1 – É atribuída, ao autor, uma indemnização no montante de € 400.000,00 por danos não patrimoniais.
2 – É atribuída, ao autor, uma indemnização no montante de € 755.554,80 pelo dano biológico.
3 – Carece de fundamento a redução do montante indemnizatório em razão da antecipação do pagamento do capital.
4 – A ré violou o seu dever de formular uma proposta razoável de indemnização, pelo que, nos termos do n.º 2 do artigo 38.º, ex vi n.º 2 do artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08, deve juros moratórios ao dobro da taxa supletiva legal dos juros civis.
5 – As custas relativas à parte do pedido cuja liquidação foi relegada para momento ulterior devem ser provisoriamente suportadas por autor e ré em partes iguais, fazendo-se o rateio respectivo em conformidade com a sucumbência que vier a ser apurada aquando da liquidação.
6 – Não existe fundamento para a condenação da ré em multa e indemnização por litigância de má fé.
(Sumário do Relator)
Autor: (…).
Ré: (…) – Companhia de Seguros, S.A..
Pedidos: Condenação da ré a pagar, ao autor:
- Uma indemnização correspondente a todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em virtude do acidente de viação descrito na petição inicial, no montante global de € 4.103.775,57, assim discriminados:
- Perda de ano lectivo – € 10.000,00;
- Dano biológico/défice funcional – € 900.000,00;
- Adaptação de casa própria – € 40.000,00;
- Adaptações de veículos automóveis – € 35.000,00;
- Remuneração de terceira pessoa – € 949.000,00;
- Protetização de uso diário – € 380.458,71;
- Protetização de uso aquático – € 434.555,00;
- Protetização da mão direita – € 4.385,90;
- Cadeiras de rodas – € 17.600,00;
- Cadeiras de rodas para banho – € 2.401,96;
- Fisioterapia e terapia ocupacional – € 158.112,00;
- Consultas de nutrição – € 25.620,00;
- Consultas de fisiatria – € 43.920,00;
- Consultas de psicologia – € 131.760,00;
- Natação – € 10.370,00;
- Deslocações – € 131.760,00;
- Medicação – € 102.480,00;
- Danos não patrimoniais – € 700.000,00.
- Uma indemnização, a acrescer à anterior, e cuja total e integral quantificação, descriminação e liquidação se relegou para momento posterior, em sede de incidente adequado ou de execução de sentença, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais futuros, decorrentes da necessidade de:
- Novas intervenções cirúrgicas;
- Novas terapêuticas;
- Novos acompanhamentos clínicos;
- Novos internamentos hospitalares;
- Novos períodos de recuperação.
- Juros vencidos e vincendos, a taxa correspondente ao dobro da legal, nos termos do n.º 2 do artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08.
Sentença: Condenou a ré a pagar, ao autor, as seguintes quantias:
- € 770.000,00 a título de indemnização (correspondendo € 120.000,00 a danos não patrimoniais e € 650.000,00 a dano biológico), deduzida das quantias mensais, no valor de € 2.250,00, entregues pela ré, ao autor, a título de reparação provisória, nos termos da cláusula primeira da transacção celebrada entre as partes no procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória que constitui o apenso A (quantias essas que, até Abril de 2023, totalizavam € 31.500,00);
- Juros moratórios vincendos, computados sobre o capital em dívida, à taxa supletiva legal de juros civis elevada ao dobro, desde a data da prolação da sentença (10.07.2024) até efectivo e integral pagamento;
- Indemnização a título de danos patrimoniais futuros, em montante a liquidar em incidente de liquidação de sentença, com o limite máximo de € 3.307.423,57, correspondente aos gastos que o autor terá de suportar, ao longo da sua vida, relacionados com o sinistro, em:
- Medicação, compressas e produtos para tratar as lesões ou debelar as dores, desde que prescritos por médico;
- Acompanhamento psicológico ou psiquiátrico, incluindo consultas, medicação e outros tratamentos que lhe forem prescritos;
- Acompanhamento em fisiatria, fisioterapia e terapia ocupacional, incluindo consultas, medicação e outros tratamentos que lhe forem prescritos;
- Consultas de nutrição, cuja necessidade seja atestada por médico/técnico;
- Natação, com a frequência atestada por médico/técnico;
- Revisão e/ou substituição de próteses (incluindo aquática), ortóteses, cadeiras de rodas (incluindo de banho) e materiais ortopédicos, com periodicidade variável e dependente de avaliação especializada;
- Acréscimo no preço da aquisição de veículo automóvel decorrente da opção de caixa de velocidades automática e das dimensões que permita o transporte da próstese e da cadeira de rodas, com periodicidade variável e dependente de avaliação especializada;
- Adaptações nos domicílios em que venha a residir de forma estável, caso estes não se encontrem preparados para acolher pessoas com as dificuldades motoras de que o autor é portador;
- Remuneração de terceira pessoa para auxílio na realização de tarefas domésticas, incluindo, limpeza do domicílio, lavagem de roupas, passagem a ferro, preparação de refeições e compras, que se estima actualmente em duas horas diárias;
- Deslocações para as consultas e tratamentos supramencionados (ida e volta).
Ambas as partes recorreram da sentença.
O autor interpôs recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 678.º do CPC, visando o aumento do montante indemnizatório por danos não patrimoniais e a redução da proporção das custas a seu cargo.
A ré interpôs recurso de apelação, para o Tribunal da Relação de Évora, visando a redução do montante indemnizatório por danos não patrimoniais e pelo dano biológico, bem como da taxa dos juros moratórios.
Na sequência da interposição de recurso de apelação pela ré, o autor, além de contra-alegar, interpôs recurso subordinado, visando o aumento do montante indemnizatório pelo dano biológico.
Por despacho proferido pelo relator do presente acórdão, foi determinada a subida de todos os recursos ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 678.º do Código de Processo Civil.
O Supremo Tribunal de Justiça não conheceu da revista interposta per saltum e devolveu os autos ao Tribunal da Relação de Évora, nos termos do n.º 4 do artigo 678.º do CPC.
As conclusões do recurso interposto pela ré são as seguintes:
1. No âmbito destes autos, o tribunal a quo proferiu sentença, na qual, breve e resumidamente, condenou a ré, ora recorrente, pela ocorrência de acidente de viação, a pagar, ao autor, ora recorrido, a quantia global de € 770.000,00 – à qual deverão ser descontados todos os montantes mensais liquidados – de € 2.250,00 –, no âmbito do procedimento cautelar que correu, aqui, por apenso.
2. € 120.000,00 são referentes a danos não patrimoniais (danos morais), e € 650.000,00 são referentes ao dano biológico.
3. Na sentença recorrida, a ré, ora recorrente, para além de ser absolvida do demais peticionado (e da questão das custas processuais, onde decaiu 18,18%), foi, também e ainda, condenada à liquidação de juros de mora, em dobro (8%), desde a prolação da sentença (10 de Julho de 2024) e ao pagamento de indemnização, a liquidar em (seu) incidente de liquidação, a título de danos patrimoniais futuros (gastos que o autor, ora recorrido, terá de suportar, ao longo da sua vida, com o sinistro), com o limite máximo de €: 3.307.423,57.
4. Sucede que o tribunal a quo, ao proferir tal decisão, errou!
5. Devendo a mesma ser, assim, revogada e alterada / modificada / substituída, em conformidade, pelo que se apresenta este recurso de apelação.
6. Na sentença recorrida, o tribunal a quo errou, na questão da indemnização atribuída, ao autor, ora recorrido, a título de danos não patrimoniais (danos morais) – no montante de € 120.000,00 –, na questão da indemnização atribuída, ao autor, ora recorrido, a título de dano biológico – no montante de € 650.000,00 –, e na questão da condenação da ré, ora recorrente, ao pagamento de juros de mora, em dobro (8%), desde a prolação da sentença (10 de Julho de 2024).
7. São, pois, estas, as 3 questões objecto do presente recurso de apelação: a 1.ª questão, referente à indemnização atribuída, ao autor, ora recorrido, a título de danos não patrimoniais (danos morais), no montante de € 120.000,00, a 2.ª questão, referente à indemnização atribuída, ao autor, ora recorrido, a título de dano biológico, no montante de € 650.000,00 e a 3.ª questão, referente à condenação da ré, ora recorrente, no pagamento de juros de mora, em dobro (à taxa de 8%), desde a prolação da sentença (que ocorreu, conforme se predisse, em 10 de Julho de 2024).
Quanto à 1.ª (primeira) questão:
8. O valor de € 120.000,00 atribuído/fixado, na sentença recorrida, pelo tribunal a quo, ao autor, ora recorrido, a título de danos não patrimoniais (danos morais), em razão da ocorrência de tal acidente de viação, é excessivo.
9. Não só devido à factualidade em causa (e provada), no âmbito dos autos (designadamente, a que respeita às condições pessoais do autor, ora recorrido, como sejam, por exemplo, a sua idade, as suas incapacidades e os seus danos, entre outros), como, também e ainda, em razão de tal fixada/atribuída quantia (de € 120.000,00) não respeitar o que prevê, a este propósito, a Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, e a Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, e o que vai sendo decidido pela jurisprudência.
10. Que exigiam que, neste caso, fosse determinada uma indemnização inferior àquela (de € 120.000,00).
11. Nesta parte da sentença recorrida (suas páginas 18 a 20), o tribunal a quo, também, não fundamenta, como devia, esta sua decisão, não diz, não explica, com rigor, com exactidão e em detalhe, como é que chegou àquele valor (de € 120.000,00).
12. Aqui, o tribunal a quo não logrou demonstrar, efectivamente, o porquê de determinar esse referido valor e não outro, não conseguiu justificar a atribuição, a fixação, dessa concreta quantia, não secundou, de facto, a sua posição, com a lei e/ou com a doutrina e/ou com a jurisprudência.
13. A sentença recorrida terá, assim, que ser, a este propósito, revogada e alterada/modificada/substituída, em conformidade.
14. A este título de danos não patrimoniais (danos morais), não deve ser arbitrada, ao autor, ora recorrido, uma indemnização superior a € 80.000,00.
15. Ou, pelo menos, deve ser fixada uma indemnização inferior à atribuída, pelo tribunal a quo, na sentença recorrida (de € 120.000,00).
Quanto à 2.ª (segunda) questão:
16. A atribuição/fixação da indemnização ao autor, ora recorrido, a título de dano biológico (no valor de € 650.000,00) – autonomizado como dano diferenciado de todos os outros –, encontra-se, factual e juridicamente, fundamentada, na óptica do tribunal a quo, no ponto 2.2.3 (páginas 20 a 24) da sentença recorrida.
17. Para “chegar” àquele montante (de € 650.000,00), o tribunal a quo, na sentença recorrida, utilizou os seguintes critérios/factores: vencimento mensal: € 1.443,00 – alegado e suposto vencimento médio em Portugal (remuneração dos trabalhadores por conta de outrem); rendimento anual: € 20.202,00 – € 1.443,00 x 14; idade do autor, ora recorrido (sinistrado), aquando da ocorrência do sinistro: 16 anos; idade limite do cálculo (esperança média de vida): 78 anos; anos de cálculo feito pelo tribunal: 62 anos – dos 16 anos até aos 78 anos; incapacidade (permanente parcial) do autor, ora recorrido: 68 pontos; e dedução de ¼ (um quarto) do valor (global) calculado (de € 851.716,32).
18. Em suma, o tribunal a quo, na sentença recorrida, fez, pois, o seguinte cálculo: € 1.443,00 por mês x 14 meses x 62 anos x 68 pontos de I.P.P.: 4 x 3 (dedução de ¼) = € 638.787,24, que, com arredondamento, “deu” aqueles € 650.000,00.
19. No entanto, este “cálculo” (e consequente decisão) feito/proferida, pelo tribunal a quo, na sentença recorrida, não podem, de forma alguma, proceder, porquanto não encontram qualquer “eco” factual e/ou legal e/ou doutrinal e/ou jurisprudencial.
20. E isto, por duas ordens de razão.
21. Em 1.º lugar, porque, como se reconhece, na sentença recorrida, com a reprodução de várias decisões de tribunais superiores, o montante, ali, fixado (de € 650.000,00), é (muito) elevado, para este caso.
22. É total, absoluta e manifestamente, injustificado, inconsistente, insubsistente, exagerado, desmedido, desproporcional, desmesurado, exorbitante e imoderado, para o caso “sub iudice”.
23. Não só devida à factualidade em causa (e provada), no âmbito dos presentes autos (designadamente, a que respeita às condições pessoais do autor, ora recorrido, como sejam, por exemplo, a sua idade e as suas incapacidades), como, também e ainda, em razão de tal fixada/atribuída quantia (de € 650.000,00).
24. A este propósito, a sentença recorrida “agride”, pois, não só a lei – a Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, e a Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho (aliás, diplomas legais, estes, até, invocados, pelo tribunal a quo, na sentença recorrida).
25. Portarias, essas, que estatuem e prescrevem, para este caso em concreto, uma indemnização, muito, muito, inferior, àquela que foi, agora, fixada, na sentença recorrida, pelo tribunal a quo.
26. Apesar destas duas portarias não se sobreporem à decisão do julgador, o certo é que tais parâmetros e critérios, lá, previstos, devem ser, devidamente, ponderados e valorados, em qualquer sentença e/ou acórdão.
27. Estes diplomas legais, e os parâmetros e os critérios que os conformam, não permitem que, nestes autos, seja arbitrada, ao autor, ora recorrido, uma indemnização, a título de dano biológico, como aquela que consta na sentença recorrida (de € 650.000,00).
28. Esta arbitrada indemnização não respeita, também e ainda, o que vai sendo defendido pela doutrina e decidido pela jurisprudência, a qual tem (dominantemente), para casos similares a este, arbitrado, definitivamente, indemnizações, a título do dano biológico, muito, inferiores, àquela que foi, fixada, na sentença recorrida.
29. Pelo que a sentença recorrida terá, assim, que ser, a este propósito, revogada, e, consequentemente, alterada / modificada / substituída, em conformidade.
30. A este título (do seu dano biológico), não deve ser, pois, arbitrada, ao autor, ora recorrido, uma indemnização superior a € 200.000,00 ou, pelo menos, uma indemnização, muito, muito, inferior aos fixados, na sentença recorrida, € 650.000,00.
31. Em 2.º lugar, porque o tribunal a quo, na sentença recorrida, decidiu para além do peticionado, nesta acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, pelo autor, ora recorrido.
32. O tribunal a quo decidiu em excesso, proferiu uma decisão surpresa, sem qualquer fundamento, quer seja de facto, quer seja de direito.
33. O tribunal a quo calculou esta indemnização atribuída/fixada (de € 650.000,00) ao autor, ora recorrido, a título de dano biológico, aplicando, de entre outros parâmetros, o critério da (sua) idade, aquando da ocorrência do sinistro – 16 (dezasseis) anos – e o critério do alegado e do suposto vencimento mensal médio em Portugal (remuneração dos trabalhadores por conta de outrem) – de € 1.443,00, que dá (totaliza), assim, pois, um rendimento anual: € 20.202,00 – € 1.443,00 x 14.
34. No âmbito destes autos, o autor, ora recorrido, peticiona, precisamente, a este mesmo título (do dano patrimonial futuro, decorrente do seu dano biológico), algo (muito) diferente.
35. Na petição inicial, o autor, ora recorrido, calcula e peticiona, nesta sede, uma indemnização (global), suportada na (sua) idade (após a sua formação académica) de 23 (vinte e três) anos e num rendimento médio (mensal) de € 1.000,00 – veja-se, nesse sentido, os artigos 143.º e 144.º da petição inicial (bem como o seu consequente petitório, a este propósito).
36. Até, porque, o rendimento mensal (de € 1.443,00) e anual (de € 20.202,00) defendidos, pelo tribunal a quo, na sentença recorrida, apesar de poder ser o rendimento médio de um trabalhador por conta de outrem, em Portugal, jamais é o “normal” (como é público e notório) na área da “comunicação e media”.
37. Antes pelo contrário, já que os valores mensais de remuneração dessa área (de “comunicação e media”) se situam muito abaixo daqueles referidos pelo tribunal a quo, na sentença recorrida.
38. Mas, o tribunal a quo, na sentença recorrida, não podia ir para além do pedido feito, pelo autor, ora recorrido, nestes autos!
39. E foi, ultrapassou-o, em larga medida!
40. Como resulta, plenamente, provado, na sentença recorrida, o autor, ora recorrido, aquando da ocorrência de tal sinistro rodoviário, tinha 16 anos.
41. Era estudante e iria continuar a estudar (actualmente, está no estágio), na área da “comunicação e media”.
42. Como (muito bem!) defende o autor, ora recorrido, na sua petição inicial, o cálculo do tribunal a quo, para determinar a indemnização, a título de dano biológico, devia ter sido feito a partir dos (seus) 23 anos.
43. Idade, esta – de 23 anos –, que é, de facto, a da entrada do autor, ora recorrido, no mercado de trabalho (designadamente, na sua área da “comunicação e media”) – veja-se o artigo 144.º da petição inicial.
44. Jamais, o autor, ora recorrido (ou qualquer outra pessoa) estaria, pois, neste contexto, no mercado de trabalho, aos 16 anos – como, efectivamente, não estava aquando da ocorrência de tal sinistro rodoviário (e como, ainda, presentemente, não está!).
45. Dos 16 anos até aos 23 anos, o autor, ora recorrido, jamais, teria (como está, absolutamente, provado, porque, ainda, hoje, com essa idade, não trabalha) qualquer rendimento profissional/laboral (quer fosse mensal, quer fosse anual).
46. O tribunal a quo, apenas, poderia partir dessa idade – de 23 anos – do autor, ora recorrido, para fazer o cálculo, nestes autos, da correspondente indemnização, a título de dano biológico, em razão da produção do sinistro rodoviário de que foi vítima.
47. Dessa forma, seguindo o raciocínio do tribunal a quo, na sentença recorrida (com alguns dos parâmetros/critérios, pelo mesmo, ali, apostos), e de acordo como pedido concreto feito, pelo autor, ora recorrido, na sua petição inicial, considerando os 23 (vinte e três) anos de idade e o rendimento mensal de € 1.000,00, o resultado seria, muito, diferente, do, ali, constante.
48. A indemnização devida, a título de dano biológico, seria de, aproximadamente (arredondado, como o tribunal a quo fez, na sentença recorrida), € 400.000,00!
49. Assim: € 1.000,00 por mês x 14 meses x 55 anos x 68 pontos de I.P.P.: 4 x 3 (dedução de ¼) = € 392.700,00.
50. Valor, este (de € 400.000,00), que o tribunal a quo devia, pois, ter atribuído / fixado, ao autor, ora recorrido, na sentença recorrida, a título de indemnização pelo seu dano biológico, pela ocorrência de tal acidente de viação.
51. Que é o que, aqui e agora, e neste cenário, se requer e se peticiona, em conformidade, com a consequente revogação / alteração / modificação/ substituição da sentença recorrida.
52. Se este raciocínio não for admitido/acolhido, ainda assim, a decisão do tribunal a quo não pode proceder.
53. E isto, de acordo com dois cenários alternativos, também, equacionados, em sede de alegações.
54. De acordo com o pedido feito, pelo autor, ora recorrido, na sua petição inicial, considerando os 23 anos de idade e o rendimento mensal defendido pelo tribunal a quo, na sentença recorrida, de € 1.443,00, teríamos uma indemnização, a título de dano biológico, no montante de aproximadamente (arredondado) € 570.000,00.
55. Assim: € 1.443,00 por mês x 14 meses x 55 anos x 68 pontos de I.P.P.: 4 x 3 (dedução de ¼) - € 566.666,10.
56. Montante, esse (arredondado a € 570.000,00), que devia ser, assim, fixado, nestes autos, ao autor, ora recorrido, a título de indemnização, pelo seu dano biológico, pela ocorrência de tal acidente de viação.
57. Ou, num outro cenário, teríamos, ainda, um outro valor, muito, diferente daquele que o tribunal a quo fixou, a este propósito, na sentença recorrida (de € 650.000,00).
58. De acordo com a idade plasmada, pelo tribunal a quo, na sentença recorrida – de 16 anos – e o rendimento mensal defendido, pelo autor, ora recorrido, na sua petição inicial – de € 1.000,00 –, teríamos uma indemnização, a título de dano biológico, no montante (arredondado) de € 450.000,00.
59. Assim: € 1.000,00 por mês x 14 meses x 62 anos x 68 pontos de I.P.P.: 4 x 3 (dedução de ¼) - € 442.680,00.
60. Montante, esse (arredondado a € 450.000,00), que devia ser, assim, fixado, nestes autos, ao autor, ora recorrido, a título de indemnização, pelo seu dano biológico, pela ocorrência de tal sinistro rodoviário.
61. Nestes termos, o tribunal a quo devia ter atribuído/fixado, ao autor, ora recorrido, uma indemnização (global), a este título do (seu) dano biológico, nas seguintes grandezas: de € 400.000,00 ou de € 570.000,00 ou de € 450.000,00!
62. Se, porventura, assim, também e ainda, não se entendesse, sempre se diga que o tribunal a quo, na sentença recorrida, e independentemente da quantia que fixasse/atribuísse, nestes autos, ao autor, ora recorrido, a título de indemnização, pelo seu dano biológico, sempre, deveria descontar/deduzir, a esta, um valor superior ao, ali, fixado (de ¼), em razão da antecipação do pagamento do capital.
63. Valor, esse (de ¼), que se mostra excessivo (não adequado) e que não encontra suporte jurisprudencial.
64. Em casos similares, os tribunais superiores têm decidido (predominantemente) atribuir, a este propósito, um valor, claramente, superior àquele.
65. Na ordem de 1/3.
66. O que deve, pois, suceder, de igual forma, nestes autos!
67. A sentença recorrida deve, neste segmento, ser revogada, e alterada/modificada/substituída, em conformidade.
Quanto à 3.ª (terceira) questão:
68. A ré, ora recorrente, não pode ser condenada, nestes autos, a liquidar juros de mora, em dobro!
69. Esta condenação em juros de mora, computados à taxa (legal) agravada (em dobro) – de 8% e desde 10 de Julho de 2024 –, em razão da ré, ora recorrente, não ter apresentado, num determinado prazo, ao autor, ora recorrido, a sua proposta de indemnização global, pelos danos decorrentes de tal acidente de viação, é, manifestamente, ilegal!
70. A ré, ora recorrente, não podia ter apresentado, até à data da sua citação para contestar esta acção (15 de Março de 2022), ao autor, ora recorrido, qualquer proposta de indemnização global.
71. É que, até aí (15 de Março de 2022), a ré, ora recorrente, efectivamente, não os conhecia.
72. Não tinha, até aí, em seu poder, quaisquer dados definitivos sobre o seu (concreto) estado de saúde.
73. Nessa altura (15 de Março de 2022), o autor, ora recorrido, ainda, não estava em condições de ter a (a sua) respectiva alta médico-clínica, em virtude da produção de tal sinistro rodoviário, como foi, supra, explicado em sede de alegações.
74. Só a partir desse momento (da sua alta médico-clínica), é que a ré, ora recorrente, podia apresentar, ao autor, ora recorrido, a sua proposta de indemnização (global), a título de danos patrimoniais e de danos não patrimoniais.
75. Só a partir desse preciso momento (da sua alta médico-clínica), é que se saberia qual o efectivo estado de saúde físico e/ou psíquico do autor, ora recorrido (e os diversos parâmetros, dele, decorrentes) e quais os concretos danos patrimoniais e danos não patrimoniais passados, presentes e futuros, pelo mesmo, sofridos, em consequência da ocorrência de tal sinistro rodoviário.
76. E foi, por isso, e só por isso, que a ré, ora recorrente, não apresentou qualquer proposta indemnizatória, ao autor, ora recorrido, no âmbito do processo (interno) de regularização desse acidente de viação.
77. Não o poderia, por essa razão, clara e inequivocamente, fazer.
78. Sem essa alta médico-clínica – que, até então (15 de Março de 2022), ainda, não tinha sucedido, através dos seus serviços médico-clínicos (…), que, sempre, acompanharam e assistiram o autor, ora recorrido –, a ré, ora recorrente, não possuía o efectivo, o concreto e o específico conhecimento dos parâmetros (definitivos) adstritos à mesma.
79. Como podia a ré, ora recorrente, sem nada saber, apresentar, ao autor, ora recorrido, uma proposta de indemnização? Quais eram as suas (definitivas e concretas) incapacidades? Quais eram as suas (definitivas e concretas) limitações? Quais eram as suas (definitivas e concretas) necessidades (designadamente, futuras)? Como poderia a ré, ora recorrente, apresentar uma proposta de indemnização, para encerrar o processo (de regularização) em questão, sem quaisquer dados definitivos?
80. Efectivamente, não podia!
81. Foi, tão só e apenas, no âmbito destes autos, que se ficou a conhecer, em definitivo, as, efectivas, as concretas e as definitivas lesões (físicas e/ou psíquicas) do autor, ora recorrido, em razão da produção do referido sinistro rodoviário.
82. Em 21 de Novembro de 2023, quando se conheceu, em definitivo, o resultado da perícia médico-legal a que o autor, ora recorrido, foi submetido, efectuada pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P. (a fls. dos autos)!
83. Só, aí, é que se conheceu, plenamente, todos os elementos necessários para que se pudesse apresentar uma proposta indemnizatória ao autor, ora Recorrido (designadamente, a data da sua alta médico-clínica).
84. Só, aí, é que se consolidaram, definitivamente, as suas lesões, em razão da produção de tal acidente de viação.
85. A Ré, ora Recorrente, não o fez (apresentação de proposta de indemnização global), naquela data (21 de Novembro de 2023) porquanto, estavam (e estão), precisamente, a correr trâmites estes mesmos autos (onde se discute essa questão).
86. A ré, ora recorrente, não podia, pois, ter apresentado, anteriormente (e ao contrário do que defende o tribunal a quo, na sentença recorrida), qualquer proposta indemnizatória ao autor, ora recorrido, em razão da ocorrência de tal acidente de viação.
87. A ré, ora recorrente, deveria, apenas, ser condenada a pagar, ao autor, ora recorrido, juros de mora, à taxa legal normal e em vigor (de 4%), desde a prolação da sentença recorrida (que ocorreu em 10 de Julho de 2024).
88. A sentença recorrida, a este propósito e neste segmento, ser revogada, e alterada/modificada/substituída, em conformidade.
89. Nestes termos, deve ser julgado, totalmente, procedente o presente recurso de apelação, nos termos, nos modos e com os fundamentos/argumentos ora invocados e peticionados pela ré, ora recorrente, em sede de alegações, com a consequente revogação/ modificação/ alteração/ substituição da sentença recorrida.
As conclusões do recurso independente interposto pelo autor são as seguintes:
(...)
II. A sentença recorrida versou sobre o quantum indemnizatório do prejuízo sofrido pelo recorrente, por força dos danos não patrimoniais que lhe advieram do acidente sub judice.
III. Fixou a verba respectiva em € 120.000,00, justificando-a com o tipo, a duração e a intensidade de todos os danos não patrimoniais descritos na sentença recorrida, a idade do lesado à data do sinistro e, bem assim, os valores indemnizatórios que vêm sendo atribuídos pela jurisprudência.
IV. Contudo, a sentença recorrida afastou-se, ao invés do que refere, dos critérios de equidade que, numa jurisprudência actualista, são utilizados habitualmente em casos similares de acidentes rodoviários pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores.
V. Cumpre, por conseguinte, por via deste recurso, apurar se os ditos critérios de equidade seguidos pelo tribunal a quo, no que respeita à fixação da indemnização ao recorrente a título de danos não patrimoniais, são ou não passiveis de serem harmonizados com os critérios ou padrões que são de costume utilizados pela jurisprudência do STJ: a resposta, na perspectiva de quem aqui recorre, só pode ser negativa.
VI. É que, tendo em conta os factos dados por assentes pelo tribunal a quo (cfr. ponto 3 supra) e os valores que do hábito jurisprudencial são atribuídos em casos semelhantes (cfr. pontos 16, 26 a 30; 32 e 33; e 35 a 39 supra), afigura-se ao recorrente como justa e adequada uma indemnização, pelos danos não patrimoniais por si sofridos, no valor de € 400.000,00.
VII. Para tanto, hão-de relevar: o quantum doloris atribuído ao recorrente (no grau 7/7, numa escala de gravidade crescente de 1 a 7); o dano estético (6/7); a repercussão permanente na actividade sexual (5/7) e a repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer (7/7).
VIII. E hão-de relevar também: o período de internamento do recorrente (286 dias) e a duração das várias incapacidades; as 13 cirurgias a que foi submetido, com as dores e incómodos associados, suas complicações subsequentes e outros tratamentos invasivos; e o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 68 pontos, com atestado médico multiuso que lhe fixou uma incapacidade permanente global de 84%, susceptível de variação futura e, por isso, já com reavaliação marcada para 2029.
IX. Na sequência: essencial é ainda valorizar a condição pessoal do recorrente, i.e., as efectivas limitações com que ficou do sinistro e com as quais se vê forçado a ter de conviver ad aeternum, quer na sua vertente física, quer na sua vertente psíquico-psicológica.
X. Nomeadamente, as efectivas limitações que resultam para o recorrente:
a. Da amputação do membro inferior direito, em conjugação com a falta de mobilidade do membro superior direito;
b. Das feridas que frequentemente aparecem no coto, que ficou sem sensibilidade, causadas pela pressão com a prótese, ocasiões em que fica em casa e sem poder utilizar este equipamento, para permitir a sua cicatrização;
c. Das dores que continuam;
d. De não poder ter uma vida sexual plena (qual frustração de uma vida a dois, onde o amor, o carinho, a sinceridade e a cumplicidade pudessem ser comandos);
e. Da falta de concentração, de memória e da dificuldade em adormecer.
XI. Posto o que: não basta, pois, olhar acriticamente para os 68 pontos correspondentes ao défice funcional permanente da integridade físico-psíquica do recorrente (o todo), sendo imprescindível, ainda assim, analisar o referido défice funcional sobre um outro prisma, no sentido de ter presente os matizes e extensão de tudo quanto de negativo dele, défice funcional, resulta, no que às efectivas limitações da vítima diz respeito (ou seja, a sua condição pessoal; o singular).
XII. Com efeito, o recorrente, jovem de 16 anos de idade à data do acidente, arrebol dourado e escarlate da manhã da vida, viu-se preso, de supetão, a uma cama de hospital, à beira da morte, onde teve de permanecer durante mais de nove meses.
XIII. Era atleta federado desde os 10 anos de idade, na modalidade de futebol, no Núcleo do Sporting Clube de Portugal de (…), modalidade que deixou de poder praticar em consequência das lesões que sofreu.
XIV. Teve que desistir do projecto de ingressar num curso superior na área do desporto, a sua vocação natural, vendo-se condicionado a ter de optar pelo curso de comunicação e media, que, embora o tenha concluído com muito esforço e com a ajuda de terceiros para a realização das tarefas diárias, de nada ainda serviu ou servirá ao recorrente, em termos de realização pessoal ou condições financeiras, devido às sequelas e limitações físicas e anímicas conexas que lhe resultaram deste grave acidente e, bem assim, não menos importante, aos obstáculos conhecidos na integração no mercado de trabalho de pessoas com deficiência.
XV. Por força dos internamentos a que esteve sujeito, durante mais de nove meses, perdeu o ano escolar que então frequentava (11.º), tendo que repeti-lo depois, com dificuldades de adaptação no regresso à escola, quer por falta de meios escolares adequados à sua incapacidade (por demais conhecidos), quer por ter de se integrar numa nova turma.
XVI. Aumentou doze quilos de peso, que mantém, o que, para além do que isso representa de desfeiamento físico num jovem de 16 anos, tem como consequência directa dificultar-lhe mais ainda a locomoção e provocar-lhe gravame na saúde, física e anímica, já de si muito precária.
XVII. O recorrente, misantropo e meditabundo, sente-se inibido, constrangido e diminuído, incluindo perante familiares, amigos e conhecidos, por força das sequelas físicas e por necessitar do auxílio de terceiros para executar as tarefas diárias mais simples.
XVIII. Forçado, pois, a ter que restringir a convivência com amigos e familiares, primeiro, por força do seu débil estado anímico, e, depois, pelas dificuldades de acesso aos vários espaços para pessoas com mobilidade reduzida.
XIX. Vivencia, o recorrente, desespero, tristeza, angústia, oscilações de humor, com reacção depressiva prolongada; falta de concentração e memória, dificuldades em adormecer, e sente medo do futuro, por mais não poder viver uma vida plena, face à sua malfadada incapacidade.
XX. Tem e continuará a ter para sempre pungentes dores ósseas e musculares a nível do membro inferior direito, no antebraço direito, na bacia, na zona lombar, no abdómen (por vezes inchado e onde teve uma bolsa de colostomia durante mais de ano e meio e que, segundo recente informação médica, poderá ter de voltar a usar) e dores fantasma na zona amputada do membro inferior direito.
XXI. Tem e continuará a ter acompanhamento psicológico, psiquiátrico, fisiátrico, fisioterapêutico e terapêutico-ocupacional, continuando a necessitar, para além de ajudas técnicas, de medicação para debelar as dores, as quais persistem e persistirão para sempre.
XXII. Ficou sem sensibilidade no coto do membro inferior direito e sofre frequentemente de úlceras nessa parte do corpo causadas pela pressão com a prótese, o que obriga o recorrente a ficar em casa, agora o lugar do seu cativeiro… para permitir a cicatrização das feridas e a utilizar cadeira de rodas (que só consegue impulsionar em pavimento direito e liso com a ajuda da perna esquerda, face às graves sequelas que também lhe resultaram no membro superior direito e que o impedem, até, por ex., de manusear uma faca ou de apertar ou desapertar um botão que seja), para evitar o impacto do coto nas zonas de pressão com a prótese.
XXIII. O recorrente perdeu de tal forma mobilidade no membro superior direito que, para além do mais, o impede e impedirá de executar quaisquer tarefas que envolvam imprimir força ou que exijam motricidade fina e desenvoltura da mão destra, inclusive a realização das tarefas do dia-a-dia.
XXIV. Em suma: para além da amputação do membro inferior direito, que o recorrente sofreu, também o seu braço destro, mutilado, se apresenta sem préstimo, digamos assim, para o desempenho das sobreditas tarefas ou de outras quaisquer que exijam esforço.
XXV. Por fim, o recorrente, na aproximação da passagem do seio da família, dos braços da mãe, para as caricias mais doces da namorada, que se lhe abria ao lado como flor da mesma sazão e à mesma hora da vida, não mais namorou desde o acidente, primo, por sentir desconforto e limitações físicas para o desempenho de actos sexuais, secundo, por ter criado uma autoimagem corporal negativa e susceptível de poder interferir e permitir uma fruição sexual plena, tertio, pelo preconceito que criou dos outros, convicto de não lhe aceitarem a diferença, mas antes a vendo como estorvo a um relacionamento íntimo.
XXVI. Por outras palavras e de forma cortante: a vida sem vida não é vida; tal é a situação presente e futura do recorrente; jovem de 16 anos que se viu, num momento, por razão de um estranho capricho do destino…, obrigado a viver uma vida vazia, sem inércia e sem valor, repastando tão-só na imaginação e nas visões de felicidade de outrora.
XXVII. Defende assim a verba aqui peticionada, porque se autonomiza com severidade do ponto de vista subjectivo, i.e., no campo de saber e ter o recorrente consciência plena de tudo quanto sofreu, sofre e continuará para sempre a sofrer, pelos danos que lhe foram infligidos por este brutal acidente rodoviário, sem culpa qualquer.
XXVIII. Por todas as razões apontadas, o valor indemnizatório a arbitrar neste caso ao recorrente a título de danos não patrimoniais deve ser significativo (o que não quer dizer arbitrário), e não meramente simbólico, tal como parece tê-lo configurado in casu a sentença recorrida.
XXIX. Assim, a indemnização razoável e équo será, neste caso, não de € 120.000,00, como resulta da sentença recorrida, mas de € 400.000,00, vere dignum et justum est, de resto de acordo com os critérios seguidos pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, nomeadamente a provinda desse Supremo Tribunal de Justiça.
XXX. A sentença recorrida fixou as «custas da ação a cargo de Autor e Ré, na proporção de 81,12% para o primeiro e de 18,18% para a segunda, sem prejuízo da concessão de apoio judiciário de que o [recorrente] beneficia».
XXXI. Este diktat não corresponde à intencionalidade legislativa da fundamentação das decisões judiciais, segundo o disposto no artigo 205.º/1, da CRP, daí que a sentença seja nula nesta parte, por força da aplicação directa dos artigos 17.º, 18.º/1 e 205.º, todos da Lei Fundamental, e artigo 615.º/1/b, do CPC.
XXXII. Por outro lado, também a sentença recorrida se desviou nesta parte do hábito jurisprudencial, ao não ter tido em conta o facto de o recorrente não haver sucumbido relativamente ao valor por si peticionado, considerando que a ré/seguradora foi condenada a pagar-lhe € 4.077,423,57, ou seja, o valor integral do pedido, somadas as duas verbas que foram aos pontos 50 e 51 supra.
XXXIII. E o mesmo ocorre, ainda que a indemnização a título de danos patrimoniais futuros, já provados e a ocorrerem desde há muito, tenha sido relegada para incidente de liquidação de sentença.
XXXIV. Não se verifica, por conseguinte, qualquer razão que possa justificar a condenação do recorrente em custas processuais, devendo antes incidir sobre a parte contrária a responsabilidade pelo seu integral pagamento.
XXXV. Sem conceder, e em jeito de remate, dir-se-á ainda que, atento que na sentença recorrida constam as condenações relativas, por um lado, ao pagamento da indemnização por danos não patrimoniais e pelo dano biológico e, por outro lado, a condenação que diz respeito ao pagamento da indemnização por danos patrimoniais futuros, a liquidar ulteriormente, sempre se imporia, no limite dos limites, que as custas ficassem fixadas, provisoriamente, a cargo de ambas as partes no que concerne à parte ilíquida da condenação, fazendo-se o rateio respectivo, de acordo com a sucumbência, na execução da sentença.
XXXVI. Tudo o que levará à reforma da douta sentença recorrida, seja na parte que respeita ao quantum indemnizatório que arbitrou ao recorrente pelos danos não patrimoniais, seja na parte que concerne à fixação das custas processuais da acção.
Assim,
XXXVII. A sentença recorrida infringiu, no domínio da indemnização arbitrada ao recorrente a título de danos não patrimoniais, o disposto nos artigos 494.º, 496.º, 562.º, 564.º e 566.º/2, todos do C.Civil, e, no que à fixação das custas diz respeito, os artigos 17.º, 18.º/1 e 205.º, todos da CRP e artigos 527.º e 615.º/1/b, ambos do CPC.
XXXVIII. Deve, pois, insiste o recorrente, ser reformada a sentença recorrida, no sentido destas conclusões.
As conclusões do recurso subordinado interposto pelo autor são as seguintes:
XII. Tendo o aqui recorrente, com 16 anos à data do acidente, ficado com um défice permanente da integridade físico-psíquica de 68 pontos e de uma taxa de incapacidade permanente global de 84% atribuída por atestado médico de incapacidade multiuso, não se considera adequada a indemnização por dano biológico, na vertente de danos patrimoniais futuros, no valor de € 650.000,00, já com o desconto de ¼, calculada para um período de 62 anos de esperança média de vida, e contada desde a data do acidente.
XIII. O tribunal a quo errou quando considerou ser de € 1.443,00 o valor correspondente à remuneração média mensal nacional (valor referente ao primeiro trimestre de 2024), uma vez que aquela cifra aumentou, no segundo trimestre, para € 1.640,00 (www.ine.pt) – a sentença está datada de 10/07/2024.
XIV. Assim, contas feitas, e por referência a um rendimento anual de € 22.960 (€ 1.640,00 x 14), a indemnização a arbitrar ao recorrente – considerando a sua idade (16 anos), a esperança média de vida do homem português (78 anos) e o défice permanente da integridade físico-psíquica de 68 pontos – deve ser de € 967.993,60 [(€ 1.640,00 x 14) x 68%].
XV. Depois, os critérios jurisprudenciais mais recentes do Supremo Tribunal de Justiça para o cálculo da indemnização não permitem, em face da nova conjuntura económico-financeira traduzida em taxas de inflação elevadas acompanhadas da descida das taxas de juro dos depósitos e de guerras sem fim à vista, a redução do montante indemnizatório em ¼, como forma de compensar a vantagem do recorrente poder dispor antecipadamente do capital destinado a reparar os danos futuros, quando muito permitem baixar a percentagem da mesma para 10% (vd. pontos 58 a 61 supra).
XVI. Contudo, no caso presente, considerando a idade do recorrente à data do acidente (16 anos), a esperança média de vida de mais 62 anos (78 – 16 = 62 anos) e perante a existência provável de um particular agravamento ou especial onerosidade dos danos patrimoniais futuros expectáveis que importa compensar com recurso a critérios de equidade, não se justifica fazer operar qualquer redução ao referido montante indemnizatório, sabido que as necessidades patrimoniais de um infante não são as mesmas ao longo do tempo, as quais, com toda a certeza, se vão agravar com o decurso da idade, pelo que a extensão dos danos patrimoniais futuros neste caso será cada vez maior.
XVII. Estamos perante um caso de aplicação evolutiva do direito, em face das novas circunstâncias sociais e económicas que implicam uma valorização do bem-estar das pessoas doentes e/ou incapacitadas.
XVIII. O recorrente, vítima grave de um acidente de viação por culpa exclusiva do segurado da recorrida, tem direito a ficar indemne, i.e., a ver totalmente reparado o dano como se não tivesse havido lesão.
XIX. As razões de solidariedade com o aqui recorrente, inerentes ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, impõem que a recorrida/ seguradora tenha de suportar o elevado encargo que representa esta componente indemnizatória, de forma a que o recorrente veja a sua vida o menos afectada possível, por força de um acidente para o qual em nada contribuiu.
XX. O recorrente jamais esquece o comportamento da recorrida, quando, citada para a acção, logo deixou de suportar os custos relativos a despesas médicas e outros, forçando-o a ter que propor procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória.
XXI. Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso subordinado e, na sequência, julgado improcedente o recurso interposto pela agora aqui recorrida.
XXII. A douta sentença recorrida, ao decidir de forma inversa ao que acima ficou dito, infringiu os artigos 483.º, 562.º, 564.º.º/1 e 566.º/3, todos do CC, e, por isso, deve ser revogada a benefício destas conclusões.
Nas suas contra-alegações, o autor pediu a condenação da ré em multa e indemnização por litigância de má-fé, nos seguintes termos:
V. Tendo o recorrido, a 26/10/2020, apresentado à recorrente/seguradora um relatório de avaliação do dano corporal em direito civil, elaborado pelo IML (que contém uma parte relativa à história do evento, com dados documentais, uma parte relativa ao estado actual, ao exame objectivo, à discussão, com referência ao nexo de causalidade, a data da consolidação das lesões, bem como danos temporais e permanentes sofridos pelo recorrido, com conclusões), a mesma tinha, considerando que assumiu a responsabilidade pelo acidente ainda em momento muito anterior à propositura da acção, todos os elementos para, no prazo de 45 dias, apresentar uma proposta razoável de indemnização, sendo o dano quantificável.
VI. Não tendo a recorrente/seguradora apresentado qualquer proposta ao recorrido, nem no referido prazo, nem em qualquer outro, sobre as quantias em que a mesma foi condenada a pagar há lugar a juros de mora calculados ao dobro da taxa aplicável (artigo 38.º/2, ex vi do artigo 39.º/2, do DL n.º 291/2007, de 21/08): bem andou, pois, por aqui a douta sentença recorrida.
VII. Ademais, a recorrente, ao escudar-se num falacioso argumento para tentar justificar o que não tem justificação, tem plena consciência da sua falta de razão e inutilidade, porquanto não ignora que o que o legislador pretende é que as seguradoras tenham elementos que lhes permitam formular propostas de indemnização razoáveis às vítimas de acidentes de viação, como era o caso.
VIII. A recorrente, ao avançar com o argumento da impossibilidade de apresentação de uma proposta de indemnização razoável ao recorrido, por falta de alta pelos seus serviços clínicos, sabe que causa uma grave entorse (entrave) à transparência de uma sã e cooperante lide, entorse tanto mais saliente quando até hoje, pasme-se, não apresentou nenhuma proposta, fazendo do processo um uso manifestamente reprovável e, por isso, motivo de litigância de má-fé, a merecer multa e indemnização.
IX. Se bem que, o recurso interposto pela recorrente, quando põe em crise a condenação pelo pagamento dos juros de mora em dobro da taxa legal em vigor, também se possa configurar como lide temerária, porquanto, apesar de ter actuado do modo sobredito, rasurando as suas obrigações legais, veio a recorrer da sentença: litiga, por isso, sem justa causa.
X. O Tribunal fixará uma multa proporcional à gravidade da falta da recorrente e condená-la-á na indemnização de € 5.000,00 a favor do recorrido, pelo dano moral que a leitura desta parte da peça lhe causou: afligiu-o, mareou-o e indispô-lo, contra o fair-play forense que os hábitos e a legalidade impõem.
XI. Esta rotura das boas práticas jurisdicionais merece, pois, uma restauração da ordem do processo e, por isso mesmo, o recorrido pede aqui a condenação da recorrente nos termos do disposto no artigo 542.º/1, do CPC, de onde resulte uma censura como profiteur de seguros e litigante dolosa.
As questões a resolver são as seguintes:
1 – Montante da indemnização por danos não patrimoniais;
2 – Montante da indemnização pelo dano biológico;
3 – Redução do montante indemnizatório em razão da antecipação do pagamento do capital;
4 – Taxa dos juros de mora;
5 – Responsabilidade pelas custas processuais;
6 – Má-fé processual.
Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:
1. No dia 12.12.2018, pelas 14:15 horas, na Estrada Municipal n.º (…), na localidade da (…), freguesia e concelho de Rio Maior, o veículo ligeiro de passageiros da marca Mercedes – Benz, modelo classe C, com a matrícula (…), conduzido por (…), embateu no motociclo de passageiros, da marca Keeway, modelo 125, com a matrícula (…), conduzido pelo autor.
2. Tal embate ocorreu por falta de cuidado de atenção do condutor do veículo (…), que não respeitou a sinalização de proibição de ultrapassagem de veículos existente no local.
3. Em consequência do mesmo, o autor sofreu ferimentos, tendo sido assistido no local pelos Bombeiros Voluntários de (…) e, logo após, transportado pelo INEM – VMER para o Serviço de Urgências do Hospital Distrital de Santarém (HDS).
4. O autor deu entrada neste serviço consciente, mas sonolento, com perdas hemáticas abundantes e instabilidade hemodinâmica grave, em suporte vasopressor, ventilação invasiva, algaliado, tendo-lhe sido diagnosticados os seguintes traumatismos:
a. traumatismo craniano e cervical, sem perda de conhecimento;
b. traumatismo da bacia, com (i) disrupção pélvica e fratura cominutiva da bacia direita; (ii) ferida penetrante da FID, com impossibilidade de encerramento total; (iii) esfacelo inguinal direito, com viabilidade testicular e envolvimento perineal com laceração parcial, não transmural do esfíncter anal; e (iv) isquemia grave do membro inferior direito por trombose traumática da artéria femoral comum e arrancamento da veia femoral, tendo sido submetido a intervenção cirúrgica de urgência para exploração do eixo ilio-femoral, com realização de bypass ilíaca externa diatalfemoral superficial com veia safena inverna invertida e laqueação da veia femoral no topo distal;
c. traumatismo do membro superior direito com fratura dos ossos do antebraço, com imobilização em tala gessada; e
d. traumatismo do membro inferior direito com fratura diafisária exposta do fémur direito, tendo sido aplicado fixador externo.
5. Em 13.12.2018, o autor foi transferido para o Hospital de Santa Maria (HSM), em Lisboa, onde deu entrada sedado, em ventilação invasiva e suporte cardiopressor, por choque hemorrágico, com sinais de isquémia grave do membro inferior direito, tendo sido submetido às seguintes intervenções cirúrgicas de urgência:
a. cirurgia vascular, que procedeu à amputação infragenicular do membro inferior direito;
b. cirurgia pediátrica, que procedeu à colostomia a nível da fossa ilíaca esquerda e reconstrução perineal; e
c. cirurgia plástica, que procedeu ao encerramento do esfacelo inguinal direito e da coxa direita com fasciotomia parcial.
6. Em virtude de o seu estado de saúde ter evoluído para síndrome compartimental da coxa direita, em 15.12.2018, o autor foi submetido a fasciotomia do compartimento lateral e abertura lateral do coto de amputação, com subsequente necrose muscular e IRA por rabdomiólise.
7. Em 20.12.2018, foi sujeito a nova intervenção para desbridamento de tecidos desvitalizados e cobertura do bypass com flap muscular, redução incruenta dos ossos do antebraço direito e colocação de nova imobilização gessada, neuroestimulação anal e revisão da reconstrução perineal.
8. Em 21.12.2018, foi transferido para a Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) do serviço de cirurgia pediátrica do HSM.
9. Em 24.12.2018, foi submetido a nova intervenção cirúrgica para redução cruenta e osteossíntese das fraturas do antebraço direito, com fasciotomia dos compartimentos volares e lateral do antebraço por contratura isquémica do antebraço (Volkman), necrosectomia do compartimento anterior e medial da coxa direita, revisão da reconstrução perineal, reingressando na UCI do serviço de cirurgia pediátrica do HSM.
10. Em 31.12.2018, foi reintervencionado com amputação transfemural pelo traço de fratura.
11. Em 04.01.2019, foi submetido a colocação de cateter epidural L3-L4.
12. Em 07.01.2019, fez revisão cirúrgica do coto de amputação com desbridamento de tecido necrosado.
13. Em 09.01.2019, foi transferido para o serviço de cirurgia pediátrica do HSM por estabilização clínica.
14. Em 14.01.2018 e 01.02.2019, efetuou plastias da pele da coxa direita.
15. Em 17.01.2019, foi aberto o fixador externo da bacia.
16. Em 21.01.2019 e 27.01.2019, foram efetuadas novas revisões do coto de amputação.
17. Durante o seu internamento no HSM, o autor iniciou acompanhamento psicológico e programa de reabilitação funcional, surgindo-lhe escara occipital e do dorso da mão direita.
18. Permaneceu internado ininterruptamente, na companhia de sua mãe, no serviço de cirurgia pediátrica do HSM até 03.04.2019, data em que teve alta, medicado com “Esomeprazol 40 150 mg mgid; Trazadona id; Tapentadol 100mg+ 150 mg id; gabapentina 300 + 300 + 600 id; Licodaína transdermica 5% id; Diazepam 5 mgid; Morfna 2 mg SOS; Metamizol 1gr ss; Paracetamol1 gr sos; Tramadol 50mg sos; Hidroxizina 12,5mg 2 id + Ondansertron 4mg sos, Biafine pomada 2 e suplemento alimentar.
19. Nessa mesma data (03.04.2019) foi observado no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão (CMRA), com internamento imediato, sem capacidade de verticalização e com necessidade de ajuda máxima nas atividades de vida diária.
20. Neste centro, foi integrado em programa de reabilitação com cuidados médicos, de enfermagem, fisioterapia, terapia ocupacional, psicologia e apoio de serviço social e educação e iniciou o planeamento para a protetização.
21. Foram então prescritas ao autor:
a. prótese endosquelética com encaixe de contacto total, suspensão por vácuo, joelho controlado por microprocessador para nível de atividade médio-alto e pé em carbono de acumulação e retorno energético para atividade de nível médio–alto;
b. ortótese dinâmica e ortótese de posicionamento para mão direita;
c. cadeira de rodas manual; e
d. canadianas com braçadeira móvel.
22. O autor adaptou-se bem à colostomia, que retirou no verão de 2020.
23. Durante o seu internamento no CMRA, o autor teve as seguintes intercorrências: (i) 05/04/2019 – flictena no coto de amputação; (ii) 24/04/2019 – úlcera de pressão no bordo cubital do punho direito, em provável relação com uso de ortótese dinâmica; e (iii) 05/2019 – solução de continuidade na face interna da coxa direita, submetida a cuidados de penso e com boa evolução cicatricial.
24. Em 07.08.2019, foi passado ao autor atestado médico de incapacidade multiuso, que lhe fixou uma incapacidade permanente global de 84%.
25. O autor esteve internado no CMRA até 06.09.2019 para programa de reabilitação neuromotora global para adaptação à sua nova condição, tendo aprendido a usar e colocar as próteses, os movimentos de preensão, as posições de equilíbrio, a escrever no computador e à mão, o controlo dos desequilíbrios, a subir e descer escadas, a utilizar uma canadiana ou o apoio de corrimão, mas sem capacidade de alternância e autonomia de propulsão das deslocações em cadeira de rodas.
26. Em 06.09.2019, o autor teve alta para o domicílio, com indicação para manter programa de reabilitação e terapia ocupacional e para acompanhamento pelas especialidades de cirurgia pediátrica e plástica, ortopedia e pedopsiquiatria.
27. Na mesma data, o CMRA remeteu por email para a ré o relatório da alta do internamento naquela instituição, com reavaliação agendada para 14.11.2019.
28. Como resultado de tal sinistro, o autor ficou com diversas cicatrizes no crânio, no pescoço, no abdómen, no membro superior direito e nos dois membros inferiores, amputação do membro inferior direito e dificuldades na mobilidade do punho direito e dos dedos da mão direita.
29. A perda de mobilidade no membro superior direito que antecede, impede o autor de executar tarefas que envolvam imprimir força ou que exijam motricidade fina e desenvoltura com a mão direita, incluindo segurar um copo, preparar refeições, manusear uma faca para cortar ou barrar alimentos, (des)apertar botões de peças de vestuário, (des)atar cordões de calçado, lavar roupa à mão, passar a ferro e transportar ou carregar itens pesados.
30. Mesmo com a ajuda de ortótese e material ortopédico, não consegue escrever muito tempo à mão e demora a escrever ao computador.
31. O Autor ficou sem sensibilidade no coto do membro inferior direito e sofre frequentemente de úlceras nessa parte do corpo causadas pela pressão com a prótese, caso em que fica sem poder utilizar esta última para permitir a cicatrização das feridas.
32. Na sua residência, o autor desloca-se preferencialmente em cadeira de rodas para minorar o impacto do coto nas zonas de pressão com a prótese.
33. O autor precisa de utilizar veículo automóvel na sua vida diária para aumentar a sua autonomia, mesmo em curtas distâncias, dadas as dificuldades de locomoção decorrentes da amputação do membro inferior direito.
34. Por recomendação especializada, o autor pratica natação, utilizando para o efeito prótese de uso aquático, adquirida em julho de 2021 e cujo custo foi suportado pela ré.
35. O autor aumentou de peso em consequência suas dificuldades de locomoção, precisando de ser acompanhado por nutricionista.
36. Em resultado do sinistro, o autor apresenta:
a. défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em 68 pontos;
b. dano estético permanente fixável no grau 6, numa escala de 7 graus de gravidade crescente;
c. repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 7, numa escala de 7 graus de gravidade crescente;
d. repercussão permanente na atividade sexual fixável no grau 5, numa escala de 7 graus de gravidade crescente;
e. reação depressiva prolongada, correspondente a uma desvalorização de 8 pontos em termos de incapacidade, num intervalo de desvalorização que varia entre 4 e 10 pontos.
37. O quantum doloris vivenciado pelo autor é fixável no grau 7, numa escala de 7 graus de gravidade crescente.
38. As sequelas supramencionadas são compatíveis com o exercício da atividade de estudante e profissional, mas implicam esforços suplementares.
39. A data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo autor é fixável em 12.12.2020.
40. O autor padeceu de défice funcional temporário total fixável em 268 dias, correspondente ao período de mediou entre a data da ocorrência do sinistro (12.12.2018) e a alta do internamento do autor do CMRA (06.09.2019).
41. E de défice funcional temporário parcial fixável em 463 dias, correspondente ao período que mediou a data daquela alta a data da consolidação médico-legal das lesões.
42. Prevê-se que, em consequência do sinistro, o autor continue a precisar ao longo da vida:
a. de medicação, compressas e produtos para tratar as lesões e debelar as dores relacionadas com as suas sequelas físicas;
b. de acompanhamento psicológico e psiquiátrico, incluindo consultas, medicação e outros tratamentos que lhe forem prescritos;
c. de acompanhamento em fisiatria, fisioterapia e terapia ocupacional;
d. de consultas de nutrição;
e. de praticar natação;
f. de revisão e/ou substituição de próteses (incluindo aquática), ortóteses, cadeiras de rodas (incluindo de banho), canadianas e outro material ortopédico, com periodicidade variável e dependente de avaliação especializada;
g. de veículo automóvel com caixa de velocidades automática e com dimensões que permita o transporte da próstese e da cadeira de rodas do autor;
h. de adaptações nos domicílios em que venha a residir de forma estável, caso estes não se encontrem preparados para acolher pessoas com as dificuldades motoras de que o autor é portador; e
i. de ajuda de terceira pessoa na realização de tarefas domésticas, incluindo, limpeza do domicílio, lavagem de roupas, passagem a ferro, preparação de refeições e transporte de compras, que se estima em duas horas diárias.
43. O autor nasceu em 25.06.2002.
44. À data do embate (12.12.2018), tinha 16 anos de idade e gozava de boa saúde.
45. Era atleta federado na modalidade de futebol no Núcleo do Sporting Clube de Portugal de (…) há seis anos, modalidade essa que deixou de poder praticar em consequência das lesões sofridas, o que lhe causou desgosto.
46. Frequentava o 11.º ano de escolaridade no Curso de Línguas e Humanidades, com aproveitamento.
47. Por força dos internamentos a que esteve sujeito, perdeu o ano escolar que estava em curso, tendo voltado a frequentar o 11.º ano de escolaridade no ano letivo de 2020/2021.
48. Sentiu dificuldades de adaptação no regresso à escola por ter que se integrar numa nova turma, com colegas novos.
49. Nunca havia reprovado nenhum ano de escolaridade.
50. Teve que desistir do projeto de ingressar num curso superior na área do desporto, tendo antes optado pelo Curso Superior de Comunicação e Média ministrado pela Escola Superior de Educação e Ciências Sociais de (…), onde teve aproveitamento todos os anos, encontrando-se atualmente na fase de estágio.
51. O autor sente-se inibido, constrangido e diminuído, incluindo perante familiares, amigos e conhecidos, por causa das sequelas físicas e por precisar do auxílio de terceiros para executar tarefas do dia-de-dia.
52. Reduziu a convivência com amigos e familiares por força do seu estado anímico e das dificuldades de acesso para pessoas de mobilidade reduzida aos diversos espaços.
53. Tem vivenciado profundo desespero, tristeza, angústia, oscilações de humor e sente medo do futuro, por recear não mais poder viver uma vida plena ante a sua incapacidade.
54. Sente frequentemente dores ósseas e musculares a nível do membro inferior direito, no antebraço direito (quando está frio), na bacia (quando passa muito tempo sentado), na zona lombar (quando sentado), no abdómen (na zona onde tinha a colostomia, às vezes acompanhado de inchaço) e dores fantasma na zona amputada, para o que necessita de tomar medicação.
55. Sente falta de concentração e de memória, necessitando de mais tempo para estudar.
56. Sente dificuldades em adormecer.
57. Apesar de antes ter tido namorada, com quem manteve relações sexuais, desde o sinistro não mais namorou por se sentir inibido antes as suas sequelas físicas e por ter reduzido a interação social.
58. À data do sinistro, a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo (…) encontrava-se transferida para a ré através de contrato de seguro obrigatório a favor de terceiros (e facultativo de danos próprios), com um limite de € 7.290.00,00 e com a apólice n.º (…).
59. Antes da interposição da presente ação, a ré assumiu perante o autor a responsabilidade exclusiva do condutor do veículo (…) quanto à produção de tal sinistro descrito em 1, tendo aceite a transferência dessa responsabilidade para si.
60. Desde o sinistro, a ré tem vindo a suportar os custos das intervenções cirúrgicas, tratamentos, deslocações, terapias, fisioterapia, despesas médicas e medicamentosas, despesas de adaptação da habitação onde o autor reside com os pais e da aquisição de próteses, ortóteses, cadeiras de rodas, material ortopédico e de adaptação de veículo automóvel.
61. Com vista a atribuição de indemnização, em 26.10.2020, o autor remeteu à ré, por meio de advogado, o relatório da perícia médico-legal de avaliação de dano corporal do autor, efetuada no âmbito do inquérito n.º 19/18.8T9RMR (junto a fls. 144 verso a 151 verso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido), email este a que a ré respondeu em 30.10.2020 referindo entender que não se mostravam reunidas os elementos necessários para dar seguimento ao futuro acordo extrajudicial.
62. O autor insistiu junto da ré, através de emails remetidos por advogado datados de 06.11.2020, 04.05.2021 e 13.08.2021, solicitando que esta apresentasse uma proposta de indemnização.
63. O autor não recebeu alta dos serviços clínicos da ré até à propositura da presente ação e a ré nunca apresentou proposta extrajudicial de indemnização ao autor.
64. Por transação, homologada por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do procedimento cautelar especificado de arbitramento de restituição provisória que constitui o apenso A dos presentes autos, a ré comprometeu-se a entregar ao autor a quantia mensal de € 2.250,00 a título de reparação provisória, com início no mês de Março de 2023 (cláusula primeira da transação).
65. As partes ajustaram ainda em tal transação que a ré procederia ao pagamento de todo o material ortopédico de que o autor viesse a necessitar (cadeiras de rodas, canadianas, próteses e ortóteses para a mão e dedos), mediante apresentação de prescrição médica/técnica (cláusula quarta da transação).
66. A ré entregou ao autor a quantia global de € 31.500,00, a título de reparação provisória, correspondente às prestações mensais previstas na cláusula primeira da transação supramencionada, com vencimento entre Março de 2023 e Abril de 2024.
67. Em Junho e Outubro de 2023, a ré pagou diretamente à (…), Unipessoal, Lda. os montantes de, respetivamente, € 5.830,00 e € 2.904,40, referente a despesas do autor com material ortopédico.
Na sentença recorrida, foram julgados não provados os seguintes factos:
A) Que o autor necessitará ao longo da sua vida:
(i) de tratamento fisiátrico três vezes por semana;
(ii) de material e cuidados de colostomia;
(iii) de consultas de nutrição uma vez por mês;
(iv) de consultas de fisiatria uma vez por mês;
(v) de consultas de psicologia três vezes por semana;
(vi) de ter 200 lições de natação por ano;
(vii) de substituir peças da prótese de uso diário de 6 em 6 anos;
(viii) de substituir peças da prótese de uso aquático de 5 em 5 anos;
(ix) de substituir as cadeiras de rodas de 5 em cinco anos;
(x) de adquirir 11 cadeiras de rodas de banho;
(xi) de ajuda de terceira pessoa oito horas por dia, sete dias por semana; e
(xii) de substituir o seu veículo automóvel de 6 em 6 anos.
B) Que o autor despenderá ao longo da sua vida:
(i) € 35.000,00, com acréscimo de preço de veículo adaptado;
(ii) € 40.000,00, com obras de adaptação nos seus futuros domicílios;
(iii) € 949.000,00, com remuneração de terceira pessoa para auxílio nas tarefas diárias;
(iv) € 380.458,71, com substituição de peças da prótese de uso diário;
(v) € 434.555,00, com substituição de peças de uso aquático;
(vi) € 4.385,90, com substituição de ortótese de posicionamento de um dedo da mão direita e apoios para a mão direita;
(vii) € 17.600,00, com substituição de cadeiras de rodas;
(viii) € 2.401,96, com substituição de cadeiras de rodas para banho;
(ix) € 158.112,00, com tratamentos fisiátricos;
(x) € 25.620,00, com consultas de nutrição;
(xi) € 43.920,00, com consultas de fisiatria;
(xii) € 131.760,00, com consultas de psicologia;
(xiii) € 10.370,00, com frequência de natação;
(xiv) € 102.480,00, com medicação, compressas e material para cuidar das suas lesões; e
(xv) € 131.760,00, com deslocação de ida e volta para tratamentos e consultas.
C) Que é previsível que o autor, ao longo da vida, tenha de se submeter a intervenções cirúrgicas e plásticas, terapêuticas, acompanhamentos clínicos (para além dos referidos em 42), internamentos hospitalares e períodos de recuperação para correção e recuperação das lesões e sequelas de que é portador; e
D) Que a retribuição mensal mínima para um licenciado no Curso de Comunicação e Media é de € 1.000,00.
O tribunal a quo fixou o montante da indemnização por danos não patrimoniais em € 120.000,00. Nem o autor, nem a ré, se conformam com este segmento da sentença recorrida, pretendendo o primeiro que tal montante seja aumentado para € 400.000,00 e a segunda que o mesmo montante seja reduzido para € 80.000,00.
Em abono da sua pretensão, a ré invoca o disposto na Portaria n.º 377/2008, de 26.05, e na Portaria n.º 679/2009, de 25.06, afirmando que o valor da indemnização atribuída na sentença recorrida é superior àquela que ali é prescrita.
Por outro lado, ambas as partes invocam a jurisprudência. Todavia, apenas o autor concretizou tal invocação, indicando vários acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça e da 2.ª instância. A ré ficou-se por uma genérica referência à jurisprudência.
Desde já refutamos a invocação, pela ré, do disposto nas Portarias n.ºs 377/2008 e 679/2009. Os critérios e valores aí estabelecidos não valem para a fixação de indemnizações por parte dos tribunais, antes constituindo, nos termos do n.º 1 do artigo 1.º da Portaria n.º 377/2008, meros «critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal, nos termos do disposto no capítulo III do Título II do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto».
Interessa-nos, sim, o disposto no artigo 496.º do CC. A 1.ª parte do seu n.º 4 estabelece que a indemnização por danos não patrimoniais deve ser fixada de acordo com a equidade, tendo em atenção as circunstâncias referidas no artigo 494.º. A atribuição de uma indemnização por danos desta natureza tem, como objectivo, «proporcionar ao lesado meios económicos que dalguma maneira o compensem da lesão sofrida. Trata-se, por assim dizer, de uma reparação indirecta. Na impossibilidade de reparar directamente os danos, pela sua natureza não patrimonial, procura-se repará-los indirectamente através de uma soma de dinheiro susceptível de proporcionar à vítima satisfações, porventura de ordem puramente espiritual, que representem um lenitivo, contrabalançando até certo ponto os males causados.»[1]
Os danos não patrimoniais sofridos pelo autor são tremendos. Não é frequente os tribunais serem confrontados com situações tão dramáticas como a dos autos.
As lesões que o autor sofreu em consequência do acidente, descritas no n.º 4 do enunciado dos factos provados (EFP), são gravíssimas e extremamente dolorosas (n.º 37 do EFP), sendo certo que aquele não perdeu a consciência, pelo que vivenciou essa dor por inteiro.
Ao longo do seu tratamento, o autor foi submetido a treze intervenções cirúrgicas, algumas das quais extremamente invasivas, a saber:
- Cirurgia vascular, que procedeu à amputação infragenicular do membro inferior direito;
- Cirurgia pediátrica, que procedeu à colostomia a nível da fossa ilíaca esquerda e reconstrução perineal;
- Cirurgia plástica, que procedeu ao encerramento do esfacelo inguinal direito e da coxa direita com fasciotomia parcial;
- Fasciotomia do compartimento lateral e abertura lateral do coto de amputação;
- Desbridamento de tecidos desvitalizados e cobertura do bypass com flap muscular, redução incruenta dos ossos do antebraço direito e colocação de nova imobilização gessada;
- Redução cruenta e osteossíntese das fraturas do antebraço direito, com fasciotomia dos compartimentos volares e lateral do antebraço por contratura isquémica do antebraço (Volkman), necrosectomia do compartimento anterior e medial da coxa direita;
- Amputação transfemoral pelo traço de fractura;
- Colocação de cateter epidural L3-L4;
- Revisão cirúrgica do coto de amputação com desbridamento de tecido necrosado;
- Duas plastias da pele da coxa direita;
- Abertura do fixador externo da bacia;
- Duas revisões do coto de amputação.
O autor teve ainda de suportar:
- Internamento hospitalar e no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão (CMRA) durante 268 dias;
- Durante o internamento no Hospital de Santa Maria, um programa de reabilitação funcional;
- Durante o internamento no CMRA, um programa de reabilitação neuromotora global para adaptação à sua nova condição;
- Colostomia durante cerca de um ano e meio;
- Diversas intercorrências ao longo do período da sua recuperação.
As sequelas são permanentes e muito severas:
- Amputação do membro inferior direito;
- Dificuldades na mobilidade do punho direito e dos dedos da mão direita, que impedem o autor de executar tarefas que envolvam imprimir força ou que exijam motricidade fina e desenvoltura com a mão direita, como segurar um copo, preparar refeições, manusear uma faca para cortar ou barrar alimentos, apertar e desapertar botões de peças de vestuário, atar e desatar cordões de calçado, lavar roupa à mão, passar a ferro ou carregar/transportar objectos pesados; mesmo com a ajuda de ortótese e material ortopédico, o autor não consegue escrever muito tempo à mão e demora a escrever ao computador;
- Cicatrizes no crânio, no pescoço, no abdómen, no membro superior direito e nos dois membros inferiores;
- Ausência de sensibilidade no coto do membro inferior direito;
- Úlceras frequentes no coto do membro inferior direito, causadas pela pressão com a prótese; quando tal acontece, o autor fica sem poder utilizar a prótese, para permitir a cicatrização das feridas;
- Dano estético permanente fixável no grau 6, numa escala de 7 graus de gravidade crescente;
- Repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer fixável no grau 7, numa escala de 7 graus de gravidade crescente;
- Repercussão permanente na actividade sexual fixável no grau 5, numa escala de 7 graus de gravidade crescente;
- Frequentes dores ósseas e musculares a nível do membro inferior direito, no antebraço direito (quando está frio), na bacia (quando passa muito tempo sentado), na zona lombar (quando sentado), e no abdómen (na zona onde tinha a colostomia, às vezes acompanhado de inchaço), bem como dores fantasma na zona amputada, para o que necessita de tomar medicação;
- Falta de concentração e de memória, necessitando de mais tempo para estudar;
- Dificuldades em adormecer.
Ao longo da sua vida, o autor continuará a precisar de:
- Medicação, compressas e produtos para tratar as lesões e debelar as dores relacionadas com as suas sequelas físicas;
- Acompanhamento psicológico e psiquiátrico, incluindo consultas, medicação e outros tratamentos que lhe forem prescritos, por apresentar um quadro de reacção depressiva prolongada, correspondente a uma desvalorização de 8 pontos em termos de incapacidade, num intervalo de desvalorização que varia entre 4 e 10 pontos;
- Acompanhamento em fisiatria, fisioterapia e terapia ocupacional;
- Consultas de nutrição;
- Praticar natação;
- Revisão e/ou substituição de próteses (incluindo aquática), ortóteses, cadeiras de rodas (incluindo de banho), canadianas e outro material ortopédico, com periodicidade variável e dependente de avaliação especializada;
- Veículo automóvel com caixa de velocidades automática e com dimensões que permita o transporte da próstese e da cadeira de rodas do autor;
- Adaptações nos domicílios em que venha a residir de forma estável, caso estes não se encontrem preparados para acolher pessoas com as dificuldades motoras de que é portador;
- Ajuda de terceira pessoa na realização de tarefas domésticas, como limpeza do domicílio, lavagem de roupas, passagem a ferro, preparação de refeições e transporte de compras, que se estima em duas horas diárias.
Em consequência do exposto:
- Quando, em 06.09.2019, lhe foi dada alta para o domicílio, o autor teve indicação para manter um programa de reabilitação e terapia ocupacional e para acompanhamento pelas especialidades de cirurgia pediátrica e plástica, ortopedia e pedopsiquiatria;
- Na sua residência, o autor desloca-se preferencialmente em cadeira de rodas, com vista a minorar o impacto do coto nas zonas de pressão com a prótese;
- O autor precisa de utilizar veículo automóvel na sua vida diária para aumentar a sua autonomia, mesmo em curtas distâncias, dadas as dificuldades de locomoção decorrentes da amputação do membro inferior direito;
- Por recomendação especializada, o autor pratica natação, utilizando, para o efeito, uma prótese de uso aquático;
- O autor tornou-se sedentário, o que o levou a aumentar de peso e a precisar de ser acompanhado por um nutricionista.
Na data do acidente, o autor tinha apenas 16 anos de idade. Era uma rapaz saudável, praticante de futebol havia seis anos, encontrando-se federado. Frequentava o 11.º ano de escolaridade no Curso de Línguas e Humanidades e sempre tivera aproveitamento. Tivera uma namorada. Enfim, vivia como é normal e saudável um rapaz de 16 anos viver.
Em consequência do acidente, essa vida acabou de forma brutal. O autor permaneceu vivo, mas para viver uma vida completamente diferente da anterior e, sobretudo, daquela que ainda tinha diante dele.
O autor perdeu o ano escolar que estava em curso, tendo voltado a frequentar o 11.º ano de escolaridade apenas no ano lectivo de 2020/2021. Nessa altura, sentiu dificuldades de adaptação à escola, por ter que se integrar numa nova turma, com colegas novos.
Antes do acidente, era intenção do autor ingressar num curso superior na área do desporto. Por razões óbvias, esse projecto teve de ser posto de lado. O autor optou, então, pelo Curso Superior de Comunicação e Média ministrado pela Escola Superior de Educação e Ciências Sociais de (…), onde teve aproveitamento todos os anos, encontrando-se, à data da prolação da sentença recorrida, na fase de estágio.
Devido às sequelas do acidente, ao seu estado anímico, à sua necessidade de ser auxiliado por terceiros para executar tarefas do dia-de-dia e às suas dificuldades de acesso aos diversos espaços, o autor sente-se inibido, constrangido e diminuído, incluindo perante familiares, amigos e conhecidos. Daí que ele tenha reduzido a convivência com terceiros, incluindo familiares e amigos.
Compreensivelmente, o autor tem vivenciado profundos desespero, tristeza e angústia, bem como oscilações de humor. Sente medo do futuro, ao constatar a evidente falta de qualidade da vida que tem pela frente, comparada com aquela que, antes do acidente, previsivelmente teria. A vida adulta, nas suas vertentes pessoal e profissional, surge, a um ou uma jovem de 16 anos saudável, como um desafio que, com mais ou menos confiança, espera conseguir defrontar com sucesso. Foi essencialmente isto que o autor perdeu em consequência do acidente: um futuro promissor, com perspectivas de sucesso, prazer e realização pessoal e profissional. Em vez disso, o autor tem, perante si, um futuro sombrio, cheio de obstáculos dificilmente transponíveis e com escassas perspectivas de sucesso, seja a que nível for, atendendo a que ele estará sempre em clara desvantagem perante os outros. E carregando, em cada momento e até ao fim dos seus dias, a cruz da condição física acima descrita, com o sofrimento físico e psicológico inerente. Cada vez que tiver de apertar ou desapertar um botão do seu vestuário, de escrever, de comer, de se movimentar (em casa, noutro edifício ou na via pública), de interagir com outras pessoas, de procurar um emprego, etc., etc., etc., o autor sentirá a abissal diferença entre aquilo que podia ter sido e aquilo que acabou por ter de ser em consequência do acidente.
Tudo isto, sublinha-se, numa fase extremamente precoce da vida. Uma pessoa nos seus 40 anos a quem aconteça algo semelhante já terá tido oportunidade para saborear a vida, para viver uma vida normal durante um período significativo. Não é o caso de um jovem de 16 anos, que, numa situação como a descrita, nem sequer teve oportunidade para chegar à idade adulta sem limitações, para se realizar pessoal e profissionalmente, para constituir uma família, para ter a alegria de ter filhos, pegar-lhes ao colo e criá-los em condições de normalidade. Na realidade, o autor mal teve tempo para começar a saborear a vida. Aos 16 anos, foi-lhe retirado quase tudo o que de bom a vida tem e, em contraponto, caiu-lhe em cima quase tudo o que de mau a vida pode trazer. Tendo em conta a esperança média de vida de um homem, aquilo que o autor passou a ter pela frente na sequência do acidente são 62 anos de sofrimento, físico e mental, e de limitações de toda a ordem. É esta a real dimensão do dano não patrimonial sofrido pelo autor: o que ele já sofreu e o que ele continuará a sofrer, previsivelmente, nos próximos (por referência à presente data) 55 anos.
Como compensar este dano? Não só o sofrimento físico e mental sofrido pelo autor aquando da ocorrência do acidente e durante o seu tratamento, mas também a violenta queda da sua qualidade de vida durante, previsivelmente, as seis décadas subsequentes?
Não, certamente, com os € 120.000,00 que lhe foram atribuídos na sentença recorrida, muito menos com os € 80.000,00 que a ré propõe. Pondo liminarmente de lado esta última, por manifestamente descabida, atentemos na quantia fixada na sentença recorrida.
Os danos não patrimoniais sofridos pelo autor logo após o acidente e no decurso do seu tratamento foram avultadíssimos. Dores extremas, treze intervenções cirúrgicas, amputação de uma perna em duas etapas (primeiro, amputação infragenicular, mais tarde amputação transfemoral), colostomia durante cerca de um ano e meio, prolongados tratamentos de reabilitação, intenso sofrimento psicológico e tudo o mais que acima se enumerou. Tudo isto entre os 16 e os 18 anos do autor. Os € 80.000,00 que a ré propõe talvez não chegassem, sequer, para compensar estes danos.
Acrescem os danos não patrimoniais que o autor já sofreu após a sua alta clínica e ainda sofrerá ao longo do tempo de vida que previsivelmente ainda terá pela frente. Falamos de cerca de 60 anos de vida, ou seja, cerca de 22.000 dias. Em cada um destes dias, o autor vivenciará o quadro de padecimentos acima descrito. Serão 22.000 dias em que os danos não patrimoniais resultantes do acidente continuarão a produzir-se e a carecer de compensação pecuniária, por outra não ser possível.
Importa ter isto em mente. O acidente dos autos não se limitou a produzir danos não patrimoniais circunscritos no tempo, como teria acontecido se o autor não tivesse ficado com sequelas. Ao invés, produzirá danos não patrimoniais muito significativos enquanto o autor estiver vivo. Todos esses danos terão de ser devidamente compensados, como os artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.ºs 1 e 4, 1.ª parte, impõem.
Afirmámos, anteriormente, que uma indemnização de € 80.000,00 talvez não fosse suficiente para compensar adequadamente os danos não patrimoniais sofridos pelo autor logo após o acidente e no decurso do seu tratamento. Admitamos, porém, para facilitar as contas a que iremos proceder, que a indemnização adequada para a compensação desses danos seria de € 60.000,00. Da indemnização fixada na sentença recorrida, restariam € 60.000,00 para os danos não patrimoniais subsequentes.
Uma indemnização de € 60.000,00 traduz-se numa compensação anual de € 1.000,00. Menos de € 3,00 diários. Pensemos, em contraponto, o que significará viver cada dia com as limitações com que o autor ficou em consequência do acidente. € 3,00 não compensam, de modo algum, esses danos.
A esta luz, a indemnização de € 400.000,00 que o autor pretende que lhe seja atribuída, mostra-se mais consentânea com a grandeza dos danos a compensar. Mantendo uma parcela de € 60.000,00 para compensar os danos não patrimoniais sofridos pelo autor logo após o acidente e no decurso do seu tratamento, restarão € 340.000,00 para compensar os danos não patrimoniais subsequentes. A compensação anual será de cerca de € 5.700,00, o que proporciona um valor diário de pouco mais de € 15,00. Ainda se trata de um valor bastante modesto, atenta a gravidade dos danos, mas é seguramente mais adequado que um valor diário de € 3,00, manifestamente insuficiente.
Concluindo este ponto, a razão está do lado do autor, ao qual deverá ser atribuída uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 400.000,00. Procede, nesta parte, o seu recurso independente, improcedendo o da ré.
2. Montante da indemnização pelo dano biológico:
2.1. Para calcular o montante da indemnização pelo dano biológico, o tribunal a quo baseou-se nos seguintes pressupostos:
- Remuneração média mensal nacional dos trabalhadores por conta de outrem (salário médio nacional): € 1.443,00;
- Défice funcional permanente de integridade físico-psíquica: 68%;
- Esperança de vida do autor à data do acidente: 62 anos.
O tribunal a quo efectuou os seguintes cálculos:
€ 1.443,00 x 14 = € 20.202,00
€ 20.202,00 x 0,68 x 62 = € 851.716,32
A este último valor, o tribunal a quo deduziu 1/4, com vista a compensar a suposta vantagem que, para o autor, decorreria da antecipação do pagamento do capital:
€ 851.716,32 x 75% = € 638.787,24
Invocando jurisprudência, o tribunal a quo arredondou este valor para € 650.000,00, valor da indemnização pelo dano biológico.
As objecções da ré aos cálculos efectuados pelo tribunal a quo são, resumidamente, as seguintes:
- O valor de € 650.000,00 excede largamente aquele que resulta das Portarias n.ºs 377/2008, de 26.05, e 679/2009, de 25.06, bem como aqueles que a doutrina sustenta e jurisprudência decide; em vez daquele valor, deverá ser fixado um valor indemnizatório não superior a € 200.000,00;
- O tribunal a quo decidiu para além do pedido, porquanto se baseou num valor salarial mensal de € 1.443,00 apesar de o autor, no cálculo que fez na petição inicial, se ter baseado num valor salarial mensal de € 1.000,00, valor este que até é mais realista porquanto é público e notório que o salário médio na área da comunicação e media é muito inferior àquele;
- O tribunal a quo também decidiu para além do pedido na medida em que, no cálculo que fez na petição inicial, o autor se baseou na hipótese de iniciar a sua carreira profissional aos 23 anos e não, como se fez na sentença recorrida, aos 16 anos, hipótese esta irrealista;
- Se o tribunal a quo se tivesse contido nos limites do pedido, a indemnização pelo dano biológico não teria excedido o montante de € 400.000,00;
- Se o tribunal a quo, ainda que baseando-se num valor salarial mensal de € 1.443,00, tivesse calculado a indemnização pelo dano biológico com base na hipótese de o autor iniciar a sua carreira profissional aos 23 anos, a indemnização pelo dano biológico não teria excedido o montante de € 570.000,00;
- Na hipótese inversa à anterior, ou seja, de o cálculo se basear num valor salarial mensal de € 1.000,00 e na hipótese de ingresso do autor no mercado do trabalho com 16 anos de idade, a indemnização pelo dano biológico não teria excedido o montante de € 450.000,00;
- Em vez de 1/4, o tribunal a quo devia ter deduzido 1/3 da indemnização como contrapartida pela antecipação do pagamento do capital, de acordo com a jurisprudência predominante dos tribunais superiores.
As objecções do autor aos cálculos efectuados pelo tribunal a quo são, resumidamente, as seguintes:
- O cálculo a que o tribunal a quo procedeu tendo em vista a fixação do montante da indemnização pelo dano biológico devia ter-se baseado no salário médio nacional mensal à data da prolação da sentença recorrida, que era de € 1.640 e não de € 1.443,00;
- A antecipação do pagamento do capital não constitui fundamento para efectuar qualquer dedução no montante da indemnização;
- A conjugação destes dois factores determina que a indemnização pelo dano biológico deva ser aumentada para o montante de € 967.993,60.
Passamos a analisar estas objecções, com excepção daquelas que se prendem com a questão de saber se a antecipação do pagamento do capital constitui fundamento para efectuar uma redução do montante da indemnização. Esta última questão será analisada no ponto 3.
2.2. A objecção de que, por exceder aquele que resulta das Portarias n.ºs 377/2008 e 679/2009, o valor de € 650.000 deve ser reduzido para um máximo de € 200.000,00, não tem razão de ser. Como referimos no ponto 1, os critérios e valores estabelecidos nessas portarias não valem para a fixação de indemnizações por parte dos tribunais, antes constituindo, nos termos do n.º 1 do artigo 1.º da Portaria n.º 377/2008, meros «critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal, nos termos do disposto no capítulo III do Título II do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto».
A referência que a ré faz à doutrina e à jurisprudência é destituída de conteúdo, ou seja, não é identificado um único autor ou decisão judicial que sustente a tese por si sustentada.
2.3. O tribunal a quo não decidiu para além do pedido, pois não condenou a ré no pagamento de uma indemnização de montante superior ao peticionado pelo autor. O recurso, pelo tribunal a quo, para o efeito de calcular o montante da indemnização pelo dano biológico, a critérios mais favoráveis ao autor do que aqueles em que este último baseou os seus próprios cálculos, teve um carácter meramente instrumental, isto é, constituiu um mero argumento, entre outros, para a tomada da decisão, carecendo, portanto, de relevância à luz do disposto nos artigos 609.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC.
2.4. A constatação da admissibilidade processual da utilização de um critério de decisão não nos dispensa, todavia, de ajuizar sobre o seu acerto à luz do disposto no artigo 566.º, n.ºs 2 e 3, do CC. Nesta perspectiva, cumpre averiguar: i) se existe fundamento para o recurso ao critério do salário médio nacional; ii) se o valor desse salário referido na sentença recorrida está errado; iii) se o cálculo da indemnização deve ser feito tendo como referência o momento do acidente ou, ao invés, aquele em que o autor completou 23 anos de idade.
A resposta à primeira questão é claramente afirmativa. Não exercendo o autor qualquer actividade profissional à data do acidente cuja retribuição possa servir de ponto de referência e tendo ele formação ao nível do ensino superior, mostra-se perfeitamente justificado o recurso ao critério do salário médio nacional. A afirmação, que a ré faz a este propósito, de que é público e notório que o salário médio na área da comunicação e media é muito inferior ao do salário médio nacional, é puramente gratuita. Tal discrepância não se encontra demonstrada, nem é pública e notória.
Relativamente à segunda questão, é o autor que alega sem cuidar de demonstrar. Nem consta dos autos, nem confirmámos em pesquisa efectuada no site do INE, que o salário médio nacional mensal fosse de € 1.640,00 à data da prolação da sentença recorrida. Note-se, a este propósito, que, nas alegações do seu recurso subordinado, o autor se limitou a remeter para a página inicial do site do INE (www.ine.pt), onde não consta o dado que ele alega.
No tocante à terceira questão, a ré tem razão. Estando o autor, à data do acidente, previsivelmente a 7 anos de entrar para o mercado de trabalho, carece de fundamento compensá-lo com base em perdas salariais que ele, manifestamente, não sofreu no decurso desse período.
2.5. Cumpre proceder ao cálculo da indemnização devida pela ré pelo dano biológico sofrido pelo autor, em função das conclusões a que anteriormente chegámos:
€ 1.443,00 x 14 = € 20.202,00
€ 20.202,00 x 0,68 x 55 anos = € 755.554,80.
3. Redução do montante indemnizatório em razão da antecipação do pagamento do capital:
Existe fundamento para reduzir, em alguma medida, o montante indemnizatório de € 755.554,80?
O tribunal a quo entendeu que sim. A ré pronuncia-se no mesmo sentido, apenas discordando da percentagem a reduzir, que considera dever ser de 1/3 e não de 1/4. O autor considera que não há fundamento para qualquer redução.
Resulta dos artigos 483.º, n.º 1, 562.º e 566.º do CC que, por regra, os danos sofridos pelo lesado devem ser indemnizados por inteiro. Limitações a este princípio, como a prevista no artigo 494.º do CC, têm carácter excepcional.
Daí que caiba a quem proceda, ou pretenda que se proceda, à redução em causa, fundamentar juridicamente esta última. Coisa que, nem o tribunal a quo, nem a ré, fizeram. O primeiro limitou-se a consignar que «Por ocorrer uma antecipação do pagamento do capital, reputa-se razoável deduzir a este resultado 1/4 do valor». A segunda, mais uma vez, invoca jurisprudência que não identifica.
A redução do montante indemnizatório em razão da antecipação do pagamento do capital apenas poderia ter justificação, com amparo no instituto do enriquecimento sem causa (artigos 473.º a 482.º do CC), numa conjuntura em que o capital produzisse rendimento líquido, ou seja, superior à taxa de inflação após o pagamento de impostos, comissões bancárias e outros encargos relacionados com a gestão desse capital. Só nessa hipótese a antecipação do pagamento da indemnização relativamente ao momento da produção do dano futuro poderia proporcionar um benefício ilegítimo ao lesado, que receberia, além da indemnização, o referido rendimento líquido sem causa justificativa. E, mesmo então, poderia discutir-se a bondade da solução da redução antecipada da indemnização, baseada em meras previsões, frequentemente de longo prazo e, por isso, sujeitas a uma enorme margem de erro.
Porém, há já alguns anos, a realidade que se nos apresenta é completamente diversa da descrita. Que saibamos, nenhum banco a operar em Portugal oferece produtos financeiros sem risco associado cujas taxas de juro proporcionem rendimento líquido, no sentido acima referido. Basta a taxa de inflação que se vem verificando para impedir uma apreciação efectiva do capital depositado. Pelo contrário, aquilo que se vem verificando é que a remuneração das aplicações financeiras sem risco associado, maxime depósitos a prazo, é de tal forma baixa que gera, não um rendimento líquido, mas a depreciação do valor real do capital, atenta a inflação.
Nestas circunstâncias, não há fundamento para entender que a antecipação do pagamento da indemnização correspondente ao dano futuro relativamente à produção deste proporciona algum benefício ao lesado, nem, logicamente, para a dedução de qualquer parcela da indemnização a esse título. Tal dedução equivaleria a um enriquecimento sem causa do lesante, ou da sua seguradora, à custa do lesado. Para mais em percentagens tão elevadas como 1/3 ou, mesmo, 1/4.
Sendo assim, ao contrário do que a ré sustenta e o tribunal a quo decidiu, a indemnização pelo dano biológico deverá ser fixada no montante de € 755.554,80, resultante do cálculo que efectuámos em 2.5, sem qualquer redução.
4. Taxa dos juros de mora:
O tribunal a quo condenou a ré a pagar, ao autor, juros moratórios vincendos, computados sobre o capital em dívida, à taxa supletiva legal de juros civis elevada ao dobro, desde a data da prolação da sentença até efectivo e integral pagamento.
Transcrevemos a parte da fundamentação desta condenação que releva para a decisão do recurso:
«A Ré declarou ao Autor que assumia a responsabilidade pelo sinistro (o que não se confunde com “a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade” a que alude o artigo 37.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, já que esta se refere à apresentação de proposta provisória contendo os valores indemnizatórios).
Fê-lo antes mesmo de o Autor formular qualquer pedido de indemnização global. Destarte, a matéria provada (apenas) permite concluir que o Autor apresentou tal pedido em 26.10.2020, através de email remetido à Ré, por meio de advogado, acompanhado do relatório da perícia médico-legal de avaliação de dano corporal do Autor, efetuada no âmbito de procedimento criminal. Mais se provou que o Autor insistiu junto da Ré, através de emails remetidos por advogado datados de 06.11.2020, 04.05.2021 e 13.08.2021, solicitando que esta apresentasse uma proposta de indemnização.
Todavia, até à propositura da ação, o Autor não recebeu alta dos serviços clínicos da Ré e esta nunca apresentou proposta extrajudicial para indemnizar o Autor.
Sucede que aquele relatório pericial contém uma parte relativa à história do evento, com dados documentais, uma parte relativa ao estado atual, ao exame objetivo, à discussão, com referência ao nexo de causalidade, a data da consolidação, bem como danos temporários e permanentes sofridos pelo Autor e conclusões.
Quer dizer, pois, que através do aludido email de 26.10.2020, a Ré teve acesso a um relatório que, mais do que um relatório de alta clínica, continha todos os elementos relativos aos danos corporais, temporários e permanentes. Não obstante não se tenha apurado a data certa da receção de tal email por parte da Ré, certo é que a mesma respondeu ao Autor em 30.10.2020. Assim, garantidamente nesta data a Ré já tinha conhecimento efetivo daquele relatório.
Ora, afigura-se cristalino que o que o legislador pretende é que a seguradora tenha elementos que lhe permitam formular uma proposta de indemnização razoável.
E, como referido supra, decorre da conjugação dos arts. 37.º, n.º 1, alínea c) e 39.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, que a Ré dispunha de 45 dias contados da data da receção do pedido de indemnização (30.10.2020) e desde que tivesse sido emitido relatório de alta clínica e o dano fosse totalmente quantificável, para apresentar uma proposta provisória razoável de indemnização, ou seja, até 15 de dezembro de 2020 (note-se que é inaplicável ao caso vertente o prazo de 15 dias a que alude a alínea c) do n.º 2 da mesma disposição legal, uma vez que esta pressupunha que a Ré tivesse apresentado uma proposta provisória, o que não fez de todo).
Por conseguinte, nos termos do artigo 38.º, n.º 2, ex vi do artigo 39.º, n.º 2 e por incumprimento do dever estabelecido no artigo 37.º, n.º 1, alínea c), todos do mencionado Decreto-Lei, sobre as indemnizações a que o Autor tem direito – € 120.000,00, a titulo de danos não patrimoniais emergentes, e € 650.000,00, a titulo de indemnização por dano biológico, incidem juros de mora calculados ao dobro da taxa supletiva legal dos juros civis (cfr. artigos 559.º, n.º 1, 806.º, n.º 2, do Código Civil), atualmente 4,00% ano (cfr. Portaria n.º 291/03, de 8 de abril), que assim deverá ser elevada para 8,00%.»
A ré contrapõe, em síntese, que:
- Até à data da citação, não tinha dados concretos e definitivos sobre o estado de saúde do autor, pelo que não podia ter-lhe apresentado uma proposta de indemnização global;
- Nesse momento, o autor ainda não estava em condições de ter alta médico-clínica;
- E só a partir do momento da alta médico-clínica do autor é que a ré podia apresentar-lhe a sua proposta de indemnização (global), a título de danos patrimoniais e de danos não patrimoniais;
- Pois só a partir desse momento se saberia qual o efectivo estado de saúde físico e/ou psíquico do autor e quais os concretos danos patrimoniais e não patrimoniais passados, presentes e futuros, por ele sofridos;
- Só por isso a ré não apresentou qualquer proposta indemnizatória ao autor no âmbito do processo (interno) de regularização do acidente de viação.
- Sem essa alta médico-clínica – que, até então, ainda não tinha sucedido, através dos seus serviços médico-clínicos, que sempre acompanharam e assistiram o autor –, a ré não possuía o efectivo, concreto e específico conhecimento dos parâmetros (definitivos) adstritos à mesma;
- Só no âmbito destes autos se ficou a conhecer, em definitivo, as efectivas, concretas e definitivas lesões (físicas e/ou psíquicas) do autor, quando, em 21.11.2023, se conheceu o resultado da perícia médico-legal a que este foi submetido;
- Só então se conheceu, plenamente, todos os elementos necessários para que se pudesse apresentar uma proposta indemnizatória ao autor;
- Só então se consolidaram, definitivamente, as lesões do autor.
Analisemos a questão.
Resulta do artigo 37.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08, que, sempre que lhe seja comunicada, pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado, a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro e que envolva danos corporais, a empresa de seguros deve, relativamente à regularização destes danos, comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 45 dias, a contar da data do pedido de indemnização, caso tenha entretanto sido emitido o relatório de alta clínica e o dano seja totalmente quantificável, informando daquele facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por escrito ou por documento electrónico.
A alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo estabelece que, quando não for emitido o relatório de alta clínica ou o dano não for totalmente quantificável dentro do prazo previsto na alínea c) do n.º 1, a assunção da responsabilidade aí prevista assume a forma de proposta provisória, na qual a empresa de seguros nomeará especificamente os montantes relativos a despesas já havidas e ao prejuízo resultante de períodos de incapacidade temporária já decorridos. A alínea b) do n.º 2 estabelece que, se a proposta provisória tiver sido aceite, a empresa de seguros deverá efectuar a assunção da responsabilidade consolidada no prazo de 15 dias a contar da data em que tiver conhecimento do relatório de alta clínica, ou da data a partir da qual o dano deva considerar-se como totalmente quantificável, se posterior.
O n.º 1 do artigo 39.º do mesmo diploma legal estabelece que a posição prevista na alínea c) do n.º 1 ou na alínea b) do n.º 2 do artigo 37.º se consubstancia numa proposta razoável de indemnização, no caso de a responsabilidade não ser contestada e o dano sofrido ser quantificável, no todo ou em parte. O n.º 4 dispõe que, relativamente aos prejuízos futuros, a proposta prevista no n.º 1 pode ser limitada ao prejuízo mais provável para os três meses seguintes à data da apresentação dessa proposta, excepto se já for conhecido o quadro médico e clínico do lesado, e sem prejuízo da sua futura adaptação razoável.
Está provado que:
- Em 06.09.2019, o autor teve alta, do CMRA para o domicílio, com indicação para manter programa de reabilitação e terapia ocupacional e para acompanhamento pelas especialidades de cirurgia pediátrica e plástica, ortopedia e pedopsiquiatria;
- Na mesma data, o CMRA remeteu, à ré, o relatório da alta do internamento nessa instituição, com reavaliação agendada para 14.11.2019;
- Em 26.10.2020, tendo em vista a atribuição de uma indemnização, o autor remeteu, à ré, o relatório da perícia médico-legal de avaliação de dano corporal efectuada no âmbito do inquérito n.º 19/18.8T9RMR;
- A ré respondeu em 30.10.2020, referindo entender que não se mostravam reunidos os elementos necessários para dar seguimento a um futuro acordo extrajudicial;
- O autor insistiu junto da ré em 06.11.2020, 04.05.2021 e 13.08.2021, solicitando que esta apresentasse uma proposta de indemnização;
- O autor não recebeu alta dos serviços clínicos da ré até à propositura da presente acção;
- A ré nunca apresentou proposta extrajudicial de indemnização ao autor.
Resulta desta matéria de facto que, bem antes da citação para a presente acção, efectuada em 11.03.2022, a ré dispunha dos elementos necessários para formular uma proposta razoável de indemnização ao autor, em cumprimento das disposições legais que acima transcrevemos. Em Setembro de 2019, a ré recebeu, do CMRA, o relatório da alta do internamento do autor. Em Outubro de 2020, a ré recebeu, do próprio autor, o relatório da perícia médico-legal de avaliação de dano corporal efectuada no âmbito do inquérito n.º 19/18.8T9RMR. De que outros elementos necessitava a ré para enviar tal proposta?
O argumento da ré segundo o qual apenas no decurso da presente acção ficou a conhecer, em definitivo, as efectivas, concretas e definitivas lesões (físicas e/ou psíquicas) do autor, através do resultado da perícia médico-legal a que este foi submetido em 21.11.2023, é desmentido pela matéria de facto provada. Pelo menos desde Outubro de 2020 que a ré tem conhecimento do conteúdo do relatório da perícia médico-legal de avaliação de dano corporal efectuada no âmbito do inquérito n.º 19/18.8T9RMR. Já nessa altura havia danos perfeitamente identificados e quantificáveis pelo que se lhe impunha a formulação de uma proposta razoável de indemnização ao autor. A ré podia e devia fazê-lo.
A ré argumenta ainda que os seus próprios serviços médico-clínicos, que sempre acompanharam e assistiram o autor, nunca deram alta médico-clínica a este último. Parece-nos evidente a irrelevância deste facto. O início da contagem de um prazo que a lei estabelece para o cumprimento de um dever por parte da empresa de seguros não pode ficar dependente da verificação de um pressuposto que se encontra na disponibilidade dessa mesma empresa de seguros, sob pena de ficar frustrada a finalidade do regime legal que analisamos.
Tendo a ré violado o seu dever de formular uma proposta razoável de indemnização ao autor, é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 38.º, ex vi do n.º 2 do artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, sendo devidos juros moratórios no dobro da taxa supletiva legal dos juros civis, tal como foi decidido na sentença recorrida. Improcede, assim, o recurso da ré também nesta parte.
5. Responsabilidade pelas custas processuais:
O tribunal a quo condenou o autor em 81,12% das custas processuais, o que significa que este foi considerado responsável pela totalidade das custas relativas à parte do pedido cuja liquidação foi relegada para momento ulterior.
O autor insurge-se contra este entendimento, considerando que a parte vencida quanto a esta parte do pedido foi a ré, pelo que é desta a responsabilidade pelo pagamento das respectivas custas processuais.
A título subsidiário, o autor sustenta que as custas relativas à parte do pedido cuja liquidação foi relegada para momento ulterior devem ficar, provisoriamente, a cargo de ambas as partes, fazendo-se o rateio respectivo quando se proceder à referida liquidação, de acordo com a sucumbência por esta revelada.
A regra geral em matéria de responsabilidade pelo pagamento das custas processuais decorre do artigo 527.º do CPC, cujo n.º 1 estabelece que a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 do mesmo artigo esclarece que se entende que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. Dado inexistir regra especial sobre a responsabilidade pelas custas na hipótese de condenação no pagamento de quantia a liquidar em momento ulterior, terá de se aplicar a referida regra geral, devidamente interpretada.
Faria sentido o autor ser condenado no pagamento da totalidade das custas relativas à parte do pedido em questão se a ré deste tivesse sido absolvida. Nessa hipótese, seria desde já evidente ser o autor a parte vencida. Em contraponto, faria sentido a ré ser condenada nessa parte das custas se ela tivesse sido, desde já, condenada na totalidade da quantia peticionada pelo autor, por ser ela a parte vencida.
Porém, aquilo que se verificou não foi nenhuma dessas hipóteses extremas, mas sim a intermédia: a ré foi condenada, mas em quantia a liquidar ulteriormente. Sendo assim, não era possível saber, no momento da prolação da sentença recorrida, qual acabará por ser a parte vencida e em que medida. Logo, dentro do espírito que subjaz ao artigo 527.º do CPC, a única solução possível consiste em, na parte em questão, as custas serem provisoriamente suportadas por autor e ré em partes iguais, fazendo-se o rateio respectivo em conformidade com a sucumbência que vier a ser apurada aquando da liquidação[2].
Sendo assim, o recurso independente do autor procede parcialmente neste segmento.
6 – Má-fé processual:
Nas suas contra-alegações, o autor pediu a condenação da ré em multa e numa indemnização no valor de € 5.000,00 por litigância de má-fé. Como fundamento, invocou, em síntese, o seguinte:
- O autor enviou, à ré, o relatório da perícia médico-legal de avaliação de dano corporal efectuada no âmbito do inquérito n.º 19/18.8T9RMR;
- Não obstante, a ré nunca lhe apresentou uma proposta razoável de indemnização;
- Em vez disso, a ré escudou-se numa argumentação falaciosa para nunca lhe apresentar aquela proposta, com plena consciência da sua falta de razão, porquanto não ignora que o objectivo do legislador é o de que as seguradoras tenham elementos que lhes permitam formular propostas de indemnização razoáveis às vítimas de acidentes de viação, como era o caso;
- Ao avançar com o argumento da impossibilidade de apresentação de uma proposta de indemnização razoável ao recorrido, por falta de alta pelos seus serviços clínicos, a ré sabe que causa uma grave entorse (entrave) à transparência de uma sã e cooperante lide, entorse tanto mais saliente quando até hoje, pasme-se, não apresentou nenhuma proposta, fazendo do processo um uso manifestamente reprovável e, por isso, motivo de litigância de má-fé, a merecer multa e indemnização;
- A indemnização a favor do autor justifica-se «pelo dano moral que a leitura desta parte da peça lhe causou: afligiu-o, mareou-o e indispô-lo, contra o fair-play forense que os hábitos e a legalidade impõem».
Ao contrário do que o autor pretende, inexiste fundamento para a condenação da ré por litigância de má-fé.
A falta de apresentação de uma proposta razoável de indemnização tem uma sanção própria: o pagamento de juros de mora com taxa agravada para o dobro, como vimos em 4.
A argumentação mediante a qual a ré procurou sustentar a sua tese que refutámos em 4, embora improcedente, não passa disso mesmo, uma argumentação improcedente. Não consubstancia «uma grave entorse (entrave) à transparência de uma sã e cooperante lide». Ainda que sem razão, a ré limita-se a tentar convencer o tribunal de que a razão está do seu lado, como é seu direito. Nada mais que isso.
Sendo assim, o pedido de condenação da ré em multa e indemnização por litigância de má-fé terá de ser julgado improcedente, com custas pelo autor.
Delibera-se, pelo exposto:
- Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pela ré;
- Julgar parcialmente procedente o recurso independente interposto pelo autor, nos seguintes termos:
- Fixa-se em € 400.000,00 (quatrocentos mil euros) o montante da indemnização por danos não patrimoniais que a ré terá de pagar ao autor; à soma desta indemnização com aquela que é devida pelo dano biológico, serão deduzidas as quantias mensais, no valor de € 2.250,00, entregues pela ré, ao autor, a título de reparação provisória, nos termos da cláusula primeira da transacção celebrada entre as partes no procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória que constitui o apenso A; à mesma indemnização, acrescem juros moratórios, à taxa supletiva legal de juros civis elevada ao dobro, desde a data da prolação da sentença (10.07.2024) até efectivo e integral pagamento;
- Determina-se que as custas relativas à parte do pedido cuja liquidação foi relegada para momento ulterior sejam provisoriamente suportadas por autor e ré em partes iguais, fazendo-se o rateio respectivo em conformidade com a sucumbência que vier a ser apurada aquando da liquidação;
- Julgar parcialmente procedente o recurso subordinado do autor, fixando-se em € 755.554,80 (setecentos e cinquenta e cinco mil, quinhentos e cinquenta e quatro euros e oitenta cêntimos) a indemnização pelo dano biológico que a ré terá de pagar ao autor; à soma desta indemnização com aquela que é devida pelos danos não patrimoniais, serão deduzidas as quantias mensais, no valor de € 2.250,00, entregues pela ré, ao autor, a título de reparação provisória, nos termos da cláusula primeira da transacção celebrada entre as partes no procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória que constitui o apenso A; à mesma indemnização, acrescem juros moratórios, à taxa supletiva legal de juros civis elevada ao dobro, desde a data da prolação da sentença (10.07.2024) até efectivo e integral pagamento.
As custas do recurso da ré ficam inteiramente a cargo desta.
As custas do recurso independente do autor ficam a cargo deste e da ré, na proporção do seu decaimento, que se fixa em 25% para o primeiro e 75% para a segunda.
As custas do recurso subordinado do autor ficam a cargo deste e da ré, na proporção do seu decaimento.
As custas do incidente de litigância de má-fé suscitado pelo autor ficam inteiramente a cargo deste.
Notifique.
18.09.2025
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
Eduarda Branquinho (1.ª adjunta)
Cristina Dá Mesquita (2.ª adjunta)
[1] Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 5.ª edição, págs. 352-353.
[2] Neste sentido, acórdãos da RL de 07.11.1990 (Mariano Pereira), da RP de 12.10.1992 (Norman de Mascarenhas) e de 19.04.1995 (Moura Pereira), e do STJ de 10.09.2020 (Ilídio Sacarrão Martins).