Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
MATÉRIA DE FACTO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ANULAÇÃO DA DECISÃO
Sumário
Embora tenham sido emitidas em sede distinta, também no direito processual civil o juiz é antes de mais um comunicador da lei e do Direito concreto e, por isso, o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que através das regras da ciência, da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto, sendo que a exigência de motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz mas a permitir que o julgador convença os terceiros da correcção da sua decisão.
Texto Integral
Processo n.º 2907/23.8T8FAR.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Central de Competência Cível de Faro – J1 * Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora: I – Relatório:
Na presente acção declarativa com processo comum, emergente de acidente de viação, proposta por (…) contra “(…) – Companhia de Seguros, SA”, o Autor veio interpor recurso da sentença proferida. *
O Autor pediu a condenação da Ré no pagamento de pagamento do valor global de € 1.150.000,00 (um milhão e cento e cinquenta mil euros), discriminado da seguinte forma:
➢ o valor de € 800.000,00 (oitocentos mil euros), a título de danos não patrimoniais, sem prejuízo de outro valor a liquidar segundo critérios de equidade;
➢ o valor de € 300.000,00 (trezentos mil uros), por dano patrimonial futuro, tudo sem prejuízo de outro valor a fixar segundo os critérios aplicáveis; e,
➢ o valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), a título de danos patrimoniais, decorrentes da necessidade de necessidade de auxílio de terceira pessoa.
O Autor peticionou ainda a condenação da Ré a entregar-lhe o valor equivalente aos bens necessários à promover a respectiva locomoção, conforto e bem estar e a prover a sua manutenção e substituição durante a sua vida.
*
Para fundamentar a sua pretensão, o Autor alegou que foi interveniente num acidente de viação cuja culpa se deveu exclusivamente ao condutor do veículo automóvel seguro na Ré.
*
Devidamente citado, o “Instituto da Segurança Social, I.P. – Centro Distrital de Faro” deduziu contra a Ré pedido de reembolso das quantias pagas ao Autor, a título de subsídio de doença e prestações compensatórias de subsídio de Natal e Férias, no montante global de € 52.899,75 (cinquenta e dois mil e oitocentos e noventa e nove euros e setenta e cinco cêntimos).
*
A Ré seguradora apresentou contestações, dizendo, em síntese, que a responsabilidade pela produção do sinistro dos autos recaía sobre o condutor do motociclo (…), o aqui Autor (…).
*
Foi proferido despacho saneador que fixou o valor da acção, bem como o objecto do litígio e os temas da prova.
*
Realizada a audiência final, o Tribunal a quo decidiu julgar a acção improcedente, absolvendo a Ré dos pedidos deduzidos pelo Autor e pelo Interveniente.
*
O recorrente não se conformou com a referida decisão e o articulado de recurso continha as seguintes conclusões:
«1. A sentença recorrida incorre em erro de julgamento ao desvalorizar a prova testemunhal presencial, clara, coerente e convergente, que demonstrou inequivocamente a dinâmica do acidente e a responsabilidade exclusiva do condutor do veículo seguro pela Ré;
2. As declarações do Autor e das testemunhas presenciais demonstram de forma inequívoca que o condutor do veículo Mercedes iniciou uma manobra de mudança de direção à esquerda, arrependeu-se e regressou subitamente à sua faixa de rodagem, interceptando de forma inesperada a trajectória do motociclo;
3. Tal manobra inesperada e imprudente constituiu um obstáculo súbito, determinando uma colisão inevitável e estando na origem direta dos graves danos sofridos pelo Autor;
4. O Tribunal a quo não apreciou devidamente os elementos constantes do relatório pericial, nem extraiu as necessárias ilações das evidentes contradições do condutor do veículo Mercedes, cuja versão se revelou desconexa e incongruente com as leis da física e com os restantes meios de prova, sendo ostensivamente inverosímil e totalmente falsa;
5. Os danos sofridos pelo Autor revestem-se de gravidade extrema, comprometendo de forma irreversível a sua autonomia pessoal, capacidade laboral, dignidade e vida familiar, com repercussões permanentes atestadas no relatório médico-legal junto aos autos;
6. Ainda que, por hipótese, se admitisse uma concorrência de culpas – o que apenas se invoca a título subsidiário – sempre teria o condutor do veículo segurado na Ré concorrido de forma decisiva para o acidente, não podendo ser-lhe atribuída responsabilidade exclusiva, mas, no máximo, uma responsabilidade partilhada em partes iguais (50%) ou por outra percentagem que defina os comportamentos dos intervenientes;
7. A decisão que absolve a Ré ignora os deveres de prudência e diligência impostos pelo Código da Estrada, bem como o dever de indemnizar consagrado nos artigos 483.º e seguintes do Código Civil e no regime jurídico do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (Decreto-Lei n.º 291/2007).
8. Termos em que deve ser revogada a douta sentença recorrida e proferida nova deliberação que condene a Ré (…), Companhia de Seguros, S.A., no pagamento de indemnização a fixar segundo juízos de equidade e com base na prova produzida, nos exatos termos peticionados ou, assim não se entendendo, pelo menos em regime de concorrência de culpa.
Assim se fazendo a habitual Justiça».
*
A Ré seguradora apresentou resposta em que defendeu a manutenção da decisão recorrida.
*
Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. * II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de erro:
a) na fixação da matéria de facto.
b) na subsunção jurídica realizada, tendo em consideração os factos apurados, quanto ao preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, eventual repartição de culpas e atribuição dos montantes indemnizatórios.
* III – Dos factos apurados: 3.1 – Matéria de facto provada:
Consideraram-se provados os seguintes factos, com interesse para a boa decisão da causa:
1. A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo de matrícula (…), marca Mercedes, encontrava-se transferida para a Ré, através de seguro do Ramo Automóvel, titulado pela apólice n.º (…).
2. No dia 18/07/2019, pelas 20h22m, na Estrada Nacional n.º 2, ao km 727,500, da freguesia de (…), concelho de Faro, ocorreu um sinistro em que foram intervenientes o motociclo de matrícula (…), propriedade do Autor e pelo mesmo conduzido e o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula (…), conduzido pelo seu proprietário (…).
3. Naquela altura ocorria o evento da concentração de motas de Faro.
4. Ambos os veículos transitavam pela Estrada Nacional n.º 2, na hemifaixa de rodagem destinada ao trânsito que se fazia no sentido de marcha Faro/S. Brás de Alportel.
5. Quando, junto ao Km 727,500 (perto da Fábrica do Tijolo), por pretender mudar de direção à esquerda, a fim de aceder à sua residência, o condutor da viatura segura accionou o sinal de mudança de direção à esquerda.
6. Reduziu a velocidade da sua viatura.
7. E aproximou-se do eixo da via.
8. O Autor avistou o veículo ligeiro de passageiros que se mostrava encostado à faixa de rodagem à esquerda a executar a referida manobra.
9. O Autor circulava sem guardar a distância de segurança do veículo segurado na Ré, que o precedia.
10. Acontece que, o condutor do veículo ligeiro, mercê do surgimento de diversas motas em sentido contrário ao que os dois intervenientes seguiam, quando já estava a entrar na hemifaixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito contrário àquele em que seguia, virou a direcção do mesmo para a sua direita, endireitando-a.
11. Sendo embatido na parte traseira, entre o centro e parte lateral direita, pela parte da frente do motociclo conduzido pelo Autor – confissão da seguradora quanto aos danos no veículo.
12. Embate que ocorreu dentro da hemifaixa de rodagem destinada ao sentido de transito Faro/S. Brás.
13. O corpo do Autor foi projetado por cima do veículo seguro, caindo na sua frente.
14. Ficando o motociclo imobilizado na hemifaixa de rodagem destinada ao trânsito que se fazia na direcção S. Brás/Faro, nas traseiras do veículo seguro.
15. E a viatura segurada na Ré, junto ao eixo da via.
16. Com a direcção da roda lateral dianteira direita a ocupar, parcialmente, a hemifaixa de rodagem destinada ao trânsito que seguia em sentido contrário.
17. O Autor nasceu a 05/06/1967.
18. À data do sinistro, estava em plena força laboral e física.
19. Era casado.
20. E a sua mulher tinha 42 anos de idade.
21. Fruto desse casamento, em 02/07/2014, nasceu (…).
22. Os únicos hobbies que tinha prendiam-se com os passeios de mota, pesca e manufactura de objectos em madeira, o que fazia na sua oficina para satisfação pessoal.
23. Na sequência do sinistro, o Autor esteve no hospital com total perda de conhecimento durante 15 dias.
24. Soube então, após esse período, que tinha sofrido as lesões abaixo descritas e que fora submetido a uma intervenção cirúrgica e outros tratamentos, exames e consultas.
25. Após 5 meses de internamento, a 12/12/2019, teve alta do Hospital de Faro para ser seguido em regime ambulatório pela seguradora (…) que assegurava o processo de acidente de trabalho.
26. O Autor padeceu com dores muito elevadas desde o recobro até poucos dias antes da alta clínica.
27. O que o fez sofrer bastante em todo esse período.
28. Tais dores espalhavam-se pela coluna e membros superiores.
29. Perante a mulher, o filho, os demais familiares e amigos, o Autor sentia-se um estorvo.
30. Tampouco sequer podia ter relações sexuais com a sua mulher, impossibilidade que durará para o resto da sua vida, acto que muito o gratificava mercê do carinho e amor que pela mesma nutria.
31. Com as dores que ainda sente no braço e prostrado numa cadeira de rodas nem sequer consegue trabalhar na elaboração de objectos em madeira.
32. É uma pessoa triste, acabrunhada, por vezes agressiva, ainda com todos aqueles que o tentam ajudar.
33. O Autor tem um sentimento de inutilidade, por saber que não consegue lavar a metade inferior do corpo, nomeadamente na zona do períneo e na parte de baixo das pernas, sem ajuda de terceira pessoa, nem conseguindo sequer abotoar-se, calçar as meias ou sapatos sem apoio de terceiros, bem como preparar as suas refeições, cortar os alimentos e fazer a lide doméstica.
34. O Autor carece de ter alguém que o auxilie pelo menos durante a semana e por um período de 4 horas diárias, designadamente para providenciar ajuda na higiene, confecção e preparação de alimentos.
35. Em 18/07/2019, o Autor exercia as funções de gestor de tráfego internacional de camiões sob as ordens, direcção e fiscalização de “(…), Transportes de Mercadorias, Lda.”, com local de trabalho no sítio de (…), Faro.
36. Auferia nessa data o ordenado base de € 2.000,00 (dois mil euros), ao que acrescia subsídio de férias, natal e de alimentação e ajudas de custo.
37. Ao abrigo de contrato de seguro titulado pela apólice n.º (…), que vigorava sob a modalidade de seguro a prémio variável, a seguradora pagou uma indemnização ao Autor por IT´s no valor de € 103,71 (cento e três euros e setenta e um cêntimos) até 19/08/2019 (32 dias) e nada mais pagou.
38. A condição física do Autor requererá para o resto da sua vida, a compra de variado material de apoio, do qual o mesmo tem necessidade, nomeadamente:
a. Cadeira de rodas em liga ultra leve, em titânio, adaptada ao Autor, com tensores no encosto, aros antiderrapantes, rodas anti volteio, com sistema de propulsão para facilitar a deambulação sobretudo em terrenos inclinados/irregulares, rampas, ou lancis de passeios e sistemas de estabilização;
b. Almofada anti escaras com células de ar e espuma;
c. Cadeira de verticalização elétrica;
d. Tábua de transferências em madeira;
e. Tábua de transferência em plástico para o banho;
f. Cama articulada tipo sommier;
g. Cadeira de banho com rodas grandes; e,
h. Veículo automóvel adaptado.
39. O Autor já despendeu valores em medicamentos, consultas e óleo corporal, no valor total de € 32,04 (trinta e dois euros e quatro cêntimos).
40. Do relatório pericial elaborado com base em exame realizado em 27/03/2023, consta que:
“(…)
B. EXAME OBJETIVO
(…)
2. Lesões e/ou sequelas relacionáveis com o evento:
O (A) examinando(a) apresenta as seguintes sequelas:
- Ráquis: Fratura consolidada de D9, com laminectomia e artrodese D8-D10 com lesão medular em D9 e nível neurológico D10 (T10).
- Membro superior esquerdo: Fratura consolidada do escafoide cárpico, com rigidez articular.
- Membro inferior esquerdo: Fratura da tíbia consolidada de forma viciosa e com encurtamento do membro inferior esquerdo.
(…)
DISCUSSÃO
(…)
3. No âmbito do período de danos temporários são valorizáveis, entre os diversos parâmetros do dano, os seguintes:
- Défice Funcional Temporário (corresponde ao período durante o qual a vítima, em virtude do processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou da consolidação, viu condicionada a sua autonomia na realização dos atos correntes da vida diária, familiar e social, excluindo-se aqui a repercussão na atividade profissional). Considerou-se o:
- Défice Funcional Temporário Total (anteriormente designado por Incapacidade Temporária Geral Total e correspondendo com os períodos de internamento e/ou de repouso absoluto), sendo fixável num período de 147 dias;
(…)
- Défice Funcional Temporário Parcial (anteriormente designado por Incapacidade Geral Parcial, correspondendo ao período que se iniciou logo que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização desses atos, ainda que, com limitações), sendo fixável num período de 189 dias.
(…)
- Repercussão Temporária na Actividade Profissional (correspondendo ao período durante o qual a vítima, em virtude do processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou da consolidação, viu condicionada a sua autonomia na realização dos actos inerentes à sua atividade profissional habitual). Considerou-se a:
- Repercussão Temporária na Actividade Profissional Total (anteriormente designada por Incapacidade Temporária Profissional Total, correspondendo aos períodos de internamento e/ou de repouso absoluto, entre outros), sendo fixável num período total de 336 dias …)
- Quantum doloris (corresponde à valoração do sofrimento físico e psíquico vivenciado pela vítima durante o período de danos temporários, isto é, entre a data do evento e a cura ou consolidação das lesões); fixável no grau 7 numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta as lesões resultantes, o período de recuperação funcional, o tipo de traumatismos e os tratamentos efetuados.
4. No âmbito do período de danos permanentes são valorizáveis, entre os diversos parâmetros de dano, os seguintes:
- Défice Funcional Permanente da integridade Físico-Psíquica (refere-se à afectação definitiva da integridade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo as familiares e sociais, e sendo independente das atividades profissionais (…) como dano biológico). Este dano é avaliado relativamente à capacidade integral do indivíduo (100 pontos), considerando a globalidade das sequelas (corpo, funções e situações de vida) e a experiência médico-legal relativamente a estes casos, tendo como elemento indicativo a referência à Tabela Nacional de Incapacidades em Direito Civil (Anexo II do Dec.-Lei n.º 352/07, de 23/1).
(…)
(…)
Nesta conformidade, atendendo à avaliação baseada na Tabela Nacional de Incapacidades e considerando o valor global da perda funcional decorrente das sequelas e o facto destas, não afetando o(a) examinando(a) em termos de autonomia e independência, são causa de sofrimento físico, limitando-o em termos funcionais, atribui-se um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica fixável em 76 pontos.
Na situação em apreço é de perspectivar a existência de Dano Futuro (considerando exclusivamente como tal o agravamento das sequelas consubstanciada em dificuldade de adaptação do coto e/ou úlcera de pressão que constitui uma previsão fisiopatologicamente cerca e segura, por corresponder à evolução lógica, habitual e inexorável do quadro clínico), o que pode obrigar a uma futura revisão do caso.
- Repercussão Permanente na Actividade Profissional (corresponde ao rebate das sequelas no exercício da atividade profissional habitual da vítima – atividade à data do evento, isto é, na sua vida laboral, (…) Neste caso, as sequelas são impeditivas do exercício de qualquer atividade profissional.
- Dano Estético Permanente (correspondente a repercussão das sequelas, numa perspetiva estática e dinâmica, envolvendo uma avaliação personalizada da afetação da imagem da vítima quer em relação a si próprio, quer perante os outros). É fixável no grau 7, numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta a(s) deformidades e a utilização de ajudas técnicas.
- Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer (corresponde à impossibilidade estrita e específica para a vítima de se dedicar a certas atividades lúdicas, de lazer e de convívio social, que exercia de forma regular e que para ela representavam um amplo e manifesto espaço de realização e gratificação não estando aqui em causa intenções ou projectos futuros, mas sim comprovadamente exercidas previamente ao evento traumático em causa cuja prática e vivência assumia uma dimensão e dignidade suscetível de a tutela do Direito, dentro do princípio da reparação integral dos danos; trata do no dano anteriormente designado por Prejuízo de Afirmação Pessoal). É fixável no grau 7, numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta os seguintes aspetos: dano neurológico impeditivo da utilização de motociclo em atividade lúdica.
- Repercussão Permanente na Actividade Sexual (correspondendo à total ou parcial do nível do desempenho/gratificação de natureza sexual, decorrente das sequelas físicas e/ou psíquicas, não se incluindo aqui aspetos relacionados com a capacidade de procriação. (…) É fixável no grau 7, com base em Ereção apenas reflexa, por dano neurológico dorsal. Paraplegia.
- Dependências Permanentes de Ajudas:
• Ajudas medicamentosas (correspondem à necessidade permanente de recurso a medicação regular - ex: analgésicos, antiespasmódicos ou antiepiléticos, sem a qual a vítima não conseguirá ultrapassar as suas dificuldades em termos funcionais e nas situações da vida diária). Neste caso Analgésicos, Antidepressivos, Bomba de baclofeno, Antibióticos, Anticolinérgicos, Laxantes.
• Tratamentos médicos regulares (correspondem à necessidade de recurso regular a tratamentos médicos para evitar um retrocesso ou agravamento das sequelas - ex.: fisioterapia). Neste caso, Medicina Física e Reabilitação, Psicologia, Psiquiatria.
• Ajudas técnicas (referem-se à necessidade permanente de recurso a tecnologia para prevenir, compensar, atenuar ou neutralizar o dano pessoal - do ponto de vista anatómico, funcional e situacional –, com vista à obtenção da maior autonomia e independência possíveis nas actividades da vida diária; podem tratar-se de ajudas técnicas lesionais, funcionais ou situacionais). Neste caso Cadeira de rodas, Algalias, talas funcionais, cama articulada.
• Adaptação do domicílio, do local de trabalho ou do veículo (corresponde à necessidade de recurso à tecnologia a nível arquitectónico, de mobiliário e/ou equipamentos, no sentido de permitir a realização de determinadas actividades diárias a pessoas que, de outra maneira, o não conseguiriam fazer sem a ajuda de terceiros). Neste caso Quarto, wc e cozinha adaptadas. Automóvel adaptado.
• Ajuda de terceira pessoa (corresponde à ajuda humana apropriada à vítima que se tornou dependente, como complemento ou substituição na realização de uma determinada função ou situação de vida diária). Neste caso para as transferências, deslocações e mobilidade. Para o auto-cuidado e vestuário.
CONCLUSÕES
- A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 18/06/2020[1].
- Período de Défice Funcional Temporário Total sendo assim fixável num período de 147 dias.
- Período de Défice Funcional Temporário Parcial sendo assim fixável num período de 189 dias.
- Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total sendo assim fixável num período total de 336 dias.
- Quantum Doloris fixável no grau 7/7.
- Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 76 pontos, sendo de admitir a existência de dano futuro, por agravamento da rigidez do punho esquerdo e da situação neurológica.
- As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, são impeditivas do exercício de qualquer atividade profissional.
- Dano Estético Permanente fixável no grau 7/7.
- Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 7/7.
- Repercussão permanente na Atividade Sexual fixável no grau 7/7.
- Ajudas técnicas permanentes: ajudas medicamentosas; tratamentos médicos regulares; ajudas técnicas; adaptação domicílio, local de trabalho ou veículo; ajuda de terceira pessoa.
(…)”.
41. O interveniente concedeu ao Autor, o subsídio de doença, respeitante ao período compreendido entre 19/07/2019 e 17/07/2022 e prestações compensatórias de subsídio de Natal e férias dos anos de 2021 e 2022.
42. O valor pago ao Autor a título de “Concessão Provisória de Subsídio de Doença” foi no montante de € 48.099,75 (quarenta e oito mil e noventa e nove euros e setenta e cinco cêntimos) e o valor pago a título de prestações compensatórias de subsídio de Natal e férias corresponde a € 4.800,00 (quatro mil e oitocentos euros).
43. Através de decisão devidamente homologada junto da Conservatória de Registo Civil, datada de 07/02/2024, foi decretado o divórcio do Autor e (…), regulando-se o exercício do poder paternal do seu filho menor.
*
3.2 – Matéria de facto não provada[2]:
Com interesse para a decisão da causa ficaram por provar os seguintes factos:
a) Nas circunstâncias referidas nos pontos 5º a 10º dos factos provados e andar da manobra referida na parte final do ponto 10º, a viatura segurada na Ré parou a marcha.
b) A posição em que o veículo segurado na Ré se colocou levou a que o Autor, sem tempo de reação, lhe embatesse.
c) O que sucedeu numa altura em que já havia permitido a ultrapassagem pela direita do motociclo do Autor.
d) O Autor iniciou a manobra depois de se ter certificado de que poderia fazer aquela manobra de ultrapassagem pela direita sem o perigo de colidir com outros veículos.
e) A velocidade que o Autor imprimia à sua viatura.
f) Devido à posição do veículo ligeiro o Autor ficou sem espaço livre ou qualquer outra forma de escapar ao embate.
g) O Autor conduz uma moto (Honda Gold Wing).
h) O Autor deixou de conviver socialmente.
i) E já despendeu valores com a aquisição da atual cadeira de rodas.
*
IV – Fundamentação: 4.1 – Modificação da matéria de facto:
Só à Relação compete, em princípio, modificar a decisão sobre a matéria de facto, podendo alterar as respostas aos pontos da base instrutória, a partir da prova testemunhal extractada nos autos e dos demais elementos que sirvam de base à respectiva decisão, desde que dos mesmos constem todos os dados probatórios, necessários e suficientes, para o efeito, dentro do quadro normativo e através do exercício dos poderes conferidos pelo artigo 662.º do Código de Processo Civil.
Em face disso, a questão crucial é a de apurar se a decisão do Tribunal de Primeira Instância que deu como provados (e não provados) certos factos pode ser alterada nesta sede – ou, noutra formulação, é tarefa do Tribunal da Relação apurar se essa decisão fáctica está viciada em erro de avaliação ou foi produzida com algum meio de prova ilícito e, se assim for, actuar em conformidade com os poderes que lhe estão confiados.
*
O Autor pretende a alteração das respostas negativas aos factos identificados nas alíneas a)[3], b)[4], c) [5], d) [6], e)[7] e f)[8] dos factos não provados e, bem assim, a resposta positiva dada ao ponto 9[9] dos factos provados.
A discordância é baseada essencialmente nos testemunhos tomados a (…), (…) e (…), no depoimento de parte prestado pelo Autor (…) e nas incoerências e contradições do condutor do veículo segurado pela Ré (…). A parte convoca igualmente o suporte fotográfico junto aos autos.
*
A Ré entende que a parte activa não cumpriu o disposto no artigo 640.º[10] do Código de Processo Civil e sustenta que tal implica a rejeição da impugnação da matéria de facto.
Vejamos:
Diz a exposição de motivos da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho [Novo Código de Processo Civil] que «se cuidou de reforçar os poderes da 2ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada. Para além de manter os poderes cassatórios – que lhe permitem anular a decisão recorrida, se esta não se encontrar devidamente fundamentada ou se mostrar que é insuficiente, obscura ou contraditória –, são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede à reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material».
Porém, este reforço de poderes e deveres não é unidireccional. Na verdade, a lei ao mesmo tempo impõe novas regras das condições de exercício do direito de recurso. Assim, os recorrentes têm agora o dever de modelar a peça de interposição de recurso com a seguinte estrutura: (i) especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, (ii) indicar os concretos meios probatórios constantes do processo que impõem decisão diferente, (iii) adiantar qual deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas e (iv) mencionar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso.
Actualmente, nos termos do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
É indiscutível que o recurso na parte incidente sobre a impugnação de facto não segue integralmente os procedimentos exigidos por lei. No entanto, resulta das alegações e das respectivas conclusões o apoio concreto em que se funda a pretendida alteração da matéria de facto e é perfeitamente compreensível que a parte contesta a operação de fixação dos factos provados e não provados.
Pode-se afirmar que um destinatário normal compreende perfeitamente o sentido da declaração formulada pelo recorrente, alcança quais são as provas arregimentadas no sentido da modificabilidade da decisão de facto e avista qual é o sentido proposto para a fixação da factualidade.
E a actual jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça acolhe a ideia da não rejeição da apreciação e da consequente possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, quando se tratem de vícios secundários.
Nestes termos, em homenagem ao princípio do máximo aproveitamento dos actos e como forma de valorizar o duplo grau de jurisdição, proceder-se-á à análise do pedido de modificação da decisão de facto.
*
A prova como demonstração efectiva (segundo a convicção do juiz) da realidade de um facto «não é certeza lógica mas tão-só um alto grau de probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica)»[11].
A apreciação da prova deve ocorrer sob o signo da probabilidade lógica – de evidence and inference –, ou seja, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis.
O sistema judicial nacional combina o sistema da livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva ou legal, posto que, tomando em consideração a análise da motivação da respectiva decisão e as provas produzidas, importa aferir se os elementos de convicção probatória foram obtidos em conformidade com o princípio da convicção racional, consagrado pelo n.º 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil.
A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação a partir da análise e ponderação da prova disponibilizada[12].
A jurisprudência mais avalizada firma o entendimento que a «prova testemunhal, tal como acontece com a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais, partindo da inteligência, há-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência [o id quod plerumque accidit] e de conhecimentos científicos.
Na transição de um facto conhecido para a aquisição ou para a prova de um facto desconhecido, têm de intervir as presunções naturais, como juízos de avaliação, através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam, fundadamente, afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não, anteriormente, conhecido, nem, directamente, provado, é a natural consequência ou resulta, com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido»[13].
Neste enquadramento jurídico-existencial, a credibilidade concreta de um meio individualizado de prova tem subjacente a aplicação de máximas de experiência comum que devem enformar a opção do julgador e cuja validade se objectiva e se afere em determinado contexto histórico e jurídico, à luz da sua compatibilidade lógica com o sentido comum e com critérios de normalidade social, os quais permitem (ou não) aceitar a certeza subjectiva da sua realidade[14]. *
A questão fundamental radica na dinâmica do acidente e no posicionamento relativo dos veículos envolvidos no acidente no momento em que o mesmo ocorreu (e no período temporal imediatamente anterior).
A Mma. Juíza de Direito entendeu valorizar o testemunho de (…), agente de autoridade, conjugado com o teor do auto de notícia que constitui fls. 115 e seguintes e as prestações de … (condutor que seguia no mesmo sentido de trânsito dos intervenientes no sinistro, atrás do veículo segurado na ré, que disse ter sido ultrapassado pela mota do autor, presenciando o sinistro e também, nessa qualidade, prestou declarações, logo nesse dia, perante a autoridade policial), … e … (condutora que, tal como a testemunha …, seguia no sentido de trânsito Faro/S. Brás de Alportel, que confirmou ter visto os carros à sua frente começarem a abrandar, desviando-se para a direita da faixa de rodagem). Foram ainda valorados o relatório de peritagem de fls. 30 verso e seguintes, em particular, a fotografia que constitui fls. 30 verso.
Com base nesse acervo probatório, a sentença recorrida reconheceu a existência de uma manobra iniciada pelo condutor do veículo seguro de mudança de direção à esquerda e os motivos pelos quais a mesma foi interrompida.
Neste particular, quanto ao ponto 9 dos factos provados, o Tribunal a quo foi influenciado pelas declarações de parte do Autor que afirmou que «ao aperceber-se que o Mercedes se colocava junto ao eixo da via, deixando-lhe espaço para passar, acelerou a sua mota» e que «não teve reação para travar, nem fazer nada». Em função disto, concluiu que «nos momentos que antecederam o embate, o autor conduzia a sua mota, sem respeitar a necessária distância de segurança entre veículo».
No que se reporta às alíneas b), c), d) e e) da matéria de facto não provada, o Tribunal considerou queo Autor deu início à manobra de ultrapassagem «contando com o espaço livre que ficaria na sua frente, caso o condutor da viatura segura concluísse a sua manobra de mudança de direção à esquerda e desocupasse a hemifaixa de rodagem em que ambos seguiam».
E manifesta assim o entendimento que «não foi a manobra de regresso à faixa da direita que impossibilitou a ultrapassagem que o autor se preparava para levar a cabo, tanto que, aquela manobra não implicou qualquer diminuição do espaço que, à direita da viatura, ficaria livre para o autor passar».
A matéria integrada na alínea a) foi julgada não provada com base na circunstância de nenhuma das testemunhas que presenciaram o sinistro ter referido «que o condutor do veículo seguro tenha parado a sua marcha, imobilizando a viatura que conduzia» e que «todas elas referem que o veículo se encontrava em movimento quando se dá o embate».
Não se conseguiu decifrar a velocidade a que seguia o motociclo, mas o Julgador de 1ª Instância entendeu que a mesma não era a adequada às condições concretas de tráfego. Neste ponto, foi feito apelo às palavras do Autor, que admitiu ter acelerado a sua viatura, nos instantes que antecederam o embate. Esta percepção encontra-se traduzida na seguinte afirmação: «dificilmente se poderia equacionar que a velocidade que o autor imprimia à sua mota era adequada à manobra que realizava e ao trânsito que, naquele momento, circulava naquela via, num e noutro sentido». *
Foi ouvida toda a prova, analisada a documentação presente nos autos e escrutinada a prova pericial junta ao processo. *
Vejamos o que pediam as partes e as provas existentes nos autos que suportariam as respectivas teses.
Cenário 1 – Tese da culpa do condutor do veículo Mercedes:
Na perspectiva do Autor, o acidente desenvolveu-se da seguinte forma:
«O condutor do veículo ligeiro, mercê do alegado surgimento de diversas motas (altura da Concentração de Motas em Faro) em sentido contrário ao que os dois intervenientes seguiam, travou repentinamente quando já estava a entrar na hemifaixa contrária de rodagem e guinou para a direita de forma a adotar um comportamento apto para parar a mudança de marcha que estava a efetuar e voltar a colocar-se mais à direita para dentro da faixa de rodagem de onde pretendia sair.
Com esta conduta irrefletida tentou fugir de uma eventual colisão com veículos que seguiam em sentido contrário, mercê de precipitada tentativa de mudança de faixa, mas colocou-se novamente numa posição, de todo inopinada e inadvertida, que levou a que o A., já sem qualquer tempo de reação, dada a eminência da manobra, lhe batesse na parte traseira direta e parte da lateral direita».
Não é isto o que se provou, mas tão só que, após sinalizar a sua manobra, a viatura automóvel «virou a direcção do mesmo para a sua direita, endireitando-a» e foi «embatido na parte traseira, entre o centro e parte lateral direita, pela parte da frente do motociclo conduzido pelo Autor».
Esta versão do Autor tinha a seu favor os depoimentos prestados por (…) e (…) que afirmaram que o condutor do veículo se desviou do projecto inicial, ocupou parte da faixa de rodagem por onde circulava a mota e motivou assim o embate.
Esta versão não é, contudo, compatível com o posicionamento relativo das viaturas intervenientes no acidente. Na verdade, a testemunha (…), militar da GNR, que tomou conta da ocorrência, teve um registo objectivo, imparcial e idóneo a convencer o Tribunal da Relação relativamente aos aspectos que foram percepcionados por si após o embate e tomou declarações à testemunha … (transcreveu o que lhe foi dito). Foi absolutamente decisiva a informação prestada no sentido que o veículo automóvel se encontra em posição adequada a fazer a mudança de direcção para a esquerda, o que contraria a tese da viragem súbita à direita e da ocupação de parte do sentido de marcha prosseguido pelo motociclo – o que corresponde a matéria não impugnada na impugnação por via recursal.
Porém, a explicação da testemunha (…) quanto ao posicionamento do Mercedes não se coaduna com «as regras da física» (a parte da frente virada para a esquerda, quando afirma ter este veículo guinado para a direita), tal como fez notar a ilustre mandatária da Ré em sede de contra-interrogatório.
Em acréscimo, no testemunho prestado por (…) foram detectadas algumas incoerências, sendo que, num primeiro momento, imediatamente subsequente ao acidente, nas declarações prestadas ao agente de autoridade, logo de memória mais viva, terá dito que a viatura Mercedes estava parada para virar à esquerda e, em sede de julgamento, modificou essa versão, sublinhando que a mesma se encontrava em movimento.
Deste modo, para além de outros aspectos marginais, a parte activa para conseguir lograr na plenitude provar aquilo a que se propunha, a não ser o tal endireitar da direcção.
*
Cenário 2 – Tese da culpa exclusiva do Autor
De acordo com a Ré seguradora «quando a viatura segura na ora contestante (…) se encontrava completamente imobilizada naquela meia faixa de rodagem destinada ao trânsito de veículos no sentido Faro/São Braz de Alportel, a aguardar oportunidade para aceder ao entroncamento existente à esquerda», «o condutor do veículo seguro (…), (…), foi surpreendido pelo embate sofrido pela viatura por si conduzida».
Esta tese estaria suportada na versão da testemunha (…) que interveio no acidente de viação e manteve um registo directo, mas nalguns pontos algo defensivo e insensível, denotando até algum incómodo pela necessidade de prestar testemunho. De útil, explicou ao Tribunal a manobra por si realizada, assumiu que pretendia virar à esquerda em direcção à sua residência (mas não se recordava com exactidão de pormenores do seu posicionamento) e afirmou que o Mercedes não se movimentou em função do embate e que se manteve na mesma posição até à chegada da autoridade policial. A testemunha transmitiu a sua percepção quanto ao movimento que existia naquele momento na estrada e ao modo como se desenrolou o embate.
Este testemunho teria o respaldo da senhora agente de autoridade que tomou conta da ocorrência, na fotografia exibida sobre o ponto de impacto e nas informações métricas disponibilizadas no auto de notícia. Todavia, as referidas declarações não foram consideradas convincentes pelo Tribunal a quo.
O Juízo Central de Competência Cível de Faro não acreditou na versão de que a viatura ficou parada e esta matéria não foi objecto de pedido de revisão por parte do recorrente nem foi apresentado recurso ampliado por parte da apelada.
Esta tese também não ficou assim demonstrada.
*
Quanto a estas duas teses importa salientar que a restante prova produzida não tem reflexo decisivo, na opinião do Tribunal de recurso, na viabilização de qualquer das respostas alternativas pretendidas no recurso.
Quanto ao depoimento prestado por (…) aquilo que transparece é um proteccionismo da posição do Autor, na medida em que circulando em sentido contrário não poderia ter a noção global da forma como ocorreu o acidente (aliás, o próprio assumiu que «não vejo a parte detrás», «atrás daquele carro não sabe o que passa» e não se apercebe em que zona do veículo ocorreu o embate). Sem o poder garantir acha que o Mercedes nunca entrou na metade da faixa de rodagem por a testemunha seguia – o que está notoriamente em contradição com o facto 15 e 16 (com a direcção da roda lateral dianteira direita a ocupar, parcialmente, a hemifaixa de rodagem destinada ao trânsito que seguia em sentido contrário).
Numa perspectiva lógica-dedutiva, ainda assim, esta testemunha reconheceu que, ao ser accionado o pisca, as viaturas que precediam o Mercedes deveriam ter parado (terá percepção disso ter acontecido) e tal constatação, apesar da verbalização em sentido contrário, não permite explicar com congruência o motivo pelo qual o motociclo não terá seguido o mesmo procedimento.
A testemunha (…) não assistiu ao acidente e a prestação probatória incidiu essencialmente quanto a aspectos relacionados com o estado de saúde e que se repercutem no pedido de indemnização cível formulado. E, como tal, este testemunho careceu de relevo para a avaliação da decisão de facto nos termos requeridos ao Tribunal Superior. E a mesma conclusão se retira dos contributos de (…), que é irmão do Autor, (…) e (…), amigos, que não assistiram ao acidente.
A testemunha (…), médica, é consultora da companhia de seguros e a respectiva contribuição incidiu sobre a matéria do dano corporal, sendo que, obviamente, quanto à matéria controvertida, não teve qualquer impacto para o conhecimento do recurso. A testemunha (…) é profissional de seguros e trabalhava na regularização de sinistros por conta da Ré Seguradora e o testemunho nenhuma influência teve no conhecimento e decisão do recurso em apreço, apenas dando a conhecer a posição da (…) a propósito da declinação da responsabilidade pela produção do acidente relativamente ao respectivo segurado.
*
Cenário 3 – posição final do Tribunal:
Para a Primeira Instância o Autor violou várias regras estradais cuja observância se lhe impunha, não podendo ser assacada qualquer responsabilidade pela eclosão do sinistro ao condutor do veículo segurado na Ré.
Este juízo assentou nos seguintes pressupostos: (i) o Autor avistou o veículo ligeiro de passageiros que se mostrava encostado à faixa de rodagem à esquerda a executar a referida manobra, (ii) circulava sem guardar a distância de segurança do veículo segurado na Ré, que o precedia, (iii) seguia em excesso de velocidade e (iv) executou uma manobra de ultrapassagem pela direita.
E chega à conclusão que a responsabilidade pelo acidente se ficou a dever, unicamente, ao comportamento estradal adoptado pelo Autor, não podendo ser assacada à Ré a responsabilidade pelo pagamento dos montantes reclamados.
Todavia, em certa medida, parte deste raciocínio é incompatível com o ponto 10 dos factos provados, onde se diz que o automóvel virou a direcção do mesmo para a sua direita, endireitando-a. Em determinada leitura tal poderia impedir o motociclo de passar por culpa da viatura segura na Ré. Ou seja, poderá ter havido uma manobra imprevista que impediu o motociclo de passar o Mercedes sem a ocorrência de qualquer embate.
Deveria o Tribunal de Primeira Instância ter descrito com maior pormenor a manobra realizada, a fim de se concluir ou não que esta movimentação cortou (ou não) a linha de trânsito à viatura, acompanhada da introdução das medições tiradas no local do acidente, as quais eram decisivas para formular um juízo concludente a propósito da (in)evitabilidade do embate em função do reposicionamento da viatura.
É certo que a Meritíssima Juíza de Direito refere que não foi a manobra de regresso à faixa da direita que impossibilitou a ultrapassagem que o autor se preparava para levar a cabo, tanto que, aquela manobra não implicou qualquer diminuição do espaço que, à direita da viatura, ficaria livre para o autor passar».
Todavia, esta é uma conclusão que não se pode extrair de qualquer ponto isolado da factualidade provada ou da interacção entre os factos provados. Se assim o entendia o Tribunal a quo teria de inscrever os factos correspondentes na decisão de facto. Trata-se assim de uma petição de princípio ou de uma conclusão sem substrato fáctico de apoio.
Para além desta contradição e/ou obscuridade, a qual resulta da tentativa de pretender conciliar duas posições antagónicas, existe uma insuficiência da matéria de facto quanto à movimentação do motociclo antes do embate. Os factos provados não mencionam qualquer manobra do motociclo até ao momento do impacto.
Desconhece-se assim se o motociclo antes do acidente circulava na sua mão de trânsito, mais à esquerda ou mais à direita da faixa de rodagem. Isto é, a matéria de facto não descreve a trajectória do motociclo e o tipo de condução que o Autor imprimia à sua viatura, donde se possa retirar um cenário de culpa própria na produção do acidente.
Caso circulasse na metade direita da faixa de rodagem, dificilmente o motociclo embateria na parte traseira do Mercedes – por existirem viaturas paradas ou em velocidade reduzida que precediam o veículo seguro. Se, pelo contrário, seguia em manobra de ultrapassagem, tal deveria ser assumido e também descrito o movimento efectuado para reentrar na metade direita da faixa de rodagem e, bem assim, o tipo de condução que imprimia ao veículo.
Da análise global da prova aquilo que resulta é que o condutor do automóvel pretendia virar à esquerda, aproximou-se do eixo da via e os veículos automóveis que o seguiam diminuíram a velocidade e começaram a desviar-se para a direita da faixa de rodagem e que o motociclo não teve essa capacidade (segundo a seguradora) ou oportunidade (na perspectiva do Autor).
Numa das leituras possíveis, na avaliação do Tribunal da Relação de Évora o motociclo terá iniciado uma manobra de ultrapassagem antes da curva, apercebeu-se da existência de um obstáculo (viatura segura na Ré), não podia continuar a circular na metade esquerda da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, por existirem viaturas que circulavam na respectiva mão de trânsito e porque o Mercedes estava prestes a mudar de direcção. Então, numa manobra de salvação, tentou reingressar na metade direita da faixa de rodagem e esgueirar-se entre as viaturas conduzidas por (…) e (…). Em abstracto, isto poderia ser idóneo a evitar qualquer acidente, se o ângulo de entrada no lado direito da metade da via ou a velocidade de realização da manobra o permitissem ou se o condutor do Mercedes não tivesse cortado a linha de trânsito à moto, tal como se poderá retirar do facto acima referido. No entanto, também poderá ter sido de maneira diferente que não foi apurada no julgamento realizado.
A ser assim, caso tal se demonstrasse, esta matéria corresponderia a factos instrumentais ou complementares novos resultantes da instrução. Contudo, os mesmos não podem ser plasmados em primeira mão pelo Tribunal da Relação de Évora em substituição do Julgador a quo, por este Tribunal ter poderes de cognição limitados e delimitados em função do recurso interposto.
Nada disto consta da matéria de facto. Assim, para além da imputada contradição, considera-se indispensável a ampliação da matéria de facto, designadamente para introduzir o trajecto realizado pela moto, apurar se o endireitar da direcção obstaculizou à passagem do veículo conduzido pelo Autor, verter na decisão as medidas da estrada e calcular a velocidade do motociclo em ordem a municiar os actos com elementos de facto que permitam concluir pela responsabilidade (ou não) de algum dos condutores na produção do acidente.
A terminar, temos dois testemunhos que, em sede de julgamento, transmitiram um relato distinto daquele que foi prestado em períodos anteriores, o que pode criar dúvidas sérias sobre a credibilidade dos depoentes, tal como ressalta do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 662.º do Código Processo Civil. Dúvidas essas que devem ser solucionadas, em primeira linha, pela Mma. Juíza de Direito e as quais são susceptíveis (ou não) de desvalorizar a capacidade de convencimento destes testemunhos – tanto pode ser verdadeira a primeira ou segunda versão, mas impõe-se que sejam escrutinados os motivos para a alteração da posição e que se faça o correspondente exame crítico.
Embora tenham sido emitidas em sede distinta, também no direito processual civil o juiz é antes de mais um comunicador da lei e do Direito concreto e, por isso, o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que através das regras da ciência, da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto, sendo que a exigência de motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz mas a permitir que o julgador convença os terceiros da correcção da sua decisão. Na verdade, através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente[15].
Nestes termos ao abrigo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, anula-se a decisão da matéria de facto relativa ao modo como se desenvolveu o acidente e aos demais pontos atrás referidos, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições. * V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar anular parcialmente o julgamento da matéria de facto, ao abrigo do disposto no artigo 662.º do Código de Processo Civil, nos termos acima assinalados.
Sem tributação.
Notifique.
*
Processei e revi.
*
Évora, 18/09/2025
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
Maria Domingas Alves Simões
__________________________________________________
[1] Após conferência do relatório entregue a 15/10/2024 – na resposta constava 18/06/20220.
[2] Ficou ainda consignado na sentença que: «não existem outros factos com interesse para a discussão da causa e os demais alegados são matéria conclusiva e/ou de direito ou repetida, pelo que não se dão como provados ou não provados».
[3] a) Nas circunstâncias referidas nos pontos 5º a 10º dos factos provados e andar da manobra referida na parte final do ponto 10º, a viatura segurada na Ré parou a marcha.
[4] b) A posição em que o veículo segurado na Ré se colocou levou a que o Autor, sem tempo de reação, lhe embatesse.
[5] c) O que sucedeu numa altura em que já havia permitido a ultrapassagem pela direita do motociclo do Autor.
[6] d) O Autor iniciou a manobra depois de se ter certificado de que poderia fazer aquela manobra de ultrapassagem pela direita sem o perigo de colidir com outros veículos.
[7] e) A velocidade que o Autor imprimia à sua viatura.
[8] f) Devido à posição do veículo ligeiro o Autor ficou sem espaço livre ou qualquer outra forma de escapar ao embate.
[9] (9) O Autor circulava, sem guardar a distância de segurança do veículo segurado na Ré, que o precedia.
[10] Artigo 640.º (Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto):
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº2 do artigo 636.º.
[11] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, Coimbra, pág. 191.
[12] Antunes Varela, Miguel Varela e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, págs. 435-436.
[13] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de uniformização de jurisprudência de 21/06/2016, in www.dgsi.pt.
[14] Sobre esta matéria ver, em sentido próximo, o Acórdão da Relação de Lisboa de 19/05/2016, in www.dgsi.pt, que realça que «a prova dos factos assenta na certeza subjectiva da sua realidade, ou seja, no elevado grau de probabilidade de verificação daquele, suficiente para as necessidades práticas da vida, distinguindo-se da verosimilhança que assenta na simples probabilidade da sua verificação».
[15] José Tomé de Carvalho, Breves palavras sobre a fundamentação da matéria de facto no âmbito da decisão final penal no ordenamento jurídico português, Julgar n.º 21, 2013, Coimbra Editora, pág. 87.