LIVRANÇA EM BRANCO
PACTO DE PREENCHIMENTO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
AVALISTA
Sumário

I. Estando em causa uma livrança em branco, ressalvados os casos em que o pacto de preenchimento preveja e exija a comunicação do facto legitimador do preenchimento ao avalista, dando-lhe conhecimento do montante em dívida e interpelando-o para pagar, a ausência de tal comunicação/interpelação não determina que a obrigação seja inexigível e, assim, abusivo o preenchimento do título, uma vez que a lei cambiária em parte alguma formula tal exigência.
II. A ausência de tal comunicação implica tão somente que a obrigação que o avalista assumiu se vence e torna exigível apenas com a citação para a execução fundada na livrança, nos termos dos artigos 777.º, n.º 1 e 805.º, n.º 1, do Código Civil.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 1070/23.9T8ENT-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém
Juízo de Execução do Entroncamento-Juiz 3

I. Relatório
No Juízo de Execução do Entroncamento – Juiz 3, por apenso aos autos de execução para cobrança coerciva da quantia de € 95.046,54 que lhes é movida e a outra pela Caixa Económica (…), SA, vieram os executados (…) e (…) deduzir os presentes embargos, aqui tendo invocado, para o que ora releva, a exceção do preenchimento abusivo da livrança dada à execução, por não terem sido previamente informados do incumprimento da subscritora e, bem assim, interpelados para cumprir.

A exequente/embargada contestou, invocando que nos termos da cláusula 10ª do contrato, que constitui pacto de preenchimento da livrança, ficou autorizada, em caso de incumprimento do contrato que constituía a relação subjacente, a preencher a livrança pelo valor em dívida, sem necessidade de interpelação; não obstante, verificado o incumprimento por banda da sociedade subscritora, enviou carta a todos os obrigados, pelo que se impõe, concluiu, a improcedência dos embargos deduzidos.

Teve lugar audiência de julgamento, no termo do qual foi proferida sentença que julgou improcedentes os embargos deduzidos.

Inconformado, apresentou o embargante (…) o presente recurso, cuja alegação rematou com as seguintes conclusões:
A. Resulta provado nos autos que a execução dos autos principais é ordinária,
B. Foi apresentado como título executivo a livrança junta aos autos principais com o requerimento executivo, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido,
C. A livrança foi subscrita pela sociedade executada e avalizada pelos embargantes,
D. A livrança foi entregue para garantia do contrato de desconto de operações sobre o estrangeiro, celebrado entre a sociedade subscritora da livrança e a ora embargada, com os executados como avalistas e o executado (…) em representação da sociedade, junto aos autos com a contestação, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido,
E. A subscritora e os avalistas da livrança foram contactados, antes do seu preenchimento, para lhes comunicar o vencimento antecipado da dívida e para os interpelar para o respetivo pagamento,
F. Sucede que, salvaguardando o devido respeito, o Recorrente não se conforma que se tenha por devidamente comprovada a existência de contactos prévios à ação executiva.
Senão vejamos,
G. A Recorrida junta com o Requerimento Executivo, como Doc. 3, um documento correspondente a uma suposta carta que teria sido enviada ao Recorrente em 19 de janeiro de 2023.
H. A referida «carta» não contém número de registo dos CTT, e tampouco juntou a Recorrida qualquer aviso de receção,
I. Tornando-se, assim, impossível comprovar documentalmente se a mesma foi recebida pelo Recorrente ou se sequer enviada.
J. Dispõe a Douta sentença de que se recorre que a comunicação prévia ao preenchimento da livrança e consequente apresentação do Requerimento executivo foi então considerada provada através da prova testemunhal composta por 3 (três) funcionários da Recorrida, designadamente: (…), (…) e (…).
K. Todavia, sucede que, mesmo que não se conteste a credibilidade daquelas testemunhas, não se podendo ignorar que todas são funcionárias da Recorrida, pelo que se encontram numa relação de subordinação para com a mesma, com as naturais condicionantes que possam daí advir,
L. Ainda assim, cumpre relembrar que quando questionadas por forma a saber se tinham sido responsáveis pelo tratamento em especial do contrato ora executado, todas responderam negativamente,
M. De seguida, quando questionadas se poderiam afirmar com certeza que a carta teria sido enviadas efetivamente ao Recorrente, todas responderam negativamente,
N. Perguntado às testemunhas se poderiam indicar quais os contactos e/ou negociações ocorreram com o Recorrente antes e depois do suposto envio da referida carta, todas novamente responderam de forma negativa,
O. Ainda questionadas se tinham memória de ambos os Embargantes terem participado efetivamente nas referidas negociações, as testemunhas responderam negativamente.
P. Em suma, as testemunhas, enquanto funcionárias da Recorrida, apenas se limitaram a descrever em tom elogioso os procedimentos internos da mesma, de forma geral e abstrata, sem nunca os relacionarem com o caso concreto.
Q. Reiterando que nenhuma das testemunhas afirmou ter tido contacto o Recorrente, durante toda a duração do contrato e mesmo após a sua «resolução».
R. Ora, é de conhecimento geral, que os procedimentos internos de uma instituição, ou as suas diretrizes internas, não podem tão somente por si comprovar que o cumprimento dos requisitos legais e contratuais numa situação concreta.
S. No que concerne às questões de Direito que fundamentam a Douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, e salvaguardando o devido respeito que é muito, também discordam os Recorrente,
T. Senão, vejamos, o Tribunal a quo prescreve na Douta sentença que “De todo o modo, considera-se que, e quanto aos embargantes, não será de exigir interpelação, pois esta só é necessária se estiver prevista no pacto de preenchimento” (negrito e sublinhado nossos),
U. Neste sentido, baseou-se o Tribunal a quo, tão somente na cláusula 10.2 (transposta na Douta sentença), ignorando a Cláusula 7.1, da qual se retira a exigência de resolução formal para estabelecer o incumprimento definitivo.
V. Pelo que a ausência de comunicação ao Recorrente da resolução formal do contrato obsta à convalidação da mora em incumprimento definitivo,
W. Neste sentido, já se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça no Douto Acórdão proferido em 24 de outubro de 2019, no processo, n.º 295/14.2TBSCR-A.L1.S1, do qual se retira que:
A livrança em branco deve ser preenchida de harmonia com um contrato ou com um pacto de preenchimento, expresso ou tácito.”
X. Assim, considera o Recorrente existir aqui uma interpretação equivocada do pacto de preenchimento, uma vez que ainda que o mesmo se encontre previsto na Cláusula 10.2 do contrato (transposta para a Douta sentença), tem a mesma de ser conjugada com a Cláusula 7.1 suprarreferida.
Y. No mesmo sentido já se pronunciou a jurisprudência, veja-se o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de outubro de 2020, proferido no âmbito do processo n.º 1384/14.9TBGMR-A.G1.S1, que entendeu que:
II. O avalista obriga-se ao pagamento da quantia titulada no título de crédito, na data do vencimento ou nos termos em que o pacto de preenchimento foi acordado.
III. A livrança em branco deve ser preenchida em conformidade com o pacto de preenchimento para apuramento da responsabilidade do avalista que nele teve intervenção.”
Z. Por seu turno, a Cláusula 10.1, prevê que: “A Livrança será oportunamente preenchida quando a CE… o entender”,
AA. Em razão do que sempre se dirá que tal previsão impõe um desequilíbrio injusto na relação contratual, constituindo aquela cláusula uma cláusula geral abusiva e consequentemente proibida, nos termos da alínea j) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, por colocar na discricionariedade da Recorrida, o estabelecimento de encargos desproporcionais ao Recorrente em seu benefício.
BB. Por fim, salvaguardando o devido respeito que é muito, vem o Tribunal a quo fundamentar a decisão, aplicando uma norma legal revogada há mais de duas décadas, designadamente o artigo 804.º, n.º 3, do Código Processo Civil anterior à reforma de 2013, dada pelo Decreto-lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro,
CC. Não se pode compreender, assim, que o Tribunal a quo lance mão de uma norma que admite ele mesmo ter sido eliminada expressamente pelo legislador há mais de 20 (vinte) anos com a entrada em vigor do Decreto-lei n.º 38/2003, de 08 de Março, isto é, 10 (dez) anos antes da reforma do Processo Civil.
DD. Neste sentido, há muito que o legislador optou por excluir das normas do processo civil português a interpretação dada na Douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, no sentido de que “ainda que se admitisse a falta de interpretação prévia, julga-se que a interpelação pode ser substituída pela citação na ação executiva”.
EE. Vide o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do processo n.º 1516/14.7TBMTJ-A.L2-2, em 12 de maio de 2022, de cujo teor se retira:
I – Estando em equação uma livrança em branco, ainda que tal não decorra do pacto de preenchimento (ou dos contratos de financiamento ou de idêntica natureza celebrados), por ao mesmo não se ter vinculado, o princípio da boa impõe a comunicação/interpelação ao avalista sobre o montante em dívida a inscrever nas livranças e sobre a data de vencimento destas;
VII – não sendo, assim, condição de exigibilidade e exequibilidade do título (livrança), salvo se no pacto de preenchimento, o credor, tomador do título, se tenha obrigado a informar o avalista das vicissitudes da relação extracartular, nomeadamente do incumprimento, ou seja, que antes do portador do título o completar tenha que informar/comunicar/interpelar o avalista acerca do incumprimento da relação extracartular” (negrito e sublinhado nossos).
FF. Daquele Acórdão retira-se, assim, a conclusão de que, encontrando-se previsto no contrato a obrigação de informar (vide Cláusula 7.1), e sendo abusiva e, por essa razão, nula, a Cláusula 10.1, era a interpelação dos avalistas na situação concreta condição de exigibilidade e exequibilidade do título (livrança),
GG. Neste sentido, não existe título executivo nos termos do n.º 5 do artigo 10.º do CPC.
HH. Assim, havendo erro na interpretação dos factos e na aplicação da lei, numa clara violação do princípio da aplicação da lei no tempo, resulta presente da Douta sentença proferida pelo Tribunal a quo um erro de julgamento.
II. Neste sentido, veja-se o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02 de julho de 2015, no âmbito do processo n.º 5024/12.2TTLSB.L1.S1:
“O erro de julgamento tanto pode começar na interpretação e subsunção dos factos e do direito, como estender-se à sua própria qualificação, o que, em qualquer das circunstâncias, afecta e vicia a decisão proferida pelas consequências que acarreta, em resultado de um desacerto, de um equívoco ou de uma inexacta qualificação jurídica ou, como enuncia a lei, de um erro”.
Concluem pela procedência do recurso, com a consequente revogação da sentença recorrida e sua substituição por decisão que julgue os embargos procedentes.

Contra alegou a instituição apelada, pugnando naturalmente pela confirmação do julgado.
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Questão Prévia
O apelante insurge-se contra o facto dado como provado sob o n.º 4.1.6, com o seguinte teor: “A subscritora e os avalistas da livrança foram contatados, antes do seu preenchimento, para lhes comunicar o vencimento antecipado da dívida e para os interpelar para o respectivo pagamento”. Em suporte da sua pretensão modificativa alega que as testemunhas cujos depoimentos foram invocados pelo Tribunal para motivar a decisão, quando perguntadas a respeito das cartas alegadamente enviadas aos avalistas, não puderam garantir se as mesmas tinham sido efetivamente enviadas ou rececionadas pelos seus destinatários, pelo que o facto deve ser tido como não provado.
Pois bem, previamente à reapreciação da prova, importa sindicar se se mostram cumpridos os ónus que a lei faz recair sobre o impugnante.
Resulta do disposto no n.º 1 do artigo 640.º do CPC que o recorrente/impugnante está vinculado ao cumprimento de três requisitos formais, cuja inobservância conduz à rejeição do recurso nesta parte, a saber: i. terá necessariamente de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (alínea a); ii. terá ainda de especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou registo da gravação, que imponham uma decisão diversa sobre os pontos de facto objeto da impugnação, ónus cujo cumprimento demanda, nas palavras inspiradas do STJ (acórdão de 21 de Junho de 2022, no processo 644/20.4T8RA.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt), “(…) a obrigatoriedade de cerzir cada facto censurado com os elementos probatórios correspondentes” e, estando em causa prova gravada, a exata indicação das passagens em que o recorrente funda a sua discordância (podendo ainda, se assim o entender, proceder à respetiva transcrição) (alínea b); iii. terá finalmente de enunciar a decisão alternativa (alínea c).
É certo que na atenuação de um rigor formal que, levado à letra, poderia suscitar questões de constitucionalidade, o STJ vem defendendo de forma consistente que “Os ónus impostos pelo artigo 640.º do CPC devem ser apreciados com cautela, evitando leituras excessivamente formalistas, devendo ser dada prevalência ao primado da substância sobre a forma, devendo os aspetos de ordem formal ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (presentes na ideia do processo equitativo nos termos previstos no artigo 20.º, n.º 4, da CRP), tendo em conta as circunstâncias concretas do caso e desde que o conteúdo da impugnação seja percecionável para a parte contrária, permitindo-lhe o exercício do contraditório, e para o tribunal de recurso, não impondo a sua apreciação um esforço inexigível” (do acórdão do STJ de 26 de Novembro de 2024, proferido no processo 417/21.7T8AGH.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt[1]).
Neste contexto, importa ainda ter presente a distinção entre os ónus consagrados no n.º 1 do artigo 640.º, que vêm sendo apontados como ónus primários, dada a sua função de delimitação do objeto do recurso, daí que o seu incumprimento resulte na imediata rejeição do recurso, em contraposição aos ónus secundários, previstos no n.º 2 do artigo 640.º relativos à alínea b) do n.º 1, enquanto instrumentais do disposto no artigo 662.º, que regula a modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto pelos Tribunais da Relação.
Não obstante tal entendimento, analisada a alegação verifica-se que em parte alguma o impugnante fez a identificação da passagem relevante dos aludidos testemunhos, tendo-se limitado a afirmar que as testemunhas responderam negativamente a determinadas perguntas, o que não satisfaz, ainda que num critério de exigência mínima, o ónus prescrito na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º, a impedir o conhecimento da impugnação.
Por outro lado, sempre se dirá que o facto impugnado não respeita ao envio e receção das cartas juntas pela embargada com o requerimento inicial e que se destinaram a dar conhecimento aos obrigados, incluindo portanto os avalistas, que a livrança havia sido preenchida, interpelando para o pagamento da dívida, numa tentativa de obviar à interposição da pertinente ação judicial; ao invés, como dele claramente resulta, refere-se à existência de contactos informais anteriores ao preenchimento da livrança, do que sempre resultaria a irrelevância da impugnação deduzida, inidónea para efeitos da pretendida modificação.
Atento o exposto, e por incumprimento do ónus previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC, não se conhecerá da impugnação deduzida.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objeto do recurso, constitui questão a decidir determinar se, conforme pretendem os apelantes, a dívida não lhes e exigível, por violação do pacto de preenchimento.
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II. Fundamentação
De facto
É a seguinte a factualidade provada e não provada relevante para a decisão;
1. A execução dos autos principais é ordinária.
2. Foi apresentada como título executivo a livrança junta aos autos principais com o requerimento executivo, no valor de € 94.251,62, com data de emissão de 16/03/2018 e vencimento em 16/01/2023.
3. A livrança referida em 2 foi subscrita pela sociedade (…), Lda. e avalizada pelos embargantes, aqui se dando por reproduzido, quanto ao mais, o seu teor.
4. A livrança foi entregue para garantia do contrato de desconto de operações sobre o estrangeiro celebrado entre a sociedade subscritora da livrança e a ora embargada, com os executados como avalistas e o executado (…) em representação da sociedade, junto aos autos com a contestação, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
5. Nos termos da cláusula 10ª do contrato:
“No caso de, em consequência do presente contrato, a PARTE DEVEDORA se tornar devedora da CE… em determinada quantia, a correspondente obrigação de pagamento dessa dívida poderá ser parcial ou integralmente substituída, mediante novação, por uma obrigação cambiaria constante de uma livrança em branco, a qual neste ato é entregue à CE…, subscrita pela PARTE DEVEDORA e avalizada pessoalmente pelo SEGUNDO e pela TERCEIRA contratantes.
2. A livrança será oportunamente preenchida, quando a CE… o entender, com indicação do montante que será de valor igual ao valor da dívida exigível à PARTE DEVEDORA, correspondente a capital, juros vencidos e demais encargos apurados na data do vencimento da livrança.
3. A livrança é domiciliada em Lisboa e é pagável no 30º (trigésimo) dia contado da data do vencimento da dívida que para a PARTE DEVEDORA possa resultar do presente contrato.
4. A CE… poderá acrescentar ao valor a livrança o montante dos juros contados à taxa anual nominal, desde a data do vencimento da dívida até à data do vencimento da livrança, e esta vencerá juros à taxa legal.
5. A execução da livrança a que se refere a presente cláusula, no caso de traduzir uma novação parcial das responsabilidades emergentes do presente contrato para a PARTE DEVEDORA, não extingue as responsabilidades emergentes do presente contrato para qualquer dos contraente.
6. O SEGUNDO e a TERCEIRA contraentes declaram expressamente acordar na prestação de aval na referida livrança nas condições e para os efeitos previstos nos presente contrato, sem prejuízo de novação parcial ou total da dívida, dando o seu consentimento ao reconhecimento da mesma nos termos da presente cláusula, durante todo o período de vigência do contrato, bem como nas eventuais renovações do mesmo.”
6. Do mesmo contrato consta a cláusula 7.1, com o seguinte teor:
“Em caso de mora no cumprimento de qualquer obrigação contratual e enquanto se mantiver, ou em caso de incumprimento contratual definitivo e resolvido o contrato, serão devidos, pela parte devedora, juros moratórios, mediante aplicação de uma sobretaxa anual máxima nos termos legais em vigor, nesta data fixada em 3% (três por cento), a qual acrescerá à taxa de juros remuneratórios aplicável ao presente contrato, calculadas sobre o montante em dívida desde a data da mora ou do incumprimento definitivo”.
7. A subscritora e os avalistas da livrança foram contatados, antes do seu preenchimento, para lhes comunicar o vencimento antecipado da dívida e para os interpelar para o respectivo pagamento.
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De Direito
Da livrança em branco e da imputada violação do pacto de preenchimento
Não está em causa, à luz dos factos elencados, que estamos perante um título, no caso uma livrança, em branco, que pode definir-se como “aquele que, não contendo embora algum ou alguns dos elementos essenciais à sua formação completa, é acompanhado de autorização ou acordo de preenchimento, podendo ser completado”.[2] Tal livrança foi subscrita pela sociedade executada, representada pelo seu sócio gerente, o aqui embargante marido, e avalizada por ambos os embargantes[3].
Agora instados a honrar as obrigações assumidas por via dos avales prestados, invocaram os embargantes a exceção da violação do pacto de preenchimento o qual, sustentam, obrigava a dar prévio – em relação ao preenchimento da livrança – conhecimento aos avalistas do incumprimento da subscritora e a interpelá-los para cumprir, tendo acrescentado nas alegações de recurso agora apresentadas que apenas o incumprimento definitivo habilitava a exequente a exigir os montantes em dívida, como resulta da cláusula 7ª, indevidamente desconsiderada pela 1ª instância, sendo ainda nula a cláusula 10ª, por aplicação ao caso do artigo 19.º, alínea j), do DL n.º 446/85, de 25 Outubro.
Vejamos se tal argumentação é de atender.
É indiscutido que à obrigação inicial assumida pela sociedade subscritora se aditou a obrigação de garantia constituída pelos avales prestados, mediante a qual, para o que aqui releva, o agora apelante (e também a executada …) garantiu o pagamento da livrança por parte daquela (cfr. artigos 30.º e 31.º da LULL, aplicável ex vi do disposto no artigo 77.º).
Decorre ainda da lei que a responsabilidade do avalista é decalcada sobre a do seu afiançado (artigo 32.º, § 1º), não se tratando todavia de uma responsabilidade subsidiária mas antes solidária (artigo 47.º, § 1º), sendo a obrigação nascida do aval materialmente autónoma, posto que se mantém ainda que a obrigação avalizada seja inválida, salvo se a invalidade resultar de um vício de forma (artigo 32.º, § 2º).
Fazendo apelo aos princípios da abstração, autonomia e literalidade,[4] vem sendo comummente defendido que à obrigação cartular assumida pelo avalista são indiferentes as vicissitudes da relação fundamental entre o avalizado e o credor que mantém o título em seu poder e o apresenta posteriormente à execução, que poderá assim exigir daquele um pagamento que não conseguiria obter do principal obrigado, a quem não está vedada a invocação das exceções fundadas na relação causal. Sendo este entendimento, ao que cremos, correto, diferentemente se passam as coisas quando o avalista é chamado a intervir numa relação extra cartular, na qual se convencione, expressamente ou por remissão, a oponibilidade de certos meios de defesa pessoais do avalizado, questão que com acuidade se coloca quando estamos perante a emissão de títulos em branco.
Dispondo para os casos de preenchimento abusivo, estabelece o artigo 10.º (aplicável às livranças por força do disposto no sempre convocado artigo 77.º, no caso o seu § 2º) que “Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave”.
Do transcrito preceito resulta, pois, que o subscritor da livrança em branco pode ver-se confrontado com a inserção no título de um conteúdo não coincidente com a vontade que exprimiu, saindo o seu interesse sacrificado no confronto com o do portador que confiou no teor do título preenchido, o qual valerá nos precisos termos em foi completado. Todavia, assim não sucederá se a conduta do credor-portador for suscetível de um juízo de censura ético-jurídico – por ter adquirido a letra ou livrança de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave – o que ocorre sem dúvida quando, tendo sido parte na convenção extra cartular de preenchimento, venha a completar o título em discrepância com a vontade manifestada pelo subscritor em branco. Aqui, porque nos movemos no domínio das relações imediatas, poderá o avalista, se (e porque) participante no pacto de preenchimento, invocar perante o credor/portador que neste interveio, a exceção do preenchimento abusivo. Esta exceção consiste na invocação de que a livrança foi assinada e entregue em branco e completada de modo diferente do ajustado – porque não se verificou incumprimento, porque o montante inscrito é superior ao devido ou outras exceções que ao afiançado fosse lícito opor – ónus de alegação e prova que, em todo o caso, recai inequivocamente sobre o avalista nos termos dos artigos 342.º, n.º 2 e 378.º do Código Civil.[5] E assim é porque, na inspirada formulação do acórdão do STJ de 25/02/2017 (processo n.º 9197/13.9 YYLSB-A.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt “O regular preenchimento, em obediência ao pacto, é o quid que confere força executiva ao título, mormente, quanto aos requisitos de certeza, liquidez e exigibilidade”.
De volta ao caso dos autos.
Já se disse que a livrança aqui em causa, conforme resultou da factualidade assente, é uma livrança em branco, tendo as partes integrado no contrato dito de plafond que constitui a relação subjacente a necessária convenção de preenchimento, nos termos da qual ficou a exequente expressamente autorizada a substituir, parcial ou totalmente, a obrigação de pagamento emergente do contrato celebrado por uma – nova – obrigação cambiária, resultante do preenchimento da livrança em branco que no ato lhe foi entregue, subscrita pela mutuária e avalizada pelos aqui embargantes.
Faz-se notar que o apelante em parte alguma alegou que a sociedade mutuária não tenha entrado em incumprimento, que o montante inscrito na livrança não se encontre em dívida, ou que a mesma não foi preenchida, no que ao valor do capital e juros diz respeito, em conformidade com o estabelecido no pacto de preenchimento, antes insistindo que desta convenção resultava a exigência dos avalistas serem previamente informados do incumprimento por banda da subscritora e interpelados para cumprir, tendo invocado ainda, agora em sede de recurso, que a cláusula 10ª terá de ser interpretada conjuntamente com a cláusula 7ª, a impor o entendimento de que apenas o incumprimento definitivo e consequente resolução do contrato tornariam a dívida exigível.
Assente que aos Tribunais da Relação está vedado, com exceção das questões de conhecimento oficioso, pronunciar-se sobre outras que não tenham sido suscitadas na 1ª instância, estamos perante uma questão nova, enquanto tal não abrangida pelo objeto do recurso. Em todo o caso, não poderá deixar de se referir que basta ler a cláusula 7ª em questão para concluir que da utilização da disjuntiva ou resulta claro que a simples mora tornava a divida exigível. Mora que, reitera-se, em parte alguma os embargantes ousaram afirmar que não se verificou.
O apelante invoca, também inovadoramente, a nulidade da cláusula 10ª nos termos da alínea j) do artigo 19.º do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro, por colocar “na discricionariedade da Recorrida, o estabelecimento de encargos desproporcionais ao Recorrente em seu benefício”.
Ainda que se trate uma vez mais de questão não suscitada em 1ª instância, estando em causa uma nulidade, que é de conhecimento oficioso (cfr. artigo 12.º do DL 446/85, de 25 Outubro), tendo tido a apelada a oportunidade de nas contra alegações exercer o necessário contraditório, sobre ela nos pronunciaremos.
Nos termos da disposição legal invocada pelos embargantes “São proibidas, consoante o quadro negocial padronizado, designadamente, as cláusulas contratuais gerais que:
j) Estabeleçam, a favor de quem as predisponha, comissões remuneratórias excessivas ou que sejam discriminatórias em função da nacionalidade ou do local do estabelecimento da contraparte, sem prejuízo da legislação especificamente aplicável no âmbito dos serviços financeiros”.
Analisada a referida cláusula 10ª, designadamente o seu n.º 2, não se vê que integre a previsão da referida alínea ou de qualquer outra do mencionado preceito, posto que nela não se prevêem comissões remuneratórias de qualquer espécie, não tendo os juros convencionados essa natureza.
Por outro lado, e pese embora as partes tenham deixado na disponibilidade da instituição portadora da livrança a escolha do momento do seu preenchimento, não deixaram de prever que tal dependerá, como resulta da citada cláusula 7ª, da entrada da mutuária em mora ou do incumprimento definitivo do contrato, tendo o montante a inscrever na livrança de corresponder “ao valor da dívida exigível à PARTE DEVEDORA, correspondente a capital, juros vencidos e demais encargos apurados na data do vencimento da livrança”, resultando delimitado e, assim, determinável, o montante a inscrever no título.
De outro lado, mesmo a considerar que a citada cláusula, quando confere à portadora, verificado o facto que determina a exigibilidade da obrigação subjacente, a faculdade de escolher o momento do seu preenchimento, seria contrária à boa fé, certo é que os embargantes não invocaram qualquer discrepância relevante entre a data da verificação daquele facto, constitutivo do dever de preenchimento da livrança em branco, e aquela que no título exequendo foi aposta como sendo a do seu vencimento, não resultando perturbada a validade do título. Em sentido idêntico, considerou o STJ (acórdão de 17/6/2025, no processo n.º 2430/22.8TbVLG-B.P2.S1, acessível em www.dgsi.pt) que “II. Não estando, em concreto, prevista no pacto de preenchimento a data do vencimento da livrança em branco e tendo, pelo contrário, os avalistas conferido ao portador da livrança ampla liberdade para o preenchimento desta, não tem, em princípio, aquela data de corresponder à data do incumprimento ou da resolução do contrato que deu origem à relação subjacente”.
Em suma, e conforme resulta do que se expôs, nem a cláusula em causa se afigure nula nem, no caso concreto, existe qualquer indício de atuação em abuso de direito por banda da embargada.
No que respeita à invocada necessidade de interpelação prévia dos avalistas, vem sendo entendido de forma consistente, designadamente pelo STJ – entendimento de que os apelantes, de resto, parecem não dissentir –, que, ressalvados os casos em que o pacto de preenchimento preveja e exija a comunicação do facto legitimador do preenchimento ao avalista, dando conhecimento do montante em dívida e interpelando-o para pagar, a ausência de tal comunicação/interpelação não determina que a obrigação seja inexigível e assim abusivo o preenchimento do título, uma vez que a lei cambiária em parte alguma formula tal exigência (cfr. os acórdãos do STJ de 28/09/2017, proc. n.º 779/14.2TBEVR-B.E1.S, também citado na sentença recorrida; de 24/10/2019, proc. 295/14.2TBSCR-A.L1.S1; e de 17/06/2025, já citado, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Faz-se notar, mais uma vez, que não está em causa a interpelação efetuada pela exequente aos obrigados para pagarem o montante em dívida e que teve lugar antes da instauração da execução, a qual alegou ter sido feita mediante o envio das cartas cuja cópia fez juntar com o requerimento inicial. Em todo o caso, cabe referir que tal interpelação, pese embora esteja em causa correio simples, tendo as cartas sido enviadas para a morada dos executados constante do contrato, tudo em conformidade com o que fora convencionado (cfr. o teor da cláusula 15ª, que os embargantes parecem ter olvidado) tem-se por eficaz, nos termos do artigo 224.º, n.ºs 1 e 2, do CC.
Quanto à comunicação do incumprimento e interpelação do avalista para cumprir prévias ao preenchimento do título, que os recorrentes apontam como requisito da exigibilidade da dívida por constar do pacto de preenchimento, a verdade é que tal exigência, como ficou evidenciado, não consta da convenção subscrita pelas partes, a determinar a improcedência da invocada exceção do preenchimento abusivo.
Em suma, ainda que não tivesse existido interpelação prévia – e o contrário resultou demonstrado, estando assente nos autos que “A subscritora e os avalistas da livrança foram contatados, antes do seu preenchimento, para lhes comunicar o vencimento antecipado da dívida e para os interpelar para o respectivo pagamento” (cfr. o teor do ponto 7) – a consequência seria tão-somente constituírem-se os recorrentes em mora apenas depois da citação, nos termos dos artigos 777.º, n.º 1 e 805.º, n.º 1, do CC (neste sentido, os citados acórdãos do STJ de 28/09/2017 e de 24/10/2019). Não é aqui o caso, uma vez que interpelação, ainda que informal, ocorreu, sendo certo que a lei não formula qualquer exigência de forma.
Cabe ainda assinalar não ser rigorosa a afirmação feita pelos apelantes, acusando o Tribunal de “fundamentar a decisão, aplicando uma norma legal revogada há mais de duas décadas, designadamente o artigo 804.º, n.º 3, do Código de Processo Civil anterior à reforma de 2013, dada pelo Decreto-lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro”. Com efeito, o que a sra. juíza fez consignar foi coisa diversa: reconhecendo embora que inexiste hoje disposição legal de conteúdo idêntico ao citado n.º 3 do artigo 804.º, sustentou, fundamentadamente, que a solução há-de ser a mesma no caso das execuções que seguem a forma ordinária, valendo a citação como interpelação. Tratando-se, alem do mais, de um argumento lateral, não tendo sido determinante para a decisão, são irrelevantes as considerações constantes das conclusões BB) a DD).
Finalmente, convidam-se os embargantes a atentar no teor integral do acórdão do TRL datado de 05/12/2022 que invocam (processo n.º 1516/14.7TBMTJ-A.L2-2P), pois aí se diz, aliás na esteira dos acórdãos do STJ de 28/09/2017 já citado e de 30/04/2019 (processo n.º 1959/16.1T8MAI-A.P1.S1), precisamente o que se deixou já dito: a falta de comunicação aos avalistas do facto que legitima o preenchimento da livrança em branco, do montante em dívida e data do vencimento não implica, conforme se afirma neste último aresto “(…) que as livranças não podiam ter sido preenchidas, nem significa que o seu preenchimento foi abusivo e que as livranças são inexequíveis quanto ao avalista, nem implica a extinção da execução que foi instaurada contra o avalista; tal tem simplesmente como consequência que a obrigação que o avalista assumiu se vence e se torna exigível apenas com a citação para a execução fundada nas livranças, que foram preenchidas de acordo com os respetivos pactos de preenchimento”.
Recorda-se, porém, que não a solução expressa nos arestos não tem aplicação direta no caso dos autos, uma vez que a exequente/embargada logrou provar ter interpelado todos os obrigados antes do preenchimento do título.
Improcedentes os fundamentos do recurso, impõe-se confirmar a decisão recorrida.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas a cargos dos apelantes, que decaíram (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCiv.).
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Sumário: (…)
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Évora, 18 de Setembro de 2025
Maria Domingas Simões
Cristina Dá Mesquita
Mário João Canelas Brás




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[1] Tal interpretação mitigada do preceito ditou ainda o AUJ 12/2023 in DR n.º 220/2023, Série I, de 2023-11-14 que, incidindo sobre a alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º, veio uniformizar a jurisprudência no sentido de que nos termos desta alínea “o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”.
[2] Cassiano dos Santos, RLJ n.º 3980, pág. 336.
[3] Corresponde a prática absolutamente generalizada, sobretudo no domínio das relações contratuais duradouras, a qual permite aos credores societários obterem, por esta via, o reforço do seu crédito, contornando o benefício da responsabilidade limitada de que gozam os sócios nas sociedades por quotas quando sejam igualmente gerentes, conforme sucede via de regra, sendo certo que, por outro lado, a vinculação destes servirá, assim se pretende, de estímulo à sua atuação diligente (assim, Carolina Cunha, RLJ ano 3982, pág. 64).
[4] Ou apoiando-se tão-somente no princípio “res alios acta”, do qual decorreria, sem mais, que não tendo o avalista tomado parte na relação extra cartular que liga o avalizado ao credor portador do título vedada lhe está a invocação de exceções emergentes desse vínculo contratual, ao qual é estranho (cfr. Carolina Cunha, RLJ citada, pág. 68).
[5] Neste preciso sentido o aresto da relação de Guimarães de 11/09/2012, proferido no processo n.º 1642/10.1TBGMR-B.G1, acessível em www.dgsi.pt.