CONTRATOS DE ADESÃO
DEVER DE INFORMAÇÃO PRÉVIO
INCUMPRIMENTO
Sumário

I - A lei exige que o aderente seja devidamente informado sobre as cláusulas inseridas em contratos de adesão, em momento prévio à assinatura do contrato, podendo o nível de informação e esclarecimento variar em conformidade com o grau de conhecimentos revelados por aquele e a maior ou menor complexidade do conteúdo contratual.
II - Se não for cumprido o dever de informação pelo predisponente em momento temporal anterior à assinatura do contrato, consideram-se excluídas as cláusulas contratuais em causa, não revestindo interesse para decisão apurar o perfil do aderente.
III - O silêncio da aderente durante a execução do contrato no que se refere às cláusulas tardiamente conhecidas não é suficiente para se concluir que teve uma conduta contraditória (clamorosa) com a posterior invocação da nulidade da cláusula por falta de informação atendendo a que não ficaram demonstrados factos que nos permitam afirmar que criou, com o seu silêncio, a convicção de que tinha conhecimento do seu teor e que não iria prevalecer-se da omissão da predisponente.

Texto Integral

Processo n.º 1528/24.2T8VNG.P1

Relatora: Anabela Andrade Miranda

Adjunto: Alberto Eduardo Taveira

Adjunto: João Proença


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Sumário

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I—RELATÓRIO

“A..., Unipessoal, Lda.”, com sede social na Rua ..., ..., ..., ... ..., e “Banco 1..., S.A.”, com representação permanente em Portugal, com sede social sita na Avenida ..., ..., ... Lisboa, instauraram acção declarativa de condenação com processo comum contra “B..., LDA.”, pessoa coletiva n.º ..., com sede na Travessa ..., ..., ... Vila Nova de Gaia, pedindo que seja condenada no pagamento:

a)De € 11.813,35, a título de capital, indemnização por resolução do contrato e juros de mora por não pagamento de faturas vencidas e não pagas;

b)Dos juros de mora vincendos até integral pagamento, acrescidos das custas e procuradoria condigna.

Alegaram que foi celebrado com a Ré um contrato de locação de equipamentos de cópia/impressão e de prestação de serviço de assistência técnica que não foi cumprido por falta de pagamento das prestações mensais acordadas, tendo sido, por esse motivo, resolvido o contrato.

A Ré reconheceu o não pagamento das prestações vencidas, mas declarou ter pago, após a comunicação da resolução do contrato, a quantia de € 2.000,00 com vista a liquidar facturas vencidas. Mais alegou serem indevidas as quantias peticionadas a título de indemnização pelo incumprimento contratual (por falta de prova da existência de um prejuízo) e despesas de cobrança e que a primeira Autora não cumpriu o dever de comunicação de cláusulas contratuais gerais e que a cláusula penal aplicada é desproporcional em relação ao prejuízo.

As Autoras confirmaram o pagamento da referida quantia que entendem dever ser reduzida ao valor peticionado e consideram abusiva a alegação da falta de conhecimento das condições contratuais pela Ré, porquanto esta nunca suscitou quaisquer questões relativamente ao contrato.


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Proferiu-se sentença que decidiu julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou a Ré no pagamento às Autoras de € 1.377, 23 acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa comercial, até integral pagamento e absolvendo-a do demais peticionado.

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Inconformadas com a sentença, as Autoras interpuseram recurso finalizando com as seguintes

Conclusões

A. O presente recurso de apelação vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal a quo que julgou a ação parcialmente procedente, absolvendo a Ré, aqui Recorrida, do pagamento da indemnização por resolução do contrato peticionada pelas ora Recorrentes.

B. A sentença recorrida considerou não provado, com relevância para a boa decisão da causa, o facto de ter sido dado conhecimento das condições gerais pela 1.ª Recorrente à Recorrida.

C. A ora Recorrente entende, porém, que a sentença recorrida contempla uma errónea apreciação da prova produzida e deriva de uma deficiente aplicação da lei.

D. Uma vez que a aplicabilidade dos artigos 5.º e 6.º do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais deve ser efetuada tendo por base a ponderação diversos fatores e em consideração o caso concreto, como a existência de anteriores relações contratuais ou de o aderente ser uma empresa.

E. Ao representante legal de uma empresa é exigido que atue com os deveres de diligências inerentes ao cargo que ocupa, devendo, aquando da assinatura do contrato, tomar conhecimento e solicitar os esclarecimentos necessários para uma efetiva e clara tomada de decisão.

F. Incorre em abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, a parte que, durante a execução do contrato não suscitou quaisquer questões e após a resolução por incumprimento, alega desconhecer as cláusulas do contrato em causa por forma a se imiscuir das obrigações por si assumidas.

G. Com efeito, a sentença recorrida deverá ser alterada, quanto à parte impugnada, nos termos dos artigos 639.º e 640.º do CPC, por violação do disposto nos artigos 5.º, n.º 2 e 607.º, n.º 4 do CPC.


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A Ré apresentou resposta com as seguintes

Conclusões

A. As Recorrentes não demonstraram o cumprimento do dever de informação prévia, nem na celebração do contrato de prestação de serviços em causa, nem em contratos anteriores, sobre as cláusulas contratuais gerais, especialmente a cláusula penal, violando o Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais (Decreto-Lei n.º 446/85).

B. A cláusula em questão é abusiva e nula por desproporcionalidade (artigo 437.º do Código Civil), além de não ter sido efectivamente conhecida pela Ré no momento da contratação, nem ficou provado que era conhecida anteriormente.

C. O alegado abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium não se configura, pois o silêncio da Ré não induziu as Autoras em erro, já que a comunicação das cláusulas ocorreu tardiamente, sem cumprimento do ónus da prova pelas Recorrentes.


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II—Delimitação do Objecto do Recurso

A questão principal decidenda, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste em saber se as Autoras demonstraram ter informado a contraparte sobre as cláusulas contratuais gerais constantes do contrato de locação designadamente a que se refere às consequências do incumprimento contratual.


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III—FUNDAMENTAÇÃO

FACTOS PROVADOS (elencados na sentença)

A - Factos provados

1. A 1ª Autora, no exercício da sua actividade, celebrou com a ré, a 23 de Agosto de 2020, um Contrato de Locação Operacional Mandatada com serviços incluídos, cujo objecto visou a disponibilização de vários equipamentos de cópia/impressão, bem como a prestação dos respectivos serviços de assistência técnica.

2. Os equipamentos de cópia/impressão fornecidos em regime de locação foram os melhor identificados nas condições particulares do Contrato.

3. Das condições particulares do contrato de locação, assinadas pelo representante da ré, consta, nomeadamente, o seguinte:

“1. Declaração de Adesão

(1)As Condições Gerais e os termos e condições relativos aos tipos contratuais constantes do web site ..., foram remetidas ao Cliente, por correio eletrónico, para o endereço eletrónico indicado supra nas presentes Condições Particulares.

(2)O Cliente reconhece-se esclarecido e informado relativamente aos termos e condições inerente ao(s) produto(s), mercadoria(s) ou serviço(s) contratado(s) e declara ter recebido e entendido toda a informação contratual pertinente, designadamente a relativa a preços, encargos, faturação e efeitos contratuais, não subsistindo qualquer incerteza quando ao conteúdo, sentido e alcance dos respetivos termos e condições contratuais, incluindo as Condições Gerais e as relativas a cada tipo contratual aplicável, que se encontram disponíveis no website para consulta em .../, declarando aderir e ter um conhecimento completo e efetivo das mesmas.”

4. Nos termos da cláusula terceira do contrato, ficou acordado pelas partes que a 1ª Autora estava autorizada pela Ré (locatária) a transmitir a sua posição contratual no presente contrato ao Banco 1..., SA (aqui 2ª Autora).

5. Em 7 de novembro de 2020, no cumprimento da cláusula acima referida, a 1ª Autora cedeu à 2ª Autora a sua posição contratual de locadora no contrato.

6. A referida cessão da posição contratual foi parcial, uma vez que abrangeu apenas a parte financeira do contrato de Doc. 1, ou seja, a parte correspondente às rendas devidas pela Ré decorrentes do contrato de aluguer dos equipamentos de cópia/impressão fornecidos pela 1ª Autora.

7. Deste modo, da cessão da posição contratual ficaram excluídas as prestações de natureza técnica, nomeadamente, as prestações de manutenção e de assistência técnica aos equipamentos de cópia/impressão fornecidos pela 1ª Autora à Ré, que continuaram a ser da responsabilidade daquela.

8. A cessão da posição contratual em causa foi efectuada a título oneroso, tendo a 2ª Autora pago à 1ª Autora € 7.205,43 pela aquisição dos equipamentos de cópia/impressão e respetivos acessórios.

9. A operação de cessão da posição contratual na parte da locação dos equipamentos está de acordo com o estipulado entre a 1.ª Autora e a 2.ª Autora no Protocolo de Locação Mandatada (Protocolo) que foi celebrado entre ambas no exercício das respetivas actividades comerciais.

10. Ao abrigo do Protocolo mencionado no artigo anterior, as Autoras estipularam entre si que seria a 1ª Autora que continuaria a assumir toda a relação comercial com a Ré.

11. Nomeadamente, a 1ª Autora continuaria a factura à Ré todos os serviços de manutenção e assistência técnica prestados no âmbito do contrato.

12. A 1ª Autora continuaria também a facturar à Ré os valores relativos às rendas devidas pelo aluguer dos equipamentos de cópia/impressão.

13. Apesar de a 1ª Autora ter transferido para a 2ª Autora todas as obrigações de natureza locatícia decorrentes do Contrato celebrado com a ora Ré, seria aquela primeira a controlar toda a gestão da execução e cobrança do contrato.

14. Até ao limite da quota-parte do valor correspondente à renda pela prestação dos serviços de assistência técnica, a 1ª Autora facturava em nome próprio e por sua conta e interesse.

15. Até ao limite da quota-parte do valor correspondente à renda financeira pelo aluguer dos equipamentos de cópia/impressão, a 1ª Autora faturava à Ré, em nome próprio, mas por conta e interesse da 2ª Autora, que para o efeito a mandatou através do acima referido Protocolo.

16. A 1ª Autora tem como objecto social o exercício da atividade de importação e comercialização de equipamentos de escritório e prestação de assistência técnica, conforme.

17. A 2ª Autora é uma instituição de crédito que tem por objeto social todas as operações bancárias, financeiras e de crédito em especial por aceitação de efeitos, dedicando-se ainda, entre outras actividades, à compra, venda, utilização e em particular a locação ou locação financeira de qualquer material de equipamento novo ou usado, para uso profissional de qualquer natureza, destinado à agricultura, comércio, indústria e construção, assim como às profissões liberais ou artesanais de quaisquer bens, tanto mobiliários como imobiliários, úteis à instalação e exploração dos mesmos materiais e em geral destinados ao uso profissional.

18. Foi acordado pelas partes que o prazo de duração do contrato descrito em 1 seria de sessenta meses, com início na data de colocação em funcionamento dos equipamentos, renovando-se automaticamente, no final do prazo de vigência, por períodos iguais e sucessivos de 12 meses.

19. Ficou estipulado que as rendas, com o valor de € 236,12, acrescidas de IVA à taxa legal em vigor, seriam pagas com uma periodicidade mensal.

20. Aos valores acima referidos acresciam ainda os montantes de 0,0055 EUR por cada página a preto impressa e 0,045 EUR por cada página a cores impressa e IVA à taxa legal em vigor.

21. De acordo com o n.º 6 da cláusula 3 das condições gerais do contrato, “A falta ou atraso no pagamento de qualquer factura no respectivo prazo de vencimento impede a produção de quaisquer efeitos contratuais relativamente à A..., que poderá, sem necessidade de aviso prévio, recusar-se a prestar quaisquer serviços, fornecer quaisquer bens ou prestar qualquer tipo de colaboração ou informação, até à completa regularização dos seus créditos, sem que tal consubstancie mora ou incumprimento contratual.”

22. Da cláusula 14, nº 7, do contrato de locação, consta que, “Em caso de resolução do contrato, por incumprimento do Locatário, a Locadora poderá, igualmente, exigir ao Cliente, a título de cláusula penal, uma quantia correspondente ao valor de todas rendas vincendas à data da resolução.”

23. Foram emitidas ré as seguintes facturas, com o valor global de 3.377,23 EUR:

24. As referidas facturas englobam a parte correspondente às rendas financeiras vencidas e o valor correspondente à prestação dos serviços de manutenção e assistência técnica.

25. A primeira autora interpelou a Ré para pagamento das referidas facturas.

26. Em 27 de junho de 2023, a 2ª Autora remeteu carta registada com aviso de receção à Ré, comunicando-lhe a resolução do contrato descrito em 1.

27. A 2ª Autora comunicou ainda à Ré, na acima identificada carta, que deveria entregar os equipamentos de cópia/impressão objecto do contrato nas instalações da empresa C..., Lda.

28. Na sequência da comunicação da resolução do contrato, a ré informou por email a primeira autora de que existiam dois equipamentos para levantamento, tendo identificado o respectivo número de série.

29. A cláusula 14, nº 7 das condições contratuais gerais do contrato identificado em 1 prevê o montante de 6.383,34 EUR a título de indemnização pela resolução do contrato em data anterior ao seu termo.

30. Na sequência da falta de pagamento de rendas, foi bloqueado o acesso a diversas funcionalidades das máquinas de impressão, nomeadamente, a função de digitalização.

31. A Ré, em 27 de Julho de 2023, transferiu para a primeira ré a quantia de € 2.000,00, com vista a liquidar parte das facturas vencidas.

B – Factos não provados

A. Aquando da celebração do contrato indicado em 1, a primeira autora deu conhecimento à ré das condições gerais.

B. As autoras incorreram nas seguintes despesas:

a. • 178,32 EUR, a título de despesas com a cobrança extrajudicial;

b. • 1.230,00 EUR, a título de despesas com advogado;

c. • 306,00 EUR, a título de despesas judiciais com o presente processo.


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Da Modificabilidade da Decisão sobre a matéria de facto

Nos termos do artº. 662º. do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

A possibilidade que o legislador conferiu ao Tribunal da Relação de alterar a matéria de facto não é absoluta pois tal só é admissível quando os meios de prova revisitados não deixem outra alternativa, ou seja, em situações que, manifestamente, apontam em sentido contrário ao decidido pelo tribunal a quo.

As Recorrentes não se conformam com a resposta negativa aos factos descritos na alínea A) referentes à informação, aquando da celebração do contrato de locação, sobre as respectivas condições gerais concretamente no que respeita à cláusula penal resultante do incumprimento contratual.

Fundamentam a sua discordância na contradição entre a falta de prova desses factos e as condições gerais do contrato, dadas como provadas.

Acrescentam que foi dado como provada a declaração constante das condições particulares, assinada pelo representante da Recorrida, na qual reconhece ter recebido, previamente à celebração do contrato, o conteúdo das condições gerais e de terem sido prestados os esclarecimentos, declarando ainda ter conhecimento das mesmas.

A Mma. Juíza deu como não provado que, na altura da celebração do contrato de locação em causa, a primeira Autora deu conhecimento à Ré sobre as condições gerais com a seguinte fundamentação que a Recorrente não impugnou:

Para prova da comunicação à ré das condições gerais do contrato com ela celebrado, as autoras juntam o e-mail datado de 22 de Setembro de 2020, cujo assunto é “condições contratuais gerais A...”, com anexos que indicam, para além do mais, “condições gerais”. Também a testemunha AA, funcionário da primeira autora enquanto gestor de cobranças e contratos, confirmou, de um modo que nos pareceu conhecedor, por ter assinado, enquanto representante/procurador da primeira autora, as condições particulares do contrato que as condições gerais do contrato foram dadas a conhecer à ré através de envio por e-mail.

Embora a ré não tenha colocado em causa a recepção deste e-mail e a efectiva existência dos anexos, verifica-se pela sua data que o mesmo foi enviado à ré cerca de um mês depois da celebração do contrato, motivo pelo qual não é possível considerar provado que as condições gerais das quais as autoras se pretendem prevalecer tenham sido comunicadas à ré aquando da celebração do contrato, apenas o tendo sido quando o contrato já se encontrava em execução. Aliás, o gerente da ré, que foi quem assinou as condições particulares do contrato, afirmou peremptoriamente que, embora tenha recebido aquando da celebração do contrato as respectivas condições particulares, não recebeu pela mesma forma, nem nesta data nem anteriormente, as condições gerais.” (sublinhado nosso)

Ora, a exigibilidade do pagamento da cláusula penal está prevista na cláusula 14, nº 7 do contrato de locação cujas condições gerais apenas foram recepcionadas pela locatária um mês depois da celebração do contrato, pelo que se impunha a resposta negativa à comunicação atempada da mencionada cláusula contratual à Ré, não se verificando, por isso, qualquer contradição.

Nestes termos, a decisão não merece qualquer reparo, mantendo-se na íntegra.


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IV-DIREITO

O contrato de locação em apreço enquadra-se nos designados contratos de adesão, por conterem cláusulas elaboradas sem prévia negociação individual, destinadas a uma pluralidade indeterminada de contraentes, o que corresponde à orientação dominante da doutrina e da jurisprudência sobre a matéria-cfr. art. 1.º do Dec.-Lei n.º 446/85 de 25.10. alterado pelos Dec.-Leis n.ºs 220/95 de 31.10 e 249/99 de 07.07.

O Dec.-Lei n.º 446/85 de 25.10 atravessa, longitudinalmente, todo o ordenamento jurídico português, pois é aplicável a todo o tipo de negócio em cujos contratos se incluam cláusulas contratuais gerais, só cedendo perante os casos previstos no seu artigo 3.º.[1]

A Ré invocou a nulidade da cláusula inserida no contrato de locação que se refere às consequências do incumprimento alegando que não foi devidamente informada e esclarecida pela 1.ª Autora.

Nos termos do art. 5.º, n.ºs 1 e 2 do citado diploma, as cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes, de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência.

A lei exige o conhecimento prévio das cláusulas constantes de contratos de adesão, podendo o nível de informação e esclarecimento variar em conformidade com o grau de conhecimentos revelados e maior ou menor complexidade do conteúdo contratual.

A Directiva 93/13/CEE do Conselho de 5.04.1993 relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, transposta para a ordem jurídica interna pelo Dec.-Lei n.ºs 220/95 de 31.10, estabelece, no artigo 5.º, 1.ª parte, que as cláusulas deverão sempre ser redigidas de forma clara e compreensível.

Sobre este segmento normativo do Direito da União Europeia, Marco Paulo Mendes Dias[2] advoga uma interpretação extensiva em consonância com o considerando vigésimo da Directiva sobre as cláusulas abusivas.

O legislador europeu, nesse prévio considerando sobre a noção de redacção clara esclarece que “o consumidor deve efectivamente ter a oportunidade de tomar conhecimento de todas as cláusulas e que, em caso de dúvida, deve prevalecer a interpretação mais favorável ao consumidor.”

Assim, para Marco Mendes Dias, essa norma concretiza o princípio da transparência, impondo uma fácil apreensão das cláusulas pelo cidadão comum, sem ambiguidades, o que implica a análise da aparência gráfica (aspecto formal) e da linguagem utilizada (aspecto material).

O julgador deverá, em obediência ao princípio da interpretação conforme e da prevalência do Direito da União Europeia, interpretar a legislação nacional à luz das finalidades que o legislador europeu pretende alcançar.

Se, por um lado, essa obrigação é de meios e não de resultado, isso não significa, por outro lado, que o predisponente se encontra dispensado de assegurar que o aderente se inteire, de forma completa e adequada, sobre a responsabilidade que está a assumir.

A intensidade deste dever de informação e de esclarecimento depende naturalmente das especificidades e das circunstâncias do caso concreto, nas quais se inclui o perfil do contraente/aderente.

Se não for cumprido este dever, ou seja, se as cláusulas não forem comunicadas nos termos do referido art. 5.º, consideram-se excluídas dos contratos singulares-cfr. art. 8.º.

O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva, nos termos do n.º 3 do artigo 5.º, cabe ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais.

No Acórdão do STJ, de 25/05/2023[3], em que estava em causa a responsabilização das seguradoras, foi suscitado o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, o qual, no seu Ac. de 20.04.2023 (processo C‑263/22), respondeu à primeira e à segunda questões da seguinte forma: «O artigo 4.º, n.º 2, e o artigo 5.º da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, lidos à luz do vigésimo considerando desta diretiva, devem ser interpretados no sentido de que: um consumidor deve ter sempre a possibilidade de tomar conhecimento, antes da celebração de um contrato, de todas as cláusulas que este contém.» (sublinhado nosso)

Concluiu o Supremo Tribunal de Justiça, no douto aresto mencionado, “…que a não comunicação à A. aderente da cláusula contratual 6.1. a), que exclui a cobertura do seguro do risco resultante de doença pré-existente gera–de acordo com os parâmetros indicados nos pontos 42 e 43 da fundamentação do Acórdão do TJUE–uma situação frontalmente contrária à “exigência da boa fé” (no sentido de boa fé procedimental), sendo de qualificar como cláusula abusiva.”

No caso em apreço, é manifesto que as Autoras não cumpriram o ónus da prova sobre esse dever de comunicação das cláusulas contidas nas Condições Gerais do contrato, com a antecedência adequada, designadamente sobre a relevante consequência da resolução do contrato (cláusula penal).

Na verdade, apurou-se que as condições gerais foram remetidas à aderente um mês após a assinatura do contrato de locação, razão pela qual se impõe a conclusão de que a 1.ª Autora não cumpriu a obrigação de informar a contraparte, com a antecedência aconselhável, sobre as consequências que adviriam de uma eventual situação de inadimplemento.

Numa palavra, a Ré não foi informada, como a lei exige, sobre as cláusulas constantes das Condições Gerais do documento em causa, pré-elaboradas, com utilização de conceitos jurídicos em matérias de indiscutível importância, como são as consequências, de natureza indemnizatória, no caso de incumprimento.

Como se explicita no Acórdão do STJ de 23/09/2021[4] “Por outras palavras, tanto falta ao dever de informação (ou esclarecimento) a predisponente que não presta os esclarecimentos pedidos como aquela que, pela forma e tempo de comunicação das cláusulas contratuais, inviabiliza a realização de quaisquer pedidos de esclarecimento.”

Por conseguinte, a argumentação das Recorrentes sobre o perfil da aderente carece de interesse para a decisão porquanto não foi cumprido o dever básico de informação prévia à assinatura do contrato.

Nesta conformidade, a decisão do tribunal no sentido de não atender à cláusula que prevê o pagamento de uma cláusula penal mostra-se, na nossa perspectiva, absolutamente correcta.

Invocam as Recorrentes novamente, nesta sede de recurso, o abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, por entenderem que, durante a execução do contrato, a Ré não suscitou quaisquer questões e só após a resolução por incumprimento, alegou desconhecer as cláusulas do contrato em causa por forma a libertar-se das obrigações por si assumidas.

O instituto do abuso de direito, previsto no artigo 334º do Código Civil, traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Se o titular do direito exceder aqueles limites, mas esse excesso não for considerado gravemente e manifestamente atentatório daqueles valores, não há abuso de direito.

Importa relembrar que a concepção de abuso de direito adoptada pelo legislador é a objectiva[5]. Não se exige que o titular do direito tenha consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico.

O abuso de direito revela-se, com frequência, na chamada conduta contraditória, ou “venire contra factum proprium”, que se caracteriza pelo exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente.

Como refere Baptista Machado, in “Obra Dispersa”, I, p. 415 e seguintes, o ponto de partida do venire é “uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também, no futuro, se comportará, coerentemente, de determinada maneira”, podendo “tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico”.[6]

A proibição da conduta contraditória em face da convicção criada implica que o exercício do direito seja abusivo ou ilegítimo. Impõe, como escreveu o Professor Vaz Serra, in “Revista de Legislação e Jurisprudência”, 105º, 28, “que alguém exerça o seu direito em contradição com a sua conduta anterior em que a outra parte tenha confiado”.

E, com bastante interesse, acrescentam-se os pressupostos sugeridos nesta matéria por Baptista Machado[7]:

a) ter a parte confiado em que adquiriu pelo negócio uma posição jurídica;

b) ter essa parte, com base em tal crença, orientado a sua vida por forma a tomar posições que ora são irreversíveis, pelo que a nulidade provocaria danos vultuosos, agora irremovíveis através de outros meios jurídicos; e

c) poder a situação criada ser imputada à contraparte, por esta ter culposamente contribuído para a inobservância da forma exigida, ou então ter o contrato sido executado e ter-se a situação prolongado por largo período de tempo, sem que hajam surgido quaisquer dificuldades.

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a considerar que os efeitos da invalidade por vício de forma podem ser excluídos pelo abuso de direito, mas sempre em casos excepcionais ou de limite, a ponderar casuisticamente.[8] (negrito e sublinhado nosso)

Nesta conformidade, o Acórdão do STJ de 30/10/2003[9] esclarece que nestes casos de nulidade formal dos negócios, não é qualquer actuação que justifica o impedimento do exercício do direito de requerer a nulidade, antes e porque as regras imperativas de forma visam, por norma, fins de certeza e de segurança do comércio em geral, só excepcionalmente é que se pode submeter a invocação da nulidade à invocação do venire contra factum proprium.

Segundo o estudo de Coutinho de Abreu[10], existem direitos potestativos insindicáveis em termos de abuso de direito nomeadamente o direito de pedir a anulação do negócio jurídico (art. 287.ºCC).

No entanto, a propósito da invocação de nulidade do contrato de arrendamento por vício de forma, matéria em que a jurisprudência discutiu o abuso de direito, aquele autor recordou que Manuel de Andrade defendia a aplicação do abuso de direito “nos casos de nulidade com vício de forma, quando ocorrida (essa nulidade) em circunstâncias que tornem a sua arguição verdadeiramente escandalosa”[11]

Tendo presente os referidos normativos legais bem como as orientações doutrinais e jurisprudenciais sobre a presente problemática, cumpre analisar a factualidade dada como provada neste processo.

A solução preconizada pelas Recorrentes, e bem, não foi acolhida pelo tribunal nos seguintes termos: “Com efeito, o silêncio da ré a este propósito não poderia ter gerado nas autoras a confiança na não alegação da falta de conhecimento das cláusulas contratuais gerais, uma vez que, tendo as mesmas sido comunicadas já durante a execução do contrato, seria de esperar a consulta das cláusulas respeitantes ao incumprimento definitivo apenas caso o mesmo sobreviesse.”

O facto de a Ré não ter suscitado esclarecimentos durante a execução do contrato de locação não é suficiente para se concluir que teve uma conduta contraditória (clamorosa) com a posterior invocação da nulidade da cláusula por falta de informação pois inexistem factos que nos permitam afirmar que criou, com o seu silêncio, a convicção de que tinha conhecimento do seu teor e que não iria prevalecer-se da omissão da 1.ª Autora.

Por outras palavras, não existem elementos objectivos, para além do mero decurso do prazo contratual, e subjectivos, por parte da Ré, que, justificadamente, pudessem ter induzido a Autora a confiar que a nulidade não seria suscitada.

Assim sendo, concordando com a decisão impugnada, também concluímos que não se verifica abuso do direito por parte da Ré na invocação da nulidade da mencionada cláusula contratual.

Nestes termos, a sentença deve integralmente confirmada.


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V-DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso, e em consequência, confirmam a sentença.

Custas pelas Recorrentes.

Notifique.


Porto, 16/9/2025
Anabela Miranda
Alberto Taveira
João Proença
______________
[1] Cfr. Acórdão do Trib. Rel. Lisboa de 03.12.1998, Direitos do Consumidor, Colectânea de Jurisprudência, Deco, 2003, pág. 107.
[2] Dissertação de Mestrado “O vício de não incorporação da cláusula contratual nos contratos de adesão” in www.repositorium.sdum.uminho.pt.
[3] Rel. Maria da Graça Trigo, disponível em www.dgsi.pt
[4] Rel. Maria Graça Trigo, disponível em www.dgsi.pt
[5] v. neste sentido, Lima, Pires de, e Varela, Antunes, Código Civil Anotado, vol I, pág. 298.
[6] v. ainda Cordeiro, Menezes, Da Boa Fé no Direito Civil, pág. 45: “o venire contra factum proprium postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo.”
[7] In RLJ, 118.º, 10/11.
[8] v. entre outros, Acs. de 08.06.2010, 29.11.2011, 28.02.2012, 18.12.2012, e 09.07.2015 disponíveis no site www.dgsi.pt.
[9] Citado no Ac. STJ de 28.02.2012 disponível no site www.dgsi.pt.
[10] v. Do Abuso de Direito, Almedina, 2006, pág. 71 e segs.
[11] v. ob. cit., pág. 92/93, nota 208.