1 – A recorrente tem legitimidade para requerer a suspensão das deliberações sociais que refere.
2 – Não é, desde já, evidente que, ainda que os factos alegados pela recorrente sejam indiciariamente provados, não será possível concluir que as deliberações são inválidas e que a sua execução poderá causar dano apreciável.
3 – Atento o referido em 1 e 2, não se verificam os fundamentos que levaram o tribunal a quo a indeferir liminarmente o requerimento inicial do presente procedimento cautelar, devendo a decisão recorrida ser revogada e os autos prosseguir os seus termos.
(Sumário do Relator)
A 1.ª instância proferiu despacho de indeferimento liminar, com fundamentação que assim se sintetiza: i) A requerente carece de legitimidade para a dedução do procedimento cautelar; ii) Os factos alegados, ainda que se provassem, não permitiriam concluir pela invalidade das deliberações; iii) Os mesmos factos não preenchem a exigência de alegação de que a execução das deliberações pode causar dano apreciável.
A requerente interpôs recurso de apelação do despacho de indeferimento liminar, tendo formulado as seguintes conclusões:
A. A recorrente apresentou providência cautelar de suspensão das deliberações sociais de dia 29.05.2024, pois essas deliberações foram aprovadas, unicamente, pela sociedade (…), tendo sido aí destituído a antiga administração da recorrida e nomeado uma nova administração, a qual se encontra alinhada com os interesses da (…).
B. Esta situação originou uma situação de efectivo conflito de interesses, pois a (…) tinha iniciado uma acção executiva contra, entre o mais, a recorrida, tendo esta sido penhorada nesses autos, e os bens foram avaliados pelo agente de execução, por um valor muito inferior ao seu valor de mercado.
C. Assim, a (…) sempre poderia, com a anuência deste novo conselho de administração, adquirir tais bens, nos autos executivos, por um valor inferior ao seu valor de mercado, violando, assim, os interesses da recorrida.
D. O tribunal a quo proferiu despacho de indeferimento liminar, apresentando, para o efeito, os seguintes fundamentos:
i. A recorrente não tem legitimidade, ao abrigo do artigo 286.º do CC, para iniciar esta providência cautelar, pois o administrador da insolvência da sociedade (…) Limited (Guernsey) não a autorizou a iniciar a presente providência;
ii. A invalidade arguida não resulta directamente das deliberações sociais, mas sim de comportamentos ficcionados pela recorrente; não existe, assim, nexo de causalidade entre as deliberações e os factos invocados como fundamento das invalidades;
iii. O pressuposto do artigo 58.º, n.º 1, alínea b), do Código das Sociedades Comerciais não está verificado, porque as vantagens especiais não decorrem directamente das deliberações, mas sim do eventual comportamento dos novos administradores; e
iv. O prejuízo invocado pela recorrente não resulta da execução das deliberações; para além disso, o dano não decorre da demora inerente à normal tramitação da acção principal de invalidade das deliberações aprovadas.
E. O tribunal a quo não tem razão, pelo que a sua decisão de indeferimento liminar deve ser revogada.
Da legitimidade da recorrente para a propositura da providência cautelar:
F. Tendo uma pessoa interesse, para efeitos do artigo 286.º do CC, em pedir a declaração de nulidade de deliberações sociais de uma sociedade, então também detém legitimidade para a respectiva providência cautelar de suspensão dessas mesmas deliberações.
G. A recorrente detém a recorrida, ainda que indirectamente, pois aquela é detentora de sociedades que, por sua vez, detêm sociedades, que detêm a recorrida. Assim, a sociedade recorrente tem interesse na declaração de nulidade, nos termos do artigo 286.º do CC, das deliberações emitidas pela recorrida, pois estas têm impacto no seu património.
H. O que acima se expôs não é desvirtuado pela circunstância de uma das sociedades que a recorrente detém (e, como se disse, esta sociedade detém, por sua vez, outras sociedades que detêm a recorrida) estar insolvente, pois, ainda assim, a recorrente continua a deter, ainda que indiretamente, a recorrida.
I. Para além disso, o administrador da insolvência tem poderes sobre a administração dos bens da sociedade insolvente e não sobre os interesses da recorrente, pelo que não pode ser este a decidir se a recorrente tem, ou não, interesse na propositura da presente providência cautelar.
Origem da invalidade das deliberações:
J. O tribunal a quo indica (i) que dos factos invocados não resultam as invalidades alegadas, mas antes sim comportamentos ficcionados pela recorrente e (ii) não decorre das deliberações qualquer permissão para a venda dos bens, sendo que a venda dos bens, em processo executivo, não está dependente da vontade do executado.
K. Não se concorda com o entendimento do tribunal a quo.
L. A alegação factual da recorrente assenta no pressuposto, agora consumado, de que como a administração da recorrida tem os interesses alinhados com os interesses da … (credora da recorrida), então poderá aquela sociedade vir a praticar actos que são contrários aos seus interesses, mas convergentes com os da … (nomeadamente, a aquisição, nos autos executivos, dos bens aí penhorados a preço inferior ao seu valor de mercado, com a anuência da recorrida).
M. Mais: toda a alegação factual apresentada pela recorrente careceria de qualquer sentido, caso não tivessem sido aprovadas as deliberações de dia 29.04.2025, pois, até então, a administração da recorrida não estava refém dos interesses da (…).
N. Se todos estes factos tivessem resultado provados (ainda que indiciariamente) após produção de prova, então não há dúvida que as deliberações sociais aprovadas no dia 29.04.2025 seriam nulas, por contrariarem os bons costumes (na vertente da deontologia comercial).
O. Têm os tribunais superiores entendido que se a demonstração da existência do direito, no âmbito de providências cautelares, exige apenas uma prova perfunctória, então devem os tribunais de 1.ª instância ser bastante restritos aquando do proferimento de indeferimentos liminares por falta de verificação desses pressupostos, o que não aconteceu in casu, visto que o tribunal a quo decidiu, sem mais, indeferir a providência cautelar.
P. Na verdade, ao contrário do que aponta à recorrente, o entendimento do tribunal a quo é que acaba por assentar em ficções: o tribunal a quo ficciona que os comportamentos alegados pelo recorrente nunca poderiam acontecer para, assim, indeferir a providência cautelar apresentada.
Q. Contudo, reforça-se, se tivesse ficado demonstrado (ainda que indiciariamente) que a intenção dos novos administradores é alinhar o seu comportamento com os interesses da sociedade … (em detrimento dos da recorrida), então tais nomeações são nulas, por violação dos bons costumes.
Para além disto,
R. Encontra-se demonstrado que (i) a (…) apresentou uma acção executiva contra, entre o mais, a recorrida, (ii) no âmbito dessa acção executiva já foram penhorados bens da recorrida e (iii) a (…) destituiu a antiga administração da recorrida e nomeou uma nova administração.
S. Do regime previsto no artigo 832.º, alínea a), do CPC (venda por negociação particular), resulta claro que o poder decisório da venda por negociação particular reside, unicamente, no exequente, que tem de apresentar uma proposta, e no executado, que tem de aceitar a proposta (os credores do executado também têm de aceitar a proposta, mas apenas se estes tiverem reclamado os seus créditos ao processo executivo).
T. Pelo que, ao contrário do alegado pelo tribunal a quo, tendo em consideração o artigo 832.º, alínea a), do CPC, a venda de bens, no âmbito executivo, pode depender da vontade do executado (e do exequente), pelo que se o exequente controla o executado, estamos perante um efectivo conflito de interesses.
Do não preenchimento da previsão legal do artigo 58.º, n.º 1, alínea b, do CSC:
U. Da interpretação do artigo 58.º, n.º 1, alínea b), do CSC resulta que basta que um sócio consiga, através do mero exercício do direito, obter vantagens para si ou para terceiro (em detrimento dos interesses da sociedade) que tal deliberação é anulável, pelo que o que o legislador sanciona é a colocação de um sócio na posição de conseguir obter a referida vantagem.
V. Não interessa, para estes efeitos, se essa vantagem foi, ou será obtida, pois tal norma jurídica foca-se num momento prévio: o de colocar o sócio na posição de, querendo, conseguir obter tal vantagem.
W. Revertendo para os presentes autos, com a aprovação das deliberações de dia 29.04.2025, a (…) pode, caso assim o entenda, apresentar uma proposta nos autos executivos (cfr. artigo 832.º, alínea a), do CPC), para adquirir os bens da recorrida por um valor inferior ao seu valor de mercado, sabendo que tal proposta será sempre aceite.
X. Daí se estar perante uma efectiva deliberação abusiva, pois a (…) está numa posição de, querendo, consegue obter vantagem especial em detrimento dos interesses da recorrida.
Y. E não se diga, que, ainda assim, não é possível concluir que com a mera aprovação das deliberações de dia 29.04.2025, a (…) está na posição de obter, caso assim o queira, vantagens que são contrárias ao interesse da recorrida, pois foi o tribunal a quo que proferiu despacho de indeferimento liminar, rejeitando proceder à produção de prova.
Dos danos provocados pelas deliberações de dia 29.04.2025:
Z. Conforme se alegou, a invalidade das deliberações de dia 29.04.2025 decorre, entre o mais, do seu caráter ofensivo aos bons costumes (cfr. artigo 56.º, n.º 1, alínea d), do CSC), sendo que se tem vindo a entender que a violação dos bons costumes, para efeitos de tal disposição normativa, se reconduzia à violação da deontologia comercial.
AA. Os vários casos jurisprudenciais apresentados quanto a esta temática, para o que agora interessa, apresentam dois traços comuns; (i) a obtenção de património societário, por parte de um terceiro, por um valor excessivamente inferior ao seu valor de mercado e (ii) o terceiro encontra-se diretamente relacionado com os sócios ou os órgãos de administração da sociedade.
BB. A invalidade das deliberações (que foram objecto de decisões judiciais) resulta essencialmente da existência do conflito de interesses, pois, por hipótese, se uma sociedade vendesse um imóvel, a um terceiro (mas sem qualquer ligação com a sociedade, seus administradores ou sócios), a um preço muito inferior ao seu preço de mercado, tal venda não era nula.
CC. O que invalidaria essa deliberação – por ser contrário aos bons costumes – seria se a mesma favorecesse terceiro relacionado com os administradores/sócios da sociedade, em detrimento dos interesses desta.
DD. Nos presentes autos: com a aprovação das deliberações de 29.04.2025, existe uma alteração na ordem jurídica, pois é aí que se origina um efectivo conflito de interesses: a (…), que iniciou uma acção executiva contra a recorrida, passa a deter controlo sobre a mesma, através dos órgãos sociais que nomeou.
EE. Ao contrário do que o tribunal a quo diz, o dano não está apenas nos actos posteriores que vierem a ser praticados, mas sim no já existente conflito de interesses, pois todos os actos praticados a partir de então (e que serão contrários ao interesse da recorrida) têm a sua origem nestas deliberações, pelo que não se aceita o entendimento de que o dano não decorre da execução das deliberações.
FF. Para além disso, o dano invocado decorre da demora inerente à normal tramitação da acção principal de invalidade das deliberações, pois enquanto estas deliberações não forem suspensas, a nova administração continua a deter legitimidade para vincular a recorrida a actos que se apresentam como contrários aos seus interesses, visto que são praticados no interesse da (…).
GG. Quanto ao exercício de raciocínio apresentado pelo tribunal a quo, o mesmo também não se afigura como correcto: com esta nova administração, a (…) poderá praticar actos, no processo executivo que moveu contra a recorrida, que sejam contrários ao interesse desta última, e esta sociedade nada pode fazer, pois os seus (novos) administradores estão coniventes com esta actuação.
HH. Em concreto, pode a (…) apresentar proposta de aquisição de bens (a preço inferior do seu valor de mercado), ao abrigo do artigo 832.º, alínea a), do CPC, e a recorrida não se irá opor, consumando-se, assim, a delapidação do seu património.
II. Assim, não se oferece dúvidas da incorreção do tribunal quanto a este fundamento, dado que, com as deliberações agora tomadas, a … (a qual tem um clamoroso conflito de interesses com a recorrida) passou a deter, sozinha, o poder de vincular a sociedade e, mais importante, a praticar (ou omitir) os actos que bem entender.
O recurso foi admitido.
1 – Se a recorrente tem legitimidade para requerer a suspensão das deliberações;
2 – Se é, desde já, evidente que, ainda que os factos alegados pela recorrente sejam indiciariamente provados, não será possível concluir pela invalidade das deliberações;
3 – Se é, desde já, evidente que, ainda que os factos alegados pela recorrente sejam indiciariamente provados, não será possível concluir que a execução das deliberações poderá causar dano apreciável.
O entendimento do tribunal a quo foi o seguinte:
«No caso em apreço, a requerente invoca deter, indiretamente, a maioria do capital social da sociedade requerida, através da relação de domínio total sobre a sociedade (…) – Comércio Internacional e Serviços, Lda. cujo capital detém através de outras sociedades cujo capital também lhe pertence.
A exigência da qualidade de sócio pelo artigo 380.º, n.º 1, do Código de Processo Civil respeita à legitimidade substancial das partes: só os sócios ou titulares e direitos sociais em que se inclua o de impugnar as deliberações sociais poderão requerer a suspensão das deliberações sociais da sociedade respetiva, em consonância com o que vem previsto no artigo 57.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais.
Quando esteja em causa procedimento que vise antecipar a declaração de nulidade da deliberação, tal como ocorre na própria ação de nulidade, tem que ser entendido, como nesta, que, por aplicação do artigo 286.º do Código Civil, qualquer interessado, poderá propor o procedimento cautelar de suspensão da deliberação nula, bastando para tal que justifique o interesse, este traduzido na utilidade que para si deriva da procedência do pedido, nos termos do artigo 30.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Alegando, a aqui requerente a nulidade das deliberações que pretende impugnar, e sendo a titular, por via da detenção do capital social de outras sociedades, da maioria do capital social da requerida, face ao artigo 286.º do Código Civil, tem interesse na impugnação/suspensão das deliberações.
Todavia, como a própria requerente alega, e também já é do conhecimento oficioso do tribunal em virtude de outras ações que correram/correm termos nesta Comarca, a sociedade (…) Limited, de que a requerente tem o domínio total por ser titular de 100% do seu capital social, e através da qual detém o capital da (…) – Comércio Internacional e Serviços, Lda., foi declarada insolvente no Reino Unido.
À semelhança do que ocorre em Portugal, a lei do Reino Unido “Insolvency Act 1986”, a partir do momento em que é proferida a decisão equivalente à declaração de insolvência, os bens da sociedade ficam sob a administração e disposição do administrador nomeado e nenhum processo pode iniciar-se ou continuar sem autorização do administrador da insolvência.
De onde resulta que as participações sociais detidas pela (…) Limited nas sociedades (…) II, Unipessoal, Lda. e (…) III, Unipessoal, Lda. que detêm o capital social da (…) – Comércio Internacional e Serviços, Lda., que por sua vez detém as participações sociais na requerida integram o acervo patrimonial sob a administração do administrador da insolvência da (…) Limited.
A requerente não demonstrou ter autorização do administrador da insolvente (…) Limited para a instauração desta ação, pressuposto necessário para o prosseguimento da ação.»
Concluiu, assim, o tribunal a quo que a recorrente carece de legitimidade para requerer a suspensão das deliberações.
A recorrente contrapõe que o facto de a (…) Limited ter sido declarada insolvente não prejudica a sua legitimidade para requerer a suspensão das deliberações da recorrida, pois: i) apesar daquela declaração de insolvência, a recorrente continua a deter indirectamente a recorrida; ii) sendo assim, qualquer alteração do património da recorrida repercute-se no património da recorrente; iii) pelo que a recorrente continua a ter a qualidade de interessada na declaração de nulidade das deliberações da recorrida para o efeito previsto no artigo 286.º do CC.
Analisemos a questão.
À semelhança do tribunal a quo, entendemos que, não obstante os n.ºs 1 e 2 do artigo 380.º do CPC parecerem restringir aos sócios a legitimidade para requerer a suspensão de deliberações sociais, se impõe a sua interpretação extensiva, por forma a que outras entidades tenham a mesma legitimidade, nomeadamente quem alegar um interesse relevante na declaração de nulidade das referidas deliberações, como é o caso da recorrente.
Também secundamos o tribunal a quo no entendimento de que o interesse invocado pela recorrente como fundamento da sua legitimidade para requerer a suspensão das deliberações da recorrida deve ser considerado relevante para o efeito previsto no artigo 286.º do CC.
Existindo consenso acerca destes dois aspectos, é dispensável maior fundamentação no que a eles concerne.
Já divergimos do tribunal a quo na parte em que este considera que, sem autorização do administrador da insolvência da (…) Limited, está vedado, à recorrente, requerer a suspensão das deliberações da recorrida.
O interesse invocado pela recorrente como fundamento da sua legitimidade para requerer a suspensão das deliberações da recorrida é próprio e não da (…) Limited. Ao fazê-lo, a recorrente actua em nome e no interesse próprio, não em nome e no interesse da (…) Limited.
Daí que seja irrelevante a declaração de insolvência da (…) Limited e a falta de autorização do administrador dessa insolvência. Mais que desnecessária, tal autorização seria descabida. A que propósito iria o administrador da insolvência da (…) Limited autorizar, ou proibir, o exercício de um direito próprio da recorrente contra a requerida?
O próprio tribunal a quo reconheceu a existência desse interesse próprio da recorrente na suspensão das deliberações da recorrida, fundado no facto de uma eventual alteração do património desta se repercutir, ainda que indirectamente, no património daquela. Era quanto bastava para ter de concluir que a recorrente tem legitimidade para requerer aquela suspensão.
Concluindo este ponto, a razão está do lado da recorrente, que tem legitimidade para requerer a suspensão das deliberações da recorrida.
2 – Se é, desde já, evidente que, ainda que os factos alegados pela recorrente sejam indiciariamente provados, não será possível concluir pela invalidade das deliberações:
O entendimento do tribunal a quo foi o seguinte:
«(…) os factos alegados, ainda que provados, não conduzem à procedência da providência requerida.
Outro dos pressupostos da causa de pedir do procedimento suspensão das deliberações sociais é a alegação de factos que integram a invalidade da deliberação que se pretende suspender.
A requente sustenta a invalidade das deliberações em dois segmentos: o artigo 56.º, n.º 1, alínea d), do Código das Sociedades Comerciais, por serem ofensivas dos bons costumes; e no artigo 58.º, n.º 1, alínea b), do mesmo Código, por serem abusivas.
Alega a seguinte factualidade: a alteração da administração da requerida irá permitir que a (…), S.A. adquira os bens da requerida em execução a preço abaixo do preço de mercado, e tendo das deliberações sido aprovadas unicamente com os votos do administrador da (…), S.A., esta estaria em conflito de interesses com a requerida Sociedade Turística da (…), S.A. por ter instaurado contra ela uma execução, onde pode vir a adquirir os bens da requerida a preço inferior ao de mercado, sem a oposição da administração da requerida nomeada nas deliberações aprovadas.
A invalidade das deliberações pressupõe que é a própria deliberação em si que sofre de vícios de procedimento ou de vícios de conteúdo que a tornam inválida.
A requerente alega vícios cujos factos que os sustentam não resultam das deliberações, mas de supostos comportamentos que se ficciona que os administradores nomeados poderão adotar no futuro em favor do credor (…), mas que não são legitimados pelas deliberações.
Não existe um nexo de causalidade imediato entre a aprovação das deliberações e os factos que são invocados como fundamento das invalidades, e mesmo a ligação mediata é uma ligação ficcionada pela requerente.
As deliberações aprovadas não autorizam qualquer alienação de bens aos administradores da requerida.
A alienação de bens em processo de execução é uma alienação forçada não dependente da vontade do executado, que, ainda que possa deduzir oposição, não pode impedir a venda de bens segundo as regras definidas para a ação executiva.
O invocado conflito de interesses entre a (…), S.A., que aprovou as deliberações impugnadas, e a sociedade requerida, devido à pendência da ação executiva, não existe.
O artigo 384.º, n.º 6, alínea b), do Código das Sociedades Comerciais estabelece que o acionista não pode votar quando a deliberação incida sobre litígio sobre pretensão da sociedade contra o acionista ou deste contra aquela, quer antes quer depois do recurso a tribunal.
É alegado que existe ação executiva instaurada pela (…), S.A. contra a requerida, mas tal não é suficiente para se considerar existir conflito de interesses para efeitos de considerar nulo o voto da (…), S.A. nesta deliberação em concreto, porquanto a deliberação votada e aprovada não versa sobre a ação executiva em causa.
Os factos alegados também não integram a previsão legal do artigo 58.º, n.º 1, alínea b), do Código das Sociedades Comerciais, de modo a considerar-se a deliberação abusiva.
Exige esta alínea que a deliberação seja apropriada a satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do voto, vantagens especiais para si ou para terceiros em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente prejudicar a sociedade.
A redação da alínea pressupõe que da deliberação resultem vantagens especiais que podem ser diretas ou indiretas, mas tais vantagens, ainda que indiretas, têm que resultar da própria deliberação.
A vantagem invocada pela requerente é a de a (…), S.A., através da colocação de novos administradores da sua confiança no conselho de administração, vir a conseguir, em processo de execução a adjudicação dos bens da requerida por valor inferior ao seu valor real. A vantagem invocada não resulta da deliberação, mas de eventual comportamento que venha a ser adotado pelos novos administradores na execução. Comportamento este que a ser adotado em processo judicial tem que obedecer às regras legais que o regulamentam e ao controle de legalidade do tribunal.
O prejuízo invocado para a sociedade, que é a venda do seu património em execução, também não resulta da deliberação nem está no controle dos seus acionistas ou administradores.
Resumindo, os factos alegados pela requerente não são de molde a concluir pela invalidade das deliberações.»
A recorrente contrapõe que: i) toda a sua alegação factual é no sentido de os administradores eleitos através da segunda das deliberações impugnadas terem os seus interesses alinhados com os da sociedade (…), cujo voto determinou aquela eleição; ii) de acordo com essa alegação, é previsível que, uma vez em funções, os novos administradores prossigam, não o interesse da recorrida, mas sim o da (…); iii) concretamente, é previsível que os novos administradores facilitem a aquisição, pela (…), dos bens que se encontram penhorados na acção executiva que esta sociedade instaurou contra a recorrida, por um preço muito inferior ao de mercado; iv) a demonstração da veracidade desta alegação apenas exige prova perfunctória, nomeadamente através do depoimento de parte da recorrida, por intermédio dos seus novos administradores.
Importa ainda ter em mente o enquadramento jurídico com base no qual a recorrente considera que as deliberações são nulas, constante do requerimento inicial. É ele, resumidamente, o seguinte: i) por terem o objectivo acima referido, gerando um conflito de interesses, as deliberações cuja suspensão é requerida são contrárias aos bons costumes [artigo 56.º, n.º 1, alínea d), do CSC], que, no âmbito societário, se reconduzem à deontologia comercial; ii) pela mesma razão, tais deliberações são ainda enquadráveis na previsão do artigo 58.º, n.º 1, alínea b), do CSC.
Analisemos a questão.
O tribunal a quo não tem razão quando afirma que a recorrente invoca vícios decorrentes, não do conteúdo das próprias deliberações, mas de factos hipotéticos, a estas exteriores e por estas não legitimados, mais precisamente de «supostos comportamentos que se ficciona que os administradores nomeados poderão adotar no futuro em favor do credor (…)». Cremos que este entendimento não reflecte fielmente a tese que a recorrente expôs no requerimento inicial.
A recorrente não fundou a por si afirmada invalidade das deliberações em factos futuros e incertos, que meramente prevê, factos esses que, por definição, seriam estranhos àquelas deliberações e, consequentemente, insusceptíveis de as inquinar.
A tese da recorrente é, na realidade, a seguinte: i) através das deliberações cuja suspensão é pretendida, a (…) fez eleger, como administradores, pessoas que foram por ela incumbidas de prosseguir o seu interesse e não o da recorrida, assim gerando, desde logo, uma situação de conflito de interesses; ii) tal situação de a recorrida passar a ser gerida, não no seu próprio interesse, mas sim contra ele e em benefício da (…), constituiria uma violação da deontologia comercial e, por essa via, dos bons costumes, sendo ainda enquadrável na previsão do artigo 58.º, n.º 1, alínea b), do CSC; iii) a possibilidade de os novos administradores facilitarem a aquisição, pela (…), dos bens que se encontram penhorados na acção executiva que esta sociedade instaurou contra a recorrida, por um preço muito inferior ao de mercado, constitui um efeito previsível de uma deliberação que se encontra inquinada desde a sua origem.
De forma ainda mais sucinta: na tese da recorrente, as deliberações são inválidas porque a eleição dos novos administradores constitui, em si mesma e ainda antes da prática dos actos que demonstrarão o bem-fundado do seu receio, uma ofensa dos bons costumes e um facto enquadrável na previsão do artigo 58.º, n.º 1, alínea b), do CSC; o alegado conflito de interesses é uma realidade presente, decorrente das próprias deliberações, independentemente das suas consequências futuras.
Sendo assim, não se verifica o fundamento de indeferimento liminar do requerimento inicial que vimos analisando. A recorrente invoca um fundamento actual de invalidade das deliberações, assente em factos alegadamente já ocorridos e cuja prova indiciária se propõe fazer. A recorrente tem direito a produzir essa prova e só depois de isso acontecer o tribunal poderá ajuizar sobre o bem-fundado da tese daquela, quer do ponto de vista factual, quer do ponto de vista jurídico. Por ora, os factos alegados pela recorrente são suficientes para justificar o prosseguimento dos autos.
3 – Se é, desde já, evidente que, ainda que os factos alegados pela recorrente sejam indiciariamente provados, não será possível concluir que a execução das deliberações poderá causar dano apreciável:
O entendimento do tribunal a quo foi o seguinte:
«(…) os factos alegados pela requerente também não preenchem a exigência de alegação de que a execução da deliberação possa causar dano apreciável.
O dano exigido para a suspensão das deliberações não é um dano qualquer, é o dano que possa advir ao requerente de um prejuízo decorrente do retardamento da decisão favorável ao demandante a proferir na ação principal, e é de considerar não só o dano do sócio requerente como o dano para a própria sociedade.
Tem que ter certa relevância e volume, não bastando uma possibilidade de prejuízo que a deliberação, ou a sua execução, em si comportem, mas a possibilidade de prejuízos imputáveis à demora do processo de anulação. (…)
Mais uma vez, o dano invocado pela requente é a possibilidade de, em ação executiva, a (…), S.A. poder adquirir, por adjudicação, os bens da sociedade por preço inferior ao de mercado.
O dano invocado não decorre da execução da deliberação, sendo que não se pode qualificar sequer de dano o normal o exercício de um direito em sede de execução. E ainda que assim fosse, porque estamos no âmbito de um procedimento cautelar o dano tem que decorrer para a sociedade ou para o sócio da demora inerente a normal tramitação da ação principal de invalidade da deliberação, pois só esse justifica a intervenção pela via cautelar.
Não obstante os argumentos supra elencados acerca dos pressupostos da providencia cautelar de suspensão, bastaria o seguinte exercício de raciocínio para se perceber da utilidade de decretar a providencia requerida: se o tribunal decretasse a suspensão das deliberações os supostos danos invocados (aquisição, por adjudicação, dos bens em processo executivo pela (…), S.A. pelo preço que foi fixado pelo solicitador de execução) seriam impedidos pela suspensão? Parece que não.»
A recorrente contrapõe que: i) o dano decorre do conflito de interesses que já se verifica e não, meramente, dos actos futuros que se prevê que os novos administradores da recorrida virão a praticar; ii) todos os actos que os novos administradores da recorrida vierem a praticar e forem contrários ao interesse desta terão a sua origem nas deliberações cuja suspensão é requerida, pois é com estas deliberações que se origina o conflito de interesses; iii) pelo que o dano invocado decorre da execução da deliberação e da demora inerente à normal tramitação da ação principal de invalidade da deliberação; iv) o argumento utilizado pelo tribunal a quo para demonstrar que a suspensão das deliberações não seria impeditiva da produção dos danos invocados apenas revela que ele não compreendeu o sentido da alegação da recorrente.
Mais uma vez, a razão está do lado da recorrente.
Tenhamos presente a tese da recorrente, resumida em 2. De acordo com ela, a partir do momento em que os novos administradores assumam as suas funções, passarão a prosseguir, no interior da recorrida, o interesse de quem os elegeu, a saber, a sociedade (…), ainda que em prejuízo do interesse daquela. Em especial, determinarão que a actuação da recorrida no âmbito da acção executiva que a (…) contra si instaurou seja no sentido de favorecer o interesse desta em adquirir bens penhorados por preço muito inferior ao seu valor de mercado.
Parece-nos evidente que a recorrente alega factos que, uma vez indiciariamente provados, permitirão concluir que a execução das deliberações poderá causar-lhe dano apreciável. De acordo com a alegação da recorrente, o risco de produção deste dano existe a partir do momento em que os novos administradores da recorrida iniciarem as suas funções, prolongar-se-á por todo o tempo que decorrer até ao trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida na acção de impugnação das deliberações e poderá assumir uma dimensão muito significativa, correspondente à diferença entre o preço da eventual venda ou adjudicação dos bens penhorados na acção executiva e o seu valor de mercado. Está, assim, configurado o dano apreciável requerido pela parte final do n.º 1 do artigo 380.º do CPC.
Não procede o argumento utilizado pelo tribunal a quo para demonstrar que a suspensão das deliberações não seria impeditiva da produção dos danos invocados. Tal como a recorrente refere, decorre da alínea a) do artigo 832.º do CPC que a posição que o executado assuma poderá ser decisiva para a fixação do preço da venda dos bens penhorados. Logo, uma actuação da recorrida, na execução que a (…) contra si instaurou, que, em vez de prosseguir o interesse da primeira, favorecesse o da segunda, faria toda a diferença, gerando os danos invocados pela recorrente.
Concluindo, não se verificam os fundamentos pelos quais o tribunal a quo indeferiu liminarmente o requerimento inicial. Consequentemente, a decisão recorrida terá de ser revogada, devendo os autos prosseguir os seus termos.
Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida e ordenando-se o prosseguimento dos autos.
Sem custas, atenta a falta de oposição.
Notifique.
18.09.2025
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
Cristina Dá Mesquita (1ª adjunta)
Mário Branco Coelho (2º adjunto) – Vencido, conforme declaração anexa.
"Vencido, pois teria mantido a decisão recorrida, que acompanho em todos os seus argumentos.
Na verdade, o artigo 380.º, n.º 1, do CPC é bem claro: quem detém legitimidade activa para propôr o procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais é o sócio da associação ou sociedade.
Esse direito não é concedido ao sócio de sócio, e neste caso nem sequer é essa a situação, pois o que nos surge é uma cascata de participações sociais – pelo que é afirmado da p.i., a Requerente será sócia de uma sociedade com sede no Reino Unido, declarada insolvente, que por sua vez era sócia de duas sociedades portuguesas, que por seu turno eram sócias de uma quarta sociedade e esta é que era a sócia da Requerida.
Mesmo que se efectue uma interpretação extensiva do mencionado artigo 380.º, n.º 1, do CPC, ali incluindo os terceiros titulares de interesse no reconhecimento da declaração de nulidade da deliberação, nos termos gerais do artigo 286.º do CC, também afirmamos que esta norma apenas garante a protecção de terceiros com interesse directo na suspensão da deliberação (por ex., credores sociais afectados pela deliberação), e não os titulares de um mero interesse reflexo ou indirecto, como é o caso da Requerente.
Esta é meramente sócia de uma sociedade com sede no Reino Unido, declarada insolvente. O seu interesse directo é nessa sociedade, e foi ela quem estabeleceu a cascata de participações sociais pelo qual deixou de ter participação directa no capital social da Requerida.
Quis essa participação indirecta, gozou das respectivas vantagens, sofrerá as respectivas consequências.
Como se afirmou no Ac. da RP de 24/01/2018 (Proc. 874/10.7TYVNG.P1, publicado na página da DGSI), "...o direito de invocação da nulidade não pode ser conferido a todos, dado que não é (nem pode ser) qualquer pessoa a quem dê jeito, de alguma maneira, a declaração da nulidade, que preenche os requisitos para ser considerado interessado. De facto – de acordo, aliás, com a própria inserção sistemática do próprio artigo 286.º –, o interesse que atribui a uma pessoa legitimidade para invocar o vício é um interesse de direito substantivo, que pressupõe a oponibilidade do negócio jurídico ao seu titular, porque o negócio nulo prejudica a consistência jurídica, ou a consistência prática ou económica, de um direito seu. O sujeito legitimado deve, assim, ter um interesse direto na nulidade e não apenas um interesse reflexo, vago e indireto.”
No caso, as deliberações impugnadas são três: 1 - destituição dos anteriores administradores da Requerida, com justa causa; 2 - eleição de novo conselho de administração para o mandato 2024/2027; 3 - eleição do fiscal único para o mesmo mandato.
Sucede que os argumentos que a Requerente invoca para impugnar estas deliberações são vagos e ficcionais – partem de uma mera conjectura sobre comportamentos futuros dos novos administradores.
A circunstância dos novos administradores terem relações com um dos credores da Requerida não implica, automaticamente, que estes alienarão ao desbarato o património da Requerida, tanto mais que, correndo contra esta uma acção executiva, outros sujeitos determinarão, com maior relevo processual, a modalidade e valor de venda dos bens penhorados.
As deliberações tomadas, em si – o objecto do processo são estas, não outras conjecturadas pela Requerente, que nem sequer ainda ocorreram – não representam, assim, nem uma ofensa aos bons costumes, nem revelam qualquer conflito de interesses.
Finalmente, como se afirma na bem fundamentada decisão recorrida, "o dano exigido para a suspensão das deliberações não é um dano qualquer, é o dano que possa advir ao requerente de um prejuízo decorrente do retardamento da decisão favorável ao demandante a proferir na ação principal...".
Logo, o dano apreciável, a que se refere o artigo 380.º, n.º 1, do CPC, não resulta da mera execução da deliberação, mas da possibilidade de prejuízos imputáveis à demora da acção declarativa.
Sucede que nada demonstra que o andamento do processo executivo fosse afectado pela eventual suspensão das três deliberações impugnadas nestes autos – simplesmente, qualquer decisão tomada nestes autos não produziria qualquer efeito processual no processo executivo.
Repito, o que está em causa é a destituição da anterior administração, e a eleição de uma nova administração e de um novo ROC.
Nada mais – tudo o resto são conjecturas, e por isso mesmo totalmente irrelevantes.
Em resumo, estes são os fundamentos da minha discordância."