INSTITUTO DE MEDICINA LEGAL
PERÍCIAS
ESTRANGEIRO
RESIDÊNCIA
Sumário

i) o Regulamento (UE) 2020/1783 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2020 visa regular os procedimentos a adotar e a operacionalidade das relações a estabelecer entre os tribunais e as autoridades em causa para obter a prova relevante em sede de processos judicias;
ii) porém, como desde logo se colhe do artigo 1.º nele exarado, o direito nacional de cada Estado-Membro é que determina se devem ser encetadas as diligências nele previstas;
iii) nos termos do regime jurídico das perícias médico-legais e forenses, a perícia médico-legal à pessoa da Autora deve ser obrigatoriamente realizada pelo INML ou por entidade por este designada ou contratada;
iv) ao que não obsta a circunstância de a Autora residir na Alemanha, já que as despesas de deslocação da Autora desde a Alemanha serão consideradas custas do processo.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Ré: (…), Seguros, SA
Recorrida / Autora: (…), residente na Alemanha

Trata-se de uma ação declarativa de condenação no âmbito da qual a Autora peticionou a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 162.607,00 (cento e sessenta e dois mil e seiscentos e sete euros), acrescida de juros de mora e do que vier a ser liquidado em sede de fase posterior.
O que tem fundamento no acidente de viação de que foi vítima, causado por veículo automóvel cuja responsabilidade civil se encontra garantida pela Ré.
A Autora requereu, para além do mais, a realização de perícia à sua pessoa pela entidade equivalente ao INML na Alemanha.
A Ré, que contestou a ação, sustentou que a perícia a realizar na Alemanha deve ser rejeitada porquanto, nos termos legais (lei n.º 45/04, de 19 de agosto), as perícias médico-legais são obrigatoriamente realizadas nas delegações e gabinetes do INML podendo, excecionalmente, ser realizadas por entidades terceiras contratadas ou indicadas pelo INML ou ainda, nos casos das comarcas não compreendidas na área de atuação das delegações ou gabinetes médico-legais em funcionamento, por médicos a contratar pelo INML. E, bem assim, porque a avaliação das incapacidades permanentes em direito civil está sujeita a metodologias e padrões específicos por referência exclusiva às directrizes consagradas no Anexo II do Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro, desconhecendo-se qual é a metodologia utilizada nas perícias médico-legais realizadas na Alemanha.

II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais documentados nos autos, foi proferida despacho com o seguinte teor:
«Admito liminarmente a realização de prova pericial a entidade equivalente ao IML na Alemanha, recorrendo-se aos instrumentos internacionais em matéria de recolha de prova, não colhendo a argumentação expandida pela Ré de desconhecimento dos procedimentos que serão seguidos naquele país. Notifique a parte contrária para que se pronuncie sobre o objeto proposto (artigo 476.º, n.º 1, parte final, do C.P.C.).»

Inconformada, a Ré apresentou-se a recorrer, pugnando pela declaração de nulidade do despacho recorrido, a substituir por outro que ordene a realização da perícia médica na pessoa da Autora no INML. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«1. Não se conformando com o teor do Despacho Saneador proferido pelo Tribunal a quo, na parte em que admite a realização de perícia médica à pessoa da Autora na Alemanha, vem a Recorrente, por via do presente recurso, sindicar tal decisão.
2. Efetivamente, tal despacho deverá ser considerado nulo por omissão da respetiva fundamentação de facto e de direito, nos termos do disposto nos artigos 154.º/1 e 615.º/1, alínea b), aplicável ex vi do artigo 613.º/3, todos do CPC e, bem assim, por violação do artigo 2.º/1, da Lei n.º 45/04, de 19 de agosto.
3. De facto, no despacho saneador de que se recorre, o Tribunal a quo limita-se a admitir a realização da perícia na Alemanha sem fundamentar de facto ou de direito tal decisão, pese embora a Recorrente tenha deduzido oposição àquela pretensão e esta viole de forma direta o disposto no artigo 2.º/1, da Lei n.º 45/04, de 19 de Agosto.
4. Assim, não está em causa uma deficiente, insuficiente ou errónea fundamentação mas sim uma absoluta inexistência de fundamentação de facto e de direito que justifique a decisão do Tribunal a quo, em sede do Despacho recorrido, pelo que esta deverá ser declarada nula, por falta absoluta da respetiva fundamentação, nos termos do preceituado nos artigos 154.º, 615.º/1, alínea b), aplicável ex vi do artigo 613.º/3, todos do Código de Processo Civil.
Sem prescindir,
5. O regime jurídico das perícias médico-legais e forenses encontra-se regulado pela Lei n.º 45/04, de 19 de agosto, da qual decorre do disposto no artigo 2.º/1, que: "as perícias médico-legais são realizadas obrigatoriamente, nas delegações e nos gabinetes médico-legais do Instituto Nacional de Medicina Legal.
6. Da análise da sobredita lei extrai-se que, obrigatoriamente, as perícias médico-legais são realizadas no Instituto Nacional de Medicina Legal, em território nacional, inexistindo qualquer normativo que permita a realização das aludidas perícias no estrangeiro.
7. No caso em apreço, não existe nos autos qualquer elemento que permita concluir ou meramente supor que estamos perante uma situação em que a perícia médica não pudesse ser efetuada no IML e mesmo que assim o fosse, sempre seria esse instituto a indicar outro organismo para a realização da perícia em território nacional.
8. Por conseguinte, a Recorrente considera que a decisão do tribunal a quo viola, de forma flagrante e sem qualquer fundamento de facto ou de direito que a sustente, a ratio legis do regime jurídico das perícias médico-legais e forenses em vigor no nosso ordenamento jurídico.
9. A decisão do Tribunal a quo põe em causa, por um lado, a celeridade processual considerando que ao realizar-se a sobredita perícia à Requerida na Alemanha, todos os documentos clínicos terão de ser traduzidos da língua alemã para a língua portuguesa, o que implicará o retardamento dos presentes autos e, por outro lado, viola também o princípio da descoberta da verdade material e da justa composição do litígio, atendendo a que a Recorrente desconhece por completo a metodologia utilizada na perícia a realizar naquele país, o que irá necessariamente inibir o exercício do direito ao contraditório na sua plenitude.
10. Atenta à fundamentação de facto e de direito supra mencionados, o Despacho do qual se recorre violou, assim, o disposto nos artigos 154.º/1 e 615.º/1, alínea b), aplicável ex vi do artigo 613.º/3, todos do CPC e, bem assim, o disposto no artigo 2.º da Lei n.º 45/04, de 19 de agosto, pelo que deverá ser revogado e, em consequência, substituído por outro que faça a correta aplicação do direito.»
A Recorrida apresentou contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, já que não enferma de nulidade e se adequa à situação residencial da Autora, sendo pertinente a realização da perícia na Alemanha com aplicação do Regulamento (CE) 1206/2001, referente à obtenção de prova em matéria civil e comercial.
Foi proferido despacho admitindo o recurso interposto, no âmbito do qual se exarou inexistir qualquer nulidade, sendo dispensável qualquer fundamentação adicional dado ter sido feita referência a instrumentos internacionais que, no espaço europeu, regulam a matéria relativa aos meios de recolha de prova.

Cumpre conhecer das seguintes questões:
i) da nulidade do despacho;
ii) da realização da perícia médico-legal pelo INML.

III – Fundamentos
A – Dados a considerar: aqueles que resultam do que se deixa exposto supra.

B – As questões do Recurso
i) Da nulidade do despacho
A Recorrente sustenta que o despacho que deferiu a perícia médico-legal a realizar, na pessoa da Autora, na Alemanha enferma de nulidade por falta de indicação dos respetivos fundamentos de facto e de direito.
Assiste-lhe razão.
Dissidindo as partes quanto à entidade a designar para a realização da perícia médico-legal na pessoa da Autora, se a entidade equivalente ao INML na Alemanha ou se o INML, a decisão que determinou seja na Alemanha a realização da referida perícia devia elencar as circunstâncias de facto e as razões de direito subjacentes a tal decisão.
É que, nos termos do disposto no artigo 154.º/1, do CPC, as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. O artigo 205.º/1, da Constituição da República Portuguesa, por sua vez, determina que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
Na senda deste regime legal, o artigo 615.º/1, alínea b), do CPC estatui que é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. O que se aplica, com as necessárias adaptações, aos despachos – cfr. artigo 613.º/3, do CPC.
Não basta a referência a instrumentos internacionais em matéria de recolha de prova.
Na verdade, o Regulamento (UE) 2020/1783 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2020[1] é aplicável em matéria civil ou comercial, no caso de um tribunal de um Estado-Membro requerer, nos termos do seu direito nacional:
a) Ao tribunal competente de outro Estado-Membro a obtenção de prova; ou
b) A obtenção direta de prova noutro Estado-Membro – cfr. artigo 1.º do citado Reg..
Tal como resulta do respetivo articulado, o referido instrumento visa regular os procedimentos a adotar e a operacionalidade das relações a estabelecer entre os tribunais e as autoridades em causa para obter a prova relevante em sede de processos judicias. Porém, como desde logo se colhe do citado artigo 1.º, o direito nacional de cada Estado-Membro é que regula a oportunidade e conveniência de encetar as diligências previstas no Regulamento.
Uma vez que o despacho recorrido não contém fundamentação que, à luz do direito nacional, evidencie haver lugar à realização da perícia na Alemanha, é manifesta a nulidade de que enferma.
O que implica se tome conhecimento da questão e resolva o dissídio, quer em cumprimento do disposto no artigo 665.º/1, do CPC, quer por tal ter sido suscitado pela Recorrente.[2]

ii) Da realização da perícia médico-legal pelo INML
O regime jurídico das perícias médico-legais e forenses encontra-se estabelecido na Lei n.º 45/2004, de 19 de agosto, na redação atualmente em vigor.
O artigo 2.º, sob a epígrafe Realização de perícias, consagra o seguinte regime:
1 - As perícias são realizadas, obrigatoriamente, nas delegações e nos gabinetes médico-legais e forenses do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P. (INMLCF, I.P.), nos termos dos respetivos estatutos.
2 - Excecionalmente, perante manifesta impossibilidade dos serviços, as perícias referidas no número anterior podem ser realizadas por entidades terceiras, públicas ou privadas, contratadas ou indicadas para o efeito pelo INMLCF, I.P.
3 - Nas comarcas não compreendidas na área de atuação das delegações e dos gabinetes médico-legais e forenses em funcionamento, as perícias podem ser realizadas por médicos contratados pelo INMLCF, I.P., nos termos dos artigos 28.º e 29.º.
4 - As perícias solicitadas ao INMLCF, I.P., em que se verifique a necessidade de formação médica especializada noutros domínios e que não possam ser realizadas nas delegações do INMLCF, I.P., ou nos gabinetes médico-legais e forenses, por aí não existirem peritos com a formação requerida ou condições materiais para a sua realização, podem ser efetuadas, por indicação do INMLCF, I.P., em serviço universitário ou de saúde público ou privado.
Já o artigo 7.º refere-se a Despesas de deslocação, nos seguintes termos:
1 - As pessoas que residam fora da área da comarca em que se encontre sediada a delegação do INMLCF, I.P., o gabinete médico-legal e forense ou o estabelecimento universitário ou de saúde especializado no qual tenham comparecido para a realização de exames, podem requerer que lhes seja arbitrada uma quantia a título de compensação pelas despesas realizadas.
2 - A quantia referida no número anterior tem por base os valores estabelecidos nas tabelas aprovadas pelo membro do Governo responsável pela área da justiça e é paga pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. (IGFEJ, I.P.), através da sua delegação junto do tribunal que solicitou o exame.
3 - As quantias arbitradas são consideradas custas do processo.
Decorre, então, do direito nacional aplicável neste processo que a perícia médico-legal à pessoa da Autora deve ser obrigatoriamente realizada pelo INML ou por entidade por este designada ou contratada.
As despesas de deslocação da Autora desde a Alemanha serão consideradas custas do processo.
A Autora requereu a realização da diligência pericial, onerada que está com a prova dos factos que alega.
É este o regime legal a que está sujeita, sem embargo de não estar obrigada a submeter-se à perícia.[3]

Procedem as conclusões da alegação do presente recurso.

As custas recaem sobre a Recorrida – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Sumário: (…)

IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, determinando-se a realização de perícia médico-legal na pessoa da Autor junto do INML.

Custas pela Recorrida.

Évora, 18 de setembro de 2025
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Mário João Canelas Brás
Vítor Sequinho dos Santos


__________________________________________________
[1] Que revogou o Regulamento (CE) n.º 1206/2001, referido reiteradamente nos autos – cfr. artigo 34.º do Reg. (UE) 2020/1783.
[2] Que não se bastou com a arguição da nulidade da sentença.
[3] O que se consigna porquanto se constatou no processo ter sido exarado em despacho que a Autora se recusou a deslocar a Portugal para se submeter à perícia.