V/Exas., a nossa empresa compromete-se a realizar os seguintes trabalhos, no prazo adicional de 30 dias: - terminar a colocação de pladur com paredes em cru; - colocação de tela no teto interior da habitação; - colocação de lã mineral no teto; - colocação de tela na parte interior da habitação. Ficaria assim por conta de V/Exas. os restantes acabamentos interiores e exteriores. 2ª Proposta: A nossa empresa compromete-se a terminar a construção contratada, no prazo de 90 a 120 dias. Para comportar as alterações ao projeto inicial, implicará um aumento do preço da empreitada em €6.000,00 (seis mil euros) (…)” - cf. doc. 7 junto com a petição inicial.
8. Os Autores não aceitaram qualquer das soluções propostas, exigindo a conclusão da obra pelo preço acordado,
9. (…) período no qual a Ré não deu continuidade aos trabalhos,
10. Nesse momento, os Autores já tinham entregue 70.000,00€ à Ré, cumprindo os prazos e plano de pagamento estabelecidos no acordo referido em 3.
11. Além do pagamento referido em 10. os Autores procederam ao pagamento da quantia de 5.005,00€ a uma terceira empresa pelos trabalhos de aplicação do capoto no telhado, o que foi sugerido pela Ré.
12. Por carta remetida a 28.07.2022, os Autores remeteram comunicação à Ré, na qual indicavam: “V.Ex.ª comprometeram-se a concluir a empreitada no prazo máximo de doze (12) meses. Assim, conforme a cláusula sexta do contrato de empreitada o prazo de execução da obra terminou em 03.02.2021. Acontece que na presente data a empreitada em causa encontra-se por concluir os seguintes trabalhos: - capoto; - colocação de janelas e das portas exteriores; - acabamentos do telhado; - ancoragem da casa à cimentação; - instalação elétrica; - canalização completa; - terminar a colocação de lã rocha, USB e Pladur na sala de entrada da casa; - colocação de lá de roca, USB e Pladur em todo o teto interior de la casa. Mais se refira que a empreitada encontra-se sem qualquer tipo de intervenção desde o passado dia 21.01.2022 estando a obra desde essa data em completo e total abandono por parte de V.Ex.ª. Mais se refira que V.Ex.ª em nenhum momento, altura ou circunstância invocaram ou nos transmitiram qualquer facto plausível e devidamente fundamentado para a mora a entrega e conclusão da empreitada. (…) Assim sendo (…) vimos pela presente resolver de forma imediata o contrato de empreitada em virtude do incumprimento dos deveres resultante dos mesmo por facto(s) total, absoluta e exclusivamente imputável(is) a V.Ex.ª.” - cf. doc. 11 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
13. A comunicação referida em 12. não foi recebida pela Ré, tendo sido remetida por WhatsApp e chegado ao conhecimento da Ré que, a 20.09.2022, respondeu em carta, na qual fazia constar: “(…) não podemos concordar com o conteúdo da mesma. (…) tal como é do conhecimento geral, logo após a celebração do referido contrato, o país e o mundo foram assolados pela Pandemia da Covid-19, com sucessivos confinamentos, o que levou à paragem na atividade das empresas em todos os sectores de atividade, incluindo a nossa empresa, seguidos da falta de matérias-primas e aumento dos respetivos preços. Mais recentemente, com a invasão da Ucrânia, o escalar dos preços continuou afetando desta vez também o preço dos combustíveis.
(…) Ainda, e nos termos do previsto na Cláusula Quarta do contrato, as alterações introduzidas à obra por parte de V/Exas. também implicam a revisão dos preços e dos prazos de execução da obra. Nesse sentido, e porque no decurso da execução da obra contratada, foram solicitados por V/Exas. alterações ao projeto inicial e outros trabalhos, os quais não estavam incluídos no projeto inicial e por isso não foram orçamentados, implicou uma revisão do respetivo preço. (…) V/exas é que sempre se negaram em proceder aos pagamentos acrescidos que lhes foram solicitados, sendo por isso V/Exas quem se encontra em incumprimento.
(…) De referir que, no decurso da obra foi notado pelos nossos funcionários e outros profissionais por nós contratados que os trabalhos realizados teriam sido “mechidos” por terceiros, o que, aleado à V/ constante crítica contra a nossa forma de trabalhar, conduziu irremediavelmente à perda de confiança entre as partes” - cf. doc. 12 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
14. Nesta altura, a obra estava concluída no que respeita à estrutura da habitação, as instalações de eletricidade e canalização estava praticamente concluída, faltando os acabamentos e estavam parcialmente realizados os trabalhos de colocação de lã de rocha, OSB e pladur nas paredes,
15. (…) faltando proceder a trabalhos de: - colocação das portas e janelas; - colocação de capoto e acabamentos das paredes exteriores; - terminar a colocação de lã rocha, OSB e Pladur em parte de paredes; - colocação de lã de rocha, OSB e Pladur no teto interior de la casa; - efetuar os acabamentos (pintura, acabamentos da eletricidade com a colocação de tomadas, espelhos, etc.); - efetuar os trabalhos carpintaria, móveis de cozinha, colocar pavimentos e azulejos e loiças de casa de banho e torneiras.
16. Os trabalhos que faltam ser efetuados para concluir a obra e referidos em 15. foram orçamentados no valor de 35.534,14€,
17. (…) tendo os Autores avançado já com a contratação de terceiros para concluir a obra e pago a quantia de 9.600€ por todos os trabalhos de carpintaria e colocação do pavimento flutuante, que anteriormente tinha sido orçamentado por 12.417,19€.
18. Em virtude na demora na conclusão da obra, os Autores sentiram-se nervosos, tristes e angustiados.
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(da reconvenção)
19. Durante a execução da obra, os Autores requereram a alteração do projeto inicial, com a implementação de mais uma casa de banho, o que implicou a construção de mais uma parede, mais instalações elétricas e mais trabalhos de pichelaria.
20. A Ré deixou no local da obra vários materiais que já não seriam aplicados no local:
a) 3 packs de 6 sacos de lã mineral;
b) Tubos de PVC de vários comprimentos;
c) 2 quadros de eletricidade;
d) vários rolos de 3 condutores para eletricidade;
e) 3 rolos de tela de isolamento 2 – transpir 150; 1 transpir 110;
f) 30 placas de OSB, cujo valor global se cifra em 4.503,00€.”
***
2). De seguida, sob a epígrafe “Factos não provados”, o Tribunal a quo consignou, “designadamente” (sic)os seguintes enunciados (transcrição):
“a) Os Autores efetuaram várias tentativas para encontrar uma solução com a Ré.
b) A Ré respondeu às interpelações dos Autores para concluir a obra, solicitando pagamentos extra, de variados montantes, e não previstos no contrato, nomeadamente por valores que já faziam parte da empreitada, como mais 4.000€ para colocação de janelas, mais 1.000€ para conclusão das placas de pladur das paredes, mais 800€ para emassar e preparar paredes e tetos a pintar, mais 700€ para conclusão da parte elétrica e mais 150€ para colocação de sanitários.
c) A Ré abandonou a obra.
d) Os trabalhos efetuados pela Ré e referidos em 14. tem o custo de 30.000,00€.
e) Foi contratada e ficou por realizar a ancoragem da casa à cimentação.
f) Falta finalizar a cobertura da casa.
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(da reconvenção)
g) Os trabalhos já efetuados pela Ré quanto à casa de banho extra referida em 19. tem um custo de 6.000,00€.
h) A 21 de fevereiro de 2022, o Autor marido dirigiu-se aos funcionários da Ré, proibindo-os de regressarem à obra.”
***
IV.
1).1.1. Os Recorridos sustentam que a impugnação da decisão quanto à matéria de facto deve ser rejeitada por a Recorrente não ter observado os ónus enunciados no art. 640/1 do CPC.
Os termos a observar na impugnação da decisão sobre a matéria de facto perante o Tribunal da Relação estão bem definidos pela jurisprudência, que reconhece que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, mas sim, e tão-somente, “detetar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento” (preâmbulo do DL 329-A/95, de 12 de Dezembro). O objetivo é evitar que o recorrente se limite a uma genérica discordância com a decisão, porventura com intuitos meramente dilatórios.
Com efeito, seguindo de perto, data venia, a exposição de RG 2.11.2017, (212/16.5T8MNC.G1), Maria João Pinto de Matos, diremos quenão se exige à Relação que, por iniciativa própria (de motu proprio), se confronte com a generalidade dos meios de prova que foram sujeitos à livre apreciação e valorados pelo tribunal de 1.ª instância, para deles extrair uma decisão inteiramente nova, como se de um novo julgamento se tratasse. Pelo contrário, as alterações a efetuar devem, em primeiro lugar, respeitar o que o recorrente, ao exercer o seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas suas alegações, que servem para delimitar o objeto do recurso, conforme determina o princípio do dispositivo.
Assim, o art. 640/1 do CPC diz que, ao impugnar-se a decisão sobre a matéria de facto, o recorrente tem a obrigação de especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham uma decisão diferente sobre os pontos impugnados; c) a decisão que, na sua perspetiva, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
É também necessário que, quando “os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados”, o recorrente, além daquele ónus, indique com exatidão as passagens da gravação onde fundamenta o seu recurso, sob pena de imediata rejeição do mesmo nesta parte, sem prejuízo de poder transcrever os excertos que considere relevantes (art. 640/2, a)).
Dessa forma, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, deve, além de delimitar com precisão os pontos concretos da decisão que questiona, expressar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre os factos impugnados. Esta última exigência (presente na alínea c) do n.º 1 do art. 640) “vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente”, devendo ser avaliada com um critério de rigor como “decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes”, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra: Almedina, 2013, p. 129).
Pode-se afirmar que as exigências legais mencionadas possuem uma dupla função: não apenas a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de garantir a efetividade do contraditório pela parte contrária (já que apenas se souber o que se impugna e a lógica do raciocínio utilizado na valoração/conjugação da prova, a outra parte pode contrariá-lo). Dito de outro modo, se o dever – constitucional e processual civil – exige que o juiz fundamente a sua decisão de facto através de uma análise crítica da prova, é compreensível que, ao impugná-la, o recorrente também apresente a sua própria análise. Logo, deve apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e, no caso de depoimentos, a respetiva passagem, e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido por si pretendido (RP 17.03.2014, 3785/11.5TBVFR.P1, Alberto Ruço).
Como se sintetiza no aresto cuja exposição vimos seguindo, mesmo com oscilações, principalmente entre a 2.ª Instância e o Supremo Tribunal de Justiça, vêm sendo firmadas as seguintes orientações:
Os aspetos de ordem formal devem ser ajustados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade;
Se o recorrente não cumprir os ónus impostos pelo art. 640/1, do CPC, o recurso sobre a matéria de facto deverá ser rejeitado, uma vez que a lei não permite aqui um despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que acontece no recurso em matéria de direito;
A cominação de rejeição do recurso, prevista para a falta das especificações quanto à matéria das alíneas a), b), e c) do n.º 1 não se aplica automaticamente, ao contrário do que ocorre com a matéria do n.º 2 do art. 640, devendo o Tribunal convidar o recorrente a suprir a falta ou a indicação deficiente daqueles elementos;
É exigido maior rigor na avaliação do cumprimento do ónus primário, previsto no n.º 1 do art. 640 (de delimitação do objeto e fundamentação concludente), face ao ónus secundário (do n.º 2), que visa apenas facilitar o acesso da Relação aos meios de prova gravados;
O ónus de indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado de forma funcionalmente adequada e conforme ao princípio da proporcionalidade. A sua falta apenas deve fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório ou o exame pelo tribunal, para evitar uma solução excessivamente formal e sem justificação razoável;
O ónus do art. 640/2 do CPC, é considerado cumprido quando não houver dificuldade relevante na localização dos excertos da gravação onde a parte se baseou para demonstrar o erro de julgamento invocado, como ocorre quando o apelante referencia os momentos temporais ou transcreve extensamente as partes relevantes dos depoimentos;
A apresentação de transcrições globais dos depoimentos não satisfaz a exigência da alínea a) do n.º 2 do art. 640 do CPC. O mesmo se aplica à referência genérica aos depoimentos sem alusão às passagens concretas onde se depreende a sua insuficiência;
Não deve ser rejeitado o recurso se o recorrente seguiu uma determinada orientação jurisprudencial sobre o preenchimento do ónus de alegação;
A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não é um requisito formal do ónus de impugnação, mas, sim, um parâmetro para a reapreciação da decisão de facto;
Em suma, a rejeição, total ou parcial, do recurso sobre a impugnação da decisão da matéria de facto deve ocorrer quando há:
- Falta de conclusões sobre a impugnação.
- Falta de especificação dos pontos de facto concretos.
- Falta de especificação dos meios probatórios concretos.
- Falta de indicação exata das passagens da gravação.
- Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido.
- Conclusões deficientes, obscuras ou complexas.
Particularizando o ónus de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados que imponham decisão diversa, é entendimento constante do STJ que a sua observância pressupõe o estabelecimento de uma correspondência direta e objetiva entre os meios probatórios indicados pelo recorrente e a justificação (por eles representada) para a modificação dos pontos de factos considerados incorretamente julgados. Para esse efeito, conforme se escreve em STJ 16.01.2024 (818/18.8T8STB.E1.S1), relatado por Luís Espírito Santo, não é suficiente “a mera reunião aglomerada dos diversos meios de prova entendidos por relevantes, feita genericamente e em estilo puramente descritivo, numa amálgama indiferenciada, sem nenhuma referência direta, concreta e objetiva aos pontos de facto em causa, individualmente considerados, tencionando desse modo o impugnante que o Tribunal da Relação realize afinal a tarefa que exclusivamente lhe competia: selecionar dos elementos probatórios os que se destinam à modificação dos pontos de facto (ou, excecionalmente, os grupos delimitados de factos intrinsecamente ligados entre si), estabelecendo a indispensável conexão concreta entre os meios de prova e o juízo de facto por eles imposto (segundo o seu entendimento).”
No fundo, o recorrente tem o ónus de indicar os meios de prova por referenciação aos factos a que concretamente se reportam, ou eventualmente, em casos especiais, a grupos temáticos de factos interligados unitariamente entre si. Só assim é possível alcançar, com inteiro rigor e certeza, as razões para a discordância do recorrente que justificam, facto a facto, as modificações pretendidas, o que evitará a apresentação de impugnações de facto genéricas, proibidas pela norma processual em apreço.
Neste sentido, escreve António Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 197) que “o recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.”
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1).1.2. No caso vertente, ao contrário do sustentado pelos Recorridos, a Recorrente cumpriu de forma suficiente os ónus exigidos. Identificou nas conclusões os pontos de facto impugnados e indicou o sentido decisório pretendido. Nas alegações, especificou os meios de prova documental e testemunhal e, quanto a estes, indicou e transcreveu as passagens relevantes.
Não está, portanto, verificado o alegado fundamento de rejeição.
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1).2.1. Sem prejuízo, como vimos, a Recorrente coloca em causa a decisão tomada quanto aos enunciados considerados como factos provados sob pontos 11, 16 e 18, sustentando que, face à prova produzida, não era possível a formação de uma convicção positiva. Coloca também em causa a omissão, no rol dos enunciados considerados como factos não provados, da afirmação “o preço pago pelos Autores excede os trabalhos efetivamente executados pela Ré.”
Salvo o devido respeito, é manifesto que o conhecimento da impugnação no que tange ao enunciado do ponto 18 dos factos provados e à omissão do enunciado acabado de transcrever é absolutamente inútil uma vez que a sua eventual procedência será absolutamente inócua na apreciação jurídica da causa.
Concretizando, diremos, quanto ao enunciado do ponto 18 [“Em virtude na demora na conclusão da obra, os Autores sentiram-se nervosos, tristes e angustiados.”], que são ali descritos os factos adrede alegados pelos Recorridos, na petição inicial, para fundamentar o pedido de condenação da Recorrente no pagamento de uma compensação pelos danos não patrimoniais decorrentes do incumprimento contratual (lato sensu)que imputaram à Recorrente.
Acontece que, apreciando essa pretensão, a 1.ª instância julgou-a improcedente, como se pode concluir da simples leitura da parte decisória da sentença recorrida, o que justificou do seguinte modo:
“Quanto aos danos alegados pelos Autores, nomeadamente a angústia, tristeza e nervosismo vivenciados pelos Autores e que resultaram provados, importa voltar a destacar que quando os Autores procederam à resolução do contrato não se verificava o incumprimento definitivo da Ré, ou seja, não existia fundamento para tal resolução.
Na verdade, não se pode ter o prazo de conclusão da obra como perentório, uma vez que no contrato as partes previram a possibilidade de revisão do mesmo caso se verificassem alterações no projeto ordenadas pelos Autores, tal como veio a suceder.
Acresce que, o contrato estava em execução durante o período de pandemia por Covid-19, sendo que as medidas de combate e mitigação de tal pandemia, bem como as consequências da mesma em vários ramos de atividade e os efeitos fortíssimos na economia em geral tem sido considerado pelos nossos Tribunais superiores como “uma perturbação de largo espectro, que afetou e afeta de modo particularmente violento todo o equilíbrio da vida social, pondo em causa o modo de vida das comunidades, com reflexos numa multiplicidade de sujeitos, sectores económicos e relações negociais”.
Tal perturbação, provocada pela pandemia, do equilíbrio dos contratos e da execução das prestações, que ultrapassa em larga escala e em muitos casos, como no caso sub judice, aqueles que são os riscos próprios do contrato, torna ainda mais claro a ausência de um incumprimento definitivo por parte da Ré e de fundamento para a resolução do contrato por parte dos Autores.
Na verdade, a pandemia e os seus efeitos no seio dos contratos não justifica apenas a convocação do instituto da alteração anormal das circunstâncias, mas também a figura da impossibilidade, temporária ou parcial, do cumprimento, da inexigibilidade de cumprimento, a obrigação de todos os intervenientes atuarem de acordo com a boa-fé consagrada no artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil, tal como o instituto do conflito de direitos ou do abuso do direito.
Cremos, pois, que no caso em apreço e calcorreada toda a factualidade levava ao elenco dos factos provados e não provados, face à postura da Ré, quando comunica os constrangimentos/dificuldades na execução do contrato provocadas pela pandemia de Covid-19, fazendo duas propostas, era exigido aos Autores que, em obediência ao princípio da boa-fé, encetassem negociações com a Ré, nomeadamente quanto ao prazo suplementar para conclusão da obra e quanto ao valor da alteração do projeto e dos trabalhos extra solicitados, caso não aceitassem os propostos pela Ré (o que resultou não provado que tivesse ocorrido).”
A natureza deste segmento decisório, favorável à Recorrente e desfavorável aos Recorridos, evidencia bem a falta de interesse prático daquela na impugnação da resposta ao enunciado do ponto 18 do rol dos factos provados.
Esse interesse apenas poderia surgir se os Recorridos tivessem interposto recurso da sentença, na parte correspondente, o que não sucedeu. O meio adequado à sua efetivação por parte da Recorrente seria então a ampliação do objeto do recurso interposto pelos Recorridos, ut art. 636/2 do CPC.
Quanto ao enunciado, de natureza conclusiva, “o preço pago pelos Autores excede os trabalhos efetivamente executados pela Ré”, que a Recorrente pretende seja aditado ao rol dos factos não provados, diremos que a eventual procedência da impugnação redundaria na mera afirmação do nada factual que se verifica quanto à questão de saber se a parte do preço paga pelos Recorridos à Recorrente é superior ao valor da parte da obra realizada por esta, cuja resposta afirmativa se apresenta como constitutiva da pretensão indemnizatória formulada pelos Recorridos, seja ela estribada na responsabilidade civil decorrente do incumprimento do contrato, seja no enriquecimento sem causa, como melhor veremos na resposta à segunda questão.
Com efeito, conforme bem salienta a Recorrente, de nenhum facto provado é possível retirar semelhante conclusão – isto é, que “o preço pago pelos Autores excede os trabalhos efetivamente executados pela Ré” –, o que vale por dizer que, quanto a este aspeto, o non liquet não pode deixar de aproveitar à Recorrente, tendo em conta a regra de distribuição do ónus da prova consagrada no art. 342/1 do Código Civil, para cuja aplicação apenas são convocados os factos provados, considerando-se todos os demais excluídos da narrativa processual.
Tenha-se presente, para melhor compreensão desta afirmação, que a questão do ónus da prova coloca-se a jusante, ao nível das regras de decisão. Na sentença, depois de elencar os factos que reputa provados e não provados, cabe ao juiz deve retirar consequências da falta de prova de um determinado enunciado e, em face da natureza do mesmo, declarar a improcedência da ação ou da exceção.
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1).2.2). Isto dito, acrescentamos agora que, como tem vindo a ser entendido, a impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face à mesma.
A este propósito, pode ler-se em RG 15.12.2016 (86/14.0T8AMR.G1), Maria João Pinto de Matos:
“Com efeito, a “impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B [do anterior C.P.C.], visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorretamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante” (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10…).
Logo, “por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo nº 1024/12…).
Por outras palavra, se, “por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.” (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10... No mesmo sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo nº 6628/10).
Esta orientação é constante na jurisprudência das Relações – inter alia, RC 6.11.2018 (228/17.4T8OHP.C1), Moreira do Carmo, RL 24.09.2020 (35708/19.8YIPRT.L1-2), Inês Moura, e RG 9.01.2025 (372/18.0T8FAF.G1), Maria Amália Santos – e encontra acolhimento na do STJ – inter alia, STJ 17.05.2017 (4111/13.4TBBRG.G1.S1), Fernanda Isabel Pereira, e 28.01.2020 (287.11.3TYVNG.G.P1.S1), Pinto de Almeida. À luz dela, rejeita-se a impugnação da decisão da matéria de facto quanto ao enunciado do ponto 18 dos factos provados e quanto à omissão, no rol dos factos não provados, do enunciado “o preço pago pelos Autores excede os trabalhos efetivamente executados pela Ré.”
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1).3.1. Prosseguindo, vejamos o mérito da impugnação apresentada pela Recorrente quanto aos enunciados dos pontos 11 e 16 do rol dos factos provados, começando por dizer que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto, consagrado no art. 662 do CPC, eleva o Tribunal da Relação à condição de verdadeiro tribunal de instância ao conferir-lhe competência alargada para reapreciar a decisão proferida na primeira instância, visando um rigoroso apuramento da verdade material e a uma subsequente decisão de mérito justa.
Conforme realçado em STJ 26.11.2024 (417/21.7T8AGH.L1.S1), Cristina Coelho, e em STJ 17.12.2024 (4810/20.4T8LSB.L1.S1), Ricardo Costa, a intervenção da Relação, neste âmbito, assume a natureza de um autêntico recurso de reponderação ou de reexame, sempre que todos os elementos probatórios, designadamente os depoimentos gravados, constem dos autos. O novo julgamento, caso modifique, altere ou adite a decisão recorrida, conduz a uma decisão de substituição. Assim, o Tribunal da Relação detém a mesma amplitude de competências de julgamento que a primeira instância, o que se depreende da remissão operada pelo art. 663/2 para o art. 607/4 e 5. Esta equiparação afasta qualquer subordinação da segunda instância à primeira, rejeitando a ideia de uma mera relação hierárquica. O controlo sobre o julgamento da matéria de facto deve ser exercido de forma autónoma, com uma convicção própria e fundamentada, independente da convicção da primeira instância. O art. 662 do CPC confere à Relação autonomia decisória na reapreciação e modificabilidade da matéria de facto, à luz da qual compete-lhe formar o seu próprio juízo probatório sobre cada facto impugnado, com base nas provas produzidas e nas que considere necessário renovar ou produzir, sob o critério da sua livre e prudente convicção. A Relação não se limita a verificar a existência de um erro manifesto, possuindo uma vasta competência para proferir uma decisão diversa.
Sem prejuízo, mantendo-se em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, o uso, pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1.ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efetuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1.ª Instância. “Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte” (Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto”, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, I, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 609). No sentido de que havendo dúvidas no controlo da matéria de facto pela Relação, deve valer o princípio in dubio pro iudicato, pode ver-se também RE 11.01.2024 (129/21.7T8SLV.E1), relatado por Tomé de Carvalho, com anotação favorável de Miguel Teixeira de Sousa (“Jurisprudência 2024 (13): Matéria de facto; recurso; controlo pela Relação”, disponível em https://blogippc.blogspot.com/), que adjetiva a orientação como pragmática e realista.
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1).3.2. Assim definidos os termos de apreciação do recurso sobre a matéria de facto, tendo o Recorrente observado o disposto no art. 640/1 do CPC, vejamos a resposta a dar à questão, começando por dizer, em jeito de enquadramento, que os tribunais não lidam só com realidades inequívocas ou que não suscitam controvérsia. De ordinário, lidam com a dúvida e com realidades esbatidas e discutidas. E é aqui que intervêm a sensibilidade, a experiência e o bom senso do julgador.
Como, a propósito, se pode ler em RG 7.12.2023 (573/20.1T8VCH.G1), do presente Relator:
“Ademais, nas situações mais comuns, não existem testemunhas presenciais nem outros meios que permitam uma prova direta, minuciosa e irrefutável do facto; há, assim, que recorrer a prova indireta, através de outros factos (ditos secundários, instrumentais ou probatórios), estes suscetíveis de prova direta, que permitam sustentar juízos de inferência.
A este propósito, Michele Taruffo, La Prueba de los Hechos, Madrid: Trotta, 2005, p. 266, ensina que “[o] grau de apoio que a hipótese sobre o facto pode receber dessa prova depende, então, de dois tipos de fatores: o grau de aceitabilidade que a prova confere à afirmação da existência do facto secundário e o grau de aceitabilidade da inferência que se baseia na premissa constituída por aquela afirmação.” Sobre o primeiro fator, as questões que se colocam são as mesmas que surgem no âmbito da prova direta: a atendibilidade e credibilidade da prova sobre o facto secundário. Já o segundo depende essencialmente, no dizer de Michele Taruffo (idem), “da natureza da regra de inferência que se adote para derivar conclusões aptas a representar elementos de confirmação da hipótese sobre o facto principal a partir das afirmações do facto secundário. Assim, o grau de aceitabilidade da prova não equivale ao grau de confirmação daquela hipótese, nem o contrário; o problema principal é precisamente a fundamentação das inferências desde o facto provado ao facto afirmado na hipótese que se tenta confirmar.”
Por outro lado, sabemos que o nosso sistema processual é enformado pelo princípio da prova livre, nos termos do qual o tribunal aprecia livremente os meios de prova e é livre na atribuição do grau do valor probatório de cada um deles. Isto não significa o arbítrio, posto que a apreciação da prova está sempre vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório. Por outras palavras – as de Paulo Saragoça da Matta (“A Livre Apreciação da Prova”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos fundamentais, Coimbra: Almedina, 2004, p. 254) –, “a liberdade concedida ao julgador (…) não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, mas antes um poder que na sua essência, estrutura e exercício se terá de configurar como um dever, justificado e comunicacional.” Para que o exercício de tal poder seja justificado e comunicacional é pressuposto que todo o caminho da prova, desde a sua admissão ou decisão de recolha até à sua valoração, seja suscetível de autocontrolo por parte do julgador e de controlo por parte da comunidade, incluindo os próprios sujeitos prejudicados com a atividade probatória em questão.
É esta necessidade que explica o disposto no já citado art. 607/4 do CPC que, por imposição constitucional (art. 205/1 da CRP), diz que “[n]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.”
(…)
Perante o referido princípio da livre apreciação da prova, o tribunal tem liberdade para, em cada caso, considerar suficiente a prova produzida ou para considerar que a mesma é afinal insuficiente e exigir outro meio de prova de maior valor probatório no sentido de ficar convencido da verdade do facto em discussão.
Coloca-se então uma outra questão: a do standard ou padrão de prova, a qual, por sua vez, está relacionada com a questão do ónus da prova ou da determinação do conceito de dúvida relevante para operar a consequência desse ónus.
Sobre esta última, temos como assente que as regras sobre o ónus da prova são regras de decisão e não regras de distribuição propriamente ditas. Tanto assim é que o princípio da aquisição processual (art. 413 do CPC), associado ao princípio do inquisitório em matéria de prova (art. 411/3 do CPC), podem levar a que os factos essenciais constitutivos da causa de pedir ou de uma exceção resultem provados ainda que a parte onerada não consiga produzir prova apta para esse efeito. A propósito, Luís Filipe Pires de Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 15. Dito de outra forma, ter o ónus da prova significa, sobretudo, determinar qual é a parte que suporta a falta de prova de determinado facto e não tanto saber qual é a parte que está onerada com a prova desse mesmo facto. Sem prejuízo, sempre notamos que, conforme ensinam João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2022, pp. 487-488), tendencialmente há coincidência entre a parte que suporta o ónus da prova e aquela que tem a iniciativa da prova que, assim, tentará, naturalmente, afastar o risco da falta de prova. Na perspetiva inversa, a contraparte sentir-se-á legitimada a uma inação probatória até à prova do facto pela parte onerada. Assim, escrevem estes autores, “o ónus subjetivo implica o ónus objetivo, e vice-versa.”
Neste sentido, o art. 346 do Código Civil e o art. 414 do CPC estabelecem que, na dúvida, o juiz decida contra a parte onerada com a prova.
É aqui que surge a questão do standard da prova que, no dizer de Luís Filipe Pires de Sousa (Direito Probatório cit., pp. 55-56), “consiste numa regra que indica o nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada, ou seja, possa ser aceite como verdadeira.” De acordo com Jordi Ferrer Beltrán (“La decisión probatória”, AAVV, Jordi Ferrer Beltrán (coord.), Manual de Razonamiento Probatorio, Ciudad de Mexico: Suprema Corte de Justicia de la Nación, 2022, pp. 397-458, disponível em https://bibliotecadigital.scjn.gob.mx/ [18.11.2023)), os standards de prova são regras que determinam o nível de suficiência probatória para que uma hipótese possa ser considerada provada (ou suficientemente corroborada) para fins de uma decisão sobre os factos. Ao realizarem essa determinação, cumprem três funções da máxima importância no marco do processo de decisão probatória: 1) aportam os critérios imprescindíveis para a justificação da própria decisão, no que diz respeito à suficiência probatória; 2) servem de garantia para as partes, pois permitem que tomem as suas próprias decisões sobre a estratégia probatória e controlem a correção da decisão sobre os factos; 3) distribuem o risco de erro entre as partes.
Não existe entre nós norma que se pronuncie diretamente sobre esta questão. Afastadas as teorias baseadas no cálculo matemático de probabilidades, mais concretamente no Teorema de Bayes, há quem entenda que, em processo civil, opera o standard da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não.”
Este standard consubstancia-se, segundo Luís Pires de Sousa (Direito Probatório cit., p. 61), em duas regras fundamentais: “(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais; (ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa.”
Este critério, salienta o autor, não se reporta à probabilidade como frequência estatística, mas sim como grau de confirmação lógica que um enunciado obtém a partir das provas disponíveis. Por outro lado, leva a que, perante provas contraditórias de um mesmo facto (rectius, afirmação de facto), o julgador deva sopesar as probabilidades das diferentes versões para eleger o enunciado que pareça ser relativamente “mais provável”, tendo em conta os meios de prova disponíveis. Dito de outra forma, “deve escolher-se a hipótese que receba apoio relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis.”
O autor ressalva que “pode acontecer que todas as versões dos factos tenham um nível baixo de apoio probatório e, nesse contexto, escolher a relativamente mais provável pode não ser suficiente para considerar essa versão como verdadeira.” Assim, “para que um enunciado sobre os factos possa ser escolhido como a versão relativamente melhor, é necessário que, além de ser mais provável que as demais versões, tal enunciado em si mesmo seja mais provável que a sua negação. Ou seja, é necessário que a versão positiva de um facto seja em si mesma mais provável que a versão negativa simétrica.”
Michele Taruffo (La Prueba cit., pp. 266-267 e 277-278) propõe uma metodologia de confirmação do grau de probabilidade das hipóteses sobre o facto em que cada prova concreta é valorável numa escala de 0 a 1 (grau particular de confirmação). Por sua vez, a representação da valoração do conjunto da probabilidade da hipótese deve fazer-se numa escala de valores 0 → ∞, sem limite máximo (grau global de confirmação). As duas escalas combinam-se para determinar a probabilidade do facto. Os números são aqui uma forma de expressar relações lógicas e não supõem medidas quantitativas de nada. Um grau de confirmação da hipótese superior a 0,50 deve considerar-se como o limite mínimo abaixo do qual não é razoável aceitar a hipótese como aceitável. Uma só prova clara e segura pode ultrapassar esse limite mínimo, podendo igualmente ser racional aceitar a hipótese confirmada por várias provas ditas indiretas convergentes, por exemplo.
O mesmo autor nota (La Prueba cit., p. 302) que podem existir contextos em que é sensato aplicar a probabilidade lógica prevalecente no seu estado puro, o que equivale a dizer, sem que se exija que a hipótese dotada de grau de probabilidade comparativamente mais alto seja também aceitável segundo o critério que opera quando está em jogo uma só hipótese (≥ 0,51). A aplicação do critério no seu estado puro poderá ser pertinente em casos em que não se exija a demonstração da aceitabilidade plena da hipótese, bastando algum elemento de confirmação suscetível de atribuir um mínimo de credibilidade a tal hipótese.
Temos dúvidas que esta solução seja compatível com o ordenamento jurídico português, em especial com a regra do non liquet consagrada no art. 414 do CPC, como salienta Miguel Teixeira de Sousa (“Standard probatório. Probabilidade prevalecente. Jurisprudência 2019 (100)” e “Por que razão a “probabilidade prevalecente” não é uma medida da prova aceitável no ordenamento probatório português”, disponíveis no Blog do IPCC [19.11.2023). Com efeito, ficando o juiz com dúvida sobre a verdade de um facto, deve julgá-lo como não provado, ainda que entenda que a probabilidade de ele ser verdadeiro é superior a 0,50, o que não sucede se for aplicado o referido critério. De acordo com ele, a referida probabilidade terá como consequência a prova do facto, ainda que subsista um espaço não despiciendo de dúvida, o que equivale à anulação da referida regra do non liquet.
Ainda segundo Miguel Teixeira de Sousa, o referido critério é igualmente “incompatível com a contraprova, que é um meio de impugnação da prova que se destina a tornar o facto provado duvidoso (art. 346 do Código Civil); se o standard da prova começa em mais de 0,50, isso significa que pode verificar-se uma dúvida sobre a verdade do facto até 0,49; disto resulta necessariamente que: (i) Se a contraprova é suficiente para impugnar uma prova bastante, então não é coerente admitir uma medida da prova que deixa até 0,49 de dúvida sobre a verdade do facto; se a contraparte provar que há uma dúvida até 0,49 sobre a verdade do facto, a prova bastante fica impugnada, pelo que, ao contrário do que resulta da medida da probabilidade prevalecente, o facto não pode ser considerado provado; (ii) Se, em contrapartida, a medida da prova admite uma dúvida até 0,49, então a contraprova (que se destina precisamente, não a tornar o facto não provado, mas a apenas torná-lo duvidoso) não tem nenhuma possibilidade de aplicação.”
Finalmente, “é incoerente com o disposto no art. 368/ 1 do CPC; este preceito determina que, para o decretamento de uma providência cautelar, não é necessária a prova do direito acautelado, mas, em todo o caso, é necessária a prova da probabilidade séria desse direito; a aceitação do critério da probabilidade prevalecente teria como consequência absolutamente surpreendente que a medida da prova seria mais exigente na tutela cautelar ("probabilidade séria") do que na tutela definitiva (probabilidade prevalecente).”
No fundo, face ao disposto no art. 414 do CPC, podemos concluir que o legislador português é especialmente exigente quanto ao grau de convicção que é necessário alcançar para que uma afirmação de facto seja considerada como provada, assumindo que é preferível o erro do juiz dar como não provado o que é verdadeiro em detrimento do erro de dar como provado o que é falso, a que conduziria o standard da probabilidade prevalecente. A propósito, colocando esta opção ao nível da política-legislativa, cf. Marina Gascón Abellán, “Sobre la possibilidade de formular estândares de prueba objetivos”, Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, n.º 28, nov. de 2005, pp. 127-139, disponível em https://doi.org/10.14198/DOXA2005.28 [20.11.2023].
Afigura-se-nos, assim, que o importante nesta sede é que a prova produzida tenha a medida bastante para criar no juiz a convicção de que o facto em discussão corresponde à verdade ontológica. Cabe depois ao juiz deixar transparecer na fundamentação as razões que o levaram a concluir dessa forma. Nesta medida, o standard serve essencialmente como uma orientação para o juiz na produção e na valoração da prova, designadamente na atribuição de um peso específico a cada um dos elementos que a compõem, tudo em ordem à formação da sua convicção. Não é mais que um critério de acordo com o qual deve construir, de forma completa, a justificação da sua decisão sobre a matéria de facto, baseada na solidez epistemológica das provas e dos juízos inferenciais que é necessário fazer para chegar delas até à hipótese de facto.
Como referido em RP 23.02.2023 (30/21.9T8PVZ.P1), relatado por Aristides Rodrigues de Almeida, esta é uma regra que “o julgador, com recurso ao bom senso e ao justo equilíbrio das coisas, há de definir e aplicar caso a caso, em função das exigências de justiça que o mesmo coloca, determinadas a partir de aspetos como o da acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da ação.”
Como se salienta no aresto acabado de citar, “a circunstância de um facto ser verosímil ou possível não significa que o mesmo seja verdadeiro, mas o contrário também é correto. A vida diz-nos que por vezes ocorrem factos que eram pouco verosímeis ou não ocorrem factos que além de possíveis eram perfeitamente verosímeis. No entanto, o normal é haver verosimilhança no processo causal gerador de um facto, pelo que a maior verosimilhança do facto torna-o mais provável e a menor verosimilhança menos provável. São as regras da experiência que o determinam. Daí que se possa afirmar a seguinte regra probatória não escrita: quanto mais inverosímil e improvável o facto é, à luz da inteligência que rege os comportamentos humanos e das leis das ciências exatas, normalmente reconduzidas às regras da experiência, mais ou melhor prova deve ser exigida."
Nesta apreciação, há que considerar, quando estejam em causa ações humanas, “que as pessoas movem-se por interesses, motivações, objetivos, propósitos, emoções, impulsos. Estes são resultado do funcionamento do intelecto da pessoa enquanto animal dotado de razão, consciência, identidade pessoal. Nessa medida, perscrutar a realidade de um facto humano ou com intervenção humana é, antes de mais, averiguar a razão que subjaz a essa atuação, que lhe dá origem e a orienta, e, sobretudo, apurar se a mesma é compatível com o quadro de atuação de qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias. Por isso, um dos elementos decisivos para a formação da convicção do julgador é a verosimilhança dos factos sobre os quais recai a controvérsia, ou seja, a pertinência lógica dos mesmos ao domínio dos acontecimentos humanos que por definição possuem motivações apreensíveis, são norteados pela inteligência humana (no sentido de serem comportamentos orientados para um fim compreensível e delineados por processos intelectualmente aptos, mesmo quando são comportamentos asnáticos) e estão de acordo com o que as regras da experiência nos ensinam ser expectável, corresponder ao devir normal.”
Finalmente, há que dizer, a propósito da prova pessoal, que o processo de formação das memórias é frequentemente condicionado por fatores que as deturpam, ainda que não intencionalmente, podendo levar a relatos não conformes à realidade ontológica. Como se escreve no aresto, “[e]sta circunstância obriga o tribunal a libertar-se da mera literalidade das afirmações e centrar mais a atenção na análise e interpretação da lógica dos acontecimentos relatados, colocados no seu contexto concreto.” A este propósito, Luís Pires de Sousa (Prova Testemunhal, Coimbra: Almedina, 2016, pp. 9-10) explica que “a memória, mais do que um processo de replicação, constitui um processo reconstrutivo. A evocação dos factos não constitui uma reprodução da realidade, mas sim uma reconstrução a partir de informação incompleta que guardamos do ocorrido. (…) A reconstrução é levada a cabo preenchendo as lacunas da memória mediante inferências que resultam do conhecimento geral e de outros eventos, vividos pela testemunha ou dela conhecidos, bem como com reativação e reorganização de diversas informações de modo a criar uma evocação. Neste sentido, a memória constitui uma combinação contínua de informação proveniente do que se viu, de pensamentos, da imaginação, conversações e outras fontes (…)”
***
1).4.1. Aqui chegados, relembramos os dois enunciados cuja decisão foi colocada em causa.
Assim, no primeiro deles (11) diz-se que “[a]lém do pagamento referido em 10 os Autores procederam ao pagamento da quantia de 5.005,00€ a uma terceira empresa pelos trabalhos de aplicação do capoto no telhado, o que foi sugerido pela Ré” e no segundo (16) que “[o]s trabalhos que faltam ser efetuados para concluir a obra e referidos em 15. foram orçamentados no valor de 35.534,14€.” Quid inde?
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1).4.2. A convicção positiva quanto ao enunciado do ponto 11 foi fundamentada pelo Tribunal a quo nos seguintes termos:
“Também a factualidade referida em 11, relativa ao pagamento pelos Autores da colocação do capoto, deve considerar-se aceite atenta a posição expressa no articulado de contestação, onde a Ré indica que, por não ter conseguido profissionais para executar o trabalho, sugeriu aos Autores que procedessem à contratação de terceiros. Na verdade, tal referência já constava das comunicações entre as partes, designadamente na carta enviado pela Ré a 20.09.2022 onde é dito: “a colocação do capoto foi contratado por V/Exas. a outra empresa”. Já quanto ao valor pago pelos Autores pela colocação do capoto, encontra-se junto aos autos o orçamento de tais trabalhos (doc. 5 da petição inicial), que, apesar de impugnado, pode ser valorado pelo Tribunal e conjugado com a admissão de que foram os Autores que contrataram tal serviço, tendo ainda por normal a circunstância neste ramo de atividade não ter sido solicitada a fatura do pagamento, fundou a convicção positiva do Tribunal quanto a tal factualidade.”
A Recorrente contrapõe, em síntese, que: nenhuma testemunha falou sobre os trabalhos de colocação do capoto, nomeadamente sobre a empresa contratada para esse efeito pelos Recorridos nem sobre o preço que estes pagaram em contrapartida; além disso, não foi apresentada a fatura nem qualquer documento comprovativo do pagamento, mas apenas um orçamento, por si impugnado, do qual não se pode sequer concluir que respeite ao trabalho de colocação do capoto na cobertura.
Os Recorridos, por seu turno, pugnam pela improcedência da impugnação dizendo, também em síntese, que: o orçamento apresentado contém uma descrição que é suficientemente ampla para coincidir com o trabalho de colocação de capoto na cobertura; a falta de documento comprovativo do pagamento não obsta à prova do facto, sobretudo tendo em conta que a própria Recorrente o admitiu e que as “testemunhas indicadas” pelos Recorridos, cujos depoimentos foram considerados credíveis e congruentes, o referiram.
Sobre isto importa começar por dizer que a Recorrente admitiu – e admitiu apenas – que o capoto da cobertura não foi por si colocado, não obstante tal trabalho estar contemplado no contrato celebrado com os Requeridos (art. 29 da contestação). No mais, impugnou que os Recorridos tivessem encarregado um terceiro de realizar esse trabalho e, sobretudo, que tenham pago, em contrapartida, um preço de € 5 005,00 (art. 2.º da contestação). Não assiste, portanto, qualquer razão aos Recorridos quanto afirmam que o facto foi admitido pela Recorrente.
Por outro lado, resulta do relatório pericial que, no momento do exame, realizado no dia 22 de fevereiro de 2024, o perito nomeado constatou que o capoto já estava colocado, o que se afigura bastante para suportar a conclusão de que esse trabalho foi efetivamente realizado.
Se considerarmos a especificidade e as exigências técnicas do trabalho de colocação do capoto, podemos facilmente concluir, com base nas regras do id quod plerumque accidit, que os Recorridos tiveram de recorrer a um terceiro, necessariamente um profissional, o que implicou um custo com a mão-de-obra, que acresceu ao custo com os materiais.
As dúvidas surgem no que tange a esse custo, o que é claramente demonstrado pela própria fundamentação da decisão impugnada, na qual não foi especificado qualquer elemento de prova direta do facto.
Com efeito, o Tribunal a quo limitou-se a estribar o juízo no orçamento que foi apresentado como documento 5 com a petição inicial, cuja autoria está atribuída à sociedade espanhola EMP02..., SL, e no qual se prevê o valor de € 4 550,00, acrescido de IVA, à taxa de 10%, num total de € 5 005,00, como custo da colocação de 175 m2 de “pasta y red para revestimento de sate com pintura acrílica blanca, remate de ventanas, etc.”, assumindo que não foi apresentada a fatura nem qualquer outro documento que comprove o pagamento daquele montante, mas entendendo que ele é de deduzir, por não ser “habitual” (sic) o dono da obra exigir tais documentos.
Discordamos frontalmente deste entendimento.
A nosso ver, o juízo de normalidade feito pelo Tribunal a quo carece de demonstração e cai mesmo por terra quando se atente em duas aspetos: em primeiro lugar, a colocação do capoto ocorreu quando já havia uma situação de dissenso entre Recorrentes e Recorridos, pelo que era expectável que estes, agindo com normal prudência, se munissem de documentos demonstrativos, a um tempo, do pagamento do preço que lhes foi exigido pelo trabalho e, a outro, de que efetivamente o suportaram, acrescido do respetivo IVA; em segundo lugar, sendo o valor alegado de € 5 005,00 (com IVA incluído), o seu pagamento não podia ser feito em numerário, atento o limite de € 1 000,00 para esse efeito imposto pelo Estado Espanhol no que tange a transações em que pelo menos uma das partes seja um profissional ou uma empresa (art. 7.º, § 1, ponto 1.1. da Ley 7/2012, de 29.10, na redação do art. 18 da Ley 11/2021, de 9.07).
As regras da normalidade apontam-nos, portanto, num sentido oposto ao considerado pelo Tribunal a quo, juízo que mais se adensa quando consideramos que, como decorre da fundamentação da sentença recorrida, não consta dos autos nem foi produzida na audiência final qualquer prova de que o trabalho foi realizado pela sociedade a quem foi atribuída a autoria do orçamento em questão e que importou, efetivamente, um custo de € 5 005,00 para os Recorridos, aporias que são bem evidenciadas pelos termos que foi apresentada a resposta à impugnação, na qual os Recorridos mais não fizeram que acrescentar uma menção vaga e genérica aos depoimentos das testemunhas que arrolaram sem que tivessem observado o elementar cuidado de as identificar e indicar as passagens da gravação da audiência final que seriam relevantes.
Nesta medida, apenas temos como seguro que o custo do trabalho de colocação do capoto na cobertura importou a obrigação dos Recorridos pagarem um preço não superior a € 5 005,00. A prova produzida não permite uma convicção positiva sobre o concreto montante de tal custo e, bem assim, sobre o efetivo pagamento da correspondente obrigação, o que implica a procedência da impugnação na parte correspondente.
Em conformidade: apenas se considera como provado que “[p]or sugestão da Ré, os trabalhos de aplicação do capoto na cobertura foram realizados por terceiro, o que implicou para os Autores a obrigação de pagarem a esse terceiro o respetivo preço, de montante não concretamente apurado, mas não superior a € 5 005,00”; considera-se como não provado que “[o]s Autores pagaram o preço de € 5 005,00 ao terceiro que colocou o capoto na cobertura.”
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1).4.3. No ponto 16 é afirmado que “[o]s trabalhos que faltam ser efetuados para concluir a obra e referidos em 15. foram orçamentados no valor de 35.534,14€.”
Estão em causa os trabalhos contratualizados entre Recorrente e Recorridos que estavam por fazer no momento em que cessou o contrato, pelo que a compreensão do enunciado apenas é possível tendo presente os enunciados dos pontos 14, onde se descreve o que estava feito, e 15, onde se discrimina o que faltava fazer, assim: “14. Nesta altura, a obra estava concluída no que respeita à estrutura da habitação, as instalações de eletricidade e canalização estava praticamente concluída, faltando os acabamentos e estavam parcialmente realizados os trabalhos de colocação de lã de rocha, OSB e pladur nas paredes”; “15. (…) faltando proceder a trabalhos de: - colocação das portas e janelas; - colocação de capoto e acabamentos das paredes exteriores; - terminar a colocação de lã rocha, OSB e Pladur em parte de paredes; - colocação de lã de rocha, OSB e Pladur no teto interior de la casa; - efetuar os acabamentos (pintura, acabamentos da eletricidade com a colocação de tomadas, espelhos, etc.); - efetuar os trabalhos carpintaria, móveis de cozinha, colocar pavimentos e azulejos e loiças de casa de banho e torneiras.”
Isto dito, a convicção do Tribunal a quo quanto a este conjunto de enunciados foi motivada do seguinte modo (transcrição):
“O estado da obra por essa altura, factualidade vertida no ponto 14 e 15 dos factos provados, resulta sobretudo das fotografias juntas aos autos, quer na petição inicial, quer na audiência de discussão e julgamento pela Ré (que demonstram a evolução e o desenvolvimento da obra).
Quanto à prova testemunhal realizada em audiência de discussão julgamento sobre esta matéria, não podemos deixar de salientar a clara intenção das testemunhas indicadas pelos Autores em diminuir a importância e a dimensão dos trabalhos executados pela Ré, negando a existência de alguns dos trabalhos mesmo quando confrontadas com fotografias que os retratavam, o que marcou os seus depoimentos de parcialidade - o que foi, naturalmente, pesado na análise de tais depoimentos.
Ora, a testemunha DD referiu quando a obra ficou parada só estava “praticamente o esqueleto montando”. No entanto, a testemunha admitiu que já existiam trabalhos de colocação de pladur e de instalação de eletricidade, embora quanto a estes a testemunha indicasse que estavam mal feitos e que, num fim de semana, a pedido dos Autores foi à obra refazer parte deles.
A testemunha EE referiu que só viu a estrutura de madeira no interior, completamente despida, sem cabos de eletricidade e tubos de canalização. Mesmo confrontado com fotografias que retratam a existência desses tubos e cabos, bem como paredes já forradas (conforme se vê a fls. 7 do doc. 6 junto com a petição inicial), a testemunha insistiu em descrever a obra como “quatro tábuas em madeira”, demonstrando, pois, ausência de distanciamento e a intenção que referimos supra.
FF indicou que a obra estava num estado muito inicial, começando por referir que os cabos de eletricidade que se veem nas fotografias do doc. 6 da petição inicial tinham sido por si colocados. Mais tarde esclareceu que a instalação da eletricidade tinha sido feita apenas numa proporção de 5%. Esta testemunha não nos mereceu credibilidade, desde logo, porque, como as demais, tentou passar uma ideia de pouco trabalho efetuado pela Ré, sendo que, quanto à eletricidade, quando indicou que tinha colocado os tubos todos que se veem, também é contrariada pela testemunha DD que indicou ter refeito (antes da intervenção desta testemunha) alguns dos trabalhos de eletricidade efetuados pela Ré.
É, pois, evidente que já tinha[m] sido efetuados trabalhos de instalação da eletricidade e que não correspondiam aos 5% indicados pela testemunha.
Ademais a testemunha foi alvo de acareação com a testemunha GG, eletricista contratado pela Ré, que indicou ter efetuado os trabalhos de eletricidade e explicou que os cabos já estavam todos passados para a casa toda, sendo que só os cabos para as telecomunicações estavam vazios. Esta testemunha indicou que faltava finalizar os trabalhos com a colocação dos espelhos/interruptores, tomadas, colocar e ligar os quadros (o que seria feito na fase final da obra) e fazer mais algum ponto de eletricidade, mas que no grosso (indicando a testemunha uma percentagem de 60%/70%) já estava feita.
Confrontado com o teor deste depoimento, a testemunha FF admitiu que poderiam já existir cabos de eletricidade na casa, indicando nesse momento que os já colocados eram manifestamente insuficientes para a dimensão da casa. Note-se: quando confrontada com as fotografias do doc. 6, a sua reação inicial foi indicar que aqueles cabos visíveis nas fotografias tinham sido por si colocados, mas neste momento descreve-os como insuficientes. Não se nega que tivessem de ser concluídos os trabalhos de instalação de eletricidade, como aliás a Ré admite, mas a testemunha com esta postura pretendeu evidentemente exacerbar os trabalhos que ainda faltavam realizar. Como se disse antes, esta testemunha pela sua postura, aliás comum às testemunhas dos Autores, bem como por ter sido contrariada pelo depoimento de outras testemunhas, não nos mereceu credibilidade quanto à descrição e caracterização do trabalho já efetuado pela Ré.
Também a testemunha HH negou que já existisse[m] paredes com o pladur no interior da habitação, o que é contrariado pelas fotografias juntas, quer na petição inicial, quer pela Ré em audiência de julgamento, bem como pelo depoimento da testemunha II.
Assim, a prova produzida pela Autora foi, nesta parte, claramente tendenciosa e pouco distante, pretendendo passar uma ideia de que a obra se encontrava num estado mais inicial do que resulta das fotografias e do próprio relatório de medição de obra, junto pelos Autores, onde é indicado que em fevereiro se iniciaram trabalhos no interior da habitação, como a colocação de tubos, gesso cartonado, placa de barreira de vapor (que a testemunha II explicou ser colocado antes do pladur) e lã de rocha. Acrescente-se que a carta dirigida pelos Autores à Ré, onde indicam os trabalhos não efetuados e que faltam concluir é indicado: “terminar a colocação de lã rocha, USB e Pladur na sala de entrada da casa”, de onde se pode retirar que tais trabalhos já tinham sido iniciados pela Ré, mas não estavam concluídos (o que, aliás, a Ré admite na carta de resposta: “os trabalhos de colocação de lã de rocha, USB e pladur efetivamente não foram concluídos”). Nas imagens juntas pela Ré em audiência, naquelas que se seguem às descrições efetuadas pela Ré “Trabalho na obra / Aplicação tela interior / pladur 2022/01/17” e “Trabalho na obra 2022/01/26” é possível ver que já existem placas de OSB colocadas no chão, nas paredes, bem como a realização de outros trabalhos nas paredes interiores que seriam finalizadas com pladur.
Valorou, pois, o Tribunal as fotografias juntas aos autos que demonstram a evolução da obra (sendo que as juntas pela Ré em audiência de julgamento apresentam legendas que indicam os trabalhos efetuados), o relatório de medição de obra junto com a petição inicial, conjugado com o depoimento de II, GG e JJ, que apresentaram maior isenção e distanciamento à causa, sendo que a conclusão a que se chega da conjugação de tais elementos de prova é corroborada pelas comunicações trocadas entre as partes.
Em suma, da conjugação desses elementos ficou o Tribunal convencido que a estrutura da habitação (considerando a construção e colocação dos módulos da casa modular e cobertura) estava completa, as instalações de eletricidade e canalização estavam praticamente concluídas, faltando os acabamentos (sendo que a testemunha KK, que indicou ter colocado muitos tubos de canalização nas casas de banho, não nos mereceu credibilidade quando confrontada com o depoimento de JJ, não tendo sequer ficado claro que aquilo que a testemunha indicou ser canalização mal feita não correspondesse a alterações solicitadas pelos Autores, por ex. de banheira para duche), bem como que estavam parcialmente realizados os trabalhos de colocação de lã rocha, OSB e pladur nas paredes interiores, faltando proceder a trabalhos de colocação das portas e janelas, terminar a colocação capoto e acabamentos finais nas paredes exteriores, concluir a colocação de lã rocha, OSB e Pladur em parte de paredes e colocar tais materiais no teto, efetuar os trabalhos carpintaria, móveis de cozinha, colocar pavimentos e azulejos, loiças de casa de banho e torneiras, e efetuar os acabamentos (pintura, acabamentos da eletricidade com a colocação de tomadas, espelhos, etc.).
Na verdade, tal corresponde essencialmente aos trabalhos indicados na comunicação dirigida pelos Autores à Ré, sendo que desses não se considera, contudo, provado que faltassem trabalhos de conclusão da cobertura, uma vez que parte desses trabalhos foi contratado pelos Autores e os demais foram realizados pela Ré (conforme decorre das imagens juntas pela Autora em audiência onde é indicado, na descrição “... no telhado pata intervenção do ..., 2021/12/03” e “Intervenção do ... 2022/12/17”), tendo sido ouvido quanto aos mesmos a testemunha LL.
Com efeito, esta testemunha que se dedica a realizar trabalhos de impermeabilizações (sendo proprietário da empresa EMP05...), afirmou ter procedido à colocação de TPO na cobertura, com tal atuação referiu “nós finalizamos o telhado”. Esta testemunha confirmou ainda que, entre a primeira data em que foi a obra e a segunda, houve alterações dos trabalhos efetuados, desconhecendo quem possa ter sido o autor de tais alterações. Ainda assim, concluíram os trabalhos. Tal depoimento, encontra correspondência às descrições efetuadas pela Ré nas fotografias, corroborando-se mutuamente.
Também não cremos que tenha ficado por efetuar o trabalho de ancoragem da casa à cimentação, uma vez que tal não consta da listagem de trabalhos a desenvolver e incluídos no contrato - cf. documento anexo a tal contrato. Ademais, a Ré, na sua carta de 20.09.2022, também indica expressamente “é um trabalho que nunca foi previsto uma vez que tal não é necessário”.
Assim, deu-se como não provado que tivesse sido contratado e faltasse efetuar os trabalhos de ancoragem da casa à cimentação e de conclusão da cobertura [facto não provado e) e f)].
Nesta matéria, bem como quanto ao valor dos trabalhos efetuados pela Ré, importa referir que a prova pericial efetuada nos autos se veio a revelar inútil, uma vez que foi determinada no pressuposto de que a obra se mantinha no estado em que a Ré a deixou, mas verificou-se que os Autores têm vindo a dar continuidade à obra - apesar de nunca terem comunicado tal realidade aos autos (através, por ex., de um articulado superveniente ou mesmo quando foi dada a oportunidade de se pronunciarem sobre o objeto da perícia) -, pelo que a realidade observada pelo perito não corresponde à que se encontra em discussão nos presentes autos.
Nesta medida, também não foi produzida prova quanto ao valor dos trabalhos executados pelos Autores.
A perícia, como indicámos, não o responde [fazendo-o por referência aos trabalhos que faltavam na data da deslocação do perito realizar (que são em número e dimensão muito inferior aos que a Ré deixou por realizar) e o preço da empreitada contratada].
Já os Autores não juntam, nem produziram em audiência, qualquer prova sobre o valor desses trabalhos, crendo-se, até, que chegam ao valor indicado na petição inicial apenas através de uma relação de proporcionalidade (regra de 3 simples) entre aquela que entendem que é a percentagem da obra concluída e o valor total da obra acordado entre as partes.
Ora, com o devido respeito, não é possível efetuar tal raciocínio.
É sobejamente conhecido que fases diferentes da obra tem custos diferentes, sendo a proporção de tal custo no preço global da obra pode não corresponder, em proporção, à fase/momento da construção. A mão de obra, as matérias-primas e outros materiais podem ter um custo e um peso proporcionalmente diferente em certas fases da obra quando comparadas com outras fases. Não se pode, pois, afirmar que 30% da obra concluída corresponderá a 30% do preço.
Por outro lado, o preço é acordado, incluindo também uma margem de lucro para o empreiteiro, sendo que tal margem também pode ter um peso diferente em cada fase ou até centrar-se apenas em algumas das fases da obra.
No caso concreto, tratando-se da construção de uma casa modular, é evidente que a construção dos módulos, que é efetuada na fábrica da Ré, terá um peso diferente e um custo também diferente, quando considerado no preço/custo global da obra, do que aquele que se possa atribuir à construção tradicional da estrutura de uma casa, que já é efetuada no local da obra, com fundações, betão, tijolos, etc.
Por outro lado, face ao valor que os próprios Autores indicam custar a conclusão da obra, parece-nos pouco razoável e crível que os trabalhos já efetuados tivessem apenas o custo de 30.000,00€ como alegam os Autores, porquanto isso significaria que a construção da casa modular teria um custo global pouco superior a 65.000,00€ - preço muito inferior ao preço contratado com a Ré. Cremos, pelo contrário, que o valor indicado pelos Autores quanto ao custo da conclusão da obra indicia a adequação/justeza dos valores já pagos ao estado da obra (serão necessários cerca de 35.000,00€ para concluir a obra, o que corresponde ao montante que faltaria pagar no preço global acordado entre as partes).
Nesta medida, e face à total ausência de prova do valor dos trabalhos realizados, demos tal factualidade, invocada pelos Autores, como não provada em d).
Resultou, no entanto, provado, com base nos orçamentos apresentados pelos Autores (doc. 8 da petição inicial), que os trabalhos que faltam concluir foram orçamentados no valor de 35.534,14€, tendo os Autores pago a quantia de 9.600€ por todos os trabalhos de carpintaria e colocação do pavimento flutuante, que anteriormente tinha sido orçamentado por 12.417,19€ - cf. facto provado n.º 16 e 17. Quanto a esta última matéria, foi ouvido em audiência a testemunha MM, carpinteiro que tem empresa “EMP06..., Lda.” e que efetuou os trabalhos descritos no orçamento inicialmente junto pelos Autores e que lhes foi efetuado por outra empresa (“EMP03...”) no valor de 12.417,19€. A testemunha realizou os trabalhos/serviços indicados naquele orçamento pelo preço de 9.600,00€, tal como consta da declaração junta em audiência de julgamento e que a testemunha indicou ter sido efetuada e assinada por si.
Quanto aos demais trabalhos orçamentados, não foram juntas faturas ou outros comprovativos de pagamentos. Contudo, foram ouvidas em audiência testemunhas que os confirmaram ou corroboraram.
Desde logo, a testemunha FF, eletricista que orçamentou e já efetuou os trabalhos de eletricidade em falta, tendo indicado que o valor a pagar pelos Autores rondaria os 5.000€ (valor próximo do orçamento de 4250€), merecendo nesta parte credibilidade. HH, que procedeu à colocação das janelas em PVC, indicou que ainda não passou fatura dos trabalhos, mas tinha ideia que os mesmos tinham o custo de 11.800,00€ (valor do orçamento apresentado, sem o IVA).
A Recorrente questiona a bondade da decisão, sustentando que o enunciado deve ser considerado como não provado, com os seguintes argumentos: não ficou provado que os trabalhos (materiais e mão-de-obra) discriminados nos orçamentos apresentados pelos Recorridos fossem efetivamente os que estavam por realizar; parte desses trabalhos foram realizados por pessoas diferentes das que apresentaram os referidos orçamentos, como sucedeu com os trabalhos de carpintaria, relativamente aos quais foi apresentado um orçamento de € 12 417,199, da EMP03..., e que, afinal, foram realizados pela testemunha CC, da EMP04..., que recebeu, como contrapartida, € 9 600,00, conforme referiu no depoimento que prestou na audiência final (sessão do dia 7 de março de 2025).
Os Recorridos sustentam a bondade da decisão dizendo que o enunciado retrata o que resulta dos orçamentos apresentados, nos quais são detalhados os trabalhos que ficaram por fazer, e que em nada foram contrariados pela prova produzida; pelo contrário, foram mesmo confirmados, como sucedeu, quanto aos trabalhos de carpintaria, com a referida testemunha CC.
Analisando, diremos que o primeiro aspeto que causa perplexidade é a terminologia usada na redação do enunciado: a expressão “os trabalhos foram orçamentados”, na sua literalidade, não nos diz mais que determinados empreiteiros – aqueles que orçamentaram – se dispuseram a realizar os trabalhos por um determinado valor; não nos diz que esse valor foi aceite pelos Recorridos nem tão pouco que esse valor é o correto, atento o normal funcionamento das regras do mercado. Pode mesmo tratar-se de um valor inflacionado.
Nesta perspetiva, estritamente literal, o enunciado do ponto 16 é inócuo: aquilo que importa apurar não é o valor que os ditos empreiteiros orçamentaram, mas o valor que os Recorridos pagaram – ou terão de pagar – para concluir a obra. Daí que essa perspetiva seja de rejeitar.
Com efeito, posto que os enunciados da matéria de facto assumem uma natureza instrumental em relação à decisão a tomar, o enunciado em questão deve ser lido à luz da sua teleologia, de modo que aquilo que importa definir não é se os trabalhos foram orçamentados numa determinada quantia, mas se os trabalhos tiveram (ou terão) um determinado custo para os Recorridos.
À luz deste enfoque, basta atentar na própria motivação aduzida pelo Tribunal a quo para se concluir que a prova produzida não permite sustentar a tese segundo a qual os Recorridos pagaram – ou terão de pagar – € 35 534,14 para concluir a obra, mas apenas que houve quem orçamentasse esse custo em € 35 534,14.
Este juízo sai reforçado quanto atentamos num simples aspeto: para o cômputo daquele valor de € 35 534,14, o Tribunal a quo considerou, quanto aos trabalhos de carpintaria, o orçamento de € 12 417,19 (€ 10 095, 28 + IVA a 23%), apresentado como documento 8 com a petição inicial, cuja autoria foi atribuída à entidade EMP03... – Mobiliário e Carpintaria, quando, na verdade, tais trabalhos acabaram por ser realizados pela testemunha CC, da EMP06..., Lda., pelo valor total de € 9 6000,00, conforme afirmado por esta na audiência final (sessão de 7 de março de 2025), com arrimo no escrito nessa sede apresentado e junto aos autos, o que, de resto, foi plasmado no enunciado do ponto 17 do rol dos factos provados [“tendo os Autores avançado já com a contratação de terceiros para concluir a obra e pago a quantia de 9.600€ por todos os trabalhos de carpintaria e colocação do pavimento flutuante, que anteriormente tinha sido orçamentado por 12.417,19€.”]
Sai reforçado, também, quando consideramos que o próprio Tribunal a quo desvalorizou os depoimentos dos autores dos orçamentos de eletricidade e de caixilharia, as testemunhas FF e HH, respetivamente, por ter considerado que um e outro, assim como as demais testemunhas arroladas pelos Recorridos, procuraram “diminuir a importância e a dimensão dos trabalhos executados pela Ré, negando a existência de alguns dos trabalhos mesmo quando confrontadas com fotografias que os retratavam, o que marcou os seus depoimentos de parcialidade.” (sic) Vale isto por dizer que nos referidos orçamentos foram contemplados trabalhos que, afinal, a Recorrente já tinha realizado quando cessou o contrato, o que mina por completo qualquer valor probatório que deles se pretenda retirar para a prova do enunciado.
Nesta medida, sem necessidade de outras considerações, procede a impugnação, considerando-se o enunciado (interpretado em termos teleológicos e não meramente literais) como não provado.
***
1).5. Em resultado do que antecede, os factos a considerar na apreciação do aspeto jurídico da causa são os seguintes:
“1. Os Autores são donos e legítimos possuidores de um terreno para construção urbana, sito em ... - ..., ... 61, parcela ...96, ...30 ..., ..., em Espanha, inscrito com a referência cadastral n.º 36001A0610.
2. A Ré é uma sociedade comercial que se dedica, entre o mais, à fabricação de mobiliário de cozinha e para outros fins, bem como ao fabrico e construção de casas de madeira e modulares.
3. A Ré, na qualidade de primeira outorgante, e os Autores, como segundos outorgantes, celebraram, em 03.02.2020, um acordo que visava a construção, pela Ré, de uma casa modular de 110m2, em estrutura de madeira, da sua designada “gama Premium”, aí prevendo:
“TERCEIRA O preço global da empreitada é de €105.000,00 (cento e cinco mil euros), o que inclui o IVA à taxa legal. QUARTA As alterações introduzidas à obra, se requeridas pelos SEGUNDOS OUTORGANTES, implicarão revisão de preço e prazos a convencionar entre os outorgantes. (…) SEXTA A PRIMEIRA OUTORGANTE obriga-se a iniciar a obra de empreitada logo que seja aprovado o competente processo de obras e emitida a respetiva licença de construção, e a entregá-la, executada e concluída dentro do prazo de 12 (doze) meses. SÉTIMA O pagamento do preço estipulado na cláusula TERCEIRA do presente contrato de empreitada será efetuado da seguinte forma: a) Com a assinatura do presente contrato, a entrega do valor de 10.000,00€ (…) b) O restante do preço será efetuado da seguinte forma: 1 - Para o início da obra, com a emissão da competente licença de construção, a entrega de €30.000,00; 2 - Pronta de estrutura, a entrega de €30.000,00; 3 - A terminar acabamentos, a entrega de €30.000,00; 4 - Com a entrega da obra o pagamento do remanescente de €5.000,00
(…) NONA O prazo para a execução e conclusão da obra estipulado na cláusula SEXTA do presente contrato de empreitada poderá ser revisto em função e por força dos trabalhos extra-empreitada cuja realização seja ordenada pelos SEGUNDOS OUTORGANTES” - cf. doc. 2 junto com a petição inicial que aqui se dá por integralmente reproduzido.
4. Nos termos do documento anexo ao acordo referido em 3., no preço da referida obra incluía-se, entre o mais, o seguinte:
a) Base, estrutura e divisórias de madeira em pinho nórdico;
b) Tetos e interior revestido em pladur;
c) Isolamento interior das paredes com espuma;
d) Portas interiores completas, em MDF hidrófugo lacado ao folheado em madeira e envernizado;
e) Tijoleira na cozinha e nas casas de banho;
f) Colocação de pavimento flutuante;
g) 2 casas de banho com 2 sanitas, 1 duche, 1 banheira, 2 móveis com lavatório e espelho;
h) Porta de entrada e janelas em PVC, com vidro duplo e estores elétricos;
i) Acabamento exterior em capoto e madeira tratada;
j) Acabamento interior em pladur;
k) Eletricidade e pichelaria;
l) Cozinha aberta com ilha mobilada e tampo em granito;
m) Roupeiros embutidos com portas de abrir.
5. A licença camarária foi emitida no mês de agosto de 2020, tendo a Ré dado início à execução da obra pelo setembro/outubro desse ano.
6. No período de realização da obra, verificaram-se vários constrangimentos à atividade da Ré, desde confinamentos, limitações de circulações, aumentos dos preços de matérias-primas e atrasos no fornecimento e dificuldades na aquisição de materiais e matérias-primas.
7. A 08.02.2022, a Ré enviou uma carta aos Autores na qual comunicava: “Conforme é do conhecimento geral, a pandemia ocasionada pela Covid-19 que ainda nos encontramos a enfrentar, com sucessivos confinamentos, causou vários constrangimentos na vida das empresas e a nossa empresa não é exceção. (…) fomos afetados pela falta de matérias-primas, cujos preços foram também inflacionados, além dos atrasos e incumprimentos por parte dos nossos fornecedores, não nos foi possível dar integral cumprimento ao contrato celebrado. Como já tínhamos transmitido a V/Exas., e perante todas estas situações, foi proposto a resolução do contrato em causa, o que não foi aceite por V/Exas. (…) Assim sendo, e a fim de encontrarmos uma solução equitativa para ambas as partes, vimos trazer à consideração de V/Exas. Duas propostas (…): 1ª Proposta: Pelo valor já liquidado por parte de V/Exas., a nossa empresa compromete-se a realizar os seguintes trabalhos, no prazo adicional de 30 dias: - terminar a colocação de pladur com paredes em cru; - colocação de tela no teto interior da habitação; - colocação de lã mineral no teto; - colocação de tela na parte interior da habitação. Ficaria assim por conta de V/Exas. os restantes acabamentos interiores e exteriores. 2ª Proposta: A nossa empresa compromete-se a terminar a construção contratada, no prazo de 90 a 120 dias. Para comportar as alterações ao projeto inicial, implicará um aumento do preço da empreitada em €6.000,00 (seis mil euros) (…)” - cf. doc. 7 junto com a petição inicial.
8. Os Autores não aceitaram qualquer das soluções propostas, exigindo a conclusão da obra pelo preço acordado,
9. (…) período no qual a Ré não deu continuidade aos trabalhos,
10. Nesse momento, os Autores já tinham entregue 70.000,00€ à Ré, cumprindo os prazos e plano de pagamento estabelecidos no acordo referido em 3.
11. Por sugestão da Ré, os trabalhos de aplicação do capoto na cobertura foram realizados por terceiro, o que implicou para os Autores a obrigação de pagarem a esse terceiro o respetivo preço, de montante não concretamente apurado, mas não superior a € 5 005,00”; 12. Por carta remetida a 28.07.2022, os Autores remeteram comunicação à Ré, na qual indicavam: “V.Ex.ª comprometeram-se a concluir a empreitada no prazo máximo de doze (12) meses. Assim, conforme a cláusula sexta do contrato de empreitada o prazo de execução da obra terminou em 03.02.2021. Acontece que na presente data a empreitada em causa encontra-se por concluir os seguintes trabalhos: - capoto; - colocação de janelas e das portas exteriores; - acabamentos do telhado; - ancoragem da casa à cimentação; - instalação elétrica; - canalização completa; - terminar a colocação de lã rocha, USB e Pladur na sala de entrada da casa; - colocação de lá de roca, USB e Pladur em todo o teto interior de la casa. Mais se refira que a empreitada encontra-se sem qualquer tipo de intervenção desde o passado dia 21.01.2022 estando a obra desde essa data em completo e total abandono por parte de V.Ex.ª. Mais se refira que V.Ex.ª em nenhum momento, altura ou circunstância invocaram ou nos transmitiram qualquer facto plausível e devidamente fundamentado para a mora a entrega e conclusão da empreitada. (…) Assim sendo (…) vimos pela presente resolver de forma imediata o contrato de empreitada em virtude do incumprimento dos deveres resultante dos mesmo por facto(s) total, absoluta e exclusivamente imputável(is) a V.Ex.ª.” - cf. doc. 11 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
13. A comunicação referida em 12. não foi recebida pela Ré, tendo sido remetida por WhatsApp e chegado ao conhecimento da Ré que, a 20.09.2022, respondeu em carta, na qual fazia constar: “(…) não podemos concordar com o conteúdo da mesma. (…) tal como é do conhecimento geral, logo após a celebração do referido contrato, o país e o mundo foram assolados pela Pandemia da Covid-19, com sucessivos confinamentos, o que levou à paragem na atividade das empresas em todos os sectores de atividade, incluindo a nossa empresa, seguidos da falta de matérias-primas e aumento dos respetivos preços. Mais recentemente, com a invasão da Ucrânia, o escalar dos preços continuou afetando desta vez também o preço dos combustíveis.
(…) Ainda, e nos termos do previsto na Cláusula Quarta do contrato, as alterações introduzidas à obra por parte de V/Exas. também implicam a revisão dos preços e dos prazos de execução da obra. Nesse sentido, e porque no decurso da execução da obra contratada, foram solicitados por V/Exas. alterações ao projeto inicial e outros trabalhos, os quais não estavam incluídos no projeto inicial e por isso não foram orçamentados, implicou uma revisão do respetivo preço. (…) V/exas é que sempre se negaram em proceder aos pagamentos acrescidos que lhes foram solicitados, sendo por isso V/Exas quem se encontra em incumprimento.
(…) De referir que, no decurso da obra foi notado pelos nossos funcionários e outros profissionais por nós contratados que os trabalhos realizados teriam sido “mechidos” por terceiros, o que, aleado à V/ constante crítica contra a nossa forma de trabalhar, conduziu irremediavelmente à perda de confiança entre as partes” - cf. doc. 12 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
14. Nesta altura, a obra estava concluída no que respeita à estrutura da habitação, as instalações de eletricidade e canalização estava praticamente concluída, faltando os acabamentos e estavam parcialmente realizados os trabalhos de colocação de lã de rocha, OSB e pladur nas paredes,
15. (…) faltando proceder a trabalhos de: - colocação das portas e janelas; - colocação de capoto e acabamentos das paredes exteriores; - terminar a colocação de lã rocha, OSB e Pladur em parte de paredes; - colocação de lã de rocha, OSB e Pladur no teto interior de la casa; - efetuar os acabamentos (pintura, acabamentos da eletricidade com a colocação de tomadas, espelhos, etc.); - efetuar os trabalhos carpintaria, móveis de cozinha, colocar pavimentos e azulejos e loiças de casa de banho e torneiras.
16. omissis.
17. (…) tendo os Autores avançado já com a contratação de terceiros para concluir a obra e pago a quantia de 9.600€ por todos os trabalhos de carpintaria e colocação do pavimento flutuante, que anteriormente tinha sido orçamentado por 12.417,19€.
18. Em virtude na demora na conclusão da obra, os Autores sentiram-se nervosos, tristes e angustiados.
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(da reconvenção)
19. Durante a execução da obra, os Autores requereram a alteração do projeto inicial, com a implementação de mais uma casa de banho, o que implicou a construção de mais uma parede, mais instalações elétricas e mais trabalhos de pichelaria.
20. A Ré deixou no local da obra vários materiais que já não seriam aplicados no local:
a) 3 packs de 6 sacos de lã mineral;
b) Tubos de PVC de vários comprimentos;
c) 2 quadros de eletricidade;
d) vários rolos de 3 condutores para eletricidade;
e) 3 rolos de tela de isolamento 2 – transpir 150; 1 transpir 110;
f) 30 placas de OSB, cujo valor global se cifra em 4.503,00€.”
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2).1. Passamos para a resposta à 2.ª questão, começando por lembrar que os Recorridos alegaram que a Recorrente incumpriu, em termos definitivos, o contrato pelo qual se obrigou a construir um edifício num prédio de que são proprietários mediante o pagamento de um preço. Em conformidade, pediram a condenação da Recorrente no pagamento da quantia de € 40 0000,00, correspondente à diferença entre o valor do edificado no momento em que a Recorrente deixou de cumprir (que alegaram ser de € 30 000,00) e o montante do preço que já haviam pago (€ 70 000,00), ou, subsidiariamente, no pagamento da quantia de € 35 534,14, montante necessário à conclusão da obra por terceiro, e, em qualquer caso, uma compensação por danos não patrimoniais. Na sentença, se bem a interpretamos, foi entendido que os Recorridos, donos da obra, resolveram o contrato de empreitada celebrado com a Recorrente de forma ilícita, posto que não fundada num incumprimento definitivo imputável a esta; essa resolução ilícita equivale a uma desistência da empreitada [“Assim, tendo os Autores procedido à resolução do contrato, no momento em que não se verifica[va] o incumprimento definitivo da Ré, essa resolução é infundada e equivale à desistência da obra (art. 1229 do Código Civil)”]; concomitantemente, porque a Recorrente, em resposta àquela declaração dos Recorridos, disse que, perante ela, ocorreu uma “irremediável perda de confiança”, o contrato deve considerar-se “resolvido / extinto, com base no seu incumprimento e perda de interesse de ambas as partes.” (sic) Na sequência, depois de se fazer uma análise dos efeitos da resolução, entendeu-se que, não sendo possível à restituição do que foi prestado pelas partes, atenta a natureza do contrato de empreitada, haveria que fazer equivaler as prestações já realizadas pelas partes de modo a que o pagamento de € 70 000,00 já efetuado pelos Recorridos equivalesse à parte da obra realizada pela Recorrente.
Desenvolvendo este raciocínio, depois de se ter salientado que não resultou provado o valor da obra realizada pela Recorrente, designadamente o valor de € 30 000,00 alegado pelos Recorridos, considerou-se que, “[a]inda assim (…) deve ser efetuado um ajuste ao valor da obra realizada, desde logo por um imperativo de justiça uma vez que resultou provado que os Autores procederam ao pagamento de € 5 050,00 a terceiro por parte dos trabalhos da cobertura que, nos termos do contrato, seriam executados pela Ré.” (sic)
A Recorrente questiona a bondade desta solução jurídica dizendo que, não tendo resultado provado que os Recorridos pagaram mais do que o valor dos trabalhos por si executados, não tem qualquer obrigação (restitutória) para com eles.
Vejamos.
***
2).2. O primeiro aspeto que, a nosso ver, importa esclarecer no caso dos autos prende-se com a lei aplicável à relação contratual, inequivocamente enquadrável no tipo da empreitada (cf. art. 1207 do Código Civil), que se estabeleceu entre a Recorrente e os Recorridos, atenta a sua natureza plurilocalizada: os donos da obra são de nacionalidade espanhola e residem em Espanha; a empreiteira é uma sociedade comercial portuguesa; a obra consistia na incorporação de um edifício num prédio em Espanha.
Isto convoca a aplicação do Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, conhecido como Regulamento Roma I, instrumento jurídico da União Europeia que estabelece regras uniformes para a resolução de conflitos de leis em matéria civil e comercial, reforçando a segurança e a previsibilidade jurídicas no Espaço Europeu de Justiça. A sua aplicação substitui as leis nacionais de direito internacional privado dos Estados-Membros, com exceção da Dinamarca.
A sua aplicabilidade deve ser confirmada em três âmbitos distintos.
Em primeiro lugar, quanto ao seu âmbito material, o Regulamento aplica-se a “obrigações contratuais em matéria civil e comercial” (art. 1.º/1). O contrato de empreitada, que se destina à realização de uma obra mediante o pagamento de um preço, enquadra-se inequivocamente nesta categoria, não se encontrando nas exclusões taxativas previstas no art. 1.º/2.
Em segundo lugar, no que respeita ao âmbito temporal, o Regulamento é aplicável a contratos celebrados após 17 de dezembro de 2009, o que também não suscita qualquer dívida no caso.
Por fim, a sua aplicação territorial é universal, o que significa que se aplica em “situações que envolvem um conflito de leis” entre Estados-Membros. Uma vez que o empreiteiro é português e os donos da obra são espanhóis, o elemento de conexão internacional está plenamente verificado.
A regra primária e fundamental do Regulamento Roma I é o princípio da autonomia da vontade, consagrado no art. 3.º As partes têm a liberdade de escolher a lei aplicável ao seu contrato, seja de forma expressa ou por demonstração clara nas cláusulas contratuais ou nas circunstâncias do caso. Esta regra confere um alto grau de flexibilidade e segurança jurídica às transações comerciais internacionais.
Na ausência de uma escolha expressa, como sucede no caso, a análise deve prosseguir para as regras de conexão supletivas previstas no art. 4.º do Regulamento.
O contrato de empreitada, em que uma das partes (o empreiteiro) se obriga a realizar uma obra para a outra parte (o dono da obra) mediante o pagamento de um preço, constitui uma modalidade do contrato de prestação de serviço.A prestação que o caracteriza não é a entrega do bem final (a obra), mas sim a atividade de execução dos trabalhos, a prestação de uma atividade de facere (fazer). Esta distinção é crucial para a determinação da lei aplicável na falta de escolha das partes.
Com efeito, o art. 4.º/1 do Regulamento Roma I estabelece uma série de regras específicas para tipos contratuais comuns. A alínea b) do n.º 1 determina que, na ausência de uma escolha de lei, “o contrato de prestação de serviços é regulado pela lei do país em que o prestador de serviços tem a sua residência habitual.”
No caso em análise, o prestador de serviços é uma pessoa jurídica com sede em Portugal, que conduz, prima facie, por aplicação literal e direta da norma, à conclusão de que a lei substantiva aplicável ao contrato de empreitada é a portuguesa, solução que parece garantir a segurança jurídica ao ligar o contrato a um elemento estável e facilmente identificável. O seu resultado, porém, neste contexto específico é contraintuitivo.
A regra foi concebida para serviços que não dependem de uma localização física fixa, como a consultoria ou a programação de software. No caso de um contrato de empreitada, a essência do negócio reside na sua execução num local específico: a obra em Espanha. A aplicação do direito português para regular todas as questões substanciais do contrato, como prazos, defeitos da obra, determinação do preço e responsabilidade contratual, criaria uma desconexão significativa entre a lei aplicável e a realidade física e comercial do contrato. Esta tensão entre a regra de conexão primária (residência do prestador) e o centro de gravidade do contrato (local da obra) implica que atentemos na cláusula de exceção do n.º 3 do art. 4.º do Regulamento, onde se estabelece que “[c]aso resulte claramente do conjunto das circunstâncias do caso que o contrato apresenta uma conexão manifestamente mais estreita com um país diferente do indicado nos n.ºs 1 ou 2, é aplicável a lei desse outro país.”
Esta cláusula, verdadeira válvula de escape, atua como um mecanismo de correção para evitar a aplicação de uma lei que, embora designada pela regra geral, seria manifestamente inadequada para reger a relação contratual. O recurso a esta cláusula só deve ocorrer quando a alternativa à lei designada pela prestação característica for clara e inquestionável.
Pois bem, no caso de um contrato de empreitada, a avaliação de uma conexão “manifestamente mais estreita” com um país diferente de Portugal leva a uma forte ponderação dos seguintes elementos, que apontam para o direito espanhol:
(i) local de execução da obra: o aspeto mais relevante do contrato é a sua execução integral em Espanha. O locus solutionis (local da obra) é o ponto onde o contrato se materializa. É aqui que os trabalhos são realizados, os materiais são entregues, os subcontratados são geridos, e as inspeções e fiscalizações ocorrem. A aplicação de uma lei que não seja a do local da execução seria impraticável e ineficiente;
(ii) objeto do contrato: o objeto do contrato é a realização de uma obra sobre um bem imóvel localizado em Espanha. Embora o contrato de empreitada seja uma prestação de serviço, a sua finalidade última é a afetação de um bem imóvel.
(iii) residência dos donos da obra: os donos da obra são de nacionalidade espanhola. Embora não se trate da parte que realiza a prestação característica, a sua residência no local da obra solidifica a ligação do contrato ao território espanhol.
A inclusão do advérbio manifestamente na cláusula de exceção não é acidental. Exige que o desvio da regra primária seja óbvio e indiscutível. Num contrato de empreitada, o locus solutionis é o centro de gravidade económico e jurídico. É o local onde as responsabilidades por defeitos, a gestão de riscos e a supervisão técnica se manifestam. A aplicação de uma lei estrangeira ao local da obra geraria ineficiências, insegurança e potenciais conflitos com as normas locais de direito administrativo, uma situação que o Regulamento foi concebido para evitar. Consequentemente, a conexão com a Espanha não é apenas mais estreita; é manifestamente mais estreita, justificando o afastamento da lei portuguesa em favor da aplicação do direito espanhol como a lei substantiva do contrato, em detrimento do direito português.
Sem prejuízo disto, como veremos, a aplicação de um ou de outro conduz a resultados que não apresentam diferenças de tomo, pelo que a opção feita não assume qualquer relevo prático, impondo-se apenas por uma questão de rigor.
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2).3. Isto dito, resulta da matéria de facto adquirida que a Recorrente se obrigou a concluir a obra no prazo de um ano, o qual teve como termo a quo a emissão da licença de construção, facto ocorrido em agosto de 2020. Decorrido esse prazo, em agosto de 2021, a obra não estava concluída, o que vale por dizer que se constituiu então uma situação de mora por parte da Recorrente na execução e conclusão da prestação a que estava obrigada.
No direito português vale, como sabemos, a regra segundo a qual incumbe ao devedor provar que o incumprimento (lato sensu) da obrigação não procede de culpa sua (art. 799/1 do Código Civil). Trata-se, na verdade, de uma presunção legal, especialmente relevante nas obrigações de resultado, que, ao isentar o credor de provar a culpa do devedor inadimplente, exceciona a regra geral de distribuição do ónus da prova do art. 342/1 do Código Civil, pois a culpa, enquanto pressuposto da responsabilidade civil obrigacional, assume-se como um facto constitutivo do direito à indemnização de que é titular o credor.
No direito espanhol, não existe uma previsão legal semelhante. A leitura do disposto no art. 1101 do Código Civil, segundo o qual “[f]icam sujeitos à indemnização dos danos e prejuízos causados os que no cumprimento das suas obrigações incorrerem em dolo, negligência ou mora, e os que de qualquer modo contravierem ao teor daquelas”[1], conjugado com o disposto no art. 217/2 da Lei de Enjuiciamiento Civil, poderia levar à conclusão de que cabe ao credor o ónus de provar a existência de culpa do devedor. A doutrina e a jurisprudência espanhola têm, porém, considerado, por aplicação analógica do art. 1183 do Código Civil [“Siempre que la cosa se hubiese perdido en poder del deudor, se presumirá que la pérdida ocurrió por su culpa y no por caso fortuito, salvo prueba en contrario, y sin perjuicio de lo dispuesto en el artículo 1.096.”], que nas obrigações de resultado, como é o caso da que recai sobre o empreiteiro, é de presumir a culpa do devedor que, assim, só pode libertar-se da responsabilidade provando que o incumprimento se deveu a um caso fortuito ou de força maior ou à culpa do próprio credor ou de um terceiro. Neste sentido, Luís Díez-Picazo, / António Gullón, Sistema de Derecho Civil, II, 6.ª ed., Madrid: Tecnos, 1992, pp. 216-217.
A esta luz, não custa aceitar que, no caso vertente, a Recorrente conseguiu provar que para o referido atraso na conclusão da obra concorreu um caso de força maior. Referimo-nos às restrições à circulação transfronteiriça que foram impostas, tanto pelo Estado Espanhol, como pelo Estado Português, à circulação de pessoas e de mercadorias com o objetivo de impedir a propagação geral da doença COVID-19, que se prolongaram, com variações na sua intensidade, ao longo dos anos de 2020 e 2021. O próprio legislador português classificou a pandemia gerada por essa doença como uma “causa de força maior” (art. 8.º do DL n.º 19-A72020, de 30.04).
De facto, ambos os Estados adotaram medidas suscetíveis de condicionar a prestação da Recorrente. Mais concretamente, em Portugal, a restrição à circulação foi estabelecida pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 10-A/2020, de 13.03, que determinou o restabelecimento do controlo de fronteiras e a suspensão dos voos entre os dois países. Esta medida foi complementada pelo Decreto n.º 2-A/2020, de 20.03, que regulamentou o Estado de Emergência e impôs o dever geral de recolhimento domiciliário. Pelo lado espanhol, o confinamento foi imposto pelo Real Decreto n.º 463/2020, de 14.03, que declarou o Estado de Alarma e estabeleceu o encerramento das fronteiras. Em ambos os casos, a circulação de mercadorias foi sempre permitida apenas para garantir o abastecimento de bens essenciais. A circulação de trabalhadores transfronteiriços também foi autorizada, mediante a apresentação de documentos comprovativos, bem como a circulação para fins de reunião familiar urgente ou emergência médica.
Após uma reabertura temporária no verão de 2020, as fronteiras foram novamente condicionadas devido ao aumento exponencial de casos. Em Portugal, as restrições foram reativadas em janeiro de 2021 com o Decreto n.º 3-A/2021, de 14.01, que regulamentou um novo Estado de Emergência e impôs o confinamento geral. A circulação entre concelhos foi proibida, o que, na prática, limitava severamente a mobilidade. Espanha adotou o Real Decreto n.º 926/2020, de 25.10, que permitiu às comunidades autónomas a imposição de confinamentos perimetrais. A fronteira com Portugal foi novamente fechada, exceto para as situações já mencionadas, mantendo-se o controlo de circulação.
A reabertura total da fronteira terrestre só ocorreu de forma progressiva e em datas diferentes, dependendo da evolução epidemiológica, com a normalização a acontecer mais tardiamente, na primavera e verão de 2021.
Perante este quadro é de aceitar que a Recorrente teve dificuldades em transportar materiais, equipamentos e, mais criticamente, as suas equipas de trabalho para a obra, o que permite concluir pela ausência de culpa da sua parte até ao momento em que a circulação transfronteiriça retomou a normalidade que, por facilidade, vamos considerar ter ocorrido no final do verão de 2021.
Simplesmente, o atraso na execução e conclusão da obra prolongou-se para além desse momento. Com efeito, a matéria de facto adquirida revela-nos que em fevereiro de 2022 a obra estava parada. Nessa altura, a Recorrente enviou uma carta aos Recorridos em que pedia a revisão dos termos contratuais, designadamente no que tange ao preço, para o que invocou o aumento do custo das matérias-primas, o que não foi aceite pelos Recorridos.
Perante isto, frustrada a renegociação do contrato, restava à Recorrente a possibilidade de, com apelo à cláusula rebus sic stantibus, conseguir a modificação ou a cessação do contrato de modo a restabelecer o equilíbrio das prestações, segundo juízos de equidade. Estaria então em causa a aplicação do instituto que no direito português é conhecido como “resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias”, regulado no art. 437 do Código Civil, e que, apesar de não expressamente contemplado na lei espanhola, a jurisprudência deste país vem admitindo como ressalva ao princípio pacta sunt servanda, consagrado no art. 1091 do Código Civil. Neste sentido, podemos indicar a Sentencia do Tribunal Supremo (STS) 243/2012 (ECLI:ES:TS:2012:2868)[2], na qual se estabelecem os princípios gerais da aplicação do instituto, a saber: uma mudança radical na base factual do contrato, de tal modo que as circunstâncias de facto em que o contrato foi finalizado são substituídas por outras que diferem substancialmente das originais em termos que permitam afirmar que, se as partes tivessem conhecido as novas circunstâncias, não teriam finalizado o contrato nos termos em que o fizeram; uma rutura total nos termos de reciprocidade e equivalência entre as prestações nos quais o contrato foi finalizado, que é assim reduzida à sua expressão mínima, resultando num desequilíbrio entre as obrigações assumidas por cada parte (enquanto uma delas continua obrigada a cumprir as suas obrigações nos termos inicialmente previstos, a outra ou fica total ou parcialmente isenta do cumprimento, ou vê o valor da sua prestação ser radicalmente reduzido; a imprevisibilidade da causa da desproporção (nenhuma das partes podia razoavelmente tê-la em conta no momento da finalização do contrato, usando a diligência exigível); e a ausência de outro remédio ou de um acordo expresso entre as partes.
Esta possibilidade, porém, não opera de forma automática, modificando o contrato ou mesmo suspendendo a sua vigência. Na ausência de acordo entre as partes, a sua aplicação opera, necessariamente, ope judicis, conforme explica, à luz do direito espanhol, Antonio-Manuel Morales Moreno (“El efecto de la pandemia en los contratos ¿es el derecho ordinario de contratos la solución?”, Anuario de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de Madrid, ISSN 1575-8427, n.º Extra 2, 2021, pp. 19-24)[3], quando escreve que “[o] fracasso da renegociação do contrato deixa a porta aberta para a intervenção judicial, a pedido da parte afetada pela alteração das circunstâncias. Embora possam existir variantes na aplicação da cláusula, existem, no entanto, diretrizes coincidentes. O papel do juiz pode ser, tanto adaptar o contrato sob certas diretrizes para restabelecer o equilíbrio (emitir um contrato modificado) como declará-lo resolvido (determinando o momento a que retroagem os efeitos da resolução por ele decretada).”
Certo é que a Recorrente, após a recusa do Recorridos em renegociar – recusa que, à luz dos dados disponíveis, não pode ser considerada contrária aos ditames da boa-fé, transversais a todas as fases do contrato –, não tomou a iniciativa de obter uma modificação potestativa do contrato. Permaneceu, portanto, vinculada ao cumprimento da obrigação assumida.
Deste modo, o atraso que subsequentemente se verificou na execução e conclusão dos trabalhos – que, como resulta do ponto 8 da fundamentação de facto, estiveram parados, pelo menos, entre fevereiro e 28 de julho de 2022 – não pode deixar de ser subjetivamente imputado à Recorrente.
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2).4. Como é sabido, a mora do devedor é fonte da obrigação de indemnizar. Estão em causa, bem entendido, os prejuízos que dela resultem (art. 1101 do Código Civil Espanhol), tal como o art. 804/1 do Código Civil Português). Será a hipótese, por exemplo, numa empreitada de construção de edifício destinado à habitação, das despesas que o dono de obra teve com o arrendamento de uma casa para habitar no período da mora, que este poderá, portanto, imputar na esfera jurídica do empreiteiro.
Mas a mora não faz extinguir o contrato nem exonera as partes do cumprimento das obrigações dele resultantes. Isso só sucede quanto é convertida em incumprimento definitivo, com o consequente surgimento, na esfera jurídica do accipiens, do direito de resolver o contrato.
No direito português, essa conversão opera por um dos meios previstos no art. 808, que constituiu “uma ponte essencial de passagem do atravessadouro (lamacento e escorregadio) da mora para o terreno (seco e limpo) do não cumprimento definitivo da obrigação” (Antunes Varela, anotação ao Ac. STJ de 2.11.89, na Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3853, pp. 118-119): a perda de interesse por parte do credor; e o decurso de um prazo suplementar de cumprimento estabelecido pelo accipiens. Neste sentido, RP 24.10.2005 (0554532), Fonseca Ramos.
Tenha-se presente que Inocêncio Galvão Telles (Direito das Obrigações, 7.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 455) censura os arts. 801 e 808 pela sua insuficiência verbal: o art. 801 só prevê a resolução do contrato bilateral no caso de não cumprimento indireto, em que o devedor, por culpa sua, impossibilita a realização da prestação; o art. 808 não prevê a resolução do contrato bilateral no caso de não cumprimento direto, em que o devedor, por culpa sua, deixa de cumprir – simplesmente, deixa de cumprir. O problema resolve-se, ou deve resolver-se, através da interpretação extensiva ou da integração (por analogia) do art. 801. Este aplica-se, por interpretação declarativa, ao não cumprimento definitivo direto; por interpretação extensiva (ou por analogia) ao não cumprimento definitivo indireto. A aludida insuficiência verbal deve assim corrigir-se estendendo o alcance do n.º 2 do art. 801 “à situação de o devedor deixar de cumprir culposamente a prestação não impossibilitada.” Isto porque a resolubilidade do contrato bilateral constitui um afloramento ou uma concretização de um princípio geral de interdependência das obrigações sinalagmáticas”, pelo que “seria de todo absurdo que essa interdependência conduzisse à resolução do contrato quando uma das partes deixasse de o respeitar por se colocar na impossibilidade de o cumprir e não quando voluntariamente o violasse.”
Vem sendo entendido que a declaração, ainda que tácita, de não-cumprimento, feita antecipadamente pelo devedor, bem como, nos contratos, como a empreitada, de execução continuada, a recusa de prosseguimento da prestação já iniciada, equivale, ipso iure, a um incumprimento definitivo.
A este propósito, não há, no nosso direito positivo, qualquer norma a propósito da declaração de não cumprimento e dos efeitos dela. Os contributos doutrinais debruçam-se, sobretudo, sobre a desnecessidade de interpelação do devedor que declarou não querer cumprir para operar a constituição em mora.
Vaz Serra (“Mora do Devedor”, BMJ, n.º 48, pp. 60 e ss.), abordou o tema, aquando dos trabalhos preparatórios do Código Civil, referindo em especial o art. 1219/2 do Código Civil italiano, que dispensa a intimação quando o devedor declare por escrito não querer cumprir a obrigação, e a prática jurisprudencial francesa, no sentido de tornar dispensável a interpelação quando o devedor tome a iniciativa de “fazer conhecer ao credor a sua recusa de cumprir”. O mesmo Autor (“Impossibilidade Superveniente / Cumprimento Imperfeito Imputável ao Devedor”, BMJ, n.º 47, p. 97), propôs uma solução de tipo italiano, exigindo que, por escrito, o devedor manifeste “clara e definitivamente que não fará a prestação devida”.
Na literatura subsequente ao Código Civil vigente, Pessoa Jorge (Lições de Direito das obrigações, I, 1967, pp. 296 – 298) toma uma posição claramente contrária. A solução do vencimento imediato da obrigação, perante uma declaração do devedor de não querer cumprir, teria um especial interesse nas obrigações sujeitas a prazo: porém, ela não seria, de modo algum, aceitável quanto a estas: “Na verdade, numa obrigação sujeita a prazo, o credor tem o seu interesse satisfeito se o devedor cumprir no prazo; se, antes deste, o devedor declara não cumprir mas depois se arrepende e se apresenta a cumprir no momento inicialmente fixado, o credor não terá de se queixar, porquanto tem a prestação devida na altura prevista”.
Além disso, segundo este autor, as causas de exigibilidade antecipada estão fixadas na lei e têm natureza excecional, pelo que a eficácia da declaração antecipada de incumprimento apenas é admissível se ocorrer uma reação, confluente, do credor.
Almeida Costa (Direito das Obrigações, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 2005, p. 980) e Ribeiro de Faria (Direito das Obrigações 2 (1988), p. 447) associam à declaração séria e inequívoca de não cumprir, feita pelo devedor, o vencimento antecipado ou a desnecessidade de interpelação.
No direito alemão, como dá conta Menezes Cordeiro (“A Declaração de não-cumprimento da obrigação”, em O Direito, ano 138 (2006), t. 1, pp. 28 e ss.), o tema tem sido aprofundado e mereceu mesmo um expresso tratamento legislativo, aquando reforma do BGB de 2001/2002.
A consagração legal é fruto de uma evolução doutrinal e jurisprudencial que sempre sublinhou a necessidade de uma declaração de não-cumprimento “séria, honesta, precisa e definitiva”, de tal modo que não haveria recusa “eficaz” nos seguintes casos: um pedido de moratória por falta de dinheiro; uma (mera) declaração de não poder cumprir a tempo; uma manifestação de dúvidas jurídicas; divergência de opiniões sobre o conteúdo da prestação; recusa de cumprimento e simultânea disponibilidade para querer cumprir; oferta de prestação parcial; declaração de já ter cumprido.
Segundo o § 281(1), nova versão, quando o devedor não efetue uma prestação vencida, pode o credor exigir uma indemnização, caso o cumprimento não ocorra num prazo razoável por ele fixado. Posto isto, diz § 281(2) que a fixação do prazo é dispensável quando o devedor recuse séria e definitivamente a prestação ou quando existam circunstâncias especiais que, sob a ponderação dos interesses de ambas as partes, justifiquem a imediata invocação da prestação indemnizatória.
Por seu turno, dispõe o § 323 do BGB, nova versão, que: “(1.) Quando o devedor, num contrato bilateral, não concretize uma prestação vencida ou não o faça em conformidade com o contrato, pode o credor rescindir o contrato quando, sem resultado, ele tenha fixado um prazo razoável, ao devedor, para a prestação ou cumprimento. (2.) A fixação do prazo é dispensável quando: 1. O devedor recuse séria e definitivamente a prestação; (...)”.
A doutrina alemã, refere Menezes Cordeiro (A Declaração…, p. 34), é muito clara ao explicar que se mantêm as estritas exigências jurisprudenciais e doutrinárias, fixadas pelo Direito anterior. Deve estar em causa uma pura e simples declaração de não-cumprimento, sem qualquer justificação e que traduza a última palavra do devedor.
Assim tem sido também entendido pela jurisprudência nacional, inclusive a propósito de situações de abandono da obra já iniciada por parte do empreiteiro. É exemplo STJ 14.01.2021 (2209/14.0TBBRG.G3.S1), João Cura Mariano, onde se pode ler:
“O abandono da obra é um conceito que há muito foi adotado no universo da gíria jurídica e que traduz o comportamento do empreiteiro que, após ter iniciado a execução dos trabalhos de realização da obra a que se vinculou, por iniciativa unilateral, cessa essa execução de um modo e/ou durante um período de tempo revelador, de forma concludente, que é sua intenção firme não retomar aqueles trabalhos, deixando a obra inacabada.
Com esta configuração, o abandono da obra, tem sido qualificado pela jurisprudência, e pela doutrina como um comportamento significante da recusa do empreiteiro a cumprir integralmente a prestação a que se obrigou, dotada das caraterísticas que justificam a sua equiparação a um incumprimento parcial definitivo da obrigação de realizar a obra contratada.
Note-se que, contrariamente ao pretendido pela Autora nas suas alegações de recurso, o abandono da obra não é um facto que se possa retirar, através de um raciocínio presuntivo da factualidade que se encontra provada, mas sim uma qualificação jurídica de um comportamento cuja descrição deve constar do acervo dos factos provados.
Sendo a prestação de realização da obra, típica do contrato de empreitada, uma prestação duradoura e, no tipo de obra aqui em causa, de execução contínua, o abandono da obra, enquanto comportamento de recusa a cumprir, apresenta a especificidade de não consistir numa recusa antecipada, mas sim numa recusa em prosseguir a execução de uma prestação já iniciada. Essa conduta, essencialmente omissiva, mas podendo ser precedida de ações que a anunciam (v.g. retirada de materiais e máquinas), para ser significante de um propósito definitivo de não conclusão do ato de realização da obra, deve ser aparente, categórica e unívoca.”
No mesmo sentido, STJ 12.10.2023 (1823/19.2T8FNC.L1.S1), Fernando Batista de Oliveira, onde se pode ler:
“Temos por correto o entendimento de que o abandono da obra pelo empreiteiro representa, em termos práticos, a extinção do contrato, independentemente de não ter sido declarada a sua resolução pela parte contrária; abandonando os trabalhos iniciados, o empreiteiro manifestou tacitamente, e em termos que a lei reputa eficazes (art. 217.°, n.° 1, do CC), a sua total indisponibilidade para reparar os defeitos, ou para, ainda que só em parte, construir de novo a obra, o que evidencia o seu propósito firme e definitivo de não cumprir, tornando dispensável a interpelação admonitória do art. 808.° do CC por parte do dono da obra para o efeito de conversão da mora em incumprimento definitivo; deste modo, provada que esteja a realidade dos prejuízos sofridos pelo dono da obra decorrentes desse abandono, torna-se clara a pertinência da aplicação das normas dos arts. 798.°, 799.° e 1223.° do CC, que lhe confere o direito a ser indemnizado em consequência do incumprimento do empreiteiro.
Por outro lado, para além das normas especiais disciplinadoras do contrato aqui em causa, valem, para a mora ou incumprimento definitivo, as regras gerais.
Ora, a violação dos deveres emergentes do contrato de empreitada faz incorrer o empreiteiro (ou subempreiteiro – perante aquele) em responsabilidade contratual (art. 798.º do Cód. Civil).
Efetivamente, se o empreiteiro deixa de efetuar a sua prestação em termos adequados, dá‑se o inadimplemento da obrigação, com a consequente responsabilidade deste. E, a ser assim, o não cumprimento da sua prestação será definitivo se a obra, não tendo sido realizada, já o não puder ser, por o empreiteiro ter nela perdido o interesse (art. 808.º, n.º 1, 1.ª parte, do CC), ou por não ter sido realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado (art. 808.º, n.º 1, 2.ª parte).
Perante o incumprimento definitivo imputável ao empreiteiro (ou subempreiteiro), poderá, então, o dono da obra (ou o empreiteiro, na subempreitada) resolver o contrato que com ele celebrara e exigir uma indemnização (art. 801.º, n.º 2).”
No direito espanhol, o preceito essencial a considerar é o art. 1124 do Código Civil, cujo § 1.º estabelece que “[a]A faculdade de resolver as obrigações entende-se como implícita nas obrigações recíprocas, para o caso de uma das partes obrigadas não cumprir o que lhe compete.”
A partir daqui entende-se que a resolução pressupõe, em geral, que o accipiens tenha cumprido até à data o que lhe incumbia e que o incumprimento da outra parte seja verdadeiro, grave e essencial. Assim, na doutrina, Luis Díez-Picazo, Los Incumplimientos Resolutórios, Cizur menor (Navarra): Aranzadi, 2005, pp. 38 e ss.). Na jurisprudência, pode ver-se a STS 4631/2016 (ECLI:ES:TS:2016:4631), onde se entendeu que a faculdade de resolução prevista no art. 1124 do Código Civil pertence, em qualquer caso, ao contraente que sofre o incumprimento da obrigação por parte do contraente incumpridor. Está, portanto, vedada à parte que previamente tenha incumprido as obrigações assumidas no contrato. A exceção a este requisito são os casos de incumprimentos recíprocos em que ambas as partes solicitam a resolução do contrato. O Supremo Tribunal de Espanha tem admitido este efeito, semelhante ao do mútuo dissenso, embora os pressupostos de uma e de outra figura (resolução e mútuo dissenso) difiram (STS 1633/2014, ECLI:ES:TS:2016:4717); STS 4 de junho de 2020 (ECLI:ES:TS:2020:1568).
O incumprimento do contrato tem sido considerado essencial:
Quando as partes assim o tenham definido, incluindo uma cláusula resolutória expressa no contrato. O Supremo Tribunal de Espanha reconhece assim a validade das cláusulas que, negociadas individualmente dentro das margens da autonomia da vontade (art. 1255), qualifiquem como essenciais incumprimentos que objetivamente não o sejam – por exemplo, um atraso de 26 dias na entrega da habitação adquirida (STS 1665/2015, ECLI:ES:TS:2017:4114).
Quando não se realizou a prestação esperada e não se pode mais esperá-la, porque se frustrou o interesse do credor. São os casos de impossibilidade superveniente da prestação, fortuita ou imputável, entre os quais se incluem os de termo essencial, expresso ou implícito no contrato - ou seja, os casos em que a data de vencimento é uma deadline absoluta ou objetiva, cujo incumprimento provoca obviamente a impossibilidade superveniente da prestação, e aqueles outros em que o credor tenha comunicado ao devedor, no momento da celebração do contrato, ou se depreenda das circunstâncias então concorrentes, que o interesse substancial do credor no contrato está subordinado a que o devedor realize a prestação numa determinada data ou dentro de um prazo determinado expresso no próprio contrato. São também os casos de manifestação inequívoca da decisão do devedor de não cumprir, como os de abandono da obra por parte do contratista,pois a partir de então o credor não pode pretender que o credor continue vinculado pelo contrato. A propósito, Luiz Díez-Picazo, ob. cit., pp. 32-35.
Quando a prestação continue a ser objetivamente possível de realizar é mais complexo justificar o exercício do remédio resolutório, mas pode haver lugar a ele quando se demonstre que o incumprimento, pela sua excessiva duração, ou circunstâncias, torna inexigível, conforme a boa fé, que o credor continue vinculado pelo contrato. O entendimento tradicional do Supremo Tribunal Espanhol de que o simples atraso no cumprimento da obrigação não faculta à parte que cumpriu o poder de resolver o contrato, o que se explica por o atraso no cumprimento da prestação não constituir, no geral, um incumprimento grave ou essencial e, portanto, carecer de relevância para a resolução (STS 5629/2015, ECLI:ES:TS:2015:5629), entendimento que encontra arrimo no princípio de conservação dos contratos (STS 445/2018, ECLI:ES:TS:2018:445), tem sido atenuado em situações que é de reconhecer a concorrência de um interesse legítimo ou atendível do credor na resolução. Assim foi entendido em STS 348/2016 (ECLI:ES:TS:2016:2292), que decidiu um caso de incumprimento de um contrato de fabrico e fornecimento de locomotivas, aceitando a resolução exercida pela compradora com base no atraso da vendedora. Justificou-se a resolução a cessação do contrato por ser inexigível ao credor ficar vinculado, suportando as despesas com o financiamento bancário a que havia recorrido, quando, na verdade, o incumprimento da prestação da outra parte se atrasou por um período de tempo tão longo que levou a uma perda de interesse na prestação.
Por outro lado, aponta-se que são dois os limites ao exercício da resolução: (i) a preferência do remédio do cumprimento específico e (ii) a exigência de atuar todos os remédios conforme a boa-fé.
A conjugação de ambos levanta dúvidas sobre a procedência da resolução nos casos em que a prestação continue a ser objetivamente possível e de interesse para o credor. Para as superar, e assegurar o correto exercício do remédio, sustenta-se o ónus do credor fixar um prazo adicional para o cumprimento do devedor, decorrido o qual se considera resolvido o contrato, a não ser que as circunstâncias evidenciem que esse prazo adicional não é razoável. Neste sentido, sugere-se mesmo, no art. 1200 da Propuesta de Modernización del Código Civil[4], que seja consagrado expressamente na lei civil que “[e]m caso de atraso ou de falta de conformidade no cumprimento, o credor também poderá resolver se o devedor, no prazo razoável que aquele lhe tiver fixado para o efeito, não cumprir ou não sanar a falta de conformidade.”
De dizer, finalmente, que embora uma interpretação literal do art. 1124, § 3.º, pudesse levar-nos a pensar que o mecanismo de resolução do contrato é judicial, certo é que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Espanha admite a validade da resolução exercida mediante notificação extrajudicial, limitando-se a intervenção do juiz a controlar a sua procedência se o devedor a impugnar. Se a considerar improcedente, o contrato continuará em vigor, a não ser que já não tenha sentido a sua manutenção e se proceda à sua liquidação. A notificação que o credor envie ao devedor tem caráter recetício e não está sujeita a qualquer formalidade, salvo no caso do art. 1504 Código Civil (vendas de bens imóveis a prestações). Assim, STS 3679/2013, ECLI:ES:TS:2013:3679). Na doutrina, Luis Díez-Picazo, Fundamentos del Derecho civil patrimonial, II, Las Relaciones Obligatorias. 6ª ed., Cizur menor (Navarra): Thomson Reuters-Civitas, 2008, p. 841, e Manuel Albaladejo García, Derecho Civil II, Derecho de obligaciones, 14.ª ed., Madrid: Edisofer, 2011, p. 117.
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2).5. Analisando o caso dos autos à luz destes ensinamentos, entendemos que, mesmo quando se considere aplicável o direito espanhol, é de sufragar a conclusão a que chegou o Tribunal a quo, com base no direito português, no sentido de que não havia fundamento bastante para a resolução do contrato visto que o atraso verificado, apesar da sua considerável extensão, designadamente por comparação com o prazo previsto no contrato, não pode ser equiparado a se a um incumprimento resolutório. Com efeito, ademais de tal atraso não ter tornado inútil a finalidade económica do contrato (os Recorridos continuaram a ter interesse na conclusão da construção) dele não é possível inferir uma recusa terminante da Recorrente cumprir a sua prestação. Aliás, tudo indica que a paragem da obra não foi mais que um modo de a Recorrente pressionar os Recorridos à revisão dos termos do contrato, conclusão que encontra apoio no facto de os materiais que eram destinados a serem incorporados na obra, cujo valor não era despiciendo, terem continuado no local e de a intenção de os remover apenas ter sido manifestada depois de consumada a cessação do contrato, operada através da declaração resolutória emitida pelos Recorridos no dia 28 de julho de 2022 e chegada ao conhecimento da Recorrente, pelo menos, no dia 20 de setembro do mesmo ano, conforme resulta dos factos dos pontos 12 e 13. Nesta perspetiva, tal paragem poderia ser, quando muito, uma antecâmara de uma recusa de cumprimento. Assim também foi entendido pelo Tribunal a quo, num juízo que as partes não questionaram, que considerou, ainda como não provado o enunciado, de natureza conclusiva, segundo o qual a Recorrente “abandonou” (sic) a obra.
Deste modo, é de considerar que a declaração resolutória emitida pelos Recorridos foi ilícita.
Não obstante, essa declaração não pode ser considerada inócua. Na verdade, ela exprime a vontade dos declarantes no sentido de não ser a Recorrente, mas um outro empreiteiro, a concluir a obra. A esta luz, a sua subsequente aceitação por parte da Recorrente exprime um mero comportamento passivo de sujeição e não uma declaração negocial conforme à extinção consensual do contrato adrede celebrado.
Isto permite-nos afirmar que o contrato cessou por um ato potestativo dos Recorridos (donos da obra) e não por um acordo entre eles e a Recorrente.
Esta conclusão encontra arrimo legal, no direito português, no art. 1229 do Código Civil, onde se diz que “[o] dono da obra pode desistir da empreitada a todo o tempo, desde que indemnize o empreiteiro dos seus gastos e trabalho e do proveito que poderia retirar da obra.”
Estamos aqui perante uma exceção à regra do n.º 1 do art. 406 do Código Civil, nos termos da qual a cessação de um contratonão pode ocorrer por vontade discricionária de apenas um dos contraentes, feita em benefício do dono da obra. Com efeito, a norma citada permite que o dono da obra desista do contrato, sem qualquer razão, discutindo-se depois – o que para aqui não releva – se esse direito pode ser exercido até que a obra fique concluída ou até à sua aceitação.
De acordo com a lição de Pedro Romano Martinez (Contrato de Empreitada, Coimbra: Almedina, 1994, pp. 177 e ss. = “Art. 1229”, AAVV, António Agostinho Guedes / Júlio Vieira Gomes, coord., Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Contratos em Especial, Lisboa: UCE, 2023, pp. 848-849), seguida pela jurisprudência – a título de exemplo, RG 12.09.2024 (5111/22.9T8BRG.G1), Alcides Rodrigues –, a ratio legis do preceito é perfeitamente justificável: “[d]e facto, mediante um contrato de empreitada pretende-se que o dono da obra obtenha um determinado resultado: a realização de uma obra. Ora, pode acontecer que o dono da obra perca o interesse na obtenção desse resultado – por alteração da sua vida, da sua situação económica, etc. – e não se justifica que continue vinculado à execução daquele negócio jurídico. Por outro lado, o dono da obra pode pretender que a obra seja realizada por outro empreiteiro, porque, p. ex., perdeu a confiança no primeiro, ou querer realizar a obra por outra forma, v.g., por administração direta.”
Consagra-se, assim, ainda no dizer do mesmo autor, uma “faculdade discricionária (ad nutum)”, cujo exercício não carece de fundamento, pelo que não é suscetível de apreciação judicial. O seu único limite é a boa-fé (Pedro de Albuquerque / Miguel Assis Raimundo (Direitos das Obrigações. Contratos em Especial, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2013, p. 503)
Também não carece de aviso prévio – embora se admita que este possa ser imposto pelos mandamentos da boa-fé, à luz das circunstâncias do caso, como defendem Pedro de Albuquerque / Miguel Assis Raimundo (Direitos das Obrigações cit.., pp. 504-505) –, nem de forma especial, podendo ser exercida mediante declaração expressa ou tácita (cf. art. 219 do Código Civil), pelo que é de entender que equivale à desistência a resolução ilícita do contrato por parte do dono da obra (STJ 15.04.20215, 2986/08.8TBVCD.P1.S1, Manuel Tomé Soares Gomes) e, também, a pura e simples contratação de outro empreiteiro para que dê continuidade e conclua os trabalhos destinados à realização da obra (RG 15.09.2022, 140/19.2T8VRM.G1, Margarida Almeida).
Igual possibilidade é conferida pelo direito espanhol: o art. 1594 do Código Civil, consagra a faculdade do dono da obra (dueño) desistir unilateralmente do contrato, mesmo que a construção já tenha começado, sem necessidade de apresentar uma causa para tal decisão.[5] Esta é uma particularidade do contrato de empreitada, sendo considerada um direito discricionário do dono da obra. O Tribunal Supremo Espanhol tem confirmado que esta faculdade pode ser exercida ad nutum pela simples vontade do dono da obra. A título de exemplo, STS 3126/2008 (ECLI:ES:TS:2008:3126), onde se pode ler que a desistência “é uma declaração unilateral, receptícia e irrevogável de vontade, que não está sujeita a qualquer forma, embora seja aconselhável que seja notificada ao empreiteiro de forma comprovável. Isso facilitará a prova do momento em que a desistência ocorreu e evitará discussões sobre o reembolso de trabalhos executados posteriormente.”
Perante isto, é de aplicar ao caso dos autos o regime da desistência da empreitada.
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2).6.1. Entre nós, tendo a desistência efeitos ex nunc (Vaz Serra, “Empreitada”, BMJ, n.º 146, p. 131), não há lugar à restituição, por efeito dela, ao que tiver sido prestado pelas partes (RL 16.10.2012, 159/08.9TVLSB.L1-1, Rui Vouga). O dono da obra mantém direito à parte já realizada. Sem prejuízo, a posição de sujeição em que se encontra o empreiteiro é contrabalançada pelo direito a ser indemnizado pelo dono da obra das despesas e dos trabalhos realizados, bem como do proveito que poderia retirar da obra. Assim, podemos dizer que a desistência da obra é lícita, mas constitui o desistente (dono da obra) na obrigação de indemnizar o empreiteiro, sendo, portanto, um dos exemplos de responsabilidade por intervenções lícitas (Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2015, p. 528). Esta doutrina assenta como uma luva no regime do art. 1594 do Código Civil Espanhol, segundo o qual o empreiteiro tem direito a receber e “todos os gastos, trabalho e a utilidade que poderia obter dela [da obra]”.
De acordo com Pires de Lima / Antunes Varela (Código Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1997, pp. 908-909), “[a] indemnização devida pelo dono da obra incide, em primeiro lugar, sobre os gastos e trabalho. São considerados todos os danos emergentes, sem se atender à utilidade que a parte executada possa ter para o dono.
A fixação dos gastos e trabalho não está relacionada com o preço da empreitada. Este pode interessar para a fixação dos proveitos, mas não para a fixação do que se gastou em material e trabalho. O Código afastou-se da solução do anteprojeto, que fixava a indemnização global por um critério negativo: o do preço da empreitada com a dedução daquilo que o empreiteiro deixasse de gastar ou adquirisse por outra aplicação da sua atividade. Embora, na generalidade dos casos, os resultados sejam praticamente os mesmos, pareceu mais simples e mais rigoroso o critério do Código de 1867, que veio a ser admitido.”
Os mesmos autores acrescentam que “[d]evem considerar-se como gastos não só as despesas feitas com a obra, nomeadamente as despesas com a aquisição dos materiais de construção, embora ainda não incorporados, como também os salários pagos ou devidos aos operários durante o período de tempo em curso, salvo se eles forem utilizados noutros trabalhos ou não houver obrigação legal de lhes pagar. Claro que, computados estes materiais no montante da indemnização, eles passam a pertencer ao dono da obra. (…) e não há razão para não aceitar a doutrina entre nós, que, pertencendo os materiais ao empreiteiro até à sua incorporação, esta tem a faculdade de ficar com eles, não sendo, neste caso, computado o seu custo na indemnização.”
É nesta sede que podem assumir relevo eventuais defeitos e desconformidades de que enferme a parte da obra realizada pelo empreiteiro antes da desistência. Como, a propósito, se pondera, entre nós, em RC 24.02.2015 (34886/13.4YIPRT.C1), António Barateiro Martins, havendo desistência da empreitada por parte do dono da obra, “a única discussão que pode existir é sobre o montante da indemnização do empreiteiro, ou seja, é aqui, nesta sede e perspetiva, que o que está mal feito pode ter relevância jurídica (comprimindo o montante indemnizatório). “
Não sendo isto o que prima facie se extrai do art. 1229 do Código Civil Português e, bem assim do art. 1594 do Código Civil Espanhol, em que, como vimos, se diz que o dono da obra indemniza o empreiteiro “dos seus gastos e trabalho e do proveito que poderia tirar da obra”, dando assim a entender que é indiferente para a indemnização o resultado (obra) em parte porventura já executado pelo empreiteiro –, acrescenta-se no aresto que a solução se impõe “à luz do princípio geral da boa fé (cf. art. 762.º do C. Civil), aplicável também a quem exige o cumprimento duma obrigação indemnizatória” uma vez que “o que foi/está mal executado não pode/deve deixar de ter o seu relevo em sede de fixação do montante indemnizatório”, o qual “não coincidirá com o custo da eliminação/reparação de defeitos, até porque ao empreiteiro não foi sequer dada a possibilidade de cumprir sem defeito, o mesmo é dizer, de ele próprio proceder, com os seus meios, à reparação.” E conclui-se que “[o]s defeitos que a obra por si [empreiteiro] executada porventura tenha poderiam dar, quando muito, lugar a uma redução do montante indemnizatório; por certo a uma redução equitativa, nos termos do art. 566.º/3 do C. Civil, da indemnização.” No mesmo sentido, RC 23.09.2008 (336/03.9TBALD.C1), Jorge Arcanjo, e RC 6.10.2009 (116/05.7TBNLS.C1), Hélder Almeida.
Finalmente, “[a] determinação do proveito que o empreiteiro poderia tirar da obra terá por base a obra completa e não apenas o que foi executado. É àquela, ou melhor, à parte que falta realizar (visto os gastos do empreiteiro e o seu trabalho já estarem compreendidos na verba anterior: n.º 5) que se refere a parte final do artigo 1229.º. Terá, pois, de se atender, para este efeito, ao custo global da empreitada e ao preço fixado. Da subtração destas duas verbas resultará o lucro.” Estamos aqui perante uma indemnização pelo interesse contratual positivo e não perante uma indemnização por lucros cessantes a título de interesse contratual negativo. Assim, Pedro de Albuquerque / Miguel Assis Raimundo (Direitos das Obrigações cit., p. 504.
Em suma, como se conclui no citado STJ 15.04.2015, para a determinação da indemnização devida ao empreiteiro pelo dono da obra desistente importa, por isso, ponderar duas vertentes: “[p]or um lado, os gastos e trabalhos já suportados pelo empreiteiro à data da desistência, independentemente do preço convencionado, sem se atender à utilidade que a parte executada possa ter para o dono; (ii) [p]or outro lado, ao proveito que o empreiteiro deixou de tirar com a realização completa da obra, a apurar pela diferença entre o custo global da obra e o preço convencionado”
Nos casos em que o dono da obra pagou antecipadamente o preço devido ao empreiteiro como contrapartida pela realização da obra, o direito à restituição daquele, não sendo um efeito da desistência, conforme vimos, tem de ser encontrado no quadro do instituto, de aplicação subsidiária, do enriquecimento sem causa. Entrará, então, em jogo a figura da conditio ob causam finitam (art. 473/2 do Código Civil), à semelhança do que nas situações de adiantamento de rendas em relação ao prazo do arrendamento que se vem a extinguir antes do momento em que deveriam ser pagas ou do adiantamento da remuneração em relação ao trabalho prestado, vindo a cessar antecipadamente o contrato. Nestas, como escreve Luís Menezes Leitão (O Enriquecimento sem Causa no Direito Civil, Coimbra: Almedina, 2005, p. 489), “a existência do contrato atribuía causa jurídica à prestação, apesar de ela ser antecipadamente paga, pelo que a sua extinção determina a extinção dessa causa jurídica, abrindo assim a possibilidade de recurso à ação de enriquecimento.”
Neste sentido, aponta a lição de Lebre de Freitas (“Caso Julgado e causa de pedir. O enriquecimento sem causa perante o artigo 1229 do Código Civil”, ROA, ano 66, 2006, III, disponível em https://portal.oa.pt/publicacoes), para quem “[a]s prestações de preço [que] foram entregues no pressuposto da conclusão da empreitada e, uma vez verificada a desistência, a causa que as justificava (a feitura da obra, devidamente concluída) deixou de existir. Não é que, à data do pagamento, as importâncias não fossem devidas: não pode, por isso, aplicar-se o art. 476-1 CC. Mas supervenientemente a obrigação deixou de ter causa: tal como o inquilino que paga antecipadamente a renda, caducando depois o arrendamento antes do período a que ela se reporta, tal como o segurado que paga uma indemnização pelo roubo de coisas que, entretanto são encontradas, tal como o contraente que recebe um sinal que não pode ser imputado na prestação da contraparte e o retém após o cumprimento, tal como a entidade patrimonial que fez adiantamentos ao empregado por conta de ordenados futuros, vindo entretanto a cessar a relação de trabalho, o dono da obra que faz, nos termos do contrato, o pagamento de prestações por conta do preço da empreitada, não sendo esta concluída e desistindo dela o dono da obra, tem direito à restituição do que houver prestado em pagamento de prestações do empreiteiro não perfeitamente realizada.” Na jurisprudência, vide RG 23.01.2025, 3273/23.7T8VCT.G1, do presente Relator.
Esta solução vale também no direito espanhol uma vez que o art. 1895 do Código Civil, ao dispor que “[q]uando se recebe algo que não se tinha o direito de cobrar, e que por engano foi indevidamente entregue, surge a obrigação de restituí-lo”, reconhece a conditio ob causam finitam como fonte da obrigação de restituir.
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2).7. É aqui – na restituição do indevido – que tem de ser enquadrada a pretensão dos Recorridos.
Afastamo-nos, portanto, do entendimento expresso na sentença recorrida, de forma que, salvo o devido respeito, se apresenta confusa, segundo o qual, não obstante a desistência por parte dos Recorridos, o contrato deve ter-se “por resolvido / extinto, com base no seu incumprimento e perda de interesse de ambas as partes.”
Deste modo, aquilo que importa saber é se houve um enriquecimento da Recorrente (empreiteira) à custa dos Recorrentes (donos da obra) que, em resultado da cessação do contrato, perdeu a sua causa.
A este propósito, os Recorridos tinham alegado, na petição inicial, que a parte do preço que pagaram à Recorrente (€ 70 000,00) excede o valor da obra no estado em que esta se encontrava no momento da cessação do contrato – o qual, sustentaram, seria de apenas € 30 000,00. Como se constata da leitura da fundamentação de facto, este enunciado não resultou provado, o que não pode deixar de implicar, como consequência do funcionamento da regra geral de distribuição do ónus da prova prevista no art. 342/1 do Código Civil, a improcedência, nesta parte, da pretensão formulada.
Por esta singela razão, temos de concluir que assiste razão à Recorrente: ainda que se admita que a condenação na obrigação de restituir o enriquecimento pode ser genérica, sujeita a liquidação ulterior, através do incidente previsto nos arts. 358 e ss. do CPC, certo é que ela só pode ocorrer quando tenha ficado demonstrada a existência de enriquecimento. À semelhança do que sucede quando estejam em causa danos em sentido próprio, a emissão de uma condenação genérica pressupõe que tenha sido formulado um juízo positivo sobre a existência da obrigação, não sendo, porém, possível fixar a sua quantidade no momento em que é proferida a sentença, conforme diz o n.º 2 do art. 609 do CPC, atividade que, assim, é relegada para outra fase. No sentido exposto, escreve Manuel Tomé Soares Gomes (“Da sentença cível”, AAVV, O Novo Processo Civil, Lisboa: CEJ, 2015, p. 372) que “convém não confundir as situações de insuficiência de prova quanto à existência de dano com a insuficiência de prova apenas quanto ao respetivo montante, ou melhor dizendo, não confundir a espécie de dano com a determinação do seu quantum. Só nesta última hipótese é que se coloca a questão da fixação do montante do dano em liquidação posterior ou segundo a equidade, já que na primeira hipótese estamos perante uma situação de improcedência da ação por insuficiência de prova quanto à verificação de um facto essencial relativo à pretensão indemnizatória, o que importará a absolvição do pedido.”
Não havendo factos que permitam sustentar a obrigação de restituição de parte do preço não há o que possa ser liquidado em momento ulterior, o que nos permite concluir por uma resposta afirmativa à 2.ª questão.
Acrescentamos apenas que a própria fundamentação do Tribunal a quo evidencia a fragilidade da orientação que seguiu: a condenação genérica não foi justificada pela inexistência de elementos que permitissem liquidar a diferença entre o preço pago pelos Recorridos e o valor dos trabalhos feitos pela Recorrente, que se assumiu não ter resultado provada, mas por “um imperativo de justiça” arrimado no facto de os Recorridos terem procedido ao pagamento de € 5 050,00 a terceiro por parte dos trabalhos da cobertura que, nos termos do contrato, deveriam ter sido executados pela Recorrente. Ainda que este facto tivesse sido mantido tal como o considerou o Tribunal a quo, sempre se teria de dizer que ele não permitia concluir que o valor da obra no estado em que se encontrava aquando da cessação do contrato (sem a colocação do capoto na cobertura) era inferior a € 70 000,00. E, acaso o permitisse, então a medida da diferença entre a parte do preço paga pelos Recorridos e o valor da obra teria de ser correspondente ao valor do trabalho em questão – que, em tal hipótese, seriam os € 5 050,00 e não os € 40 000,00 que foram estabelecidos como limite máximo da liquidação.
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2).8. Antes de finalizarmos, deixamos claro que a resposta seria semelhante se tivéssemos considerado lícita a resolução do contrato por parte dos Recorridos. Entre nós, segundo a doutrina maioritária (cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 1992, p. 109; Carlos Alberto Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, Coimbra: Almedina, 1982, p. 412, nota 1; Pessoa Jorge, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Lisboa, 1968,p. 380; Brandão Proença, A Resolução cit., pp. 183 e ss.; Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, II, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2005, pp. 258 e ss.), na resolução por incumprimento está em causa o interesse contratual negativo ou de confiança: a indemnização visará colocar o credor na situação em que se encontraria se não houvesse celebrado o contrato e não na situação em que se encontraria se o contrato tivesse sido pontualmente cumprido. Na jurisprudência, vide o Ac. RP 7.04.2008, 0757285, e STJ 26.03.1998, 06A329.
A tese da indemnização pelo interesse negativo teve origem no original § 325/1 do BGB, onde se dizia expressamente que, em casos de impossibilidade imputável ao devedor, o credor poderia “exigir indemnização pelo não cumprimento ou resolver o contrato”. Esta solução era atenuada, porém, entendendo-se que o credor sempre poderia, em caso de resolução, pedir uma indemnização pelo interesse negativo. Esta solução do direito alemão foi corrigida, em 2001, na chamada Modernisierung do BGB, entrada em vigor em 1.01.2002.
O principal argumento dos defensores desta doutrina é o da retroatividade da resolução (434/1): destruindo-se retroativamente o contrato, não faria sentido em termos lógicos que a indemnização pudesse continuar a abranger os danos resultantes da não realização da prestação, sendo que por outro lado os arts. 898 e 908 estabelecem, no âmbito do cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda, uma clara distinção entre a indemnização referida ao interesse contratual positivo e a indemnização referida ao interesse contratual negativo.
Contra este entendimento pronunciaram-se Vaz Serra, Baptista Machado e Ana Prata, partindo, para tanto, da ideia de que, se a resolução do contrato libera o seu Autor do dever de efetuar a contraprestação, não pode, porém, prejudicá-lo em termos de indemnização, pelo que ela deve continuar a abranger o interesse contratual positivo. Estes autores acabam, assim, por contestar o carácter retroativo da resolução por incumprimento, o argumento central da doutrina que limita a indemnização ao interesse contratual negativo.
Segundo Vaz Serra (“Impossibilidade Superveniente e Cumprimento Imperfeito Imputáveis ao Devedor”, BMJ, n.º 47, pp. 37 e ss.; “Anotação ao acórdão de 30.06.1970”, RLJ, ano 104, pp. 205 e ss.), a resolução por incumprimento apenas obriga o contraente faltoso à restituição da prestação recebida, devendo o contraente fiel ficar sujeito apenas à restituição por enriquecimento, que naturalmente poderá compensar com a indemnização pelo interesse contratual positivo.
Para Baptista Machado (“A resolução por não cumprimento e a indemnização”, Obra Dispersa, I, Braga: Scientia Iuridica, 1989, pp. 195 e ss.), o art. 801/2 não constitui um caso de resolução do contrato, mas antes a concessão ao credor nos contratos sinalagmáticos da alternativa entre uma grande indemnização pelo não cumprimento, ou uma indemnização pelo cumprimento onde seria descontado o valor da própria prestação, caso o credor optasse por não a fazer ou pedisse a sua restituição. Não haveria, assim, a destruição retroativa do contrato com alteração do montante da indemnização, mas uma compensação nela da própria prestação caso o credor tivesse interesse na sua recuperação ou não realização. Baptista Machado sustenta a sua tese no art. 802. Considera que a doutrina maioritária coloca o credor que opta pela resolução numa situação pior do que o que opta pela redução do contrato (cf. Pressupostos cit., pp. 175 e ss.).
Finalmente, Ana Prata (Cláusulas de Exclusão e Limitação da Responsabilidade Contratual, Coimbra: Almedina, 1985, pp. 479 e ss.) defende que na resolução por incumprimento a indemnização abrange o interesse contratual positivo, com base em argumentos de cariz exegético: o de que nos arts. 801/2 e no art. 802/1 a lei não estabelece qualquer distinção entre o conteúdo do direito de indemnização, que só pode, por isso, referir-se aos danos positivos, e o de que a disposição do art. 801/2 só se compreende no intuito de excecionar o carácter retroativo da resolução, que nesse caso só pode abranger o direito de indemnização. E acrescenta que “o argumento em que assenta a doutrina maioritária não é suficiente, porque retroatividade, aqui, quer dizer que as prestações devem ser restituídas ex tunc, ou seja, de modo a que os seus objetos, valores, frutos (incluindo juros) e acessórios voltem à parte que as realizou (ou aí se mantenham), como se de lá nunca houvessem saído. Além de que o art. 434/1 admite especificamente que a finalidade da resolução exclua a retroatividade.
O art. 802/1, relativo à impossibilidade imputável parcial, mostra que a indemnização é a mesma (interesse positivo) quer haja ou não resolução. Seria incompreensível um resultado diferente em sede de impossibilidade total. Aliás, o próprio art. 801/1 diz que o credor pode resolver o contrato “independentemente do direito à indemnização.”
A tese de que a indemnização pode abranger o interesse contratual positivo, quer haja ou não resolução, resulta de a função da resolução por impossibilidade imputável respeitar apenas aos efeitos dessa impossibilidade na contraprestação, permitindo que o credor não a realize se não quiser, ou seja, resulta de a resolução do art. 801/2 ser um mero instrumento do sinalagma. Problema autónomo é o da responsabilidade civil, que reage à falta do cumprimento (imputável ao devedor) e que, portanto, deve cobrir todos os danos causados por essa falta de cumprimento. Os danos causados pelo cumprimento correspondem ao interesse positivo. O credor vai ser colocado na situação patrimonial em que estaria se o cumprimento tivesse ocorrido. A solução da indemnização pelo interesse positivo é também, portanto, a que decorre mais diretamente dos arts. 562 e ss., designadamente, do art. 566/2.
Note-se que este problema do conteúdo da indemnização em caso de resolução (art. 801 /2) envolve três teorias sobre a relação entre as prestações inicialmente devidas e a indemnização.
A chamada “teoria da sub-rogação” pretendia que a indemnização pelo interesse positivo seria um equivalente pecuniário da prestação tornada impossível e, por isso, o credor só poderia exigir esta indemnização pelo interesse positivo se realizasse a sua contraprestação, de modo a que o sinalagma fosse respeitado. Se o credor não realizasse a sua contraprestação, resolvendo o contrato, só poderia pedir uma indemnização pelo interesse negativo. Esta teoria era um dos argumentos a favor de que, nos casos de resolução, a indemnização fosse pelo interesse negativo. A teoria da sub-rogação afigura-se incorreta porque, por um lado, a indemnização não é um equivalente pecuniário da prestação impossível. Por outro lado, se o credor só recebe o dito “equivalente pecuniário”, também nunca teria de realizar mais do que um “equivalente pecuniário” da sua contraprestação, e não a própria contraprestação. Ou seja, nunca teria mais do que descontar o valor da sua contraprestação no montante da indemnização.
A “teoria da diferença (pura)”, justamente confiante nessa ideia de “descontar”, de subtrair (ou seja, calcular a “diferença”) a contraprestação no montante da indemnização. Esta teoria foi desenvolvida na Alemanha, onde, como dissemos, o BGB consagrava a regra de que o credor teria de escolher entre resolução e indemnização pelo interesse positivo. O que a teoria da diferença (pura) vem dizer é que, para receber uma indemnização pelo interesse positivo, o credor não precisaria nem de resolver, nem de fazer a sua (contra)prestação. E isto porque, devido à existência de um sinalagma, a contraprestação extinguir-se-ia automaticamente, tal como acontece nos casos de impossibilidade não imputável. Esta teoria chegava à conclusão de que a contraprestação se extinguia automaticamente mesmo sem haver base legal para isso. A teoria não convence pela simples razão de que (como vimos) o credor pode ter interesse em fazer a sua contraprestação, pode ter interesse em livrar-se dela. A impossibilidade devida a culpa do devedor não pode forçar o credor a conservar a contraprestação, recebendo uma indemnização menor. Ora, para o credor realizar a sua contraprestação, é preciso que ainda tenha um “título” para isso, ou seja, é preciso que a sua obrigação não se tenha extinguido automaticamente. Se a sua obrigação se extinguisse automaticamente, o credor nunca estaria a realizar a sua contraprestação, mas sim a fazer uma prestação sem qualquer fundamento.
A teoria da diferença pura foi abandonada e apareceu a “teoria da diferença atenuada”: o credor não precisa de realizar a sua contraprestação para receber uma indemnização. Em caso de impossibilidade culposa, a contraprestação extinguir-se-ia automaticamente. O credor poderia escolher realizar a sua contraprestação (recebendo uma indemnização maior). É nesta que se baseiam as teses de Vaz Serra e Baptista Machado. Admitindo a indemnização pelo interesse contratual positivo, vide STJ 12.02.2009 (08B4052) e RP 4.1.2010 (1285/07.7TJVNF).
Entendemos, assim, que a resolução mais não faz que metamorfosear a relação primária numa relação de liquidação. A razão do instituto da resolução é a equidade, que não seria respeitada, num contrato sinalagmático, se a indemnização de uma das partes motivada pelo incumprimento culposo da outra visasse somente colocá-la na situação patrimonial em que estaria antes da negociação, privando-a dos benefícios que o contrato lhe traria acaso tivesse sido pontualmente cumprido. A equiparação legal dos efeitos da resolução aos efeitos da declaração de nulidade ou da anulabilidade, apesar do peso literal dos arts. 433 e 434/1, 1.ª parte, não pode significar uma total identificação da “liquidação resolutiva” aos efeitos da invalidade negocial. Como ensina Brandão Proença (A Resolução do Contrato no Direito Civil, Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 178), “o alcance remissivo do art. 433 do CC não pode levar o intérprete a aderir a uma retroatividade tout court (e que é, no fundo, a do art. 289.º, n.º 1, do CC) imposta pelo legislador e que funciona como expediente técnico-jurídico (ou ficção dogmática) vocacionada a uma destruição quase-plena da eficácia do negócio. A resolução, apesar da sua carga etimológica, não é um instrumento puramente negativo, concretizado numa retroatividade mais ou menos arbitrária, mas visa (maxime quando houve um princípio de execução contratual) uma liquidação adequada à própria finalidade normal (ou funcionalidade) do direito.”
Transpondo para o caso, numa empreitada de construção de um edifício, em prédio propriedade do dono da obra, com materiais do empreiteiro, que se consideram adquiridos pelo dono da obra à medida que vão sendo incorporados, cf. 1212/2 do Código Civil, a retroatividade implicaria, para o empreiteiro, a obrigação de restituir ao dono da obra o preço que porventura tivesse recebido antecipadamente. Uma retroatividade tout court poderia levar, também, à demolição da obra à custa do empreiteiro, em vez de, como parece mais razoável, à compensação do empreiteiro pelo que prestou.
Seria, portanto, no contexto desta relação de liquidação que os Recorridos teriam direito à restituição do preço adiantadamente pago à Recorrente, cumulada com o ressarcimento dos danos sofridos em resultado do incumprimento que serviu de fundamento à resolução. Seria também no âmbito dessa relação de liquidação que a Recorrente teria direito a receber o valor correspondente aos materiais incorporados no prédio dos donos da obra e ao trabalho que, para esse efeito, despendeu. Como se compreende, estando tais obrigações de restituição ligadas entre si por um nexo de reciprocidade (art. 290, ex vi do art. 433, ambos do CPC), o que releva é o saldo final, de modo que para haver uma verdadeira restituição no sentido pretendido pelos Recorridos seria necessário que tivesse ficado demonstrado que o valor do preço pago (prestação que a Recorrente estaria obrigada a restituir aos Recorridos) suplanta – e suplanta num valor que pode chegar a € 40 000,00 –, o valor da obra, dos materiais e do trabalho (equivalente à prestação que os Recorridos estariam obrigados a restituir). Como vimos semelhante prova não foi feita.
A resposta do direito espanhol não apresenta, no que releva para o caso, diferença relevante. O art. 1124 do Código Civil limita-se a conferir o direito de resolução ao credor afetado pelo incumprimento do contrato, não contendo qualquer preceito sobre os termos da restituição das prestações. Esta é, porém, uma consequência da resolução que é aceite, de forma unânime, pela doutrina e pela jurisprudência, conforme dá nota Ana Solar Presas (“La liquidación del contrato resuelto. El remedio restitutório”, Anuario de Derecho Civil, 71(4), pp. 1227–1276[6]). Compreende-se que assim seja: sendo o efeito principal da resolução a liberação das partes dos seus deveres de prestação primários, o que significa a cessação do contrato, dela tem de decorrer também o dever de cada uma das partes restituir à outra “lo que hubiese percebido” em execução do contrato (M. Clemente Meoro, La Facultad de Resolver los Contratos por Incumplimiento, Valencia: Tirante lo Blanc, 1998, p. 502).
Embora existam diferenças de entendimento quanto às regras a observar quanto ao conteúdo da obrigação de restituição – uns recorrem às regras próprias da nulidade do contrato, outros às das obrigações condicionais e outros ainda às da condictio indebiti –, existem três pontos que são consensuais.
Em primeiro lugar, deve dar-se prevalência à restituição in natura, podendo, porém, recorrer-se à restituição por equivalente pecuniário quando aquela seja impossível ou de apresente como demasiado onerosa.
Em segundo, o que importa é, no final, encontrar a medida certa das prestações restitutórias, procedendo, assim, a uma liquidação da relação contratual, evitando o enriquecimento de qualquer um dos contraentes. Neste enquadramento, qualquer vantagem que tenha sido recebida pelo accipiens deve ser descontada, assim se obtendo o saldo final (Ana Soler Presas, loc. cit., p. 1238).
Em terceiro, com o direito de obter a restituição do que porventura tenha prestado em excesso, o accipiens pode cumular pretensões indemnizatórias visando cobrir o interesse contratual positivo, para o que é apontado como suporte legal o próprio art. 1124 do Código Civil, na medida em que este não impõe uma alternativa entre resolver o contrato e exigir a indemnização, conferindo autonomia aos dois remédios.
Deste modo, também no direito espanhol, o direito à restituição do accipiens tem como pressuposto que a prestação por si realizada tenha um valor superior ao da prestação que ele tem de restituir à contraparte, o que não ficou provado no caso.
De acrescentar, a este propósito, que no recurso está em causa apenas o segmento da sentença que condenou a Recorrente na restituição da parte do preço recebida dos Recorridos e não as prestações indemnizatórias adrede formuladas por estes, em relação às quais o Tribunal a quo emitiu um juízo de improcedência, não impugnado, seja por via principal, seja por via subordinada. Sem prejuízo, sempre acrescentamos que a afirmação de que o prejuízo patrimonial sofrido pelos Recorridos foi de € 35 534,14, correspondente ao custo da “reparação dos trabalhos mal executados” pela Recorrente e da “conclusão” dos que ficaram em falta (únicos danos alegados a este título), evidencia a bondade da solução encontrada. Para assim concluirmos basta que somemos este valor (€ 35 534,14) àquele que foi pago adiantadamente à Recorrente (€ 70 000,00). O resultado final pouco excede o preço (de € 105 000,00) convencionado como contrapartida pela execução integral da obra, o que significa que, apesar de tudo, este dano – o único de natureza patrimonial que ficou alegado – não foi sentido pelos Recorridos. Este juízo consolida-se quando consideramos, por um lado, que os ditos “trabalhos mal executados”, que os Recorridos não discriminaram, influenciando o valor da obra feita pela Recorrente, repercutem-se já na liquidação do contrato a que haveria que proceder, não podendo, assim, ser considerados nesta sede, e, por outro, que, de acordo com os factos provados, aquilo que os Recorridos despenderam para que terceiros concluíssem a obra foi necessariamente inferior aos alegados € 35 534,14, o que resulta, desde logo, da constatação de que o cômputo deste montante foi obtido com a inclusão do valor de € 12 417,19 relativo aos trabalhos de mobiliário e carpintaria que, afinal, apenas custou € 9 600,00.
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3). Procedendo o recurso, os Recorridos devem suportar as custas respetivas: art. 527/1 e 2, do CPC.
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V.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o presente recurso procedente e, em consequência:
Revogam a sentença recorrida na parte em que, julgando parcialmente procedente a ação, condenou a Ré (Recorrente) a pagar aos Autores (Recorridos) “o montante correspondente ao valor pago e que exceda o valor da obra realizada pela Ré, até ao limite de € 40 000,00€ peticionado, relegando-se a sua quantificação para posterior liquidação de sentença, acrescido de juros de mora desde liquidação até pagamento integral e efetivo”;
Em substituição, julgam a ação também improcedente nessa parte, com a consequente absolvição da Ré (Recorrente) dos pedidos formulados pelos Autores (Recorridos) e a condenação destes no pagamento das custas da ação;
Condenam os Recorridos no pagamento das custas do recurso.
Notifique.
Considerando que dos autos resulta que os Recorridos contrataram terceiros para conclusão da obra sem que os respetivos serviços tivessem sido faturados e indiciando-se mesmo que os serviços de carpintaria foram pagos em numerário, extraia e remeta à AT certidão da petição inicial, dos documentos que a acompanham e dos documentos apresentados na sessão da audiência final do dia 7 de março de 2025, para os fins tidos por convenientes.
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Guimarães, 25 de setembro de 2025
Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.ª Adjunta: Maria Gorete Morais
2.º Adjunto: Fernando Manuel Barroso Cabanelas