1 – Inexiste fundamento para alterar a decisão proferida pelo tribunal a quo sobre a matéria de facto.
2 – Não se verificando qualquer das hipóteses previstas nas diversas alíneas do artigo 770.º do CC, a quantia de € 1.000,00 que a dona da obra entregou aos trabalhadores da empreiteira não poderá ser deduzida no preço da empreitada.
(Sumário do Relator)
Autora/recorrida: (…) – Construção, Unipessoal, Lda..
Ré/recorrente: (…), Unipessoal, Lda..
Pedido: Condenação da ré a pagar, à autora, a quantia de € 7.900,00, acrescida de juros de mora, à taxa comercial, desde a data do vencimento da obrigação até efectivo e integral pagamento.
Sentença recorrida: Julgou a acção parcialmente procedente, condenando a ré a pagar, à autora, a quantia de € 7.900,00, acrescida de juros de mora, à taxa comercial, vencidos desde a data do vencimento das facturas e vincendos até efectivo e integral pagamento; condenou ainda a ré a pagar, à autora, a quantia de € 40,00, a título de despesas de cobrança.
Conclusões do recurso:
A – Foi a recorrente condenada no pagamento das facturas n.ºs (…) e (…), respectivamente nos valores de € 1.500,00 e € 6.400,00.
B – O tribunal decidiu condenar a recorrente no pagamento da 1.ª factura, na sequência de um orçamento, que está assinado, por ambas as partes, como se pode verificar, orçamento esse no valor de € 10.000,00.
C – Na resposta ao aperfeiçoamento, a recorrente juntou um documento assinado pela recorrida, que tal como é referido, é um mapa de quantidades, sendo tal documento assinado pela recorrida, como referido na douta sentença.
D – Essa, primeira fatura, trata-se de uma alegada falta de pagamento, respeitante ao valor do orçamento.
E – Relativamente à quantia de € 1.000,00, que o tribunal dá como provado que a recorrente, pagou a referida quantia aos trabalhadores da recorrente (facto 20 «Numa ocasião, a Requerida entregou € 1.000,00 aos trabalhadores da Requerente, para que os mesmos retomassem os trabalhos, uma vez que afirmavam que não tinham sido pagos.»
F – Estávamos então, com seguinte cenário: A recorrente, tinha prazo para entregar, a obra ao seu dono, e os trabalhadores não recebiam da recorrida, porque esta não lhes pagava.
G – Naquele momento, quem representava a recorrida eram os seus trabalhadores.
H – A recorrida, na altura, obviamente que soube desse pagamento e consentiu, pela que a decisão deveria ter sido no sentido de ser deduzido esse valor.
I – A referida factura, nunca foi enviada a recorrente, só apareceu, com a presente acção.
J – Relativamente à 2.ª factura, também da mesma a recorrente só dela teve conhecimento na respectiva acção.
L – Bem como o documento que lhe serve de suporte (papel manuscrito, e assinado pelo legal representante da recorrida.
M – Foi com base nesse documento, e do depoimento de quem o elaborou, que o tribunal dá como provados os factos 10º, 11º, 15º e 17º.
N – É a própria recorrida que sem qualquer acordo com a requerente, define os trabalhos que fez a mais e que não constavam, bem como o seu preço, não havendo qualquer orçamento.
O – Tudo é decidido e definido, nomeadamente o preço, e os trabalhos unilateralmente, sem qualquer intervenção da recorrente.
P – Crê-se que com a prova efetuada, ou falta dela, os factos 10º e 11º, deverão ser dados como “não provados”.
Q – Acresce que o dito documento de suporte também só foi conhecido, pela recorrente, do decurso da presente acção.
Factos julgados provados pelo tribunal a quo:
1 – A requerente é uma empresa que se dedica, entre o mais, à construção civil e obras públicas e particulares.
2 – Em Abril de 2023, a requerente foi contactada pela requerida para realizar trabalhos de construção civil num imóvel, em Setúbal.
3 – Na sequência desse contacto, a requerente apresentou à requerida um orçamento, nos seguintes termos: (…)
4 – O referido orçamento foi aceite pela requerida.
5 – Assim, em cumprimento do solicitado e orçamentado, a requerente executou, por conta e a pedido da requerida, os seguintes trabalhos de construção civil:
a) Trabalhos de demolição – de uma escada e de duas montras do piso inferior (onde se situava uma loja) e remoção e destruição dos móveis e do entulho que se encontrava no interior do edifício;
b) Trabalhos de pedreiro – com a alteração e renovação de toda a fachada da frente do edifício, tendo sido abertas duas novas janelas na fachada lateral e feita a expansão de uma janela para fazer uma portada;
c) Assentamento de alvenarias em diversos espaços, com colocação de pedras na soleira, rebocos e ladrilhos;
d) Trabalhos em pladur: foi colocada uma parede em pladur na casa de banho do rés do chão;
e) Trabalhos de saneamento: abertura de roços para águas e esgotos – toda a linha de canalização de água e saneamento foi substituída e renovada;
f) Lavagem do telhado e substituição de algumas telhas.
6 – Foram também executados pela requerente, apesar de não contratualizados inicialmente, a pedido da requerida:
a) Colocação de betonilha em todo o piso do rés-do-chão;
b) Demolição dos tectos existentes e colocação de tecto falso (pladur) em ambos os pisos.
7 – A execução de tais trabalhos deu origem à factura n.º (…).
8 – Relativamente ao orçamentado e inicialmente contratado não foi feito o assentamento das loiças sanitárias, a pedido da requerida.
9 – Por acordo entre o requerente e a requerida, não foi colocado o chão flutuante, tendo ao invés sido colocada betonilha em todo o piso do rés-do-chão, para depois ser colocado piso cerâmico.
10 – No decurso da execução dos trabalhos foi solicitado pela requerida trabalhos adicionais, que a requerente executou, nomeadamente:
a) Trabalhos de instalação eléctrica: abertura de roços para a electricidade, assentamento de caixas e respectivas tapagens – toda a instalação eléctrica foi substituída e renovada;
b) Abertura de laje com 4 metros por 0,90 metros;
c) Abertura de roços para ar condicionado e assentamento de caixas e respectivas tapagens;
d) Colocação de almofadas em cimento em volta das janelas exteriores e lateral;
e) Abertura de caixa, para colocação e recepção dos contadores exteriores de água, luz e gás e assentamento dos respectivos quadros.
11 – A execução destes trabalhos deu origem à factura n.º (…), no valor de € 6.400,00.
12 – Os trabalhos, na sua totalidade, foram executados entre Abril de 2023, e concluídos em finais de Junho/inícios de Julho de 2023.
13 – A requerida, enquanto dona da obra, nunca denunciou, de forma verbal ou escrita, quaisquer defeitos ou rectificações que fossem necessárias levar a cabo.
14 – A obra foi concluída por etapas e foi sempre inspecionada e visualizada pela ré, tendo sido sempre aceite no seu estado de execução final.
15 – A autora sempre informou o legal representante da ré dos custos dos trabalhos extra, e que não estavam incluídos no orçamento inicial, tendo sido sempre obtida a concordância da requerida na procedência e execução dos trabalhos.
16 – No dia 14 de Setembro de 2023, foram emitidas as facturas acima descritas, com data de vencimento no dia 29/09/2023.
17 – A requerida teve conhecimento das facturas emitidas.
18 – Sem prejuízo, a requerida não procedeu ao pagamento da totalidade das quantias devidas.
19 – A ré procedeu ao pagamento de € 8.500,00, conforme consta do recibo (…).
20 – Numa ocasião, a requerida entregou € 1.000,00 aos trabalhadores da requerente para que os mesmos retomassem o trabalho, uma vez que afirmavam que não tinha sido pagos.
21 – Por carta registada enviada a 10 de Outubro de 2023, foi a ré interpelada para proceder ao pagamento das quantias em dívida.
Factos julgados não provados pelo tribunal a quo:
a) Existiram despesas de cobrança no montante de € 255,00.
b) Para além dos trabalhos que se encontravam no orçamento apresentado pela requerente, foi construída uma parede divisória em pladur.
c) Para além das quantias referidas em 19 e 20, a requerida entregou € 500,00 em numerário ao legal representante da requerente.
Questões a decidir:
1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
2 – Eficácia liberatória do pagamento referido no ponto 20 do enunciado dos factos provados (EFP);
3 – Apreciação do recurso à luz do EFP.
A recorrente pretende que o conteúdo dos pontos 10, 11, 15 e 17 do EFP seja julgado não provado. Porém, a fundamentação desta pretensão é quase inexistente e muito dificilmente inteligível. Para ilustrar esta afirmação, transcrevemos a totalidade do corpo das alegações de recurso:
«Foi a Recorrente condenada no pagamento das faturas n.º (…) e (…), respetivamente nos valores de € 1.500,00 e € 6.400,00.
O Tribunal decidiu condenar a R. no pagamento da 1ª fatura, na sequência de um orçamento, que está assinado, por ambas as partes, como se pode verificar, orçamento esse no valor de € 10.000,00.
Na resposta ao aperfeiçoamento, a Recorrente juntou um documento assinado pela Recorrida, que tal como é referido, é um mapa de quantidades, sendo tal documento assinado pela Recorrida, como como referido na douta sentença.
Essa, primeira fatura, trata-se de uma alegada falta de pagamento, respeitante ao valor do orçamento.
Já nem se alega a quantia de € 500,00, que a testemunha efetivamente disse que pagou em cheque, mas logrou apresentar cópia desse mesmo cheque.
Relativamente á quantia de € 1.000,00, que o tribunal dá como ‘provado que a Recorrente, pagou a referida quantia aos trabalhadores da Recorrente (facto 20 “Numa ocasião, a Requerida entregou € 1.000,00 aos trabalhadores da Requerente, para que os mesmos retomassem os trabalhos, uma vez que afirmavam que não tinham sido pagos.”
Estávamos então, com seguinte cenário: A Recorrente, tinha prazo para entregar, a obra ao seu dono, e os trabalhadores não recebiam da Recorrida, porque esta não lhes pagava.
Naquele momento, quem representava a Recorrida eram os seus trabalhadores.
A Recorrida, na altura, obviamente que soube desse pagamento e consentiu, pelo a cisão deveria ter sido, no sentido, deduzir os € 1.000,00 pagos aos trabalhadores
A referida fatura, nunca foi enviada a Recorrente, só apareceu, com a presente ação.
Relativamente á 2ª factura, também da mesma a Recorrente só dela teve conhecimento na respetiva ação.
Bem como o documento que lhe serve de suporte. (papel manuscrito, e assinado pelo legal representante da Recorrida.
Foi com base nesse documento, e do depoimento de quem o elaborou, que o Tribunal dá como provados os factos 10º e 11º.
É a própria Recorrida que sem qualquer acordo com a Requerente, define os trabalhos que fez a mais e que não constavam, bem como o seu preço, não havendo qualquer orçamento.
Tudo é decidido e definido, nomeadamente o preço, unilateralmente, sem qualquer intervenção da Recorrente.
Crê-se que com a prova efetuada, ou falta dela, os factos 10º e 11º 15º e 17º, deverão ser dados como “não provados”.
Acresce que o dito documento de suporte também só foi conhecido, pela Recorrente, do decurso da presente ação.»
Diante deste emaranhado de afirmações, a maior dificuldade que se nos coloca é isolar aquelas que poderão ter relevância para a questão em epígrafe.
As referências à «primeira factura» são irrelevantes. Esta factura reporta-se às obras descritas nos pontos 5 e 6, como resulta do ponto 7, todos do EFP, e nenhum deles é impugnado.
A referência à entrega de € 500,00 também é inócua, pois a recorrente não impugna a alínea c) do enunciado dos factos não provados.
A questão da invocada eficácia liberatória da entrega, pela recorrente, de € 1.000,00 aos trabalhadores da recorrida, será analisada no ponto 2.
Apenas os últimos oito parágrafos do corpo das alegações são relevantes para a análise da pretensão de alteração da decisão sobre a matéria de facto.
A recorrente afirma que só teve conhecimento das duas facturas na sequência da junção destas aos autos. Visa, assim, o decidido no ponto 17 do EFP. Todavia, não fundamenta a alteração que pretende.
O tribunal a quo julgou provado que a recorrente teve conhecimento das facturas com base no depoimento do legal representante da recorrida, que considerou mais credível que o da testemunha (…), dizendo porquê. Nas suas alegações, a recorrente limita-se a reiterar o que afirmara no artigo 3.º da contestação, sem, sequer, procurar refutar a argumentação expendida na sentença recorrida. Por que razão a recorrente considera que o tribunal a quo decidiu mal, cometendo um erro de julgamento? Não sabemos.
Em face desta falta de fundamentação, o recurso terá de ser julgado improcedente nesta parte, mantendo-se o ponto 17 do EFP.
O mesmo se diga relativamente à impugnação da decisão do tribunal a quo sobre os pontos 10, 11 e 15 do EFP.
O tribunal a quo julgou provado que a recorrida executou, a pedido da recorrente, os trabalhos adicionais descritos no ponto 10 e na factura referida no ponto 11 do EFP e que a primeira informou a segunda do custo desses trabalhos, tendo obtido a sua concordância. Segundo a sentença recorrida, tal convicção baseou-se no depoimento do legal representante da recorrida, em alguns aspectos corroborado pelos das testemunhas (…) e (…).
Portanto, não é exacta a afirmação, produzida nas alegações de recurso, de que «Foi com base nesse documento, e do depoimento de quem o elaborou, que o Tribunal dá como provados os factos 10º e 11º.» O depoimento do legal representante da recorrida foi parcialmente corroborado pelos das duas testemunhas acima referidas.
Acresce que a recorrente não avança uma única razão que permita pôr em causa o acerto da decisão do tribunal a quo. Se este errou ao acreditar no depoimento do legal representante da recorrida, o que leva a recorrente a considerar que esse erro se verificou e a pretender que o tribunal ad quem decida em sentido diverso? Ao pretender que o tribunal ad quem altere a decisão do tribunal a quo, a recorrente tem o ónus de fundamentar a tese cujo bem-fundado pretende ver reconhecido. Porém, em vez disso, a recorrente limita-se a manifestar o seu inconformismo relativamente ao sentido em que o tribunal a quo decidiu, sem mais. Nomeadamente, não constitui fundamentação a referência genérica à «prova efetuada, ou falta dela».
A afirmação, constante das alegações de recurso, de que «É a própria Recorrida que sem qualquer acordo com a Requerente, define os trabalhos que fez a mais e que não constavam, bem como o seu preço, não havendo qualquer orçamento», e de que «Tudo é decidido e definido, nomeadamente o preço, unilateralmente, sem qualquer intervenção da Recorrente», é contrariado pelo ponto 15 do EFP, cujo conteúdo o tribunal a quo julgou provado com a fundamentação acima referida.
Concluindo, inexiste razão para alterar qualquer dos pontos do EFP contra os quais a recorrente se insurge.
2 – Eficácia liberatória do pagamento referido no ponto 20 do EFP:
A recorrente pretende que a quantia de € 1.000,00 referida no ponto 20 do EFP seja deduzida no preço da empreitada.
O artigo 769.º do CC estabelece que a prestação deve ser feita ao credor ou ao representante deste.
Ora, os referidos € 1.000,00 não foram entregues, nem à recorrida, nem a um representante desta. A afirmação, feita pela recorrente, de que, no momento daquela entrega, a recorrida se encontrava representada pelos seus trabalhadores, carece de fundamento. Não se provou a existência dessa relação de representação.
Também não se verifica qualquer das hipóteses previstas nas diversas alíneas do artigo 770.º do CC. Consequentemente, nos termos deste artigo, a entrega de dinheiro, pela recorrente, aos trabalhadores da recorrida, não extinguiu, ainda que parcialmente, a obrigação de pagamento do preço da empreitada.
3 – Apreciação do recurso à luz do EFP:
Não havendo fundamento para alterar qualquer dos pontos do EFP contra os quais a recorrente se insurge, nem para proceder à dedução, no preço da empreitada, da quantia de € 1.000,00 referida no ponto 20 do EFP, e à falta de outras questões que a recorrente suscite, impõe-se concluir que a acção procede nos exactos termos fixados pelo tribunal a quo, improcedendo o recurso.
Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente.
Notifique.
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
Cristina Dá Mesquita (1ª adjunta)
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho (2º adjunto)