PENHORA DE CRÉDITOS
ACÇÃO CONTRA O SÓCIO
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
Sumário

1 - Nos artigos 773.º , n.ºs 2 a 4, 775.º e 776.º do Código de Processo Civil, respetivamente, está previsto um procedimento sumário de cominatório pleno, enxertado na ação executiva, através do qual se permite – e apenas para efeitos daquele concreto processo – que se possa concluir pela existência de um pretenso direito de crédito do executado sobre um terceiro ou, ao contrário, pelo seu caráter litigioso.
2 - A notificação prevista no artigo 773.º, n.º 1, do CPC – que deve ser realizada com as formalidades da citação pessoal e sujeita ao regime desta – no sentido de que o crédito fica à ordem do agente de execução, consiste no próprio ato de penhora do direito de crédito.
3 - No âmbito do processo de insolvência, o Administrador da insolvência não tem competência (legal) para realizar aquela notificação, que consiste num ato de penhora.
4 - O que a sra. Administradora da Insolvência podia fazer perante uma informação da existência daquele crédito da insolvente sobre os sócios, era solicitar aos terceiros devedores (os sócios da insolvente) as informações relativas àquele alegado crédito (sua natureza, data de vencimento, garantias) e, em face da informação recebida, aquilatar da necessidade e viabilidade de uma ação declarativa contra os sócios.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Apelação n.º 1118/21.1T8STR-E.E1
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita
1.ª Adjunta: Isabel de Matos Peixoto Imaginário
2º Adjunto: Mário João Canelas Brás

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
(…) – Produtos Alimentares, SA, credora da insolvente (…) – Produtos Alimentares, Lda. interpôs recurso do despacho proferido pelo Juízo de Comércio de Santarém, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, que julgou improcedente o pedido de destituição, com justa causa, da sra. Administradora da Insolvência.

A decisão judicial sob recurso tem o seguinte teor:
«INCIDENTE DE DESTITUIÇÃO DA SRA. A.I. COM JUSTA CAUSA
RELATÓRIO
Na sequência da Decisão Singular do Tribunal da Relação de Évora proferida em 23-11- 2024 no apenso D, anulando a nossa decisão de 04-04-2024 «( ) para fixação dos factos relevantes para a decisão e sua subsequente prolação conforme for de direito, sem prejuízo do conhecimento de outras questões que a tanto se oponham e não tenha sido objeto de pronúncia na decisão sob recurso», o Tribunal convidou, e a sra. AI juntou em 27-01-2025, a prova documental da factualidade e pesquisas a que fez referência no seu requerimento de 02-10-2023 (que havia sido dado como reproduzido na decisão anulada).
Em 28-02-2025 a sra. AI informou, também na sequência do teor da Decisão Singular proferida, quanto às diligências por si efetuadas com vista à identificação dos devedores da Insolvente documentadas nas contas de 2019 (cfr. auto de apreensão de apreensão de bens de 19/05/2022, junto no apenso de apreensão de bens) e à falta de acesso a meios que permitissem tal identificação.
Todos os interessados, incluindo o credor recorrente, foram notificados das respostas da sra. AI, não tendo a documentação apresentada sido objeto de qualquer impugnação.
Coligida que está a prova que se afigura como pertinente, cumpre proferir nova decisão quanto ao requerimento de destituição da sra. AI com justa causa, apresentado pelo credor (…).
*
FACTOS ASSENTES
1) Em 02-10-2023 veio a sra. AI juntar aos autos o seguinte requerimento:
«(…), Administradora da Insolvência em assunto, na sequência da notificação de V. Exa., cumpre-lhe expor e requerer o seguinte:
1. A insolvente, contribuinte n.º (…), é uma sociedade por Quotas que tem por objeto social, a comercialização e distribuição de produtos alimentares.
2. Com o capital social de € 5.000,00, pertencente aos sócios
Ø (…) – € 2.500,00
Ø (…) – € 2.500,00
tendo como gerente, (…), e com sede social na Urbanização (…), Lote 2, Jardim de (…), em Santarém, a insolvente, alegadamente, não se encontra, à data, a laborar.
3. Não tendo sido possível honrar os seus compromissos, e não possuindo meios financeiros líquidos disponíveis, que lhe permitisse liquidar as suas dívidas, apresentou-se à insolvência, a qual foi declarada por sentença proferida no Juízo 2 do Juízo do Comércio de Santarém do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, em 18 de maio de 2021.
4. À Repartição de Finanças competente, foi solicitada informação quanto à existência de eventuais bens imóveis, propriedade da insolvente, cuja resposta foi negativa, não se tendo identificado nenhum imóvel, de sua propriedade.
5. Da Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa, sobre identificação de veículos automóveis identificados nenhum veículo, de sua propriedade.
6. Foi solicitado ao Banco de Portugal a circularização das instituições bancárias, para identificação de eventuais depósitos em nome da insolvente, cujas respostas obtidas até à data, não permitiram identificar ativos, passíveis de apreensão.
7. Por requerimento de 23-07-2021, o sr. Mandatário da (…), Dr. (…), entre outras questões, vem identificar os seguintes “ativos”:
Dívidas de Sócios – € 156.436,50
Dívidas de Clientes – € 62.817,13
Saldo de Meios Monetários Líquidos – € 24.039,06
pugnando pela sua apreensão.
8. E o sr. Mandatário da insolvente, também, em 02-08-2021, prestado esclarecimentos sobre as diversas verbas, cujo requerimento se encontra junto aos Autos.
9. Tendo igualmente, em 01-11-20, a signatária informado que “ … não se entende o pretendido, já que a elaboração de um Auto de Apreensão com tais verbas, não esclarece a sua origem, de que clientes estamos em presença ou o paradeiro dos meios monetários líquidos (cujas instituições bancárias, até à data, nenhuns saldos bancários (cujas instituições bancárias, até à data, nenhuns saldos bancários identificaram)”.
10. Em 16-12-2021, porque não foram identificados ativos efetivos, propriedade da insolvente, propôs a signatária, o encerramento nos termos do artigo 232.º do CIRE.
11. Em 20-01-2022, o sr. Mandatário da (…), Dr. (…), vem requerer a apreensão dos “ativos” supra identificados.
12. Em 12-03-2022, a Administradora de Insolvência, vem prestar esclarecimentos complementares, nomeadamente, alertando para as seguintes vertentes:
. Os elementos contabilísticos existentes se reportam a 31-12-2019 e a insolvência foi decretada a 18-05-2021, ou seja, 1,5 anos depois.
. Nos últimos cinco anos, a insolvente não teve atividade.
. Da circularização das Instituições Bancárias, não resultou a identificação de nenhum saldo bancário.
. A pretensão do sr. Mandatário da (…), de apreensão das seguintes verbas, a saber:
Dívidas de Sócios – € 156.436,50
Dívidas de Clientes – € 62.817,13
Saldo de Meios Monetários Líquidos – € 24.039,06
. tendo em atenção que tais montantes, ao contrário do exemplo referido pelo sr. Mandatário do credor(…), não são um imóvel, um contrato de arrendamento …, não são passíveis de registo “específico”.
. São montantes respeitantes a um período anterior à declaração de insolvência, pelo que, tendo os elementos económico-financeiros, características dinâmicas, tais verbas, tem alteração ao longo do tempo.
. A título de exemplo, o saldo de meios monetários líquidos - Caixa e Depósitos à Ordem que em 31-12-2019 era de € 24.039,06 (vinte e quatro mil e trinta e nove euros e seis cêntimos), se circularizadas as instituições bancárias, não foram identificadas quaisquer verbas, como se garantirá que estes montantes existem à data?
. Relativamente a dívidas de clientes, desconhecendo-se a quem respeitam, se foram ou não cobrados posteriormente, se existindo, as mesmas são cobráveis, o que se vai apreender? Um saldo? Com que objetivo? Para cobrar a quem?
. Relativamente às dívidas de sócios – € 156.436,50, alega o sr. mandatário da Insolvente que esta questão “… Já foi oportunamente tratada no âmbito da execução que correu termos no juiz 3 do Juízo de Execução do Tribunal da Comarca do Porto, com o n.º 19931/20.5T8PRT... tendo os sócios informado nos Autos que não reconhecem qualquer dívida”.
. Em 10-03-2022, foi solicitado ao sr. Mandatário da insolvente, o Livro de Atas.
13. Por se inconformar o sr. Mandatário com o encerramento do processo, efetuou um depósito de € 5.000,00 para pagamento das custas e demais despesas com o processo.
14. Em 21-04-2022, o Tribunal solicitou um Auto de Apreensão dos “Ativos” supra referenciados e identificados nas contas de 2019.
15. Que foi junto aos Autos, em 19-05-2022.
16. Bem como, circularização dos sócios, para a cobrança das alegadas dívidas, e identificação do paradeiro do saldo de caixa, e pedido de Apoio Judiciário para a cobrança das alegadas dívidas...
17. Tendo os sócios informado, por carta, oportunamente junta aos Autos, da inexistência de dividas e verbas.
18. Em 13-10-2022, foi a signatária informada da nomeação de patrona oficiosa.
19. A quem foram disponibilizados, todos os elementos existentes.
20. Tendo a mesma apresentado escusa da nomeação.
21. Em 18-01-2023, foi nomeado outro Patrono Oficioso.
22. A quem, igualmente, foram disponibilizados, todos os elementos existentes.
23. Em 16-06-2023, foi igualmente apresentado escusa, por este patrono oficioso, informando o mesmo que “não vislumbrava viabilidade na ação”.
24. Dessa informação, a signatária, deu conhecimento aos Autos, em 06-07-2023.
25. Tendo proposto novamente o encerramento nos termos do artigo 232.º do CIRE.
26. Apesar de, em 17-07-2023, ter recebido a nomeação de 3ª Mandatária Oficiosa, por parte da Ordem dos Advogados.
27. E de em 07-08-2023, à semelhança do que aconteceu com os dois anteriores Patrono Oficioso lhe ter remetido toda a informação que tinha disponível, e de se encontrar a aguardar resposta da mesma.
28. Face ao exposto, entende a signatária que:
. Deu cumprimento a todas as diligências possíveis, com vista à “localização” dos ativos identificados pelo sr. Mandatário da (…), Dr. (…).
. Não é nem inapta, nem incompetente para o exercício do cargo, e não apresentou uma conduta gravemente negligente.
. Não lesou o interesse dos credores.
. Não se poderá é manter, a tramitação processual, que neste caso já vai longa, de forma obstinada, para tentar justificar o injustificável, quando, nomeadamente, alguns dos interlocutores do processo (ex: patrono), vieram dar nota da impossibilidade/viabilidade desta ação.
Face ao exposto, refuta totalmente o peticionado pelo sr. Mandatário da (…), Dr. (…), quanto ao pedido de destituição da Administradora de Insolvência, pedido esse, que salvo melhor opinião, tenta ser o “bode expiatório” para justificar que o anteriormente requerido por este interlocutor, não tem, pelas razões anteriormente expostas, nem viabilidade económico-financeira, nem viabilidade jurídica.»
2) Em 11-6-2021 não havia bens titulados pela insolvente registados na base de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira – doc. 1, Ref.ª 11361426.
3) Em 24-5-2021 não havia nenhum veículo automóvel titulado pela insolvente registado na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa – doc. 2, Ref.ª 11361426.
4) Em 22-5-2021 foi solicitado ao Banco de Portugal a circularização das instituições bancárias, para identificação de eventuais depósitos em nome da insolvente, tendo todas as informações devolvidas sido no sentido da inexistência de ativos, passíveis de apreensão. – doc. 3, da Ref.ª 11361426.
5) Por requerimento de 23-07-2021, o credor (…), identificou ativos da insolvente nos seguintes termos «Dívidas de Sócios – € 156.436,50; Dívidas de Clientes – € 62.817,13; Saldo de Meios Monetários Líquidos – € 24.039,06», com fundamento nas prestações de contas individuais de 2014, 2015 e 2016, peticionando a sua apreensão – doc. 4, Ref.ª 11361426.
6) Em 30-08-2021, a sra. AI remeteu ao responsável da contabilidade (TOC), carta pedindo-lhe o balancete analítico mais recente; mapa de ativos fixos não correntes; último inventaria da insolvente; e extrato da conta corrente de clientes com saldo – doc. 1, da Ref.ª 11464347.
7) Como não obteve qualquer resposta, a sra. AI enviou ao Mandatário da Insolvente email, em 30-10-2021, a solicitar colaboração, para identificar, nomeadamente, os saldos devedores de clientes que se encontravam por cobrar – doc. 2, da Ref.ª 11464347.
8) Em 16-09-2021 o responsável da contabilidade (TOC), informa que não tem quaisquer elementos da insolvente – doc. 3, da Ref.ª 11464347.
9) Em 01-11-2021, a sra. AI informou os autos, relativamente ao requerimento do credor (…) de apreensão do ativo que identificou, que “… não se entende o pretendido, já que a elaboração de um Auto de Apreensão com tais verbas, não esclarece a sua origem, de que clientes estamos em presença ou o paradeiro dos meios monetários líquidos (cujas instituições bancárias, até à data, nenhuns saldos bancários identificaram)” – doc. 6, Ref.ª 11361426.
10) Em 16-12-2021, porque não foram identificados ativos efetivos, propriedade da insolvente, a Sra. AI propôs o encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa.
11) Os últimos elementos contabilísticos existentes reportam-se a 31-12-2019 – doc. 9, da Ref.ª 11361426.
12) As últimas contas depositadas também se reportam a 2019 – doc. 9, da Ref.ª 11361426.
13) Nos últimos cinco anos, a insolvente não teve atividade – doc. 2 junto com a p.i..
14) A insolvência foi decretada nos autos a 18-05-2021.
15) Não é conhecido nos autos o destino dado ao saldo de meios monetários líquidos – caixa e Depósitos à Ordem que em 31-12-2019 era de € 24.039,06 (vinte e quatro mil e trinta e nove euros e seis cêntimos).
16) Também não logrou a sra. AI identificar, relativamente ao ativo “dívidas de clientes” a quem respeitam; se foram ou não cobrados posteriormente; se existindo, as mesmas são cobráveis.
17) Relativamente às dívidas de sócios, no montante de € 156.436,50, alegou a Insolvente, em 16-12-2021, que esta questão “… já foi oportunamente tratada no âmbito da execução que correu termos no juiz 3 do Juízo de Execução do Tribunal da Comarca do Porto, com o n.º 19931/20.5T8PRT... tendo os sócios informado nos Autos que não reconhecem qualquer dívida – doc. 7, da Ref.ª 11361426.
18) Em 10-03-2022 foi solicitado ao sr. Mandatário da insolvente, o Livro de Atas da insolvente – doc. 9.2, da Ref.ª 11361426.
19) Em 19-05-2022 foi junto aos autos, após despacho judicial nesse sentido, Auto de Apreensão dos ativos identificados pelo credor (…) – doc. 11, da Ref.ª 11361426.
20) Na mesma data foi expedida notificação dos sócios para a cobrança das alegadas dívidas, e identificação do paradeiro do saldo de caixa, e pedido de Apoio Judiciário, para a cobrança das alegadas dívidas – doc. 12, da Ref.ª 11361426.
21) Tendo os sócios informado, por carta de 31-05-2022, que nada devem, e que o saldo de caixa foi utlizado no pagamento das dívidas da sociedade, quando a (…) “ilicitamente deixou de respeitar o contrato de concessão que tinha desde 1990”. Quanto aos saldos devedores de clientes, iriam ver junto da contabilidade – doc. 6, da Ref.ª 11464347.
22) Em 13-10-2022, foi a sra. AI notificada da nomeação de patrona oficiosa à massa insolvente para instauração de ação de cobrança de dívidas – doc. 14, da Ref.ª 11361426.
23) A quem foram disponibilizados, todos os elementos existentes na disponibilidade da
sra. AI – doc. 15, da Ref.ª 11361426.
24) Tendo a mesma apresentado escusa da nomeação – doc. 16. da Ref.ª 11361426.
25) Em 18-01-2023, foi nomeado outro Patrono Oficioso – doc. 17, da Ref.ª 11361426.
26) A quem, igualmente, foram disponibilizados, todos os elementos existentes – doc. 18, da Ref.ª/ 11361426.
27) Em 16-06-2023, foi igualmente apresentado escusa, por este patrono oficioso, informando o mesmo que não vislumbrava viabilidade na ação – doc. 19, da Ref.ª 11361426.
28) Dessa informação, a sra. AI deu conhecimento aos Autos, em 06-07-2023 – doc. 20, da Ref.ª 11361426.
29) Tendo proposto novamente o encerramento nos termos do artigo 232.º do CIRE – doc.
21, da Ref.ª 11361426.
30) Em 17-07-2023, recebeu a nomeação de 3ª Mandatária Oficiosa, por parte da Ordem dos Advogados – doc. 22, da Ref.ª 11361426.
31) Em 07-08-2023, à semelhança do que aconteceu com os dois anteriores Patronos Oficiosos, remeteu-lhe toda a informação que tinha disponível, estando a aguardar resposta da mesma em 02-10-2023 – doc. 23, da Ref.ª 11361426.

I.2.
A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«1ª.1.- Conforme se explica a págs. 1 e 2 das anteriores alegações, a Mma Juiz, embora considerando (e bem) o objecto despacho ora recorrido no sentido de destituição, com justa causa, da sra. AI, confundiu (e desconsiderou) o requerimento pelo qual a ora recorrente pediu de modo formal, autónomo e fundamentado, a destituição da sra. AI, que foi o requerimento por si apresentado em 18/09/2023 (com a Ref.ª 9993691), com o seu outro requerimento de 12/10/2023, a que a Mma. Juiz se refere (com a Ref.ª 10062940), o qual constitui uma simples resposta da ora recorrente ao anterior requerimento apresentado no anterior dia 02/10/2023 pela sra. AI, requerimento esse que é distinto daquele outro de 18/9/2023.
.2.- Há, assim, manifesto lapso de confusão da Mma. Juiz na identificação dos fundamentos que lhe foram alegados para a destituição da sra. AI, lapso esse que, justamente por ser manifesto, deve ser relevado e corrigido por este douto tribunal ad quem – se, entretanto, não tiver sido rectificado pela própria Mma. Juiz a quo.
1ª.-A.- O processo de insolvência tem como finalidade a “satisfação dos credores” que, quando, como no caso presente, não existir plano de insolvência, consiste na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, sendo essenciais para atingir essa finalidade as funções do AI, designadamente as de apreensão e alienação de bens do insolvente.
.- Aquela finalidade de “satisfação dos credores” será obtida através da liquidação do património do insolvente, no respeito pelos seguintes princípios base:
“A fase da liquidação do ativo destina-se à conversão do património que integra a massa insolvente numa quantia pecuniária a distribuir pelos credores, havendo para isso que proceder à cobrança dos créditos e à venda dos bens da massa insolvente, por forma a obter os respetivos valores.”
“A liquidação abrange a alienação dos bens do devedor que foram apreendidos para a massa insolvente (artigo 158.º, nº. 1), mas pode também abranger a cobrança de créditos sobre terceiros de que o devedor seja titular porquanto tais direitos integram o seu património e a respetiva cobrança constitui também ela um ato de liquidação.
3ª.- 1.- Enquanto existirem bens (da massa) para apreender e créditos (também da massa) para cobrar, não pode ser encerrada a liquidação.
2.- Antes de concluída a liquidação, e enquanto existirem bens, designadamente créditos para liquidar, cobrar e ou vender, e não estiver concluída a respectiva liquidação, não se pode declarar o encerramento do processo de insolvência.
4ª.- No caso concreto do presente processo, o resultado da actuação (omissiva) da sra. AI e do douto despacho ora em apreço, levar-nos-ia à situação insólita e incompreensível de vermos o processo encerrado quando:
1) segundo as contas anuais da insolvente – as 3 últimas por ela juntas aos autos e declaradas à AT para fins de IRC e as 3 anteriores por ela organizadas segundo o SNC e depositadas no Registo Comercial –, e as informações complementares da própria insolvente, ela (a insolvente) tinha (e tem) um activo líquido (dívidas dos sócios à massa insolvente, créditos em clientes e saldo de caixa, no total de € 243.292,69) superior ao seu passivo, de apenas € 235.719,20;
2) por a sra. AI não ter apreendido e ou vendido daquele activo, nem cobrado aqueles créditos junto dos clientes, o processo seria encerrado, ficando os devedores sem pagar o que devem à sociedade (que, no caso dos clientes, nem sequer lhes foi pedido) e os credores sem receber o que aquela lhes deve e podia pagar se outra fosse a actuação da AI.
5ª.- Desde 2014 que a insolvente não exerceu mais qualquer actividade comercial (cfr. artigos 7º a 15º da sua p.i. e declaração do antepenúltimo parágrafo da declaração que constitui o doc. 2 da p.i.) e, por outro lado, não existem alterações de património posteriores à data das últimas contas, ou seja, desde 31/12/2019 (segundo informação pela própria insolvente prestada na alínea d) do seu requerimento de 13/05/2021), o que reforça o valor probatório das suas contas de 2019.
.- Encontram-se juntas aos presentes autos as contas anuais da insolvente dos exercícios de 2014 ao exercício de 2019, sendo que:
a) as contas dos exercícios de 2017, 2018 e 2019 foram juntas pela própria insolvente, pelo seu requerimento de 13/05/2021, sob a forma de fotocópia da Declaração Anual para efeitos de IRC, apresentada por ela na AT – Autoridade Tributária e Aduaneira, mencionando até, no topo da sua 1ª página, o código de validação de entrega;
b) as contas dos exercícios de 2014, 2015 e 2016 foram juntas pela (…), pelo seu requerimento de 23/07/2021, correspondendo às contas que foram depositadas no Registo Comercial, e não foram impugnadas, nelas se dizendo que “a contabilidade se encontra organizada conforme a Norma de Contabilidade e de Relato Financeiro para Pequenas Entidades”.
7ª.- Das contas da insolvente desde 2014 até às do exercício de 2019 (últimas apresentadas), ano após ano, consta inscrito, como activo, um crédito de € 156.436,50 sobre os sócios.
8ª.- Das contas da insolvente relativas ao exercício de 2019 verifica-se, da rubrica “Activo Corrente”, que a mesma possui:
 um crédito sobre clientes no valor de € 62.817,13,
 dinheiro em caixa (ou depósitos bancários) no valor de € 24.039,06.
9ª.- Não tendo gastos com pessoal desde, pelo menos, 2016, inclusive, não exercendo qualquer actividade desde 2014 (como ela explica), e não existindo “alterações de património posteriores à data das últimas contas”, ou seja, depois de 31/12/2019, impunha-se – e impõe-se – a conclusão de que subsistem as três verbas referidas nas duas conclusões antecedentes: o crédito de € 156.436,50 sobre os sócios, o crédito de € 62.817,13 sobre clientes, e € 24.039,06 de dinheiro em caixa.
10ª.- O crédito sobre os sócios, referido na conclusão 7ª, era e é um bem susceptível de apreensão para a massa e de posterior alienação ou cobrança, neste último caso conforme o critério do AI.
11ª.- A apreensão desse crédito faz-se de acordo com as formalidades do artigo 773.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 17.º do CIRE.
12ª.- O crédito sobre clientes e o dinheiro em Caixa referidos na conclusão 8ª são susceptíveis de cobrança pelo(a) AI, judicial ou extrajudicialmente.
13ª.- Pelas razões legais alegadas a págs. 15 a 17 das anteriores alegações (os artigos 123.º e 17.º, n.º 3, do CIRC, a normalização contabilística imposta pelo SNC (Sistema Nacional de Contabilidade), a obrigatoriedade de dispor de um TOC, atento o disposto nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 6.º do EOTOC (Estatuto da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas), com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 310/2009, de 26 de Outubro, o artigo 31.º, n.º 1, alínea f), da 4ª Directiva do Conselho, de 25 de Julho de 1978 – Directiva n.º 78/660/CEE – impôs aos Estados membros que assegurassem que a valorimetria das rubricas que figuram nas contas anuais das sociedades seja feita de acordo – entre outros – com o princípio de que “O balanço de abertura de um exercício deve corresponder ao balanço de encerramento do exercício precedente”, o POC (Plano Oficial de Contabilidade) aprovado pelo Decreto Lei nº 410/89, de 21 de Novembro, entretanto substituído pelo Sistema de Normalização Contabilística (SNC), aprovado pelos Decretos-Lei n.º 158/2009, de 13 de Julho, n.º 159/2009, de 13 de Julho e n.º 160/2009, de 13 de Julho), as contas anuais da insolvente relativas aos exercícios de 2014, 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019, cujas cópias se mostram juntas aos autos, não tendo sido impugnadas, devem ser consideradas como a expressão fiel da situação patrimonial, financeira e contabilística da sociedade insolvente.
13ª.A.- Por isso, não obstante a falta das actas com a sua expressa aprovação, deve entender-se que essas contas, cujas cópias foram juntas aos autos – de 6 exercícios consecutivos, até depois de a insolvente ter cessado a sua actividade, ou seja, as de 2017, 2018 e 2019, juntas pela própria insolvente em cumprimento do referido despacho de 07/05/2021, e as de 2014, 2015 e 2016, juntas pela ora recorrente a partir do Registo Comercial – são verdadeiras e refletem o estado real da situação financeira, contabilística e patrimonial da insolvente, tendo sido elaboradas de acordo com os critérios legais e normativos invocados nas anteriores alegações e na conclusão antecedente:
a) as daqueles 3 primeiros anos (2017, 2018 e 2019), porque foi a própria insolvente que as juntou, e são cópia das contas por ela declaradas à Autoridade Tributária para efeitos de IRC, e
b) as daqueles 3 anos antecedentes (2014, 2015 e 12016) porque, embora juntas pela ora recorrente, foram obtidas junto do Registo Comercial, onde tinham sido apresentadas pela própria insolvente e, além disso, uma vez juntas aos autos, não foram por ela impugnadas, sendo certo que, como nelas se escreve – e já se assinalou – são o resultado de contabilidade que se encontra organizada conforme a Norma Contabilística e Relato Financeiro para Pequenas entidades.
14ª.- Sendo as contas anuais – como de facto são – o espelho, em forma de síntese, do que consta da escrituração mercantil da insolvente e dos seus livros de comércio, tais contas fazem prova contra ela e contra os seus sócios e gerentes “em factos do seu comércio”, ou seja, no que respeita às 3 referidas verbas: o crédito sobre os sócios, o crédito sobre clientes e o saldo de caixa, na linha, aliás, do entendimento do Ac. do STJ de 18/10/2007, Processo n.º 06B3818, www.dgsi.pt, citado nas anteriores alegações.
15ª.- Por isso, e de acordo com o entendimento defendido pelo Prof. Lebre de Freitas, citado nas anteriores alegações, as contas da insolvente relativas aos 6 exercícios anuais em causa constituem documentos particulares contendo declarações confessórias dirigidas a terceiros, gozando da eficácia probatória plena simples da confissão, nos termos do artigo 376.º do CC.
16ª.- Logo, gozam do privilégio da inadmissibilidade da prova testemunhal contra o que delas consta, nos termos do artigo 393.º do CC, que dispõe que "Se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida a prova testemunhal".
17ª.- Esta norma deve articular-se com o artigo 364.°, n.° 1, do CC, segundo o qual "quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior".
18.º Daí decorre que, quando a lei exige documento escrito como forma de declaração, como sucede no caso presente quanto à obrigatoriedade legal quanto às contas anuais, a regra é a de que o documento escrito, autêntico, autenticado ou particular, é exigido como formalidade ad substantiam.
19ª.- A exclusão da prova testemunhal fundamenta-se na exigência, para a prova de determinado facto, de um grau de segurança que as testemunhas não podem dar. E, por maioria de razão, não o poderão dar quando estiverem em claro conflito de interesses com o que consta do documento.
20ª.- Pelo que, as “informações” dadas pelos sócios da insolvente pela sua carta de 31/05/2022, referida no n.º 36 da descrição de factos supra, 16 não fazem prova – não podem mesmo ser admitidas como prova, por imposição do artigo 393.º do CC – contra o que consta das contas por eles anteriormente elaboradas, declaradas à AT para efeitos de IRC, depositadas no Registo Comercial e apresentadas nos próprios autos.
21ª.- Finalizando esta questão, não pode haver dúvidas de que, na data da apresentação da insolvente, a esta pertenciam os seguintes activos, inscritos nas suas contas anuais, por ela (repete-se) declaradas à AT para efeitos de IRC, depositadas no Registo Comercial e apresentadas nos próprios autos:
1) um crédito no valor de € 156.436,50 sobre os sócios;
2) um crédito sobre clientes no valor de € 62.817,13, e
3) dinheiro em caixa (ou depósitos bancários) no valor de € 24.039,06.
22ª.- No que respeita ao crédito de € 156.436,50 sobre os sócios, tratando-se de um direito de crédito da insolvente sobre os seus dois sócios (marido e mulher), inscrito como Activo na correspondente rubrica do Balanço, devia a sra. AI proceder à sua apreensão para a massa, com recurso às normas dos artigos 773.º e seguintes do CPC (aplicáveis ex vi do artigo 17.º do CIRE), a começar pela “notificação ao devedor, feita com as formalidades da citação pessoal e sujeita ao regime desta, de que o crédito fica à ordem do agente de execução” (no caso, à ordem da AI).
23ª.- Não obstante os vários, repetidos e insistentes pedidos, por requerimento, pela (…), a AI não só nunca procedeu à apreensão desse crédito, mas propôs mesmo, repetidamente, o encerramento do processo sem nunca ter procedido a essa apreensão.
24ª.- Aquilo que a sra. AI fez e a que chamou “Auto de Apreensão” (cfr. n.º 23) dos factos descritos de págs. 5 a 11 das anteriores alegações), e que deu origem ao Apenso B, na verdade, não passa de um mero descritivo, que não tem a virtualidade de apreender o que quer que seja e não cumpre o disposto no citado artigo 773.º do CPC, sendo absolutamente nulo como apreensão para a massa.
25ª.- Feita a apreensão, com observância do formalismo previsto no artigo 773.º do CPC, devia o direito de crédito ter sido posto à venda a quem estivesse interessado em adquiri-lo, procedendo- se à sua transmissão nos termos das disposições do CPC aplicáveis à venda de bens penhorados e do disposto nos artigos 577.º e seguintes do Código Civil.
26ª.- A carta de 31/05/2022, mediante a qual (cfr. n.º 26) dos factos descritos de págs. 5 a 11 das anteriores alegações) os sócios vieram desdizer o que constava das contas anuais, não tem a virtualidade de anular o que em tais contas fora registado em contrário – quer quanto ao crédito da massa sobre eles quer quanto ao saldo de caixa -, nem sequer vale como prova contra o que a esse respeito consta dessas mesmas contas, pelas razões mencionadas nas conclusões 14ª e seguintes – e sem necessidade de invocar o claro conflito de interesses que está patente nessa declaração, uma vez que, segundo os declarantes (marido e mulher) são, segundo as contas, os próprios devedores à massa, sendo evidente o seu interesse em negar esta sua dívida, para não terem de a pagar.
27ª.- A omissão da sra. AI, ao não atribuir o devido valor probatório às contas anuais e ao não apreender o crédito sobre os sócios para a massa é grave, qualquer que seja o ângulo de abordagem do seu procedimento:
a) ou não conhecia o valor probatório das contas anuais e isso revela inaptidão e impreparação para o cargo;
b) ou não apreendeu porque, desconhecendo que o devia fazer nos termos daquele artigo 773.º do CPC, entendia que para isso era o auto/descrição com que abriu o Apenso B, e isso revela inaptidão, impreparação e incompetência; se, pelo contrário, tinha conhecimento do procedimento daquela norma, e não o quis fazer por outra razão que se desconhece, não deixa de ser mais grave.
28ª.- A posição dos dois advogados com base na qual a Mma. Juiz procura desculpabilizar o comportamento da sra. AI com o facto de, alegadamente, aquela última ter visto dois advogados recusarem a cobrança não releva juridicamente para o caso presente:
a) o primeiro advogado limitou-se a pedir escusa,
b) enquanto o segundo argumentou que (em sua opinião) não via viabilidade na acção;
29ª.- Além disso, é manifesto que o ilustre advogado que se escusou com fundamento na inviabilidade da acção, fez uma análise jurídica inadequada à situação sub judice, desconhecendo que a prova suficiente dos créditos eram as próprias contas anuais juntas pelos próprios sócios.
30ª. A sra. AI revelou impreparação e ou falta de aptidão para o cargo, visto que lhe era e é exigível que soubesse qual o valor probatório das contas anuais, no que diz respeito aos referidos créditos sobre os sócios da insolvente.
31ª.- Embora estivesse obrigada, pela sentença que declarou a insolvência, a apreender “os elementos da contabilidade do devedor”, a sra. AI nunca efectuou essa apreensão – não apreendeu, isto é, não tomou nas suas mãos e sob a sua guarda e responsabilidade – a escrita e a contabilidade da insolvente, o que, constituindo mais uma omissão grave, constitui ilação de facto a retirar, forçosamente:
a) da carta dela a que se refere o nº 24) da descrição de factos das anteriores alegações (págs. 5 a 11), mediante a qual ela pede aos sócios que lhe dê a “identificação dos clientes devedores, cujo saldo total (também reportado à data de 2019) é de € 62.817,13 (…)” – pois se tivesse apreendido a escrita e ou a contabilidade, teria com ela essas informações;
b) da carta que diz ter escrito ao mandatário da insolvente a pedir o livro de actas da sociedade – pois se tivesse apreendido a escrita e ou a contabilidade, teria com ela esse livro.
32ª.- Ao não ter apreendido os livros da escrita e a contabilidade da insolvente, a sra. AI ficou impossibilitada de identificar os clientes que deviam a referida importância de € 62.817,13 e de, como lhe era exigível, providenciar a respectiva cobrança para a massa, fosse judicial ou extrajudicialmente, pois que é dos elementos da escrita e da contabilidade da insolvente que constam os documentos que identificam os clientes devedores das quantias que deram lugar a que esta verba fosse inscrita nas contas anuais – a começar, designadamente, pelas notas de encomenda dos clientes em causa; e ou por facturas e ou guias de remessa e ou de transporte emitidas a esses mesmos clientes; contratos de compra e venda, se os houvesse, extractos organizados em forma de conta-corrente, etc., etc..
33ª.- A sra. AI também não apreendeu o livro de actas da assembleia geral da insolvente, que estava obrigada a apreender juntamente com a escrita e contabilidade, como se extrai do requerimento por ela apresentado em 19/05/2022 (Ref.ª 8721569) e, bem assim, do n.º 13 do seu requerimento de 12/03/2022 – pois se o pediu aos sócios ou ao respectivo mandatário é porque o não tinha com ela; com isso impedindo a comprovação da aprovação, em assembleia geral, das contas anuais juntas pela insolvente e dificultando a comprovação das verbas em questão: crédito sobre os sócios, crédito sobre clientes e saldo de caixa.
34ª.- A conta designada “Caixa” (11) pertence à classe 1 – Meios financeiros Líquidos, do quadro de contas do Sistema de Normalização Contabilística (SNC), onde devem ser registados os pagamentos e recebimentos em numerário, e que não deve registar outras transações que não sejam em dinheiro (notas e moedas), representando o seu saldo a quantia em notas e moedas correntes na posse da empresa, cuja contagem física no final do exercício económico é imprescindível.
35ª.- Ora, sabendo nós que (i) a sociedade não exerceu qualquer actividade desde 2014, conforme artigos 7º e 13º a 15º da p.i. e antepenúltimo parágrafo do doc. 2 dessa p.i., depois junto, devidamente assinado, por requerimento de 30/04/2021, e (ii) que não existiram “alterações de património posteriores à data das últimas contas”, ou seja, depois de 31/12/2019,19 então a única conclusão (de facto) que daí é possível extrair é de que os € 24.039,06 inscritos, com data de 31/12/2019, nas contas do exercício de 2019, continuavam a existir no momento da apresentação à insolvência.
36ª.- E sendo, como sabemos, os gerentes os responsáveis pela guarda do caixa e do dinheiro nele existente, e sendo, neste nosso caso, o único gerente o sócio João Loureiro, é ele que tem em seu poder e tem de entregar à massa aquela quantia de 24.039,06 €, na pessoa de quem devia ter sido efectuada a correspondente apreensão e ou cobrança – judicial ou extrajudicial – pela sra. AI.
37ª.- Quanto ao crédito sobre clientes no valor de € 62.817,13, a sra. AI devia, através dos elementos da escrita e da contabilidade da insolvente (que estavam ao seu alcance) ter identificado quem eram esses clientes, qual o valor devido por cada um deles, e os documentos disso comprovativos (fossem notas de encomenda, facturas e ou guias de remessa e ou de transporte, extractos organizados em forma de conta-corrente correspondência trocada, notas de débito ou de crédito, contratos de compra e venda, se os houvesse, etc.).
38ª.- Não o tendo feito, cometeu mais uma grave omissão no cumprimento dos seus deveres funcionais.
39ª.- Ao não ter apreendido, para a massa insolvente, o crédito aos referidos € 156.436,65 sobre os sócios, a sra. AI ficou impedida de promover a liquidação desse crédito, através da sua venda, transmissão ou cessão, e de realizar para a massa o valor correspondente, que seria destinado a pagar aos credores.
40ª.- Ao também não ter apreendido, para a massa insolvente, o crédito à quantia de € 24.039,06 do saldo de caixa em poder do gerente (e sócio) …, a sra. AI ficou impedida de promover a liquidação desse crédito, através da sua cobrança, judicial ou extrajudicial, ou da sua venda, transmissão ou cessão, e de realizar para a massa o valor correspondente, que seria destinado a pagar aos credores.
41ª.- Ao não ter apreendido, para a massa insolvente, os livros da escrita e a contabilidade da insolvente, a sra. AI ficou impossibilitada de identificar os clientes que deviam a referida importância de € 62.817,13 e de, como lhe era exigível, providenciar a respectiva cobrança para a massa, fosse judicial ou extrajudicialmente.
42ª.- A conduta da sra. AI ao longo do processo, evidenciada nas alegações e nas conclusões precedentes, é reveladora de que ela não actuou com o zelo e a atenção que lhe eram especialmente exigíveis (designadamente (i) ao não apreender os livros da escrita e contabilidade da insolvente e o seu livro de actas da AG, e (ii) ao não pugnar por todos os meios ao seu alcance pela identificação dos clientes que estavam em dívida do referido de saldo de clientes, pela recolhe dos documentos comprovativos e pela respectiva cobrança), (iii) revelou-se seriamente incapaz, por inaptidão e ou incompetência, de perceber e concluir sobre o valor probatório das contas anuais da insolvente (especialmente as de 2029), e, com isso, insistir no encerramento da liquidação e do processo,
43ª.- … e isso quando, como se disse no início das anteriores alegações, se tivesse agido com diligência, atenção e conhecimento, teria conseguido realizar dinheiro mais do que suficiente para pagar todo o passivo.
44ª.- Com a sua actuação, incorreu a sra. AI em justa causa para a sua destituição e substituição, nos termos do artigo 56.º do CIRE.
45ª.- Se, enquanto existirem bens (da massa) para apreender e créditos (também da massa) para cobrar, não pode ser encerrada a liquidação e se, antes de concluída a liquidação, e enquanto existirem bens, designadamente créditos para liquidar, cobrar e ou vender, e não estiver concluída a respectiva liquidação, não se pode declarar o encerramento do processo de insolvência, então, no caso presente, continuando a existir bens da massa para apreender (o crédito sobre os sócios e o saldo de caixa) e créditos, também da massa, para cobrar (o crédito sobre clientes e o crédito ao saldo de caixa sobre o gerente …), não pode nem a liquidação ser considerada encerrada nem – muito menos isso – o processo ser declarado encerrado.
46ª.- Isso só se conseguirá com a revogação do douto despacho objecto do presente recurso e com a destituição e substituição da sra. AI.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, e pelo mais do douto suprimento, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogar-se o douto despacho recorrido, e, no seu lugar, proferido acórdão que, decidindo como se refere na anterior conclusão 45ª, destitua e substitua a sra. AI (ou ordene a sua substituição), e ordene o prosseguimento do processo com a liquidação, ou, no seu lugar, ordene ao tribunal a quo que profira decisão nesse mesmo sentido, assim se fazendo a esperada Justiça!»

I.3.
Não houve resposta ao recurso.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, ambos do CPC).

II.2.
No caso a única questão a apreciar consiste em avaliar se o julgador a quo incorreu em erro de julgamento ao julgar improcedente o pedido de destituição da sra. Administradora da Insolvência com fundamento em justa causa.

II.3.
FACTOS
Os factos a considerar são os que constam do relatório supra (cfr. I.1).

II.4.
Apreciação do objeto do recurso
No caso concreto está em causa a decisão do tribunal de primeira instância que julgou improcedente, por falta de fundamento legal, o pedido de destituição da sra. Administradora da Insolvência, com fundamento em justa causa, o qual havia sido formulado pela credora (…), ora apelante.
Insurge-se a apelante contra tal decisão, sustentando, em síntese, que «subsistem os ativos da insolvente consubstanciados num crédito de € 156.436,50 sobre os sócios, um crédito sobre os clientes no montante de € 62.817,13 e dinheiro em caixa ou depósitos bancários no valor de € 24.039,06», pelo que a sra. Administradora da Insolvência deveria ter procedido à cobrança daqueles créditos e procedido a diligências com vista à apreensão para a massa insolvente do valor de € 24.039,06 mas, ao invés, propôs o encerramento do processo. Aduz a apelante que aqueles ativos constam das contas anuais da insolvente relativas aos exercícios de 2014 a 2019 (últimas contas apresentadas), que as mesmas foram elaboradas conforme a Norma Contabilística e Relato Financeiro para Pequenas Entidades, foram declaradas à Autoridade Tributária para efeitos de IRC e depositadas no registo comercial e, quando juntas aos autos pela recorrente (as relativas aos anos de 2014, 2018 e 2019) não foram impugnadas pela insolvente, fazendo tais documentos prova da existência daqueles créditos, prevalecendo sobre “informações dadas pelos sócios da insolvente através da sua carta de 31.05.2022”; que, não tendo havido gastos com o pessoal desde pelo menos 2016, inclusive, e não exercendo a insolvente qualquer atividade desde 2014, donde «não existiram alterações de património posteriores à data das últimas contas», ou seja, depois de 31.12.2019, todos aqueles créditos subsistem e, por conseguinte, eram bens suscetíveis de apreensão para a massa e posterior alienação ou cobrança, apreensão que a sra. administradora da insolvência não diligenciou por concretizar, apesar dos vários, repetidos e insistentes pedidos pela apelante. Acrescenta a apelante que a sra. Administradora da insolvência «não atribuiu o devido valor probatório às contas anuais», quando «lhe era exigível que soubesse qual o valor probatório das contas anuais no que diz respeito aos créditos sobre os sócios da insolvente», escudando-se na conduta de dois advogados oficiosos e, por isso, não apreendeu o crédito sobre os sócios da insolvente (conclusões 27ª a 30ª), nunca procedeu à apreensão dos elementos de contabilidade do devedor (“que estavam ao seu alcance”), apesar de a tal estar obrigada por via da sentença de insolvência, razão pela qual ficou impossibilitada de identificar os clientes que deviam a importância de € 62.817,13 (conclusões 31ª e 32ª) e, consequentemente, de providenciar a respetiva cobrança para a massa insolvente.
Em suma, a apelante imputa à sra. Administradora da Insolvência uma “grave omissão” no cumprimento dos seus deveres funcionais, por aquela não ter apreendido, para a massa insolvente, i. o supra referido crédito da insolvente sobre os sócios, no montante de € 156.436,65, ii. o crédito de saldo de caixa em poder do gerente e sócio (…), no valor de € 24.039,06; e iii. o crédito de € 62.817,13, o qual teria sido suscetível de cobrança, judicial ou extrajudicial, caso a sra. AI tivesse apreendido os livros da escrita e a contabilidade da insolvente.
Vejamos.
À luz do disposto no artigo 56.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o juiz pode, a todo o tempo, destituir o administrador da insolvência e substitui-lo por outro, quando fundadamente considerar existir justa causa.
Este normativo legal não define o que seja “justa causa”. A propósito, dizem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[1] que «Cobrem-se todos os casos de violação de deveres por parte do nomeado, aqueles em que se verifica a inaptidão ou incompetência para o exercício do cargo, traduzidas na administração ou liquidação deficientes, inapropriadas ou ineficazes da massa e, segundo o entendimento que temos por melhor, aqueles que traduzam uma situação em que, atentas as circunstâncias concretas, é inexigível a manutenção da relação com ele e infundada a possível pretensão do administrador se manter em funções (…)». Aduzem os mesmos autores que o dispositivo legal em causa condiciona a destituição do administrador judicial à ocorrência de justa causa, o qual está investido de importantes deveres funcionais adstritos exclusivamente à «consecução dos objetivos do processo, no respeito pelo princípio da igualdade dos credores e na defesa genérica dos seus interesses».
Também a propósito escreve Catarina Serra[2] que a noção de “justa causa” é um conceito indeterminado, comum a diversos ramos do Direito, designadamente o Direito Civil e o Direito do Trabalho, sendo que a conceção civilista de justa causa equipara-a a “qualquer motivo justificado” ao passo que a dita juslaboralista «põe a justa causa na dependência da violação grave, pelo sujeito, dos seus deveres». Acrescenta esta autora que «no contexto da destituição do administrador da insolvência, o conceito de justa causa terá que ser preenchido por referência às suas funções, com recurso às normas do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e, se necessário, a ouras normas aplicáveis. Conclui a mesma autora que os dois casos expressamente previstos no CIRE de destituição do Administrador da Insolvência, no artigo 168.º, n.ºs 1 e 2[3], e no artigo 169.º[4], respetivamente permitem concluir que a destituição com justa causa se reconduz a casos de uso indevido ou de uso abusivo dos poderes funcionais do administrador, isto é, de instrumentalização, por parte daqueles dos poderes para fins diversos daqueles que a lei concebeu e que «só uma violação grave dos deveres do administrador da insolvência que torne infundada a expectativa ou a pretensão da sua continuidade em funções, pode dar origem à sua destituição».
Na jurisprudência, a título de exemplo, no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.05.2025[5] entendeu-se que «o conceito de justa causa legitimadora da destituição do Administrador Judicial num processo de insolvência se preenche e concretiza: i) com a conduta do administrador reveladora de inaptidão ou de incompetência para o exercício do cargo que comprometam o exercício do cargo; ii) ou com a conduta traduzida na “inobservância culposa” dos seus deveres “apreciada de acordo com a diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado (artigo 59.º/1, do CIRE); iii) exigindo-se cumulativamente a qualquer dos requisitos anteriores que tal conduta, pela sua gravidade, justifique a quebra de confiança, inviabilizando, em termos de razoabilidade, a manutenção nas funções para que foi nomeado». E no acórdão da mesma Relação de 17.04.2012[6] escreveu-se no respetivo sumário que «II. No que respeita à construção da compreensão/extensão lógica do conceito de “justa causa” para efeitos de destituição do Administrador da Insolvência, tem necessariamente o intérprete de socorrer-se das indicações deixadas pelo Legislador nomeadamente nos artigos 168.º e 169.º do CIRE e, a partir destes exemplos, pode concluir-se que existirá justa causa para a destituição do Administrador da insolvência quando o mesmo se comporte de forma que ultrapasse os limites da boa-fé, dos bons costumes e com violação dos fins económico e social dos direitos que lhe cumpre exercer (artigo 334.º do Código Civil), quando ele se mostre manifestamente incapaz para o exercício das funções ou ainda quando, fundamentadamente, se quebre o indispensável vínculo de confiança que tem de existir entre aquele e os credores e aquele e o tribunal.
Feitas estas considerações gerais, voltemos ao caso concreto.
Sendo o fim último do processo da insolvência a satisfação o mais completa possível do máximo número de credores, compreende-se que a liquidação do ativo assuma uma importância nuclear no processo de insolvência, sendo que aquela operação está a cargo do administrador da insolvência (artigo 158.º do CIRE) enquanto órgão da insolvência especialmente encarregue de proceder à administração da massa insolvente. Assim, de acordo com o disposto no artigo 158.º/1, do CIRE, uma vez transitada em julgado a sentença declaratória da insolvência e realizada a assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente, independentemente da verificação do passivo, na medida em que a tanto se não oponham as deliberações tomadas pelos credores na referida assembleia. Desta feita, incumbe ao administrador da insolvência promover a alienação dos bens que integram a massa insolvente, os quais são os bens existentes no património do devedor à data da declaração de insolvência e ainda aqueles bens e direitos que o devedor venha a adquirir na pendência do processo (artigo 46.º/1, do CIRE).
A fase da liquidação – que integra a fase executiva do processo de insolvência – destina-se, portanto, à conversão do património que integra a massa insolvente numa quantia pecuniária a distribuir pelos credores, havendo, para tal desiderato, que proceder à cobrança de créditos e à venda dos bens da massa insolvente, por forma a obter os respetivos valores [artigos 55.º, n.º 1, alínea a) e 158.º, ambos do CIRE].
Previamente a essa operação de liquidação, e uma vez proferida a sentença declaratória da insolvência, incumbe ao administrador da insolvência proceder à apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolvente, nos termos do artigo 149.º do CIRE. A apreensão de bens tem uma dupla função: por um lado visa evitar qualquer desvio de bens destinados à satisfação dos credores e, por outro lado, é indispensável à liquidação dos bens integrantes da massa insolvente.
Dispõe o artigo 150.º, n.º 1, do CIRE epigrafado Entrega dos bens aprendidos, que «O poder de apreensão resulta da declaração de insolvência, devendo o administrador da insolvência diligenciar, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 756.º do Código de Processo Civil, no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique depositário, regendo-se o depósito pelas normas gerais e, em especial, pelas que disciplinam o depósito judicial de bens penhorados».
O poder de apreensão dos bens resulta, assim, da declaração de insolvência, devendo o administrador da insolvência diligenciar no sentido de lhe serem entregues para que deles fique depositário.
No caso em apreço, a credora … (e apelante) defende que a sra. Administradora da Insolvência violou o seu dever de diligenciar a) pela apreensão do dinheiro existente em caixa/em depósitos bancários, no montante de € 24.039,06, e b) pela cobrança, judicial ou extrajudicial, do direito de crédito da insolvente sobre os seus sócios, no montante de € 156.436,50, e de um direito de crédito da insolvente sobre clientes (não identificados) no valor de € 62.817,13, aduzindo que se aquela tivesse cumprido o dever de apreender os elementos de contabilidade da insolvente e as atas das deliberações estaria em condições de identificar os clientes em causa e respetivos saldos devedores.
Assinalámos supra que os bens do devedor que integram a massa insolvente são aqueles que existam à data da declaração da insolvência. A apelante parte do pressuposto de que os ativos que identifica existiam à data da declaração da insolvência porque constam das contas relativas aos exercícios da insolvente reportados aos anos de 2014 a 2019, alegando ela que «não houve alterações de património posteriores à data das últimas contas”. Sucede que a asserção da apelante no sentido de que «não houve alterações no património da insolvente posteriormente a 2019» não está comprovada.
Note-se que não está aqui em causa avaliar se, porventura, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, foram praticados atos que afetaram o património da insolvente, nomeadamente atos que se integram nas alíneas a), d) ou f), do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
Resulta da factualidade julgada provada que:
- em 22-5-2021, foi solicitado ao Banco de Portugal a circularização das instituições bancárias, para identificação de eventuais depósitos em nome da insolvente, tendo todas as informações devolvidas sido no sentido da inexistência de ativos, passíveis de apreensão;
- não é conhecido nos autos o destino que foi dado ao saldo de meios monetários líquidos – caixa e depósitos à ordem – que, em 31.12.2019, era de € 24.039,06; e
- os sócios da insolvente informaram, por carta de 31.05.2022, que o saldo de caixa foi utilizado no pagamento das dívidas da sociedade (facto provado n.º 21).
Donde, como poderia a sra. administradora da insolvência apreender aquele ativo de € 24.039,06, quando a sua existência é negada pelos sócios da insolvente, quando não há informação disponível sobre os fluxos de caixa e não foram identificados eventuais depósitos bancários em nome da insolvente à data de maio de 2021?
No que respeita ao direito de crédito sobre clientes no montante de € 62.817,13, não é controvertido que não existem elementos que permitam a individualização daquele direito de crédito, nomeadamente, os sujeitos devedores. A apelante defende que foi a violação, pela sra. administradora da insolvência, do dever de apreensão dos elementos de contabilidade da insolvente que impossibilitou a cobrança judicial de tais créditos, na medida em que aquela ficou impossibilitada de identificar os clientes que deviam aquela importância que foi inscrita nas contas anuais; aduz a apelante que “estava ao alcance” da sra. administradora obter os livros de escrita e a contabilidade da empresa insolvente.
A apelante não fundamenta a sua asserção de que teria sido possível à sra. Administradora obter aquela documentação e está provado que:
i. em 30-08-2021, a sra. AI remeteu ao responsável da contabilidade (TOC), carta pedindo-lhe o balancete analítico mais recente, mapa de ativos fixos não correntes, o último inventaria da insolvente e extrato da conta corrente de clientes com saldo, tendo obtido como resposta do TOC que este não tinha quaisquer elementos da insolvente;
ii. em 30-10-2021, a Sra. AI enviou ao Mandatário da Insolvente email a solicitar colaboração para identificar, nomeadamente, os saldos devedores de clientes que se encontravam por cobrar. Considerando que está provado que a sra. Administradora da Insolvência não logrou identificar relativamente a este ativo a identificação dos ditos clientes, se os créditos foram, ou não, cobrados posteriormente a 2019 e se as dívidas porventura existentes eram cobráveis (facto provado n.º 16), infere-se que o exmo. mandatário da insolvente não prestou a colaboração que lhe foi solicitada (artigo 349.º do Código Civil). E, sem elementos de contabilidade - que a apelante diz terem estado “ao alcance” da sra. AI, sem que tal resulte da factualidade provada - e sem a colaboração dos sócios da insolvente e do TOC, no sentido da identificação dos clientes devedores e valores envolvidos, não se vislumbra como poderia a sra. Administradora da Insolvência ter avançado/diligenciado para uma cobrança judicial ou extrajudicial de tal crédito. Dir-se-á, por último, que ainda que os elementos de contabilidade do devedor – caso tivessem sido apreendidos – permitissem identificar os devedores da insolvente e os montantes em dívida, ainda assim não é seguro que tal garantisse a cobrança (judicial ou extrajudicial) daquele ativo pois que para tal desiderato é necessário que tais créditos, depois de apurados, sejam cobráveis.
Relativamente ao crédito da insolvente sobre os seus sócios no montante de 156.436,50€, diz a apelante que a sra. Administradora da Insolvência deveria ter procedido à notificação dos sócios da insolvente nos termos e para os efeitos previstos no artigo 773.º do Código de Processo Civil, ou seja, notificá-los de que o referido crédito ficava à sua ordem e que, não o tendo feito, “revelou impreparação e ou falta de aptidão para o cargo”. Reconhecendo, embora, que os sócios, por carta, vieram dizer que as suas dívidas eram inexistentes, aduz a apelante que essa declaração dos sócios «não faz prova contra a prova que resulta das contas anuais juntas aos autos» - cujo valor probatório, afirma, deveria ser do conhecimento da sra A.I -, para além de que existe «um claro conflito de interesses que está patente nessa declaração, uma vez que, segundo as contas anuais, os sócios eram – e são – os devedores, tendo, por isso, interesse em negar esta sua dívida, para não terem de a pagar».
Nos artigos 773.º , n.ºs 2 a 4, 775.º e 776.º do Código de Processo Civil, respetivamente, está previsto um procedimento sumário de cominatório pleno, enxertado na ação executiva, através do qual se permite – e apenas para efeitos daquele concreto processo – que se possa concluir pela existência de um pretenso direito de crédito do executado sobre um terceiro ou, ao contrário, pelo seu caráter litigioso[7].
A notificação prevista naquele dispositivo legal – que deve ser realizada com as formalidades da citação pessoal e sujeita ao regime desta – no sentido de que o crédito fica à ordem do agente de execução – consiste no próprio ato de penhora do direito de crédito. Nos casos em que é penhorado um direito de crédito do executado e o devedor do executado declara reconhecer a dívida ou nada diz, entendendo-se nesta situação que ele reconhece a existência da obrigação, fica o mesmo devedor obrigado a depositar a prestação devida e, se não o fizer, o exequente pode exigir a prestação com base num novo título executivo (a declaração de reconhecimento do devedor, a notificação efetuada e a falta de declaração); na própria execução, nasce então uma nova execução, com executados diferentes, com base em títulos executivos diferentes. Se o terceiro negar a existência do crédito, prescreve o artigo 775.º, n.º 1, do CPC que deve proceder-se à notificação do exequente e do executado para se pronunciarem, no prazo de 10 dias, devendo o exequente declarar se mantém a penhora ou desiste dela. E a declaração que o exequente emitir determina o destino próximo da penhora: i. se mantiver a penhora, o crédito será levado à venda ou à adjudicação como litigioso (artigo 775.º, n.º 2, do CPC); ii. se desistir da penhora, esta é levantada e o exequente poderá, se necessário, fazer nova indicação de bens, nos termos do disposto no artigo 751.º, n.º 1, alíneas b) e c), do CPC.
Sucede que a sra. Administração da Insolvência não tem competência para realizar atos de penhora e a notificação a que a apelante alude e entende que deveria ter sido realizada pela sra. AI consiste, como dissemos, num ato de penhora. O que a sra. Administradora da Insolvência podia fazer perante uma informação da existência daquele crédito da insolvente sobre os sócios, era solicitar aos terceiros devedores (os sócios da insolvente) as informações relativas àquele alegado crédito (sua natureza, data de vencimento, garantias) e, em face da informação recebida aquilatar da necessidade e viabilidade de uma ação declarativa contra os sócios. In casu, os sócios da insolvente negaram a existência daquele direito de crédito e não foi facultado à sra. Administradora da Insolvência qualquer elemento contabilístico que lhe permitisse apurar outros elementos úteis à individualização de tal direito de crédito. Não obstante, a sra. Administradora da Insolvência até diligenciou pela obtenção de apoio judiciário com vista à instauração de ação para cobrança daquele direito de crédito. Sucede que a primeira defensora oficiosa nomeada – a quem foram disponibilizados todos os elementos existentes na disponibilidade da sra. AI - apresentou escusa da nomeação e a segunda patrona oficiosa, nomeada em 18.01.2023, a quem foram também disponibilizados todos os elementos existentes, apresentou, também ela, escusa, informando que “não vislumbrava viabilidade na ação”.
O não avançar para uma cobrança judicial contra os sócios da insolvente fundou-se num juízo de inviabilidade de tal ação, o qual está suportado por um “parecer” de uma causídica e pelo enquadramento factual supra exposto.
De todo o exposto não se vislumbra existir justa causa para a destituição da sra. Administradora da Insolvência, dado que não se extrai da factualidade julgada provada que a conduta daquela revele inaptidão ou incompetência para o exercício do cargo ou a inobservância culposa dos seus deveres funcionais «apreciada de acordo com a diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado (artigo 59.º/1, do CIRE)».
Confirma-se, pois, a sentença recorrida, improcedendo a apelação.

Sumário: (…)


III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgar improcedente a apelação e, consequentemente, mantêm o despacho recorrido.
As custas na presente instância recursiva são da responsabilidade do recorrente, sendo que a esse título nenhum pagamento é devido porquanto a apelante já procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual, não são devidas custas de parte ou encargos.

Notifique.
DN.
Évora, 18 de setembro de 2025
Cristina Dá Mesquita
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Mário João Canelas Brás



____________________________________________
[1] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Reimpressão, Volume I, Quid Juris, Lisboa, 2006, pág. 266.
[2] Lições de Direito da Insolvência, 2018, Almedina, pág. 93.
[3] O artigo 168.º proíbe o administrador de adquirir, diretamente ou por interposta pessoa, bens ou direitos compreendidos na massa insolvente.
prevendo para a violação deste coando a destituição por justa causa.
[4] O artigo 169.º do CIRE epigrafado Prazo para a liquidação, dispõe que «A requerimento de qualquer interessado, o juiz decretará a destituição, com justa causa, do administrador da insolvência, caso o processo de insolvência não seja encerrado no prazo de um ano contado da data da assembleia de apreciação do relatório, ou no final de cada período de seis meses subsequente, salvo havendo razões que justifiquem o prolongamento.»
[5] Processo n.º 1483/12.1TYLSB-F.L1-1, relatora Desembargadora Fátima Reis Silva, consultável em www.dgsi.pt, como todos os demais invocados.
[6] Processo n.º 664/10.7TYLSB-O.L1-1, relator Desembargador Eurico Reis.
[7] Rui Pinto, A Ação Executiva, 2019, Reimpressão, AAFDL, pág. 580.