INTERDIÇÃO POR ANOMALIA PSÍQUICA
RESIDÊNCIA HABITUAL
ESTRANGEIRO
Sumário

1 - À luz do artigo 5.º, n.º 2, da Convenção de Haia de 2000 relativa à Proteção Internacional de Adultos, em caso de mudança de residência habitual do adulto para outro Estado Contratante, passarão a ser competentes as autoridades do Estado da nova residência habitual.
2 - Mas se o Estado onde o maior acompanhado passou a residir com caráter de habitualidade não tiver ratificado a referida Convenção, a mesma não entrou em vigor na respetiva ordem jurídica, donde não se pode aplicar o disposto no artigo 5.º, n.º 2, da Convenção de Haia de 2000.
3 – No caso, o Estado onde o maior acompanhado passou a residir com caráter de habitualidade já após lhe terem sido aplicadas as medidas de acompanhamento que importa rever, não ratificou a referida Convenção e não reconheceu a competência dos seus tribunais para realizar qualquer intervenção na situação do beneficiário.
4 - O beneficiário tem nacionalidade portuguesa, para além de que residia em Portugal quando foi decretado o seu acompanhamento e foram decididas as medidas de acompanhamento aplicáveis; donde, à luz do critério de atribuição de competência internacional previsto na alínea c) do artigo 62.º do CPC (princípio da necessidade), deve reconhecer-se competência internacional aos tribunais portugueses para procederem à revisão (obrigatória) das medidas de acompanhamento decretadas.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Apelação n.º 2217/17.0T8ENT-A.E1
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita
1.ª Adjunta: Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
2.º Adjunto: Mário Branco Coelho

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
O Ministério Público interpôs recurso da decisão proferida pelo Juízo de Competência Genérica do Entroncamento, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, no âmbito dos autos de revisão da medida de acompanhamento aplicada ao maior (…), o qual ordenou a extinção da lide, por impossibilidade legal, ao abrigo do disposto no artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil.

O despacho recorrido tem o seguinte teor:
«Por sentença proferida nos autos principais e transitada em julgado em 18 de Julho de 2019 foi decretado o acompanhamento de (…), designando-se como acompanhante (…) e fixando-se em 5 anos o prazo para a revisão da medida, o qual se perfaz em 18 de Julho de 2024.
Sucede, porém, que actualmente o beneficiário não possui residência em Portugal, mas sim nos Países Baixos, onde se encontra a viver.
Ora, o carácter transfronteiriço da situação suscita a aplicação da Convenção Relativa à Proteção Internacional de Adultos, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 52/2014, de 19 de Junho e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 44/2014, de 19 de Junho.
Conforme se assinalou no despacho proferido em 12 de Outubro de 2024, o beneficiário não mantém residência habitual em Portugal, sendo que, pelo menos, desde o final de 2020 que reside nos Países Baixos, onde se prevê que se mantenha.
Por tal razão, naquele despacho, já transitado em julgado, foi determinada a transmissão do processo para as autoridades competentes para proceder à revisão da decisão, o que foi concretizado através da autoridade central.
Acontece que o país da actual residência do acompanhado, embora Estado Contratante da mesma, não ratificou a aludida Convenção.
Pese embora tal circunstância, não se vislumbra qualquer fundamento para que nestes autos sejam encetadas quaisquer diligências além das já determinadas.
Com efeito, por decisão, como se disse, transitada em julgado, foi determinada a transmissão do processo, porquanto o beneficiário não possui residência em Portugal.
É que, apesar da competência do Tribunal para a decisão de acompanhamento, «(…), não existe qualquer regra que cristalize a competência (perpetuo fori, artigo 5.º, n.º 2, numa leitura conjunta com o artigo 7.º, desta Convenção)» (Geraldo Rocha Ribeiro, A Convenção da Haia de 2000, relativa à proteção internacional de adultos: a experiência portuguesa na sua aplicação, Revista Julgar Online, Junho de 2022, pág. 35).
Dá-se, assim, «(…) aquando da modificação da residência habitual, a perda da competência internacional por parte do Estado da anterior residência habitual (…)» (Geraldo Rocha Ribeiro, A Convenção de Haia de 2000 relativa à proteção dos Incapazes Adultos, Revista do Ministério Público, 125, 2011, pág. 32)
Quer isto dizer que não pode este Tribunal, perante a inacção das autoridades julgadas competentes, substituir-se às mesmas, por não corresponder a uma autoridade do país da residência habitual do beneficiário, critério de decisão regra para a tomada de qualquer decisão relativa à sua pessoa, nos termos dos artigos 5.º e seguintes da Convenção.
Atento o teor da Convenção, que se sobrepõe ao direito nacional (conforme expressamente salvaguardado pelo artigo 59.º do CPC), não estando em causa qualquer situação de exclusividade da jurisdição portuguesa para a decisão (artigo 63.º do CPC), tampouco tendo sido invocado ou sequer se vislumbrando qualquer interesse ou premência das autoridades portuguesas para apreciar a situação de vida do beneficiário (que justificasse a ponderação da aplicação do artigo 7.º, n.º 1, da Convenção, tendo até em conta que desde a prolação da sentença que o beneficiário reside no estrangeiro), não sendo o pedido de autorização para prática de acto apenso beliscado por tudo isso (em face do disposto no artigo 9.º da Convenção), não se vislumbra qualquer fundamento legal que permita a tomada de qualquer decisão.
Aliás, para casos como o presente, determina o artigo 12.º da Convenção que «sob reserva do n.º 3 do artigo 7.º, as medidas adotadas em aplicação dos artigos 5.º a 9.º permanecem em vigor dentro dos respetivos limites, ainda que o facto que servia de base à competência tenha sido eliminado por uma alteração de circunstâncias, desde que as autoridades que têm competência ao abrigo da Convenção não tenham modificado, substituído ou posto termo a essas medidas».
Assim sendo, não estando em causa a situação excecionada naquele preceito (em que as autoridades competentes fazem cessar a medida anteriormente decretada pelas autoridades do estado da nacionalidade do adulto onde este não residia habitualmente), a medida decidida nestes autos mantém-se nos precisos termos em que decretada, não cabendo à jurisdição portuguesa a sua reavaliação, pela perda da sua competência para o efeito.
Na ausência de qualquer motivo ponderoso ou urgência que o justifique, não pode este Tribunal sobrepor-se às autoridades que a Convenção determina como competentes.
As medidas decretadas não cessam, mantendo-se até que exista conhecimento da sua modificação, substituição ou cessação, não cabendo aos tribunais portugueses, que, fruto da mudança de residência habitual do acompanhado, perderam a competência que antes possuíam, proceder a tais vicissitudes.
Pelo exposto, a decisão de revisão não pode ter lugar, pelo que esta lide, destinada ao seu efeito, é impossível, nos termos do artigo 277.º, alínea e), do CPC, o que implica a sua extinção.
Fixa-se à acção o valor de € 30.000,01 (artigos 296.º, n.os 1 e 2, 299.º, n.º 1, 303.º, n.º 1 (com remissão ao artigo 44.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), 304.º, n.º 1 e 306.º, n.os 1 e 2, do CPC).
Não há lugar ao pagamento de custas processuais (artigo 4.º, n.º 2, alínea h), do RCP).»

I.2.
As alegações de recurso do Ministério Público culminam com as seguintes conclusões:
1.º
A sentença recorrida viola o disposto no artigo 59.º do C.P.C., no artigo 155.º do Código Civil e nos artigos 1.º, 5.º, 7.º e 12.º da Convenção Internacional de Proteção de Adultos de 2000.
2.º
A decisão recorrida, mediante a qual se decidiu não proceder à revisão da medida de acompanhamento decretada nos termos do artigo 155.º do CC, por não ser o tribunal português competente para realizar tal revisão, não teve em devida consideração que a Convenção de Internacional de Proteção de Adultos de 2000 não se encontra em vigor na Holanda, país para onde o Beneficiário foi residir em 2019.
3.º
E não sendo a Holanda um Estado Contratante da Convenção, nem tendo reconhecido a sua competência para realizar qualquer intervenção na situação do Beneficiário (apesar de tal ter sido solicitado) não tem aplicação ao caso o artigo 5.º da mesma Convenção e mantêm as autoridades judiciárias do Estado Português , enquanto Estado da nacionalidade do Beneficiário e Estado da residência habitual inicial (à data da propositura da ação), a competência para a revisão da medida nos termos do artigo 59.º e 80.º do CPCivil.
4.º
De facto, não se aplicando os artigos 5.º e 7.º da Convenção ao caso concreto, por não ser o Estado da residência habitual atual um Estado Contratante da Convenção, o tribunal da residência habitual inicial mantém a competência – ou seja, o tribunal do Entroncamento continua a deter competência para a revisão da medida de acompanhamento, de acordo com as regras de competência internas – como salienta Paul Lagarde no Relatório Explicativo da Convenção de 2000 relativa à proteção internacional de adultos (pág. 57-62).
5.º
Nem se diga que ao proferir decisão a determinar a comunicação às autoridades judiciárias holandesas da necessidade de proceder à revisão do acompanhamento decretado, se esgotou o poder jurisdicional, já que, como também se salienta na douta decisão recorrida, não há nesta sede uma cristalização das competências.
6.º
Tendo as autoridades judiciárias holandesas devolvido a carta rogatória que lhes foi remetida sem procederem a qualquer revisão do acompanhamento e sem providenciarem pela revisão de sentença estrangeira em ordem a poderem executar a sentença proferida em Portugal, as autoridades judiciárias portuguesas mantêm a competência para procederem a tal revisão.
7.º
Termos em que deverá julgar-se procedente o presente recurso revogando-se a decisão recorrida e determinando-se o prosseguimento dos autos com vista à revisão da medida de acompanhamento decretada, nos termos do artigo 155.º do Código Civil e determinar a realização das diligências necessárias tendentes a tal revisão.
O Ministério Público atuando com legitimidade própria está isento do pagamento de taxa de justiça – cfr. o artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do RCP.
Assim decidindo, farão V. Exas. Justiça!»

I.4.
Não houve resposta às alegações de recurso.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
A única questão a apreciar consiste em avaliar se houve erro de julgamento de direito na decisão recorrida, ao julgar a instância extinta, ao abrigo do disposto no artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil.

II.3.
FACTOS
Os factos a considerar são os que constam da decisão recorrida.
Resulta ainda dos autos principais que, por sentença proferida em 4-07-2019, transitada em julgado, o tribunal a quo aplicou em benefício de (…), a medida de acompanhamento de representação especial, recaindo a representação sobre a seguinte categoria de atos: disposição ou oneração de bens móveis e imóveis; constituição de garantias pessoais e assunção de dívidas próprias ou alheias; disposição de capitais próprios, exceto pequenas quantias que se mostrem necessárias à sua subsistência, saúde e bem estar; gerir bens e rendimentos; e determinou a restrição do exercício dos seguintes direitos pessoais: de se deslocar sozinho no país e no estrangeiro, sem acompanhamento de pessoa responsável; de perfilhar, exercer responsabilidades parentais ou funções de tutor e de adotar; de recorrer a meios de procriação medicamente assistida; de testar. Mais designou como acompanhante (…), com a função de representante do requerido e fixou para a revisão da medida o prazo de cinco anos.

II.4.
Apreciação do objeto do recurso
No presente recurso está em causa a decisão do tribunal de primeira instância que, no âmbito de um processo de acompanhamento de maior, julgou não poder rever a medida de acompanhamento decretada ao maior (…) por ter perdido competência para tal desiderato em virtude de aquele ter passado a ter como residência habitual os Países Baixos, e, em conformidade, declarou a instância extinta ao abrigo do disposto no artigo 277.º alínea e), do Código de Processo Civil.
Na decisão sob recurso o tribunal recorrido trouxe à colação o disposto no artigo 5.º da Convenção de Haia de 2000, relativa à Proteção Internacional de Adultos, a qual foi ratificada por Portugal e entrou em vigor na nossa ordem jurídica em 1 de julho de 2018.
Insurge-se o Ministério Público, ora recorrente, contra tal decisão, sustentando, em síntese, que no que respeita à Convenção de Haia de 2000 relativa à Proteção Internacional de Adultos a mesma não tem âmbito de aplicação universal, uma vez que apenas são competentes para adotar medidas de proteção as autoridades dos Estados Contratantes, sejam os da residência habitual do adulto, sejam os da sua nacionalidade ou da sua localização, que o artigo 5.º da referida Convenção pressupõe que o adulto tenha a sua residência habitual num Estado Contratante e que em caso de mudança de residência de um Estado Contratante para um Estado não Contratante, o artigo 5.º deixa de ser aplicável, a partir do momento da mudança de residência e nada impede a manutenção da competência nos termos do direito processual nacional, pela autoridade do estado Contratante da residência habitual inicial à qual foi submetida a questão.
Apreciando.
A decisão sob recurso declarou extinta a instância ao abrigo do disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC, o qual consagra a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide como causas de extinção da instância.
Nas palavras de Lebre de Freitas/Isabel Alexandre[1], «a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio».
No caso não ocorre qualquer uma das situações previstas no artigo 277.º, alínea e), do CPC, senão vejamos.
Estava, e está, em causa a revisão (obrigatória) das medidas de acompanhamento que foram aplicadas a (…) no âmbito dos autos de acompanhamento de maior. À data em que a sentença que decretou as medidas de acompanhamento em causa foi proferida, o beneficiário (…) – que tem a nacionalidade portuguesa – residia em Portugal; sucede que, desde 2019, (…) tem a sua residência habitual nos Países Baixos (facto que não é controvertido). Resulta dos autos que aquele Estado não reconheceu a sua competência para realizar qualquer intervenção na situação do beneficiário (…), apesar de tal lhe ter sido solicitado pelo tribunal recorrido, pelo que a revisão das medidas de acompanhamento, que é obrigatória, continua por ser realizada. Donde, não se vê como se possa enquadrar a situação em causa no disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC.
A questão que se suscita nos autos é saber se os tribunais do Estado Português, e concretamente o tribunal recorrido, têm competência internacional para avaliar e decidir da revisão (obrigatória) das medidas de acompanhamento que foram decretadas em benefício de (…), considerando que, in casu, existe um elemento de conexão com a ordem jurídica de outro Estado, a saber, o beneficiário tem atualmente, e desde 2019, residência habitual nos Países Baixos (o que, como já assinalámos supra, não vem posto em causa no presente recurso).
À luz do disposto no artigo 59.º do Código de Processo Civil os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão a que aludem os artigos 62.º e 63.º do mesmo diploma normativo ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º. Este preceito legal ressalva o que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, caso em que prevalecerá o que aí se mostrar consignado.
Liminarmente se dirá que não está em causa nos autos a competência exclusiva dos tribunais portugueses prevista no artigo 63.º do CPC, ou a competência convencional, pelo que não nos debruçaremos sobre as mesmas.
De acordo com o preceituado no artigo 62.º do CPC existem três critérios por via dos quais os tribunais portugueses gozam de competência internacional, bastando que um deles se verifique no caso concreto para que haja tal competência. São eles: i. o princípio da coincidência, previsto na alínea a): a competência internacional dos tribunais portugueses resulta da circunstância de a ação dever ser proposta em Portugal de acordo com as regras da competência interna territorial estabelecidas nos artigos 70.º e ss. do CPC; ii. o princípio da causalidade, previsto na alínea b): os tribunais portugueses têm competência internacional sempre que o facto que serve de causa de pedir na ação tenha sido praticado em território nacional ou, tratando-se de uma causa de pedir complexa, algum deles tenha ocorrido em Portugal; iii. o princípio da necessidade, previsto na alínea c): os tribunais portugueses assumem competência internacional quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em tribunal português ou quando a sua propositura no estrangeiro constitua apreciável dificuldade para o autor. Para que tal aconteça, é, no entanto, imprescindível que entre a ação a propor e o território português exista um qualquer elemento ponderoso de conexão pessoal ou real.
Como dissemos, o que se encontrar estabelecido em instrumentos internacionais ou em regulamentos europeus prevalece sobre o que estiver estabelecido no direito interno.
O Estado Português ratificou a Convenção de Haia de 2000 relativa à Proteção Internacional de Adultos, a qual se aplica, em situações caráter internacional, à proteção de adultos que, devido a uma deficiência ou insuficiência das suas capacidades pessoais, não estão em condições de defender os seus interesses (artigo 2.º/1, da Convenção). Dizer-se que a Convenção é aplicável “em situações de caráter internacional” significa que a situação envolverá mais do que um Estado, isto é, tem pontos de contacto com mais do que uma ordem jurídica.
A Convenção tem por objeto, nomeadamente, determinar o Estado cujas autoridades são competentes para adotar medidas de proteção da pessoa ou bens do adulto [artigo 2.º/2, alínea a)]. No caso, quando as medidas de acompanhamento que agora importa rever foram decretadas, (…) tinha residência habitual em Portugal. Donde, os tribunais portugueses eram internacionalmente competentes para julgar e decidir da aplicação ao beneficiário (…) de medidas de acompanhamento quer à luz do artigo 5.º, n.º 1, da referida Convenção de Haia[2], quer à luz das disposições conjugadas dos artigos 62.º, alínea a) e 80.º/1, ambos do Código de Processo Civil.
Acontece que à data em que se impunha a revisão periódica das medidas de acompanhamento relativas a (…) que foram decretadas por sentença proferida em 4 de julho de 2019, e que estão em vigor, já aquele tinha a sua residência habitual nos Países Baixos.
Dispõe o artigo 5.º, n.º 2, da Convenção de Haia de 2000 relativa à Proteção Internacional de Adultos que «Em caso de mudança de residência habitual do adulto para outro Estado Contratante, são competentes as autoridades do Estado da nova residência habitual».
À luz daquele normativo, e em face da alteração do domicílio habitual do beneficiário, seriam competentes para rever as medidas de acompanhamento decretadas os tribunais dos Países Baixos. Sucede, porém, que este Estado não ratificou a referida Convenção, pelo que a mesma não entrou em vigor na respetiva ordem jurídica. Donde, não sendo os Países Baixos Parte Contratante da dita Convenção, não se pode aplicar in casu o disposto no artigo 5.º, n.º 2, da Convenção de Haia de 2000.
Resulta dos autos que aquele Estado também não reconheceu a sua competência para realizar qualquer intervenção na situação do beneficiário … (apesar de tal ter sido solicitado).
O beneficiário (…) tem nacionalidade portuguesa, para além de que residia em Portugal quando foi decretado o seu acompanhamento e foram decididas as medidas de acompanhamento aplicáveis; assim, considerando que os Países Baixos não reconheceram a competência dos seus tribunais para realizar qualquer intervenção na situação do beneficiário (…), à luz do critério de atribuição de competência internacional previsto na alínea c) do artigo 62.º do CPC (princípio da necessidade), deve reconhecer-se competência internacional aos tribunais portugueses para procederem à revisão (obrigatória) das medidas de acompanhamento decretadas a (…). Note-se, por último, que esta é a solução para que aponta o Relatório Explicativo da Convenção de Haia de 2000 relativo à Proteção Internacional de Adultos, de Paul Lagarde: «O artigo 5.º pressupõe que o adulto tenha a sua residência habitual num Estado Contratante. Em caso de mudança de residência habitual de um Estado Contratante para um Estado não Contratante, o artigo 5.º deixa de ser aplicável a partir do momento da mudança de residência e nada impede a manutenção da competência, nos termos do direito processual nacional, pela autoridade do Estado Contratante da residência habitual inicial à qual foi submetida a questão, embora os outros Estados Contratantes não estejam vinculados pela Convenção a reconhecer as medidas que poderão ser adotadas pela referida autoridade».
Em face do exposto, a competência para decidir da revisão periódica e obrigatória das medidas de acompanhamento que foram aplicadas a (…) pertence ao tribunal que era o tribunal da residência habitual do requerido quando aquelas medidas lhe foram aplicadas, e que é um tribunal português, concretamente, o tribunal recorrido.
Importa, assim, revogar a decisão recorrida e ordenar a sua substituição por outra que ordene o prosseguimento dos autos com vista à revisão das medidas de acompanhamento aplicadas ao beneficiário (…).
Procede, pois, a apelação.
*
Custas:
As custas em sentido amplo abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (artigo 529.º, n.º 1, do CPC). A taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual de cada interveniente, sendo fixado nos termos do Regulamento das Custas Judiciais (artigo 529.º/2, do CPC). Donde o impulso processual implicará o pagamento de uma taxa de justiça, salvo nos casos em que a parte se mostra isenta do seu pagamento ou beneficia de apoio judiciário.
De acordo com o disposto no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa ou, não havendo vencimento, no critério do proveito processual (critério subsidiário).
Donde, nos casos de recurso: i. as custas (em sentido amplo) ficam por conta do recorrido ou do recorrente, conforme o recurso obtenha, ou não, provimento; ii. quando não haja vencedor nem vencido, não pode funcionar o critério do vencimento ou decaimento, regendo o princípio (subsidiário) do proveito processual, de acordo com o qual pagará as custas do processo quem deste beneficiou.
E nos casos em que há um vencedor mas não há uma parte vencida porque a contraparte não deu causa ao recurso e não contra-alegou; nestas situações não se pode recorrer ao princípio da causalidade, pois não havendo uma parte vencida, esta não pode ser condenada no pagamento das custas, donde haverá que recorrer ao critério do proveito processual.
No caso concreto, o Ministério Público obteve ganho de causa relativamente à sua pretensão recursória pois logrou obter a revogação do despacho recorrido, mas a contraparte (o beneficiário das medidas de acompanhamento) não deu causa ao recurso e não contra-alegou. Donde, não podendo atuar o critério da causalidade, haveria que fazer atuar o critério do proveito, não fora o Ministério Público estar isento do pagamento de custas. Assim sendo, não haverá lugar ao pagamento de custas na presente instância recursiva.

Sumário: (…)

III.
DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos com vista à revisão das medidas de acompanhamento decretadas ao beneficiário (…).
Sem custas.

Notifique.
DN.
Évora, 18 de setembro de 2025
Cristina Dá Mesquita
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
Mário Branco Coelho


__________________________________________________
[1] Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 546.
[2] O qual prescreve que «As autoridades judiciárias ou administrativas do Estado Contratante onde o adulto tem a sua residência habitual são competentes para adotar medidas tendentes à proteção da pessoa ou dos bens do adulto».