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PARQUE DE ESTACIONAMENTO
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Sumário
1. A relação contratual que se estabelece entre a entidade a quem o Município atribuiu, com sujeição ao Regulamento Municipal de Estacionamento Tarifado pertinente, a gestão, exploração, manutenção e fiscalização de uma zona de estacionamento público de duração limitada, e o respetivo utente do serviço, é conformada pelo contrato público, celebrado entre aqueles dois primeiros e que se formou de acordo com o regime jurídico do Código dos Contratos Públicos. 2. Nessa medida, a ação pela qual a referida entidade demanda o utente do serviço de estacionamento, pretendendo obter a respetiva condenação no pagamento da contrapartida pela utilização desse serviço, insere-se na previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, sendo da competência material destes Tribunais. 3. O serviço de estacionamento público tarifado em referência não se inclui no elenco dos serviços públicos essenciais do artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, pelo que não está excluído do âmbito da competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais por via do disposto na alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Processo n.º 23196/24.1YPRT.E1 Forma processual - ação especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias (valor inferior à alçada da 1ª instância) Tribunal Recorrido – Juízo Local Cível de Setúbal, Juiz 1 Recorrente(s) – (…), S.A. Recorrido(a)(s) – (…)
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Acordam os Juízes Desembargadores da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
Relatório
I. Identificação das partes e descrição do objeto da ação.
(…), S.A., apresentou junto do Balcão Nacional, requerimento de injunção, pelo qual peticionou a notificação de (…) para lhe pagar a quantia total de 1.733,33 euros, sendo 1.570,75 euros de capital e o remanescente de juros de mora e taxa de justiça liquidada.
Alegou, em síntese, que no âmbito da exploração e prestação de serviços de parqueamento automóvel, que lhe está confiada, tem colocados e em funcionamento, na cidade de Setúbal, equipamentos para pagamento dos preços desse estacionamento, com os valores devidos e condições afixados, tendo a Requerida utilizado, com o seu veículo automóvel, esses estacionamentos, do que resultou um valor em dívida de 1.570,75 euros que a mesma não pagou.
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Notificada desse requerimento, a Requerida deduziu oposição, afirmando não reconhecer a dívida reclamada, tendo excecionado a prescrição parcial do direito da Requerente e declarado que não era a condutora do veículo nos dias versados no requerimento injuntivo.
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Distribuído o requerimento e a oposição ao Juízo Local Cível, para tramitação como ação especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias, por despacho de 12 de fevereiro de 2025 foi conferida à Requerente a oportunidade de ser pronunciar sobre a competência do tribunal recorrido no confronto com o disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, o que fez, sustentando a improcedência da exceção.
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Veio a ser proferido, em 17 de março de 2025, despacho em cujo trecho decisório se exarou:
“Nestes termos, sendo a matéria em apreço da competência do Tribunal Administrativo e Fiscal, na observância do disposto no artigo 4.º, alínea e), do E.T.A.F., desde já declaro a Instância Local Cível de Setúbal incompetente em razão da matéria, o que determina a incompetência absoluta do Tribunal, nos termos citada disposições legais, e implica a absolvição da Requerida da instância – artigos 99.º/1 e 278.º/1/a), do mesmo diploma legal. Face ao exposto, julgo verificada a excepção de incompetência deste Tribunal em razão da matéria e em consequência absolvo a requerida da instância. Custas do incidente pela Requerente, nos termos do artigo 527.º/1, do Código de Processo Civil, no valor de 0,5 UC – artigo 7.º, n.º 4 e Tabela II do R.C.P.”
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II. Objeto do recurso.
Não se conformando com essa decisão, a Requerente interpôs o presente recurso, culminando as suas alegações com as conclusões que se transcrevem e que reproduzem, praticamente na sua integralidade, a alegação: “(…) b) No âmbito da sua atividade, a Autora celebrou contrato com a Câmara Municipal de Setúbal, através do qual lhe foi cedida a exploração particular de zonas de estacionamento automóvel na cidade sem cedência de quaisquer poderes de autoridade, ou de disciplina. c) No seguimento deste contrato, a (…) adquiriu e instalou em vários locais da cidade, dispendiosas máquinas para pagamento dos tempos de estacionamento automóvel, para as quais desenvolveu o necessário software informático. d) Enquanto utilizadora do veículo automóvel (…), a Ré. estacionou o mesmo em diversos Parques de Estacionamento que a Autora explora comercialmente na cidade, sem proceder ao pagamento do tempo de utilização, num total em dívida de € 1.570,75 que a Ré recusa pagar. e) Para cobrança deste valor, a Autora viu-se obrigada a recorrer aos tribunais comuns, peticionando o seu pagamento, pois a sua nota de cobrança está desprovida de força executiva, não podendo, portanto, dar lugar a um imediato processo de execução, seja administrativo ou fiscal. f) A natureza jurídica da quantia paga pelos utentes em contrapartida da prestação do serviço de parqueamento é a de um preço e não a de uma taxa. g) Sendo as Taxas verdadeiros tributos (artigo 3.º, n.º 2, da LGT), que visam a satisfação das necessidades financeiras do Estado e demais entidades públicas e sendo a receita da utilização dos parqueamentos, propriedade da (…), tal contrapartida escapa por definição ao conceito de taxa. h) As ações intentadas pela Autora contra os proprietários de veículos automóveis, que não tenham procedido ao pagamento dos montantes devidos, não se inserem em prorrogativas de autoridade pública munida de ius imperii, mas sim no âmbito da gestão enquanto entidade privada. i) A Recorrente ao atuar perante terceiros, não se encontra munida de poderes de entidade pública, agindo como mera entidade privada, pelo que, contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo, o contrato estabelecido entre si e os automobilistas, relativo à utilização dos parqueamentos explorados, é de natureza privada, cuja violação é suscetível de fazer o utilizador incorrer em responsabilidade civil contratual por incumprimento. j) A doutrina qualifica este tipo de contrato como uma relação contratual de facto – em virtude de não nascer de negócio jurídico – assente em puras atuações de facto, em que se verifica uma subordinação da situação criada pelo comportamento do utente ao regime jurídico das relações contratuais, com a eventual necessidade de algumas adaptações. k) O estacionamento remunerado, apresenta-se como uma afloração clara da relevância das relações contratuais de facto e a relação entre a concessionária e a utente resulta de um comportamento típico de confiança. l) Comportamento de confiança, que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, e sim uma proposta tácita temporária de um espaço de estacionamento, mediante retribuição. m) Proposta tácita temporária da Autora, que se transforma num verdadeiro contrato obrigacional, mediante aceitação pura e simples do automobilista, o qual, ao estacionar o seu automóvel nos parques explorados pela Autora, concorda com os termos de utilização propostos e amplamente publicitados no local. (…) n) O conceito de relação jurídica administrativa pode ser tomado em diversos sentidos, seja numa aceção subjetiva, objetiva, ou funcional, sendo certo que nenhuma das acessões permite englobar a presente situação. (…) o) A (…), SA não efetua, tão pouco, atos de fiscalização, não tendo poderes para autuar coimas ou multas por incumprimento das regras estradais, tarefa que está exclusivamente atribuída às autoridades públicas de fiscalização do espaço rodoviário da cidade. p) Nos termos do disposto no artigo 2.º do DL 146/2014, de 09 de outubro, a atividade de fiscalização incide exclusivamente na aplicação das contraordenações previstas no artigo 71.º do Código da Estrada, o qual estabelece as coimas aplicáveis às infrações rodoviárias ali identificadas. q) Os montantes cobrados pela (…), SA, também não consubstancia a aplicação de quaisquer coimas, nem a empresa processa quaisquer infrações praticadas pelos utentes dos parqueamentos. r) Quaisquer infrações ou coimas que devam ser aplicadas aos automobilistas prevaricadores de regras estradais, ficam a cargo da Autarquia, sem qualquer intervenção ou conexão com a atividade da empresa concessionária. s) A (…), ao contrário o que vem referido na douta sentença, nunca atuou nem quis atuar, em substituição da autarquia, munida de poderes públicos concessionados. t) Entender que os tribunais competentes são os administrativos e de entre estes os fiscais, sendo inconstitucional, corresponde a esvaziar de conteúdo e utilidade o Contrato de Concessão de Exploração dos Parqueamentos, por retirar à concessionária o poder de reclamar judicialmente os seus créditos. u) Institucionalizar este entendimento, fomenta o incumprimento das obrigações dos automobilistas, que cientes da impossibilidade de cobrança coerciva dos valores devidos pelo estacionamento dos seus veículos, deixam de pagar deliberadamente, em claro incentivo ao incumprimento, em direta violação do direito constitucional de acesso à tutela jurisdicional efetiva, previsto e defendido pelo artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. v) Não estando em causa a natureza pública do contrato celebrado entre a Câmara Municipal e a (…), SA, não pode, contudo, este primeiro contrato, contagiar ou ser equiparado, aos posteriores contratos tacitamente celebrados entre a (…) e os utentes, pois tais contratos têm natureza privada, até só pela forma como os seus intervenientes atuam. w) Refira-se finalmente que, ainda que se entenda estarmos perante a prestação de serviços de interesse público, o que apenas se concebe para mero efeito de raciocínio, as competências dos tribunais administrativos e fiscais estão hoje definidas no artigo 4.º do ETAF (Lei 13/2002, de 19 de fevereiro, aplicável nestes autos com a redação introduzida pelo DL 214-G/2015, de 2 de outubro que alterou as alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF e posteriormente pela Lei 114/2019, de 12 de setembro, que introduziu a alínea e) ao n.º 4 do artigo 4.º do ETAF). x) Da alteração introduzida pelo DL 214-G/2015, resultou que a matéria que antes se encontrava na alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, passou para a alínea e) do mesmo número, mas com conteúdo muito diferente, que não alude às circunstâncias acima referidas, que antes colocavam situações como a dos autos na esfera de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais. y) Sendo certo que o contrato de utilização temporária de espaço público para estacionamento em causa nos autos, celebrado entre a empresa privada, ora apelante, e a utilizadora privada, ora apelada, não é um contrato administrativo, não é um contrato celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública, não é celebrado por pessoa coletiva de direito público, e não é celebrado por qualquer entidade adjudicante. z) Da alteração introduzida pela Lei 114/2019, por sua vez, resulta que nos termos da alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º, “estão… excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”. aa) Da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 167/XIII-4ª, que esteve na origem da Lei 114/2019, consta: “A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. bb) Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.” cc) O serviço de estacionamento não é um dos serviços elencados no artigo 1.º, n.º 2, da Lei 23/96, mas, tal como ocorre nos serviços públicos essenciais, a relação entre o prestador do serviço e o utente é uma relação de direito privado. dd) Vejam-se por tudo, o Douto Acórdão da Veneranda Relação de Lisboa de 18.12.2024, proferido no âmbito do Processo n.º 16685/24.0YIPRT, da 8ª Secção. ee) E a Douta Decisão Singular da Veneranda Relação de Lisboa de 07.02.2025, proferida no âmbito do Processo n.º 118028/34.7YIPRT, da 2ª Secção.
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A Recorrida não apresentou contra-alegações.
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III. Questão a solucionar
A questão a solucionar neste acórdão é única e circunscreve-se a saber se o objeto da ação integra a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais ou, não se incluindo na especificidade dessa jurisdição, deve ter-se por atribuído aos Tribunais Judiciais, que detêm a competência residual do sistema judiciário.
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Fundamentação
I. Factos provados
Além dos factos que resultam do relatório (na parte relativa à identificação do objeto da ação, para a qual se remete) resulta demonstrado documentalmente o seguinte facto com interesse para a decisão do recurso:
- A Requerente, na qualidade de “Segundo Outorgante” celebrou com o Município de Setúbal, intitulando “Primeiro Outorgante”, em 28 de novembro de 2018, o acordo escrito a que foi dado o título “Contrato de Adjudicação de «Prestação de serviços de gestão, manutenção e fiscalização da zona de estacionamento de duração limitada na cidade de Setúbal»”, junto aos autos, sob a forma de cópia, com o requerimento de 24 de fevereiro de 2025, do qual que se fez, nomeadamente, constar o seguinte:
“Pela representante do Primeiro Outorgante na qualidade invocada foi dito: Que por Despacho de 30 de agosto de dois mil e dezoito, a Senhora Presidente da Câmara (…) no âmbito das suas competências próprias e nos termos da alínea g), do n.º 1 e alínea e) e f), do n.º 2 do artigo 35.º do Regime Jurídico das Autarquias Locais (…) decidiu a abertura do procedimento através de Concurso Público, de acordo com a alínea c) do número 1 do artigo 16.º, conjugado com a alínea b) do número 1 do abrigo do artigo 20.º e artigos 130.º e seguintes, todos do Código dos Contratos Públicos, doravante CCP (…) Que por despacho de trinta e um de outubro de dois mil e dezoito, a sra. Presidente da Câmara (…) aprovou a Minuta do Contrato e adjudicou ao Segundo Outorgante, a Prestação de Serviços de Gestão, Manutenção e Fiscalização da Zona de Estacionamento de Duração Limitada na Cidade de Setúbal (…)
CLÁUSULA PRIMEIRA OBJETO
Um: Que o objeto do presente Contrato consiste na contratação de serviços de gestão, manutenção e assistência técnica e fiscalização das áreas de estacionamento tarifado à superfície, por parcómetros instalados na via pública (…). (…)
CLÁUSULA SEGUNDA DISPOSIÇÕES POR QUE SE REGULA O CONTRATO
Que o presente Contrato é regulado pela legislação portuguesa e comunitária e pelas disposições constantes do CCP.
(…) CLÁUSULA SEXTA OBRIGAÇÕES DO SEGUNDO OUTORGANTE (…)
a) Proceder e garantir a fiscalização da ZEDL durante os dias e horários tarifados com a afetação de pelo menos 3 recursos humanos, conforme o definido no Regulamento Municipal de Estacionamento Público Tarifado e de Duração Limitada no Concelho de Setúbal, atualmente em vigor (…). (…)
n) Efetuar a transferência dos valores mensais devidos à Câmara Municipal, até ao dia 10 (dez) do mês seguinte, pelo valor da receita apurada deduzida do valor da prestação mensal. (…)”.
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II. Aplicação do Direito.
No cerne deste recurso está a divergência de entendimentos entre o Tribunal recorrido e a Autora da ação, aqui nas vestes de Recorrente, sobre o tribunal materialmente competente para preparar e julgar o litígio, na alternativa entre o Tribunal Administrativo e Fiscal e o Tribunal Judicial, dito comum.
Considerou o Tribunal recorrido que a Recorrente “exerce funções de interesse público que o município decidiu concessionar, pelo que a cobrança de créditos apenas é possível pelos poderes de autoridade em que o mesmo está investido”, concluindo que o “contrato subjacente à dívida peticionada insere-se no perímetro do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea e), do ETAF”.
Entende a Recorrente, divergindo, que o Tribunal Judicial é o materialmente competente, porquanto, em síntese, a relação que ela estabelece com o utente dos serviços de estacionamento é uma relação de direito privado, subsumível às denominadas “relações contratuais de facto”; ela, enquanto gestora do serviço, não atua com poderes de autoridade, não sendo o preço cobrado uma “taxa” em sentido próprio e a relação com os referidos utentes é uma típica relação de consumo excluída da competência material dos Tribunais Administrativos.
Preambularmente e apesar de serem notas muito repetidas (mas inescapáveis), se adiantará que a competência é um pressuposto processual relativo ao Tribunal, que se define como “a fração do poder jurisdicional atribuída a esse tribunal” (Manuel de Processo Civil, Antunes Varela, J. Miguel Beleza e Sampaio e Nora, 2ª Edição, Coimbra Editora, pág. 195).
Quando encarado o pressuposto processual sob o critério da matéria, como é o caso, a lei comete ao tribunal judicial a competência residual, por lhe confiar todas as causas não atribuídas a qualquer outra jurisdição, como resulta expresso do artigo 64.º do Código de Processo Civil.
Assim, na medida em que o Tribunal Judicial tem a competência que não esteja, por lei, especificamente atribuída a outra ordem jurisdicional, apenas se alcançará o juízo de incompetência em razão da matéria se for afirmativa a integração do objeto da ação na previsão de uma das previsões normativas de atribuição de competência material à jurisdição especial ou não comum.
Para o efeito, considera-se o objeto da ação, circunscrito pelo respetivo pedido e pela causa de pedir que o Autor apresenta para substanciar a sua pretensão e atende-se ao momento em que a ação foi proposta (quanto à primeira afirmação, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, volume 1º, 4ª Edição, Almedina, pág. 162; relativamente à segunda, o artigo 38.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto).
Nesta ação a Recorrente pede a condenação da Recorrida no pagamento da contrapartida a que se acha com direito, em virtude de enquanto entidade gestora das zonas de estacionamento público automóvel da cidade de Setúbal, lhe ter disponibilizado espaço para estacionamento do seu veículo, que ela utilizou, nas condições e “preços” que estão afixados, não tendo pagado a respetiva contrapartida.
A ação foi proposta em 15 de fevereiro de 2024, data em que deu entrada o requerimento de injunção.
Inicia-se aqui o périplo pela competência material dos Tribunais Administrativos, a que atrás se fez referência.
A Constituição da República Portuguesa, no respetivo artigo 212.º, n.º 3, elege como critério determinante da competência material dos Tribunais Administrativos, o conceito de relação jurídica administrativa, estatuindo que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
O conceito de relação jurídica administrativa é problemático, podendo ser entendido em diversos sentidos (subjetivo, objetivo ou funcional), advogando-se mesmo a necessidade de uma intervenção legislativa para o aclarar (no sentido exposto e explicando os vários critérios, José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 20.ª Edição, Almedina, pág. 52).
Assim, sustenta-se que “(…) na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de «relação jurídica administrativa» no sentido estrito tradicional de «relação jurídica de direito administrativo», com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração – sobretudo na medida em que se considere, como defendemos, que esta definição substancial se refere apenas ao âmbito nuclear ou de princípio da jurisdição administrativa, não excluindo soluções expressas justificadas de alargamento ou de compressão da respetiva competência por parte do legislador” (A. e Ob. Cit., pág. 53).
No conceito de relação jurídica administrativa incluem-se as denominadas relações externas ou interpessoais, que incluem “as relações entre sujeitos privados que actuem no exercício de poderes administrativos (sejam entidades públicas em forma privada ou verdadeiros privados) e os particulares” (Idem, pág. 63).
O mesmo entendimento se extrai do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28 de outubro de 2009, nele se acolhendo, sob o conceito de relação jurídico administrativa externa ou interpessoal, entre outras, “as relações entre entes que actuem em substituição de órgãos da Administração (no contexto do exercício privado de poderes públicos, por exemplo, os tradicionais concessionários, capitães de navios ou de aeronaves, federações de utilidade pública desportiva, a que se juntam hoje múltiplas entidades credenciadas para o exercício de funções de autoridade) e os particulares” (processo nº 0484/09, disponível em www.dgsi.pt).
Entendido o conceito de “relação jurídica administrativa” adotado pela Constituição da República Portuguesa, apenas como o núcleo da competência material da jurisdição administrativa, o respetivo desenvolvimento está plasmado no artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, na sua 16ª versão, dada pelo Decreto-Lei n.º 74-B/2023, de 28 de agosto, aqui aplicável e adiante referida salvo outra menção).
Interessam duas alíneas do n.º 1 do artigo 4.º – alíneas e) e o) – assim como o disposto na alínea e) do n.º 4 do mesmo artigo, posto que a Recorrente o traz à colação na sua motivação.
Transcreve-se o texto da lei:
“1- Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: (…) e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes. (…) o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores. (…) 4 – Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: (…) e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”.
A alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF acima transcrita foi a convocada pelo Tribunal recorrido para fundamentar a sua decisão de declaração de incompetência, pelo que merece especial atenção.
Segundo Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, sob a referida previsão acolhem-se “os contratos que, independentemente da sua designação e natureza, são celebrados pelas entidades adjudicantes a que se refere o CCP e cujo procedimento de formação está sujeito a um regime de direito público, esteja ele previsto no CCP ou resulte de legislação avulsa: esta categoria compreende os contratos administrativos previstos na alínea d) do n.º 6 do artigo 1.º do CCP, mas não se esgota nela, porque se estende a todos os contratos submetidos a regras pré-contratuais públicas, independentemente da natureza das prestações que eles possam ter por objeto” (Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5ª Edição, Almedina, pág. 29, sublinhado aditado ao original).
Sob a relação contratual que a Recorrente estabelece com os utentes do serviço de estacionamento público está inequivocamente um contrato cujo procedimento foi sujeito a um regime de direito público e que é o contrato de adjudicação da prestação de serviço, celebrado entre aquela como adjudicatária e o Município de Setúbal.
É o que resulta textualmente desse negócio jurídico, conforme se extrai dos considerandos nele apostos, acima transcritos.
Decorre do mesmo texto que foi atribuída à Recorrente pelo Município a “gestão, manutenção e assistência técnica e fiscalização das áreas de estacionamento”, que esse contrato é regido pelas disposições do Código dos Contratos Públicos e ainda que a prestação da Recorrente é conformada pelo Regulamento Municipal de Estacionamento Público Tarifado e de Duração Limitada no Concelho de Setúbal (cláusula primeira, n.º 1, cláusula segunda e cláusula sexta n.º 1, alíneas a) e c), do contrato).
O Regulamento Municipal que ali se refere é obviamente um instrumento jurídico de direito público, que contém, designadamente, a identificação e classificação das zonas de estacionamento, a definição das situações de estacionamento proibido e abusivo e, sobretudo, sob a designação de “taxas”, as contrapartidas a pagar pelos utentes do serviço (cfr. a versão desse Regulamento contante do Aviso n.º 10704/2016, publicada no DR, 2ª série de 26 de agosto, a última a que se teve acesso).
Qual a relação desse contrato de adjudicação da prestação de serviços, celebrado entre o Município de Setúbal e a Recorrente, por um lado, e a relação contratual desta com os utentes do serviço, por outro, sendo que é esta a que está sob o escopo desta ação?
A relação é, segundo se crê, de conformação jurídica, posto que os aspetos relevantes da segunda são determinados por aquele contrato e pelo Regulamento Municipal que dele faz parte.
Entre esses aspetos avulta, desde logo, a legitimidade da Recorrente (entendida na aceção civilística de posição relativa do sujeito face ao direito ou à obrigação, conforme exposto pelo Professor Carvalho Fernandes na Teoria Geral do Direito Civil, I, 6ª Edição, Universidade Católica Portuguesa, págs. 142 a 146) que não existe sem o contrato celebrado com o Município. Noutra formulação – a Recorrente só está investida no direito de crédito correspondente à obrigação de pagamento da taxa de utilização do estacionamento porquanto o Município lhe outorgou esse poder e dentro dos limites em que a mesma Autarquia concebeu.
Avulta, ainda, com especial interesse para o pedido da ação, a definição da contrapartida a pagar pelo utente do serviço, que não é feita pela Recorrente, nem resulta do funcionamento das regras de mercado, mas está fixada pelo Município, no referido Regulamento. Não releva neste particular saber se estamos perante uma taxa em sentido jurídico-fiscal próprio ou perante uma contrapartida de um serviço, equivalente a um “preço”. Determinante é, segundo se crê, aquele nível de conformação jurídica e a asserção de que essa relação não tem apoio na liberdade dos contratos do artigo 405.º do Código Civil, mas nas determinações do Município de Setúbal e no contrato público celebrado entre este e a Recorrente.
Não releva, também, a concreta qualificação da relação com os utentes (para a qual a Recorrente lança mão da “relação contratual de facto”, doutrina que o Professor Antunes Varela afirmava ser desnecessária face ao disposto nos artigos 234.º e 217.º do Código Civil e que atualmente poderá ter-se como superada com o uso do conceito de comportamento concludente e do instituto do abuso de direito, cfr. Das Obrigações em Geral, Vol. I, pág. 230 e Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, Direito das Obrigações, volume I, Gestlegal, pág. 249), já que não é por via dessa qualificação, mas pela disciplina jurídica atrás referida, que é atraída, para a instrução e decisão do processo, a jurisdição administrativa.
Em síntese, a relação contratual que está na causa de pedir desta ação e o pedido nela formulado devem ser apreciados à luz de um quadro jurídico que é dominado pelo contrato público celebrado entre a Recorrente e o Município, pelo que o objeto do processo se integra na previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF. Esse mesmo objeto, adiante-se, também recairia sob a cláusula residual de outras relações jurídicas administrativas, contida na alínea o) do mesmo preceito, pois que, como se disse, é dessa natureza a relação entre as entidades privadas que atuam junto dos privados em substituição da Administração, como é a Recorrente.
Aqui chegados, cabe indagar se o objeto da ação não estará, como sustenta a Recorrente, excluído da jurisdição administrativa por via da alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF, acima transcrita.
Nessa alínea é excluída a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais para “apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”.
O elenco de serviços públicos essenciais contém-se no n.º 2 do artigo 1.º da Lei 23/96, de 26 de julho e a prestação de serviços de estacionamento público não faz parte desse enunciado.
Conforme se fez ver no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de janeiro de 2025, na senda dos ensinamentos do Professor Engrácia Antunes, esse elenco deve ter-se como exaustivo, não sendo admissível a inclusão, no mesmo, de outros serviços, por via interpretativa (processo n.º 118584/24.0YIPRT.L1-6, disponível em www.dgsi.pt).
Segundo o referido Professor “o elenco legal reveste natureza taxativa: por elementares razões de segurança jurídica, não se pode aceitar que outros serviços inominados possam, «à la carte» e por mera via interpretativa, acrescer à lista” (Direito do Consumo, 2ª Edição, Almeida, pág. 476).
Nessa mesma medida, é de convir que a ação não se pode incluir na cláusula de exclusão da competência acima transcrita.
Conclui-se pelo exposto, em concordância com a decisão sob recurso, que a competência material para a preparação e julgamento da ação, não é do Tribunal Comum, mas do Tribunal Administrativo.
Essa conclusão não é, por forma alguma, inédita e, bem diversamente, mais não é do que um elemento num imenso “coro” de decisões jurisprudenciais de sentido equivalente (com flutuações apenas na integração do objeto da ação na alínea e) ou na alínea o) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF).
Sem preocupações de exaustividade, alinham-se os seguintes acórdãos (todos disponíveis no suporte acima referenciado):
- TRL 23-01-2025 (acima referido);
- TRP 11-03-2025 (processo n.º 69259/24.4YIPRT.P1);
- TRP 24-02-2025 (processo n.º 143394/23.8YIPRT.P1);
- TRP 26-05-2025 (processo n.º 139483/24.0YIPRT.P1);
- TRP 26-06-2025 (processo n.º 147514/24.7YIPRT.P1);
- TRP 08-05-2025 (processo n.º 78946/24.6YIPRT.P1);
- TRE 16-12-2024 (processo n.º 42536/24.7YIPRT.E1);
- TRL 04-02-2025 (processo n.º 118032/24.5YIPRT.L1-7);
- TRP 10-02-2025 (processo n.º 126592/24.4YIPRT.P1);
- TRE 30-01-2025 (processo n.º 42537/24.YIPRT.E1);
- TRL 10-04-2025 (processo n.º 143397/23.2YIPRT.L1-6);
- Tribunal de Conflitos 08-05-2025 (processo n.º 042536/24.7YIPRT.E1.S1).
A Recorrente sustenta que a denegação de competência do Tribunal Judicial constitui violação do direito à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, pois a priva de reclamar judicialmente o crédito.
Uma vez que a Recorrente não concretiza essa argumentação, não especificando como a atribuição da competência ao Tribunal Administrativo pode limitar ou coartar o seu direito à tutela jurisdicional, assume-se alguma dificuldade em desenvolver o argumento.
A garantia de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva foi sistematizada no Acórdão n.º 174/2020 do Tribunal Constitucional (disponível através do suporte acima referido), nos seguintes termos: “o direito de acesso aos tribunais implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange, nomeadamente: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas(veja-se, neste sentido, entre outros, os Acórdãos n.º 204/2015, 2.ª Secção, ponto 2.3; n.º 401/2017, da 3.ª Secção, ponto 14; n.º 675/2018, Plenário, ponto 6; n.º 687/2019, 1.ª Secção, ponto 13)”.
Para que a declaração de incompetência pudesse importar, no caso, a violação da garantia constitucional era mister concluir que o sistema jurídico não fornecia à Recorrente um meio processual para, na jurisdição administrativa, fazer reconhecer o seu crédito e obter a condenação da Recorrida, o que obviamente não poderia suceder, sob pena de grave incongruência, já é o mesmo sistema que impõe àquela o recurso à referida jurisdição (veja-se ainda o disposto no artigo 37.º, n.º 1, alínea l), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).
Finalizando, conclui-se, perante o exposto, que a decisão recorrida não merece censura, devendo ser mantida, desse modo se negando procedência ao recurso.
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III. Responsabilidade tributária
Decaindo a Recorrente, é a mesma responsável pelas respetivas custas, de acordo com o disposto no artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Sendo o termo “custas” polissémico, o mesmo significaria, no caso, custas de parte.
Sucede que não tendo havido resposta ao recurso por parte da Recorrida, essas custas inexistem nesta sede, sendo apenas arrecadada a taxa de justiça paga pela Recorrente com o seu impulso processual.
Nessa medida, não haverá lugar a condenação em custas.
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Decisão
Face ao acima exposto, acordam os Juízes que compõem a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, em julgar improcedente o recurso interposto na ação pela Autora (…), SA e manter a decisão de declaração de incompetência material recorrida.
Sem custas, por se mostrar paga a taxa de justiça correspondente ao impulso processual e não serem devidas custas de parte nesta sede.
Évora, 18 de setembro de 2025
Maria Emília Melo e Castro
Miguel Teixeira
Anabela Raimundo Fialho
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SUMÁRIO (elaborado nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil) (…)