Compete aos tribunais da jurisdição administrativa conhecer da ação intentada por empresa a quem o Município adjudicou a concessão da exploração e gestão de zonas de estacionamento de duração limitada em locais públicos, destinada a obter a condenação de particular utilizador no pagamento das taxas devidas pelo incumprimento do pagamento da taxa correspondente à utilização da zona de estacionamento.
Sumário:
……………………………………..
……………………………………..
……………………………………..
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório:
Identificação das partes e indicação do objeto do litígio
Data Rede, S.A. apresentou requerimento de injunção, ulteriormente distribuído como ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergente de contrato, contra AA para pagamento das quantias de € 1.164,80 (capital), de € 32,51 (juros) e € 76,50 (taxa de justiça).
Para tanto, alegou que, no exercício da sua atividade de exploração e prestação de serviços na área do parqueamento automóvel, adquiriu e colocou em vários locais da cidade de Matosinhos máquinas para pagamento de estacionamento automóvel, com a indicação dos preços e condições de utilização dos mesmos. O requerido, utilizador e proprietário do veículo que identifica, estacionou, nos dias e locais que indica, tal viatura nos vários locais de estacionamento que a requerente explora sem proceder ao pagamento do tempo de utilização. Mais alega que o valor de cada aviso pela falta de pagamento de tais estacionamentos é de € 6,60, € 7,15 a partir de 03/10/2023 e € 7,50 a partir de 01/07/2024, a que acrescem € 15,00 de penalização por falta de pagamento dentro do prazo estabelecido de 15 dias indicados nos respetivos avisos, perfazendo o valor assim devido pelo requerido um total de € 1.164,80, a que acrescem os juros vencidos desde as datas de vencimento dos avisos de pagamento.
Citado, o réu apresentou oposição na qual, no que aqui releva, invocando – além de outras questões – a incompetência material dos tribunais judiciais, defende que, sendo a requerente concessionária da Câmara Municipal de Matosinhos para as Zonas de Estacionamento de Duração Limitada no Concelho de Matosinhos, se está perante litígio da competência da jurisdição administrativa.
Facultado à autora o exercício do contraditório quanto à exceção de incompetência material, pronunciou-se esta pela sua improcedência.
Após, o tribunal a quo, conhecendo da arguida exceção, julgou-se incompetente em razão da matéria e, em consequência, absolveu o réu da instância.
Inconformada, a autora apelou desta decisão, concluindo:
(…)
b) No âmbito da sua atividade, a Autora celebrou contrato com a Câmara Municipal de Matosinhos, através do qual lhe foi cedida a exploração particular de zonas de estacionamento automóvel na cidade sem cedência de quaisquer poderes de autoridade, ou de disciplina.
c) No seguimento deste contrato, a Data Rede adquiriu e instalou em vários locais da cidade, dispendiosas máquinas para pagamento dos tempos de estacionamento automóvel, para as quais desenvolveu o necessário software informático.
d) Enquanto utilizador do veículo automóvel ..-VR-.., o R. estacionou o mesmo em diversos Parques de Estacionamento que a Autora explora comercialmente na cidade, sem proceder ao pagamento do tempo de utilização, num total em dívida de €1.164,80 que o Réu recusa pagar. (…)
f) A natureza jurídica da quantia paga pelos utentes em contrapartida da prestação do serviço de parqueamento é a de um preço e não a de uma taxa.
g) Sendo as Taxas verdadeiros tributos (Art.3º Nr.2 da LGT), que visam a satisfação das necessidades financeiras do Estado e demais entidades públicas e sendo a receita da utilização dos parqueamentos, propriedade da Data Rede, tal contrapartida escapa por definição ao conceito de taxa. (…)
i) A Recorrente ao atuar perante terceiros, não se encontra munida de poderes de entidade pública, agindo como mera entidade privada, pelo que (…) o contrato estabelecido entre si e os automobilistas, relativo à utilização dos parqueamentos explorados, é de natureza privada, cuja violação é suscetível de fazer o utilizador incorrer em responsabilidade civil contratual por incumprimento.
j) A doutrina qualifica este tipo de contrato como uma relação contratual de facto - em virtude de não nascer de negócio jurídico - assente em puras atuações de facto, em que se verifica uma subordinação da situação criada pelo comportamento do utente ao regime jurídico das relações contratuais, com a eventual necessidade de algumas adaptações.
k) O estacionamento remunerado, apresenta-se como uma afloração clara da relevância das relações contratuais de facto e a relação entre a concessionária e a utente resulta de um comportamento típico de confiança.
l) Comportamento de confiança, que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, e sim uma proposta tácita temporária de um espaço de estacionamento, mediante retribuição.
m) Proposta tácita temporária da Autora, que se transforma num verdadeiro contrato obrigacional, mediante aceitação pura e simples do automobilista, o qual, ao estacionar o seu automóvel nos parques explorados pela Autora, concorda com os termos de utilização propostos e amplamente publicitados no local. (…)
o) A DATA REDE SA., não efetua atos de fiscalização, não tendo poderes para autuar coimas ou multas por incumprimento das regras estradais, tarefa que está exclusivamente atribuída às autoridades públicas de fiscalização do espaço rodoviário da cidade.
p) Nos termos do disposto no artigo 2º do DL 146/2014 de 09 de outubro, a atividade de fiscalização incide exclusivamente na aplicação das contraordenações previstas no artigo 71º do Código da Estrada, o qual estabelece as coimas aplicáveis às infrações rodoviárias ali identificadas.
q) Os montantes cobrados pela DATA REDE SA., também não consubstanciam a aplicação de quaisquer coimas, nem a empresa processa quaisquer infrações praticadas pelos utentes dos parqueamentos.
r) Quaisquer infrações ou coimas que devam ser aplicadas aos automobilistas prevaricadores de regras estradais, ficam a cargo da Autarquia, sem qualquer intervenção ou conexão com a atividade da empresa concessionária.
s) A Data Rede (…) nunca atuou nem quis atuar, em substituição da autarquia, munida de poderes públicos concessionados.
t) Entender que os tribunais competentes são os administrativos e de entre estes os fiscais, corresponde a esvaziar de conteúdo e utilidade o Contrato de Concessão de Exploração dos Parqueamentos, por retirar à concessionária o poder de reclamar judicialmente os seus créditos.
u) Institucionalizar este entendimento, fomenta o incumprimento das obrigações dos automobilistas, que cientes da impossibilidade de cobrança coerciva dos valores devidos pelo estacionamento dos seus veículos, deixam de pagar deliberadamente, em claro incentivo ao incumprimento, em direta violação do direito constitucional de acesso à tutela jurisdicional efetiva, previsto e defendido pelo Artigo 20º Nr.1 da Constituição da República Portuguesa.
v) Não estando em causa a natureza pública do contrato celebrado entre a Câmara Municipal e a Data Rede SA., não pode, contudo, este primeiro contrato, contagiar ou ser equiparado, aos posteriores contratos tacitamente celebrados entre a Data Rede e os utentes, pois tais contratos têm natureza privada, até só pela forma como os seus intervenientes atuam.
w) (…) [A]inda que se entenda estarmos perante a prestação de serviços de interesse público (…), as competências dos tribunais administrativos e fiscais estão hoje definidas no artigo 4.º do ETAF (Lei 13/2002, de 19 de fevereiro, aplicável nestes autos com a redação introduzida pelo DL 214-G/2015, de 2 de outubro que alterou as alíneas e) e f) do Nr.1 do Art.4º do ETAF e posteriormente pela L 114/2019, de 12 de setembro, que introduziu a alínea e) ao Nr.4 do Art.4º do E.T.A.F).
x) Da alteração introduzida pelo DL 214-G/2015, resultou que a matéria que antes se encontrava na alínea f) do Nr.1 do Art.4º do ETAF, passou para a alínea e) do mesmo número, mas com conteúdo muito diferente, que não alude às circunstâncias acima referidas, que antes colocavam situações como a dos autos na esfera de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais.
y) (…) [O] contrato de utilização temporária de espaço público para estacionamento em causa nos autos, celebrado entre a empresa privada, ora apelante, e o utilizador privado, ora apelado, não é um contrato administrativo, não é um contrato celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública, não é celebrado por pessoa coletiva de direito público, e não é celebrado por qualquer entidade adjudicante.
z) Da alteração introduzida pela Lei 114/2019, por sua vez, resulta que nos termos da alínea e) do Nr.4 do Art.4º, “estão… excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”.
aa) Da exposição de motivos da Proposta de Lei nº 167/XIII-4ª, que esteve na origem da L 114/2019, consta: “A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição.
bb) Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.”
cc) O serviço de estacionamento não é um dos serviços elencados no Art.1º nº 2 da L 23/96, mas, tal como ocorre nos serviços públicos essenciais, a relação entre o prestador do serviço e o utente é uma relação de direito privado. (…)
Conclui pela competência do tribunal recorrido, indicando terem sido violados os arts. 96.º, al. a), 278.º, n.º 1, al. a), 577.º, al. a) e 578.º do Cód. Proc. Civil, o art. 4.º, n.º 1, al. e), do ETAF e o art. 40.º da Lei n.º 60/2013, de 26 de agosto.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II – Objeto do recurso:
A questão a apreciar respeita à determinação da jurisdição – tribunais judiciais (tribunais cíveis) ou tribunais administrativos – materialmente competente para a presente ação.
Acresce a responsabilidade pelas custas.
III – Fundamentação:
De facto
A matéria de facto relevante para a apreciação do recurso é a descrita no relatório que antecede, e ainda a seguinte factualidade considerada assente na decisão recorrida:
1. A autora celebrou com o Município de Matosinhos, a 07-03-2016, documento intitulado “contrato de concessão “gestão, exploração, manutenção e fiscalização dos lugares de estacionamento pago na via pública e de dois parques públicos de estacionamento para viaturas” (junto com a oposição, cujo teor aqui se dá por reproduzido).
2. Pelo qual o Município concedeu à autora, pelo prazo de 10 anos, a “gestão, exploração, manutenção e fiscalização dos lugares de estacionamento pago na via pública e de dois parques públicos de estacionamento para viaturas, de acordo com a cláusula 11ª e Anexo I do caderno de encargos do referido “contrato”.
3. Obrigando-se a autora, em contrapartida, a entregar ao Município o valor que resultar da aplicação da fórmula constante da cláusula 31ª do caderno de encargos e “de acordo com a proposta apresentada datada de três de julho do ano findo”.
4. A autora apresentou requerimento de injunção contra o réu, alegando que este “estacionou, nos vários parques de estacionamento que a Requerente explora na cidade de MATOSINHOS, sem se dignar proceder ao pagamento do tempo de utilização, conforme regras devidamente publicitadas no local.”
5. Mais refere que “O valor de cada aviso pela falta de pagamento do estacionamento devido nas vias públicas supra indicadas, é de € 6,60, € 7,15 a partir de 03/10/2023 e € 7,50 a partir de 01/07/2024, podendo terem sido emitidos dois avisos diários, caso a duração do estacionamento seja superior a 4 horas, a que acrescem € 15,00 de penalização por falta de pagamento dentro do prazo estabelecido de 15 dias indicados nos respetivos avisos.”
Análise dos factos e aplicação da lei:
São as seguintes as questões de direito a apreciar:
1. Tribunais de jurisdição comum e de jurisdição administrativa
2. Competência material da jurisdição administrativa
3. Relação jurídica objeto da ação
4. Enquadramento da ação na jurisdição administrativa efetuado na decisão apelada
5. Fundamentos da discordância da apelante
5.1. Inexistência de relação jurídica materialmente administrativa
5.2. Violação do acesso ao direito e tutela jurisdicional
5.3. Evolução legislativa do ETAF - repartição da competência material
5.4. Aplicação da al. e) do n.º 4 do art. 4.º do ETAF
6. Conclusão
7. Responsabilidade pelas custas
1. Tribunais de jurisdição comum e de jurisdição administrativa
Os tribunais são, como resulta do disposto no art. 202.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do disposto no art. 2.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, os órgão de soberania que assumem a função jurisdicional: incumbe-lhes “administrar a justiça em nome do povo”, “assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.”.
Do disposto nos arts. 209.º, n.º 1, als. a) e b), 211.º e 212.º da CRP e arts. 40.º e 144.º da LOSJ, dentro da organização do sistema judiciário existem, além de outros, os Tribunais Judiciais (Título V da LOSJ) e os Tribunais Administrativos e Fiscais (Título VI da LOSJ).
Os tribunais judiciais são, nos termos do disposto no art 211.º, n.º 1, da CRP, “os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”, resultando do disposto nos arts. 79.º e 80.º da LOSJ que “os tribunais judiciais de primeira instância são, em regra, os tribunais de comarca”, aos quais compete “preparar e julgar os processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais”. Em consonância, o Cód. Proc. Civil, na Secção I do Capítulo III do Título IV do Livro I, referente à competência em razão da matéria, dispõe no seu art. 64.º quanto à competência dos tribunais judiciais, nos seguintes termos: “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. Por seu turno, do art. 65.º do CPC, quanto aos tribunais e secções de competência especializada, resulta que são as leis de organização judiciária que determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotadas de competência especializada (âmbito da competência material dentro da jurisdição comum, fixada nos arts. 81.º e 111.º a 131.º da LOSJ).
Aos tribunais administrativos e fiscais compete, nos termos do disposto no art. 212.º, n.º 3, da CRP, o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. Tal é repetido no art. 144.º, n.º 1 da LOSJ – “Aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.” –, que dispõe, no seu n.º 2, que “A estrutura, a competência, a organização e o funcionamento dos tribunais administrativos e fiscais são definidos em diploma próprio.”
Tal diploma é o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro.
Dispõe o art. 1.º, n.º 1, do referido ETAF, que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.”
Destas disposições resulta que, para a apreciação do presente recurso, haverá que determinar se a ação intentada pela autora constitui um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa compreendida no âmbito da competência material da jurisdição administrativa, nos termos previstos no art. 4.º do ETAF, como entendeu o tribunal a quo, para fundamentar o afastamento da (sua) competência residual enquanto tribunal da jurisdição comum, definida nos termos dos já citados arts. 211.º, n.º 1, da CRP, arts. 79.º e 80.º da LOSJ e art. 64.º do Cód. Proc. Civil.
2. Competência material da jurisdição administrativa
Do disposto nos acima citados arts. 212.º, n.° 3 da CRP, 144.º, n.º 1 da LOSJ e 1.º, n.° 1 do ETAF, resulta que a delimitação do poder jurisdicional dos tribunais administrativos é feita com base num critério material assente na natureza da questão em litígio: serão da competência material dos Tribunais Administrativos os litígios emergentes das relações jurídico-administrativas,, nos termos da consagração expressa do âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais efetuada no art. 4.º do ETF, como resulta da expressa remissão para tal disposição legal efetuada pelo art. 1.º, n.º 1, do referido Estatuto.
Dispõe tal art. 4.º – Âmbito da jurisdição – nos seguintes termos:
1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;
i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;
j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;
k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;
l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;
o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.
2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.
3 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de:
a) Atos praticados no exercício da função política e legislativa;
b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;
c) Atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões.
4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) A apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso;
b) A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público;
c) A apreciação de atos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e seu Presidente;
d) A fiscalização de atos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;
e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.
Daqui podemos concluir que a competência dos tribunais administrativos é fixada pela natureza jurídico-administrativa da questão em litígio e pela subsunção desta no âmbito da previsão legal do art. 4.º do ETAF.
3. Relação jurídica objeto da ação
É incontroverso, na doutrina e na jurisprudência, que a competência material do tribunal se afere em função da configuração – causa de pedir e pedido – da ação intentada e se fixa no momento em que a ação é proposta, sendo, por regra, irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente (cfr. art. 38.º da LOSJ).
No caso, resulta da factualidade já assente que a atividade de exploração de parques/lugares de estacionamento na cidade de Matosinhos desenvolvida pela autora, com base na qual funda o invocado direito de cobrar ao réu um valor máximo diário pelos períodos de utilização de estacionamento não pagos por este (pedido deduzido), se funda no contrato de concessão celebrado com o Município de Matosinhos supra referido nos pontos 1 – factos provados a 3 – factos provados.
A aferição da competência material para a presente ação faz-se perante tal relação jurídica, assim configurada, que constitui a questão em litígio submetida à apreciação do tribunal.
4. Enquadramento da ação na jurisdição administrativa efetuado na decisão apelada
Na decisão recorrida o tribunal a quo procedeu à subsunção da questão em litígio na al. o) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF, citando a fundamentação do Acórdão deste Tribunal da Relação de 20/2/2025, proc. 79555/24.5YIPRT.P1.
Neste aresto considerou-se que, pretendendo a autora cobrar à ré “um valor máximo diário pelos períodos de utilização de estacionamento não pago, em razão da exploração de parques/lugares de estacionamento ao abrigo de um contrato de concessão celebrado com a Câmara de Matosinhos (…) [tal] exploração e concomitante cobrança pela A., [respeita] a domínio público, [e] é feita ao abrigo do disposto no contrato de concessão celebrado com a edilidade, sendo (…) as tarifas cobradas aos utentes (…) definidas por via do Regulamento Municipal das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada no Concelho de Matosinhos publicado em DR de 8 de março de 2016 – II Série (com sucessivas alterações).” Daqui resulta que “(…) a causa de pedir [da ação] envolve a relação jurídica existente entre o Município (…) e a recorrente, na medida em que tem, na sua génese, a cobrança de uma taxa sancionatória diária pelo estacionamento não pago pelo recorrido.”, pelo que o direito de cobrança invocado pela requerente se insere “(…) no âmbito dos poderes que lhe foram conferidos pela concessão celebrada”.
Sendo do contrato de concessão celebrado que emerge toda a atuação da requerente, está esta a exercer tal atividade “em vez” do Município, sujeita à observância das disposições constantes do aludido Regulamento de Estacionamento e vinculada ainda pelos termos do contrato de concessão celebrado, permanecendo o concessionário “(…) obrigado pelos contornos e conteúdos do que lhe é atribuído. (…) [E]ntre estes, vários ultrapassam as meras intervenções privadas, reconduzindo-se: a interdições, ao exercício próprio de actividade sancionatória e à regulação unilateral e não negociada, antes exercida em nome da legitimidade democrática e de um poder de soberania de natureza executiva. (…)”.
Daqui conclui que se está perante uma “(…) relação jurídica materialmente administrativa, sem que a atribuição de faculdades de intervenção a empresa privada convole a relação para o domínio jus privatístico, já que o regime que regula os contornos da actividade cedida se submetem, manifestamente, a um estatuto substantivo de direito público.”
5. Fundamentos da discordância da apelante
Fundamenta a apelante, no recurso interposto, a sua discordância da decisão recorrida com os seguintes fundamentos:
a) – do contrato de concessão celebrado entre a recorrente e a Câmara Municipal de Matosinhos não resultou a transferência de qualquer poder de autoridade para a recorrente, não possuindo nem atuando esta, perante os terceiros utilizadores do estacionamento, munida de poderes de entidade pública mas antes no âmbito da gestão enquanto entidade privada;
b) – a relação estabelecida entre a requerente/apelante e o requerido/apelado integra uma relação contratual de facto, dela resultando um contrato obrigacional que não possui natureza pública;
c) – os valores cobrados pela recorrente, como contrapartida da prestação do serviço de parqueamento, têm natureza jurídica de preço e não de uma taxa (não possuem natureza fiscal ou sancionatória);
d) – apenas entidades públicas podem cobrar dívidas fiscais, pelo que atribuir aos tribunais administrativos e fiscais a competência para a cobrança dos valores devidos à recorrente retira à concessionária o poder de reclamar judicialmente os seus créditos, em violação do art. 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa;
e) – as alterações introduzidas ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais pelo Decreto-Lei nº 214-G/2015, de 02 de outubro, e pela Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro, alteraram o regime de repartição de competências entre os Tribunais Judiciais e os Tribunais Administrativos até então vigente;
f) – o serviço de estacionamento fornecido pela recorrente aos privados deve ser equiparado aos serviços públicos essenciais, por isso a cobrança do respetivo preço deve enquadrar-se na alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Passaremos, pois, a analisar tais fundamentos.
5.1. Inexistência de relação jurídica materialmente administrativa
Defende a apelante, nas als. a) a c), que a relação jurídica estabelecida entre si (concessionária) e os utentes/utilizadores dos parqueamentos explorados é de natureza privada – cuja violação é suscetível de fazer o utilizador incorrer em responsabilidade civil contratual por incumprimento – e não uma relação materialmente administrativa (a recorrente é uma entidade privada e não pública; não detém nem atua munida de poderes públicos concessionados; os valores cobrados são o preço do serviço prestado e não taxas).
Não lhe assiste qualquer razão, como claramente resulta das seguintes disposições reguladoras constantes do Contrato de Concessão e da regulamentação para a qual aí é expressamente feita remissão.
Com efeito, dispõem as Cláusulas Primeira e Segunda do contrato de concessão junto aos autos, celebrado entre o Município de Matosinhos e a autora aqui apelante em 7 de março de 2016, que «O Município de Matosinhos concede à (…) [Data Rede, S.A.] a “GESTÃO, EXPLORAÇÃO, MANUTENÇAÕ E FISCALIZAÇÃO DOS LUGARES DE ESTACIONAMENTO PAGO NA VIA PÚBLICA E DE DOIS PARQUES PÚBLICOS DE ESTACIONAMENTO PARA VIATURAS”, de acordo com cláusula 11.ª e Anexo I do caderno de encargos (…)», sendo «(…) [o] prazo de concessão de dez anos, não renováveis, contados a partir [da data de outorga do contrato]».
Nos termos da cláusula Terceira de tal contrato, «[a] concessionária entregará trimestralmente ao Município o valor que resultar da aplicação da fórmula constante da cláusula 31.ª do caderno de encargos e de acordo com a proposta apresentada (…)» e, nos termos da cláusula Sétima, «[a] retribuição auferida pela concessionária corresponderá ao total do produto recolhido através dos métodos de pagamento disponibilizados aos utentes no âmbito da Concessão incluindo o valor arrecadado com os “Avisos de Pagamento” ou outros métodos de pagamento voluntário que venham a ser implementados durante o prazo de vigência do contrato;».
Por seu turno, resulta do Caderno de Encargos (igualmente junto aos autos) que a concessionária fica obrigada ao pontual cumprimento de todos os regulamentos e documentos legais aplicáveis nomeadamente as versões atualizadas do Regulamento em vigor das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada do Concelho de Matosinhos (al. a. do n.º 2. do ponto 2. Disposições e cláusulas por que se rege a Concessão do CAPÍTULO I - DISPOSIÇÕES GERAIS), constando expressamente das als. a. e e. do n.º 2 do ponto 11. Objeto da Concessão do Capítulo II - CONDIÇÕES GERAIS DA CONCESSÃO que «O objeto do contrato de Concessão compreende, nomeadamente, a realização das seguintes tarefas pela Concessionária: a. Gestão e manutenção do sistema de estacionamento pago na via pública, a instalar no âmbito da Concessão, incluindo a recolha e cobrança, em nome do Concedente, de todos os valores respeitantes às taxas de estacionamento geradas pelo sistema a implementar no respeito pelos termos definidos no presente Caderno de Encargos, Programa de Concurso e demais legislação aplicável; (…) e. Monitorização do cumprimento das regras definidas no Regulamento do Município de Matosinhos referente às Zonas de Estacionamento de Duração Limitada, nomeadamente por aplicação do Plano de Monitorização e Fiscalização apresentado pela Concessionária e condições descritas no presente Caderno de Encargos;» – realce e sublinhado nossos.
O Código de Exploração, que constitui o Anexo II do Caderno de Encargos, «(…) estabelece os direitos e obrigações específicos das partes relativas à gestão, exploração, manutenção e fiscalização, em regime de concessão de serviço público, dos lugares públicos de estacionamento pagos na via pública e dos dois parques de estacionamento objeto da Concessão, nos locais definidos no Anexo I e até ao limite de lugares concessionados nos termos do (…) Caderno de Encargos» – n.º 1 do art. 1.º (Objeto) do referido Código.
Resulta dos arts. 5.º e 6.º deste Código ser da responsabilidade da concessionária o desenvolvimento de um Plano de Monitorização e Fiscalização que tenha como principal objetivo a monitorização do sistema e fiscalização do cumprimento das condições de utilização das ZEDL’s, previstas no Regulamento do Município de Matosinhos, disponibilizando a concedente «(…) durante o período de funcionamento das ZEDL’s, um mínimo de 4 agentes de fiscalização para a totalidade dos lugares concessionados na cidade de Matosinhos e 1 agente de fiscalização para a totalidade dos lugares concessionados na cidade de S. Mamede de Infesta», cabendo à concessionaria, «[c]om exceção do armazenamento dos veículos rebocados (…) fornecer todos os equipamentos logísticos necessários à execução do trabalho de fiscalização (…)», «(…) manter em bom funcionamento todos os parcómetros coletivos, nomeadamente quanto ao provimento dos seus consumíveis bem como dos encargos inerentes à execução do controlo metrológico anual.» e «(…) fornecer ao Concedente hardware, software e sistemas de comunicação que permitam ao agente fiscalizador o acesso ao sistema de monitorização proposto pela Concessionária.».
Consta ainda do Anexo V – Requisitos para o Plano de Monitorização e Fiscalização – do caderno de Encargos que «[o] Plano de Monitorização e Fiscalização deverá ser elaborado de forma a garantir os níveis de serviço exigidos no Artigo 14º do Código de Exploração, Anexo II do Caderno de Encargos e deve conter os seguintes elementos mínimos: (…) 5. Descrição da metodologia para deteção de estacionamento abusivo em zona concessionada, incluindo controlo da duração máxima do estacionamento. 6. Descrição do procedimento a adotar em caso de deteção de estacionamento abusivo, nomeadamente quanto aos métodos a utilizar para a sua dissuasão exclusivamente dependentes do Concessionária.» – realce e sublinhado nossos.
Por fim, resulta do art. 4.º, n.º 1, do Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada no Concelho de Matosinhos (atualizado – Diário da República, 2.ª série — N.º 147 — 1 de agosto de 2018), que a ocupação de lugares de estacionamento de duração limitada (ZEDL) do Concelho de Matosinhos «(…) fica sujeita ao pagamento de uma taxa dentro dos limites horários fixados, de acordo com o Anexo I, faz parte integrante do presente Regulamento (…)», – realce e sublinhado nossos –, sendo o seguinte o teor do referido Anexo I:
ANEXO I
Limites Horários e Taxas
Artigo 1.º
Horário de estacionamento
1 — A ocupação de lugares de estacionamento nas zonas de estacionamento de duração limitada fica sujeita ao pagamento de uma taxa no período seguinte: Dias úteis — das 9 às 20 horas. Sábados — das 9 horas às 12 horas e 30 minutos.
2 — Fora dos limites horários fixados no número anterior e aos domingos e feriados o estacionamento não está sujeito ao pagamento de qualquer taxa nem condicionado a qualquer limitação de permanência.
Artigo 2.º
Taxas de estacionamento
A taxa horária é a que consta do Regulamento de Taxas e Outras Receitas Municipais (RTORM)
Artigo 3.º
Cartão de Residente
1 — A emissão de cartão de residente, nas modalidades “Condicionado” ou “Ilimitado”, pressupõe o pagamento de uma taxa pela apreciação do processo que consta do Regulamento de Taxas e Outras Receitas Municipais (RTORM).
2 — O cartão de residente, em qualquer uma das modalidades, pressupõe o pagamento de uma taxa anual prevista no Regulamento de Taxas e Outras Receitas Municipais (RTORM).
Sobre os ‘avisos de pagamento’ referidos pela apelante no requerimento de injunção – alegado suporte da obrigação de pagamento dos valores cuja condenação do réu no pagamento pretende obter através desta ação – dispõe o Artigo 19.º do referido Regulamento, nos seguintes termos:
Artigo 19.º
Taxas de Incumprimento [1]
1 — O 1.º incumprimento do tempo de estacionamento determina a emissão de um 1.º aviso para o pagamento, no prazo de uma hora, do valor correspondente ao valor máximo de estacionamento permitido deduzindo o valor entretanto pago pelo condutor;
2 — Ao 2.º incumprimento do tempo de estacionamento corresponderá a emissão de um 2.º aviso, para o pagamento no prazo de duas horas, do valor relativo a uma vez e meia (1,5) do valor máximo de estacionamento permitido (4 horas).
3 — O incumprimento por ausência de título de estacionamento ou por introdução errada dos primeiros quatro dígitos da matrícula corresponderá à emissão do 2.º aviso.
4 — Caso o aviso de pagamento emitido não seja pago no prazo estipulado nos números anteriores, será automaticamente convertido para auto de contraordenação desde que a infração tenha sido presenciada por agente da Polícia Municipal ou outra entidade competente para o efeito nos termos legais em vigor.
5 — Os avisos de incumprimento só poderão ser emitidos dez minutos após o termo da validade do título.
Destas disposições contratuais e regulamentares resulta claramente que a concessionária atua em nome da concedente, exercendo, por força do contrato de concessão, a exploração e gestão de um serviço de natureza pública – respeita ao estacionamento pago na via pública e em dois parques públicos de estacionamento para viaturas –, não se estando aqui, diferentemente do que a apelante alega, perante um preço estabelecido pela apelante como contrapartida da prestação de um serviço privado, mas antes perante o pagamento de uma verdadeira taxa, nos moldes e termos expressamente estabelecidos no Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada no Concelho de Matosinhos e no Regulamento de Taxas e Outras Receitas Municipais (RTORM) – cfr. arts. 2.º e 19.º do Regulamento das Zonas de Estacionamento supra transcritos.
De igual modo resulta afastada a argumentação constante das alíneas o) a s) das conclusões: o que emerge do contrato de concessão é apenas uma divisão entre a concedente e a concessionária das tarefas de fiscalização, tendo necessariamente a execução pela concessionária das responsabilidades que, neste âmbito, lhe foram atribuídas pela concedente e por si assumidas, subjacente uma transferência dos poderes/responsabilidades da concedente nesse âmbito. É por causa de tal transferência de poderes de natureza pública, titulada pelo contrato de concessão, que a concessionária tem poderes e legitimidade para a emissão dos avisos de pagamento previstos no art. 19.º do Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada no Concelho de Matosinhos.
Ou seja, conforme referido no Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 26-06-2025, proc. n.º 126611/24.4YIPRT.P1 [2], «(…) a recorrente apresenta-se nos autos a cobrar a contrapartida fixada pela utilização de um bem do domínio público [no caso, rodoviário – cfr artigo 14.º do Decreto-Lei nº 280/2007, de 07 de Agosto, e n.º 1 do artigo 2º e artigo 70.º, estes do Código da estrada].
A definição dos valores devidos e das isenções aplicáveis mostra-se fixada pela autoridade pública concedente [através do regulamento acima indicado, identificando como taxa o valor a cobrar – artigo 4.º; veja-se, também, a este propósito, o vertido no artigo 3.º e alínea c) do n.º 1 do artigo 6.º, ambos da Lei nº 53-E/2006, de 29 de Dezembro], sem que nisso a recorrente possua mínima interferência, limitando-se a cobrar os valores previamente definidos pelo Município [cláusula 7ª do contrato de concessão].
A outorga de um contrato de concessão não pode alterar a natureza jurídica da contrapartida fixada pela utilização de um bem do domínio público, apenas introduzindo uma intermediação na cobrança da taxa devida, que é decidida e fixada pela autarquia.
E, por isso, a relação que se estabelece entre recorrido e recorrente, actuando esta em substituição de uma entidade de direito na gestão e exploração de um bem do domínio público, deve ser classificada como administrativa (…)».
Concluímos, deste modo, pela improcedência desta argumentação da apelante.
5.2. Violação do acesso ao direito e tutela jurisdicional
Como foi dito no já citado Acórdão de 26-06-2025, proc. n.º 126611/24.4YIPRT.P1, «(…) a cobrança de dívidas nem sempre pode ser feita com imediato recurso à acção executiva – única espécie de procedimento a que o artigo 152º do Código de Procedimento e Processo Tributário se refere [veja-se, no âmbito administrativo, a alínea n) do nº 1 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais].
Aliás, desde logo, note-se como a presente acção não possui natureza executiva. (…)».
Não assiste, assim, qualquer razão à apelante. A mesma pode reclamar judicialmente os seus créditos no âmbito da jurisdição administrativa, através da competente ação de condenação, tal como o pretendia fazer com a presente ação no âmbito da jurisdição comum.
Igualmente improcedente esta linha de argumentação.
5.3. Evolução legislativa do ETAF - repartição da competência material
Falece, de igual modo, a argumentação da apelante vertida nas conclusões w) a aa). Socorrendo-nos novamente do Acórdão de 26-06-2025, proc. n.º 126611/24.4YIPRT.P1, «(…) a alínea o) do nº 1 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, introduzida pelo Decreto-Lei nº 214-G/2015, de 02 de Outubro, e mantida pela Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro, precisamente introduziu o conceito «relações jurídicas administrativas e fiscais» como critério essencial na separação das águas que nos ocupam.
Portanto, afirmar que as alterações legislativas posteriores ao acórdão nº 021/10 do Tribunal de Conflitos alteraram o paradigma em que este fez assentar o esforço de delimitação entre a esfera de competência entre as 2 ordens de tribunais simplesmente não corresponde à verdade – ao contrário, as leis posteriores, vertendo na lei ordinária o que já constava na Constituição da República Portuguesa, precisamente limitaram-se a transpor o critério operacional anteriormente adoptado pelo Tribunal de Conflitos.
Do que decorre, salvo sempre melhor opinião, que a evolução legislativa posterior a 2010 constitui precisamente argumento contrário à tese defendida pela recorrente (…)».
5.4. Aplicação da al. e) do n.º 4 do art. 4.º do ETAF
Defende ainda a apelante que, não obstante o serviço de estacionamento não ser um dos serviços elencados no art. 1.º, n.º 2, da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho), é-lhe equiparável por a ‘relação entre prestador do serviço e o utente ser uma relação de direito privado’, devendo subsumir-se na exclusão do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal da al. e) do n.º 4 do art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
A questão aqui novamente suscitada pela apelante também foi objeto de apreciação e decisão no já citado Acórdão de 26-06-2025, proc. n.º 126611/24.4YIPRT.P1, desta Relação do Porto, que aqui reiteramos: «[I]nexiste mínimo fundamento para equiparar o serviço em causa nos autos [recorde-se, disponibilização de parqueamento automóvel no domínio público] aos serviços públicos essenciais [água, gás, electricidade, etc], quanto mais não seja pela radical diferença entre si quanto à importância para o bem estar das populações.
E, evidentemente constituindo a alínea e) do nº 4 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais uma norma excepcional face ao princípio geral vertido na alínea o) do nº 1 do mesmo artigo 4º, o argumento a contrario sensu [sempre falível, naturalmente] indica-nos, mais uma vez, não assistir razão à recorrente. (…)».
6. Conclusão
O recurso interposto é desprovido de fundamento. De resto, existem já 17 decisões do Tribunal de Conflitos (todas proferidas no âmbito de recursos interpostos pela aqui apelante) que, contra o entendimento novamente suscitado pela apelante no recurso aqui em apreciação, afirmam a competência material dos tribunais da jurisdição administrativa:
1) - 09-07-2025, proc. 0143397/23.2YIPRT.L1.S1;
2) – 09-07-2025, proc. 042546/24.4YIPRT.P1.S1;
3) – 25-06-2025, proc. 069259/24.4YIPRT.P1.S1;
4) – 25-06-2025, proc. 069243/24.8YIPRT.P1.S1;
5) – 25-06-2025, proc. 079555/24.5YIPRT.P1.S1;
6) – 25-06-2025, proc. 042537/24.5YIPRT.E1.S1;
7) – 25-06-2025, proc. 086423/24.9YIPRT.L1.S1;
8) – 25-06-2025, proc. 0126593/24.2YIPRT.P1.S1;
9) – 25-06-2025, proc. 02922/24.4T8PDL.L1.S1;
10) – 25-06-2025, proc. 0143391/23.3YIPRT.P1.S1;
11) – 25-06-2025, proc. 0353/25.8T8PDL.L1.S1;
12) – 25-06-2025, proc. 0143394/23.8YIPRT.P1.S1;
13) – 08-05-2025, proc. 042536/24.7YIPRT.E1.S1;
14) – 08-05-2025, proc. 0118032/24.5YIPRT.L1.S1;
15) – 08-05-2025, proc. 0118584/24.0YIPRT.L1.S1;
16) – 08-05-2025, proc. 0126592/24.4YIPRT.P1.S1;
17) – 08-05-2025, proc. 079534/24.2YIPRT.P1.S1;
Improcede o recurso.
7. Responsabilidade pelas custas
A responsabilidade pelas custas cabe à apelante, por ter ficado vencida (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).
IV – Dispositivo:
Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão apelada.
Custas a cargo da apelante, por ter ficado vencida (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).
Notifique.
Porto, 22/9/2025 (data constante da assinatura eletrónica)
Ana Luísa Loureiro
Aristides Rodrigues de Almeida
Manuela Machado
____________________________________
[1] Sublinhado nosso.
[2] Em que foram adjuntas a aqui relatora e a 2.ª adjunta.