NEGÓCIOS FORMAIS
DECLARAÇÃO NEGOCIAL
INTERPRETAÇÃO
TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
Sumário

I - Na interpretação das declarações negociais o nosso sistema jurídico adoptou a chamada teoria da impressão do destinatário; todavia, antes dessa impressão, conta a vontade real do declarante desde que ela seja conhecida do declaratário; mesmo nos negócios formais pode valer um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto desde que corresponda à vontade real das partes e as razões determinantes da forma se não opuserem a essa validade.
II - Em regra a instauração de uma acção na qual uma das partes num contrato imputa à outra o incumprimento das respectivas obrigações contratuais e pede a sua condenação no cumprimento ou em indemnização pelo incumprimento, não é um acto ilícito passível de fazer o autor incorrer em responsabilidade civil por danos resultantes do conhecimento por terceiros da pendência da acção.

Texto Integral

RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2025:1992.23.7T8PVZ.A.P1

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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. Relatório:
A..., Lda., pessoa colectiva com o nº ..., com sede na Maia, instaurou acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra B... Lda., pessoa colectiva nº ..., com sede em ..., formulando contra esta os seguintes pedidos:
A) Ser declarado e reconhecido que não existe qualquer contrato de cedência de espaço entre a autora e a ré em vigor, o qual cessou, seja pela resolução operada pela ré e transmitida à autora em 23 de Dezembro de 2022, seja na sequência da transacção judicial celebrada no processo nº ..., seja pela resolução com justa causa efectuada pela autora e comunicada à ré em 10 de Outubro de 2023.
B) Ser a ré condenada a pagar à autora a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que causou com a sua conduta, enquanto a autora ocupou as instalações sua pertença, a quantia de 541.677,66 €.
Para fundamentar o seu pedido alegou, em súmula, que em 21 de Março de 2017 autora e ré celebraram um contrato de cedência de espaço e prestação de serviços, através do qual a ré cedeu à autora, mediante o pagamento mensal de 7.500 €, a utilização de um espaço no ..., e obrigou-se ainda a prestar-lhe serviços de diversa natureza relacionados com a utilização desse espaço; ao longo do tempo a ré incumpriu reiteradamente as suas obrigações contratuais; a ré resolveu o contrato por carta enviada à autora em 23 de Dezembro de 2023; em acção judicial instaurada antes relacionada com o conflito entre as partes sobre esse contrato, foi lavrada transacção na qual foi consignado que a ré pretende efectuar alterações ao contrato de cedência de espaço e prestação de serviços, cuja aceitação depende da proprietária do espaço, a autora não tem qualquer intervenção ou responsabilidade nas negociações entre a ré e a proprietária do espaço, e é alheia ao desfecho das mesmas, as negociações entre a ré e a proprietária do espaço serão concluídas no máximo até 31 de Dezembro de 2023, se tal não for possível, a ré obriga-se a entregar o espaço livre de pessoas e bens até à referida data, considerando-se definitivamente resolvido o contrato de cedência de espaço e prestação de serviços celebrado entre a autora e a ré; não tendo sido cumprida essa condição, a autora saiu do espaço e deixou-o livre de pessoas e bens, não havendo qualquer contrato em vigor e não sendo devido o pagamento de qualquer contrapartida contratual; não obstante isso e como a ré continua a reclamar pagamentos, em 9 de Outubro de 2023, a autora, por mera cautela, comunicou-lhe que resolvia o contrato. Mais alegou que em virtude dos reiterados incumprimentos das prestações a que se vinculou no contrato, a ré causou à autora danos de diversa ordem, dos quais a autora pretende ser ressarcida.
A ré foi citada e apresentou contestação, defendendo a improcedência da acção, impugnando para o efeito, parte dos factos alegados pela autora.
Após a audiência prévia, o tribunal a quo entendeu poder conhecer de imediato de parte dos pedidos e, fazendo-o, declarou que o contrato celebrado entre autora e ré em 21 de Março de 2017 cessou efeitos, por revogação, em 29 de Setembro de 2023, e absolveu a ré do pedido de condenação no pagamento de €419.588,73.
A interpôs recurso de apelação da primeira parte dessa decisão (cessação do contrato), terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
A. O recurso em apreço vem interposto do douto despacho saneador proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto, em 30.01.2025, na parte em que, julgando parcialmente procedente a acção, entendeu que o contrato de arrendamento e de prestação de serviços celebrado entre as partes, ora recorrente e recorrida, cessou os seus efeitos a 29.09.2023, data de entrega do prédio pela recorrida.
B. A conclusão assim alcançada pelo tribunal a quo alicerçou-se numa interpretação errónea e contraditória do texto e do contexto que esteve subjacente à transacção judicial celebrada no âmbito de um processo de injunção que opunha as mesmas partes, acabando por concluir – erradamente – que, com a celebração da referida transacção judicial, a recorrente conferiu à recorrida um direito a desvincular-se da relação contratual que existia entre as partes, antecipadamente, e sem qualquer contrapartida.
C. Em 21.03.2017, as partes celebraram um contrato de cedência de espaço e prestação de serviços, com início em 01.05.2017, e duração inicial de 6 anos, renovável automaticamente caso nenhuma das partes o denunciasse com antecedência mínima de 180 dias (cláusula 4.ª do CCEPS e alínea a) dos factos assentes no Despacho recorrido).
D. Desde Junho de 2022 a C..., ora recorrida, encontrava-se em incumprimento quanto ao pagamento das prestações mensais, tendo sido interpelada para proceder ao pagamento devido no prazo de 8 dias úteis, sob pena de resolução do contrato.
E. Não tendo sido efectuado o pagamento das rendas em falta, a B... viu-se obrigada a, por um lado, resolver o vínculo contratual, o que fez por ofício datado de 23.11.2022, e, por outro, instaurar o competente procedimento de injunção, para exigir o pagamento das rendas devidas e de uma indemnização de 50% do valor em dívida.
F. A instância extinguiu-se por transacção judicial celebrada entre as partes em 16.08.2023 e homologada por sentença em 05.09.2023.
G. Na transacção pode ler-se, além do mais, o seguinte: “(…) Cláusula 4ª 1. A Ré [C...] pretende efectuar alterações ao contrato de cedência de espaço e prestação de serviços, cuja aceitação depende da proprietária do espaço; 2. A Autora [B...] não tem qualquer intervenção ou responsabilidade nas negociações entre a Ré [C...] e a proprietária do espaço, e é alheia ao desfecho das mesmas; 3. As negociações entre a Ré [C...] e a proprietária do espaço serão concluídas no máximo até 31 de Dezembro de 2023; 4. Se tal não for possível, a Ré [C...] obriga-se a entregar o espaço livre de pessoas e bens até à referida data, considerando-se definitivamente resolvido o contrato de cedência de espaço e prestação de serviços celebrado entre a Autora e a Ré.” (..).
H. A recorrida não efectuou, logo em Setembro, o pagamento da prestação correspondente a mês de Outubro de 2023, na sequência do que, com a interpelação para efectuar o pagamento, alega a inviabilidade do contrato, porquanto não teria logrado nas negociações com a Espaço Municipal – entidade gestora do parque empresarial onde se insere o locado.
I. Ora, porquanto as negociações tinham de ser encetadas com o proprietário do prédio, i.e., com o Fundo ... – algo que, como resulta dos autos e a própria recorrida admite, nunca aconteceu – a recorrente sempre considerou que o Contrato não foi validamente resolvido, razão pela qual a recorrente recusou a denúncia antecipada e injustificada do Contrato e a entrega das chaves.
J. Mantendo-se o contrato em vigor, assim como o comportamento inadimplente da C..., a recorrente viu-se, novamente, obrigada a resolver o contrato, através de missivas enviadas em 15.12.2023 e 08.01.2024.
K. Actualmente, corre termos um outro processo de injunção, pelo qual a recorrente exige o pagamento as mensalidades vencidas desde Setembro de 2023 a Dezembro de 2023, correspondentes aos meses de Outubro de 2023 a Janeiro de 2024, da indemnização contratualmente prevista, e de uma indemnização pelos lucros cessantes pelo não recebimento das mensalidades devidas até ao termo do Contrato, i.e., as mensalidades relativas aos meses de Fevereiro, Março e Abril de 2024.
L. No despacho saneador, a propósito do objecto do presente recurso, o Tribunal a quo entendeu, sumariamente, o seguinte: i. A resolução operada pela B... em Dezembro de 2022 foi revogada pela transacção, pelo que se manteve em vigor o Contrato. ii. Não se retira da leitura da Cláusula 4.ª da transacção que é imposta a vigência do contrato até Dezembro de 2023, pelo que não pode a recorrente alegar que o Contrato cessou nessa data. iii. Daquela cláusula resulta, diferentemente, a prorrogação do prazo do contrato, no máximo, até 31.12.2023, com possibilidade de resolução em momento anterior. iv. Essa possibilidade de resolução está dependente apenas da vontade da Autora C..., já que da transacção não resulta qualquer dever de a C... encetar negociações com o proprietário do prédio objecto do contrato.
M. Não obstante ter decido pela manutenção da vigência do contrato com a transacção, o Tribunal a quo incorre depois em erro de julgamento quando aprecia o segundo argumento invocado pela recorrida para sustentar a cessação precoce do Contrato.
N. Conforme resulta de uma mera leitura da transacção, esta estipula expressamente a intenção da C... em renegociar as condições do Contrato directamente com o proprietário do locado (o Fundo ...), tendo sido fixado, para esse efeito (das negociações) o prazo de 31.12.2023.
O. Igualmente se determinou que, caso tal não fosse possível (leia-se, em caso de frustração das negociações), a C... poderia a C..., de forma legitima, resolver o contrato, entregando o espaço livre de pessoas e bens até à referida data.
P. Ou seja, da letra do clausulado da transacção resulta que a B... conferiu à C... uma prerrogativa adicional que aquela não tinha contratualmente: uma cláusula resolutiva, i.e., o direito de a C... resolver legitimamente o contrato até 31.12.2023, na hipótese de as negociações que devia encetar com o proprietário do prédio se revelarem infrutíferas.
Q. Com efeito, ainda que as negociações possam ser, efectivamente, um acto preparatório de uma posterior alteração, no caso concreto eram, também, um verdadeiro dever jurídico da recorrida para que pudesse accionar a cláusula resolutiva inserida na transacção.
R. Ainda que não se considere a obrigatoriedade de encetar aquelas negociações como um dever, considerar-se-á certamente que as mesmas constituem, no mínimo, um ónus: a recorrida poderia ser livre de encetar ou não as negociações, mas, ao não o fazer, não obtém o direito de resolução previsto na transacção.
S. Seja de que forma for, entendendo-se a estipulação como um dever jurídico, ou como um ónus, a frustração das negociações – que deveriam ocorrer, no máximo, até ao final de Dezembro de 2023 – era indubitavelmente condição sine qua non para a resolução antecipada do Contrato.
T. Condição essa que, como resulta dos autos, não se verificou.
U. O entendimento veiculado pela recorrente - que a entrega do imóvel e a resolução antecipada do Contrato só são permitidas se não for possível concluir as negociações -, é o único compatível com a análise do circunstancialismo fáctico que presidiu à vontade das partes, harmonizado com o elemento literal do clausulado.
V. Da conjugação do preceituado nos números 3 e 4 da Cláusula 4.ª da transacção resulta que a utilização da expressão “se tal não for possível” não pode ter outro significado que não “se não for possível concluir as negociações com o proprietário até 31.12.2023”, assim se introduzindo a condição de que está dependente o funcionamento da segunda parte da Cláusula 4.ª, a saber, a entrega do locado e a resolução do Contrato.
W. Sucede, todavia, que na interpretação por que pugna o Tribunal recorrido, à C... teria sido concedido, de forma inovatória face à disciplina contratual inicial, um direito de resolução antecipada do Contrato, a exercer de forma absolutamente discricionária. No limite, seguindo-se essa interpretação, a C... poderia resolver o Contrato no dia seguinte à assinatura da transacção.
X. Entendimento este que, além de não fazer o mais ínfimo sentido, atenta contra o elemento literal e teleológico subjacentes à transacção.
Y. A interpretação de que não existe um dever jurídico ou um ónus da recorrida esvazia de conteúdo útil a Cláusula 4.ª da transacção, já que não faria sentido ter-se providenciado à C... a oportunidade de renegociar alterações ao Contrato, estipulando-se um limite temporal para essas negociações.
Z. E mesmo do ponto de vista do comércio jurídico entre privados, não faz sentido que a B... houvesse conferido à C... a possibilidade de resolver o Contrato quando bem entendesse sem lhe ser exigida qualquer actuação prévia à obtenção dessa vantagem, especialmente tendo em consideração que a B... era parte no Contrato do qual recebia – ou devia receber - uma contrapartida financeira.
AA. Ademais, as partes poderiam ter usado a transacção para resolver o Contrato e estabelecer uma data para entrega do prédio, o que não ocorreu, ou estabelecido, concretamente, um direito de resolução a todo o tempo pela C... – o que também não aconteceu.
BB. Tudo considerado, uma vez que não se frustraram as negociações, até porque nem sequer se iniciaram, não se encontra preenchido o pressuposto de que dependia a resolução do Contrato.
CC. A recorrida não pode, pois, fazer-se valer do número 4 da cláusula 4.ª do Acordo para legitimar o acto resolutivo que culminou com a entrega do locado em Setembro de 2023.
DD. Percebe-se, agora, que o verdadeiro plano da C... era resolver antecipadamente o Contrato sem pagar as penalidades devidas, não podendo todavia a recorrente consentir que o Tribunal inadvertidamente compactue com esse desígnio ilícito.
EE. Em suma, a legitimidade da resolução dependia inteiramente da frustração das negociações com o proprietário do imóvel, que visariam a alteração de condições do Contrato. Não tendo sequer iniciado quaisquer negociações nesse sentido, a recorrida não pode resolver licitamente o Contrato, pelo que andou mal o Tribunal a quo ao considerar que o mesmo cessou a sua vigência com a entrega do locado em Setembro de 2023.
FF. Ainda que o Tribunal a quo tenha começado por concluir – e bem – que do clausulado da transacção se retira que as partes revogaram a resolução declarada pela B... em 2022, e que tal revogação implica, necessariamente, a “manutenção da vigência do contrato” (cf. página 6 do despacho saneador).
GG. de forma contraditória vem pronunciar-se, depois, no sentido que “Dos n.ºs 3 e 4 resulta a prorrogação do contrato no máximo até 31 de Dezembro de 2023, com possibilidade de revogação, dependente apenas da vontade da autora [sic], em momento anterior” (cf. página 6 do despacho saneador), HH. E, seguidamente, entende que “Do sentido normal desta cláusula não logra o tribunal retirar que é imposta a vigência do contrato até Dezembro de 2023, a não ser que a autora tente negociar algo, que nem sequer se sabe o que é, com o proprietário do prédio.”.
II. Da transacção não decorre qualquer prorrogação do prazo do Contrato. Não se alterou o prazo inicial de vigência do Contrato, o modo de renovação automática do mesmo, ou a possibilidade e formalidades da denúncia.
JJ. A data de 31.12.2023 referida na Cláusula 4.ª da transacção era a data-limite que a C... tinha para concluir as negociações ou, se não conseguisse concluí-las, entregar o imóvel e resolver o Contrato.
KK. A mera previsão na transacção de uma cláusula resolutiva em nada afecta, de per si, a vigência do Contrato.
LL. Conforme concluiu o Tribunal a quo, a revogação da resolução declarada em Dezembro de 2022 implicou a manutenção da vigência do Contrato e, por conseguinte, o Contrato manteve-se em vigor tal como existia, incluindo no que respeita ao prazo de vigência.
MM. O Contrato, cuja vigência inicial findava em 30.04.2023, renovou-se em 01.05.2023 pelo período de um ano, passando a vigorar até 30.04.2024.
NN. Celebrada a transacção o cenário é, portanto, o seguinte: (i) o Contrato vigora até 01.05.2024; (ii) a C... deve encetar negociações com o proprietário do imóvel, que deve concluir até 31.12.2023; e (iii) caso tais negociações não sejam frutíferas, a C... pode resolver legitimamente o contrato e desocupar o locado, também até 31.12.2023.
OO. Além de não encontrar sustento no elemento literal da transacção, não faria qualquer sentido que as partes prorrogassem até Dezembro de 2023 um contrato que estava em vigor até Abril de 2024, pelo que não pode entender-se, como erroneamente entendeu o Tribunal a quo, que a referência a 31.12.2023 na transacção constitui uma qualquer prorrogação do prazo de vigência do Contrato.
PP. A recorrente não entende - nem, ao contrário do que consta do Despacho Recorrido, alegou -, que a transacção impôs a vigência do Contrato até Dezembro de 2023, nem que é essa a data a considerar como data de cessação do Contrato por virtude dessa suposta imposição.
QQ. A transacção permitia, de facto, que a C... exercesse o seu direito de resolução até 31.12.2023 (o que indica que o poderia fazer antes dessa data), pelo que se concorda com o Tribunal a quo quando afirma que, por virtude da transacção, a recorrida poderia ter resolvido o Contrato antes de 31.12.2023.
RR. Simplesmente, como a C... nunca negociou ou, sequer, entrou em contacto com o proprietário do imóvel, não nasceu na sua esfera jurídica esse direito de resolver antecipadamente o Contrato, pelo que não tem a prerrogativa de o fazer cessar (pelo menos não legitimamente) antes da sua data final de vigência, 30.04.2024.
SS. A recorrente entende que o Contrato cessou por virtude da resolução por si operada nas missivas enviadas em 15.12.2023 e 08.01.2024, na sequência da falta de pagamento das mensalidades subsequentes à transacção por parte da recorrida – cf. documentos n.ºs 20 e 22 juntos com a Contestação.
TT. Ao contrário do que consta no despacho saneador, (i) na transacção, as partes não prorrogaram o prazo do Contrato até 31.12.2023; e (ii) a Ré, ora recorrente, não defende, nem nunca defendeu, que, por virtude da Cláusula 4.ª da transacção, foi imposta a vigência do Contrato até 31.12.2023 e que o Contrato cessou nessa data por causa dessa imposição.
UU. Urge, portanto, a intervenção deste Tribunal para revogar o Despacho Recorrido na parte em que concluiu pela cessação da vigência do Contrato no dia 29.09.2023.
Nestes termos, e nos demais de direito que V.ª Ex.ª doutamente suprirá, deve ser julgado totalmente procedente o presente recurso e, em consequência,
a) ser revogado o despacho saneador na parte em que julgou a acção parcialmente procedente e declarou que o contrato celebrado entre autora e ré em 21 de Março de 2017, exarado no documento n.º 1 junto com a petição inicial, cessou efeitos, por revogação, em 29 de Setembro de 2023.
adicionalmente, b) ser o despacho saneador substituído naquela parte por outra decisão que conclua que a cessação do contrato ocorreu por virtude da resolução operada pela ré, ora recorrente, nas missivas enviadas em 15.12.2023 e 08.01.2024, exaradas nos documentos n.ºs 20 e 22 da contestação,
ou, subsidiariamente, c) ser o despacho saneador substituído naquela parte por outra decisão que determine que prossigam os ulteriores termos do processo também quanto ao primeiro pedido formulado pela autora recorrida.
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
A autora, por sua vez, interpôs recurso da totalidade da decisão (cessação do contrato e improcedência de parte do pedido de indemnização), concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
1. A resolução do contrato é uma declaração de uma das partes que faz cessar o contrato, produzindo os seus efeitos assim que chega ao conhecimento da outra parte.
2. Emitida e recebida, torna-se eficaz, sem que a parte contrária possa contestá-lo, implicando a cessação automática das obrigações contratuais das partes.
3. A resolução (eficaz) implica a colocação das partes na posição em que se encontrariam se o contrato não tivesse sido celebrado.
4. Para que a resolução eficaz seja dada sem efeito, importa que as partes assim o acordem expressamente ou que tal resulte da sua actuação em termos que um destinatário normal colocado na posição do real declaratário assim o concluiria.
5. Uma transacção no âmbito de uma acção judicial movida pela recorrida contra a recorrente, em que, além do pagamento de diversas verbas, invoca a resolução efectuada e recebida, na qual as partes acordam quanto ao pagamento dos créditos de parte a parte e admitem celebrar novo contrato se as condições que dependem de terceiro o permitir não corresponde a um acordo definitivo de repristinação do contrato resolvido.
6. Quando muito, tal será um acordo para, logradas as condições consideradas essenciais pela recorrente que dependem de terceiro, voltarem a negociar os demais termos que estão na disponibilidade da recorrida (e recorrente).
7. Só então haverá novo contrato, sendo certo que o novo contrato nunca poderá ser havido como a repristinação do anterior porquanto conterá estipulações diversas que são essenciais para uma das partes e que não constam do contrato resolvido.
8. Sendo novo contrato, por definição não pode ser a repristinação do anterior.
9. Qualquer declaratário normal, colocado na posição da recorrente, só poderia interpretar a sua vontade e interesse como só estando disponível para continuar no local mediante a celebração de novo contrato (e não com base no anterior) que incluísse novas estipulações, umas dependentes do acordo com terceiro e, só após, outras dependentes de acordo com a recorrida.
10. Qualquer declaratário normal, colocado na posição da recorrida, só poderia interpretar a vontade e interesse da recorrente em celebrar novo contrato com a recorrida assim que lograsse acordo com terceiro (ou abdicasse desse acordo) e que esta só estaria disponível para a celebração de novo contrato se a recorrente aceitasse os termos que iria propor e que não se confundiam com aquele acordo entre a recorrente e o terceiro.
11. Em síntese, o que resultou da transacção foi a possibilidade de a recorrente negociar com o terceiro que tinham a última palavra nalguma das condições – essenciais para si e indiferentes para a recorrida – e, depois, ver-se-ia se era possível a recorrente manter-se no local, com novos termos.
12. A condição aposta na transacção não se reduzia à celebração futura do contrato, mas também e de antemão, à obtenção das condições para tal.
13. Também todas as razões adiantadas permitem concluir que o alegado pela recorrente é o que mais sentido faz perante o que foi declarado, ao invés daquele que o tribunal a quo lhe procurou dar.
14. O conhecimento imediato do mérito poderá ocorrer no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento.
15. Existindo factos controvertidos relevantes que, por si só permitem outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito, não pode ocorrer, em sede de despacho saneador, esse conhecimento.
16. Não sendo essa antecipação admissível, os autos devem prosseguir normalmente com a produção de prova remetendo-se a apreciação do mérito para a sentença final.
17. Nesta fase impõem-se que o tribunal a quo dê prevalência a um critério objectivo e prudente, permitindo às partes a produção da prova que requereram e protestaram apresentar.
18. Cingindo-se a decisão do tribunal a quo à simples leitura dos documentos juntos, descurou outros que foram protestados juntar partindo do princípio (errado) de que outros meios de prova são admissíveis, tais como a prova testemunhal, declarações de depoimento das partes.
19. Ainda que possa desvalorizar outros meios de prova, não pode simplesmente coarctar às partes a sua produção, até porque é matéria que admite todo o tipo de prova.
20. Finalmente, embora usando o critério da interpretação e da conformação mínima entre as declarações das partes e a realidade, fá-lo sem a produção de prova que se impõe, pelo que as conclusões a que chega estão viciadas ab initio.
21. Ao percorrer esse caminho, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 595.1.b) do CPC e 236 do CC.
De todo o exposto, deverá ser revogado o saneador na parte em que decide parcialmente do mérito da causa, devendo ser substituído por acórdão que ordene o prosseguimento dos autos para conhecimento da totalidade da matéria controvertida, refazendo os temas da prova.
A recorrida respondeu a estas alegações sustentando a improcedência dos fundamentos do recurso e pelejando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i. Se estavam reunidas as condições para o tribunal conhecer de imediato do primeiro pedido e de parte do segundo pedido.
ii. Na afirmativa, em que momento se deve considerar extinto o contrato.
iii. Na afirmativa, se a autora não tem o direito de ser indemnizada dos danos que o tribunal a quo rejeitou.

III. Das condições para o conhecimento do mérito nesta fase:
A. Pedido de declaração de que o contrato cessou:
Para conhecer da parte do objecto da lide de que conheceu, o tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
a) A celebração do acordo datado de 21 de Março de 2017, nos termos exarados no documento n.º 1 junto com a petição inicial (fls. 28), não impugnado pela ré;
b) Remessa pela ré à autora e sua recepção por esta da declaração junta como documento n.º 2 junto com a petição inicial, intitulado “resolução do contrato de cedência de espaço e prestação de serviços” (não obstante a ré argumentar nos arts. 54.º e ss. Da contestação que esta declaração foi revogada pela transacção posterior, não nega a emissão desta declaração e sua remessa à autora);
c) A celebração do acordo datado de 16 de Agosto de 2023, nos termos exarados nos documentos n.º 6 a 8 juntos com a contestação, aludido pela autora no art. 59.º da petição inicial, que posteriormente não impugnou os documentos juntos pela ré;
d) A autora desocupou o espaço cedido por via do acordo referido em a) em 29 de Setembro de 2023 (art. 93.º da petição inicial, não impugnado).
Por outras palavras, o tribunal a quo só tinha ainda como provados os factos atinentes ao teor do contrato celebrado, à carta enviada pela ré em 23.12.2023 comunicando à autora a resolução desse contrato, ao teor da transacção celebrada pelas partes noutra acção judicial contendo cláusulas que se referem a este contrato e, por fim, à data em que o espaço objecto do contrato foi desocupado pela autora.
Estes factos são suficientes para o tribunal decidir a data em que se deve considerar que o contrato se extinguiu definitivamente?
A resposta é, salvo melhor opinião, negativa.
Convém começar por fazer referência ao facto de o pedido da autora se encontrar formulado de forma deficiente (seja ..., seja …, seja…, não esclarece o sentido do que se pretende) e só por via de interpretação do articulado se conseguir ter a noção exacta do que a autora pede realmente ao tribunal, deficiência que nenhuma das partes anotou e cujo aperfeiçoamento o tribunal a quo não determinou.
Admitindo, no entanto, que o pedido é (na sua redacção deficiente que permanece incólume não é) aquilo que as partes parecem supor e o tribunal a quo não questionou, decidamos a questão colocada.
O Mmo. Juiz a quo manifestou o entendimento de que a extinção do contrato passa decisivamente pela interpretação do termo de transacção e nesse aspecto parece-nos que bem.
A carta da ré de 23.12.2023 procedeu clara e intencionalmente à resolução do contrato. Se nada mais se tivesse passado depois disso era forçoso concluir que o contrato se extinguiu nessa ocasião e por essa via.
Resolvido um contrato, ele só pode ser reposto em vigor por acordo de ambas as partes, sendo certo que, em principio, como sucede com qualquer outra declaração negocial, o acordo de reposição ou repristinação de uma relação contratual pode ser expresso ou tácito, verbal ou formal.
Convém, no entanto, distinguir duas possibilidades que embora conduzam ao mesmo efeito prático são juridicamente bem diferenciadas.
Uma coisa é as partes acordarem repor a relação contratual que existia entre elas e que havia cessado por efeito da revogação; outra coisa é as partes acordarem em neutralizar por algum tempo os efeitos da resolução, prescindindo uma delas, temporariamente, em benefício da outra, da faculdade de exercer de imediato o direito à restituição do bem objecto do contrato a que tinha direito em virtude da resolução operada.
Na primeira situação, são eliminados os efeitos da revogação e as partes passam a estar de novo vinculadas pela totalidade dos deveres e obrigações contratuais - este passa a estar de novo em vigor. Na segunda situação apenas são suspensos os efeitos práticos da revogação; as partes não passam a estar de novo vinculadas ao contrato, continuam sim vinculadas, por mera tolerância do credor concedida no âmbito de um contrato de transacção (judicial), à manutenção temporária do status quo que o contrato havia criado, ou seja, a parte continua a poder utilizar o espaço cuja fruição o contrato lhe havia outorgado e a estar obrigada a pagar a correspondente contrapartida, não mais que isso.
Esta distinção é essencial para interpretar o teor da transacção judicial, cuja redacção, adiante-se já, é compatível com várias interpretações, havendo nela elementos que apontam em sentidos opostos.
Pretender que no futuro sejam introduzidas alterações no contrato não parece totalmente compatível com a reposição do contrato … sem as alterações.
A necessidade de negociar com terceiro (sem que a autora assuma expressamente a obrigação de o fazer) as alterações parece deixar em aberto a possibilidade de a negociação não ter sucesso, o que briga com a reposição do contrato tal qual quando se pretende que o mesmo seja alterado, as alterações dependem de terceiro e não estão balizadas entre as partes.
A obrigação de «entregar … o espaço, considerando-se definitivamente resolvido o contrato» parece pressupor que o contrato está em vigor porque não se pode resolver um contrato que já se encontra … resolvido (se é que a expressão «resolvido» significa mesmo resolução e não, por exemplo, denunciado, caducado).
Acresce que como se escreve no Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Coordenação de Carvalho Fernandes e Brandão Proença, Universidade Católica Editora, 2014, 537, «mesmo quando o significado das palavras e expressões utilizadas é aparentemente claro e inequívoco, pode não ser esse o sentido juridicamente relevante; basta que a isso leve a consideração de outros elementos ou circunstâncias atendíveis. Noutros termos, o sentido relevante da declaração apura-se no seu contexto. A lei não limita, em geral, os elementos ou circunstâncias susceptíveis de serem levados em conta na interpretação. Apenas exige, no caso dos negócios formais, que o resultado interpretativo apurado tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento (artigo 238.º). No âmbito desses elementos de informação ou circunstâncias, que, apesar de meios auxiliares da interpretação, podem revelar-se decisivos, cumpre assinalar: (i) o contexto negocial em que a declaração aparece; (ii) eventuais antecedentes próximos ou elementos preparatórios; (iii) o ambiente ou contexto externo, de facto e jurídico, em que a declaração é emitida; (iv) a finalidade da declaração (ou negócio); (v) o tipo de negócio em causa, bem como os valores e interesses em jogo; (vi) as práticas negociais gerais, os usos, especialmente relevantes no comércio internacional, e as concepções do tráfico que tenham relação com o negócio em causa; (vi) a anterior e subsequente prática negocial entre declarante e declaratário, se existir; (vii) o modo como a declaração ou o negócio em que se integra vem sendo executado
O tribunal a quo entendeu que na interpretação das declarações negociais o nosso sistema jurídico adoptou a chamada teoria da impressão do destinatário da declaração. Isso é correcto, mas convém ter presente a totalidade do que dispõem os artigos 236.º a 238.º do Código Civil, e que é o seguinte:
Artigo 236.º (Sentido normal da declaração)
1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.
Artigo 237.º (Casos duvidosos)
Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.
Artigo 238.º (Negócios formais)
1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
2. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.
Daqui resulta que antes da impressão do destinatário conta a vontade real do declarante desde que ela seja conhecida do declaratário e ainda que, havendo dúvidas, prevalece nos negócios onerosos o sentido que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.
Decorre ainda que mesmo nos negócios formais pode valer um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto desde que corresponda à vontade real das partes e as razões determinantes da forma se não opuserem a essa validade.
Castanheira Neves, in Questão-de-Facto - Questão-de-Direito ou o Problema Metodológico da Juridicidade, Almedina, 1967, páginas 334 e 335, escreveu o seguinte: «Abstraindo de uma primeira e radical posição da doutrina - hoje de todo superada - que tinha incondicionalmente por «questão-de-facto» qualquer concreto juízo jurídico sobre as declarações negociais, já porque a própria «subsunção» delas seria questão-de-facto, já porque as regras interpretativas, mesmo as prescritas na lei, não seriam verdadeiras normas jurídicas, vemos que [sic] o pensamento actualmente comum (a doutrina tradicionalmente dominante) a acordar nos pontos seguintes. E unânime o aceitar-se a averiguação do facto da «declaração de vontade» (da sua emissão e existência empíricas, por forma oral, escrita, ou por qualquer outro modo de comportamento), e da intenção psicologicamente efectivas (reais) das partes, e bem assim a averiguação das «circunstâncias», precedentes, concomitantes ou ulteriores do negócio, como averiguações e determinações seguramente «de facto». Não se discute também, por outro lado, que a preterição das regras legais interpretativas e do mesmo modo a estrita «subsunção» - a qualificação do negócio segundo os tipos negociais legalmente previstos e a imediata aplicação dos preceitos jurídicos que os regulam - caiem [sic] de imediato no domínio da «questão do direito». As dúvidas – e, portanto, o problema – vêm a localizar-se na questão de saber se a actividade puramente interpretativa, a determinação do sentido juridicamente relevante das declarações negociais - a interpretação em sentido estrito - se reduzirá a uma averiguação ou apuramento de factos, em último termo à actividade probatória, ou se não manifestará antes uma intenção e um juízo especificamente jurídicos».
Na jurisprudência, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/10/2014, proc. n.º 319/04.1TCSNT-A.L1.S1, in www.dgsi.pt, entre muitos outros assinalou o seguinte: «… em sede de interpretação de negócios jurídicos, crendo-se ser este o entendimento uniformemente assumido por este Supremo, constitui matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, o apuramento da vontade psicologicamente determinável das partes, sendo matéria de direito a fixação do sentido juridicamente relevante da vontade negocial, isto é, a determinação do sentido a atribuir à declaração negocial em sede normativa, com recurso aos critérios fixados nos arts 236.º, nº 1 e 238.º, nº 1 do CC, competindo ao Supremo apreciar se a Relação, na actividade interpretativa, observou esses critérios legais, se se conteve ou não dentro dos limites dos mesmos. E daí que o apuramento da vontade real do declarante e o conhecimento dessa vontade pelo declaratário constitua matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, que, por isso, o Supremo não pode reapreciar; envolvendo já matéria de direito a determinação do sentido a atribuir à declaração negocial em sede normativa, com recurso aos critérios fixados nos citados arts. 236º, n.º 1 e 238º, n.º 1. Com efeito, a determinação/indagação da real intenção dos contraentes ou a sua actuação concreta, quer no acto de vinculação negocial (emissão de declaração negocial expressa ou tácita), quer no desenvolvimento ou execução do “iter negotii” (“lex contractus”), constitui «a se» matéria de facto cujo apuramento é da exclusiva competência das instâncias. Só quando se encontre em causa a interpretação (efectuada pelas instâncias) de uma declaração negocial segundo (ou por aplicação de) critérios normativos – de harmonia com a teoria da impressão do destinatário, acolhida no nº 1 do artº 236.º – é que a questão passa a ser de direito, como tal já podendo e devendo ser conhecida e sindicada pelo Supremo Tribunal de Justiça.»
Sendo assim, desde que as partes, preocupadas com a interpretação de documentos contendo declarações de vontade negocial, aleguem factos destinados a demonstrar a sua vontade real, aquilo que no decurso das negociações efectivamente falaram e acordaram, o tribunal não pode interpretar os documentos sem previamente proceder ao julgamento desses factos pois os mesmos podem perfeitamente impedir a interpretação dos documentos com recurso à teoria da impressão do destinatário ou sobrepor-se a esta interpretação.
Ora observa-se que a autora alegou diversos factos destinados a demonstrar aquilo que foi conversado, entendido e acordado entre as partes sobre a transacção judicial que vieram a formalizar por escrito.
Nos artigos 62 e seguintes, a autora alegou que ela e a ré « acordaram em aferir da possibilidade de a autora continuar no espaço mediante a celebração de um novo contrato desde que fossem garantidas as condições necessárias para tal», «condições essas que a ré declarou não ter capacidade de as garantir por si, encaminhando a autora para a entidade que considerava ter esse poder», e que «permitiriam a continuidade da autora no local e a celebração de um novo contrato». Por sua vez a ré alegou no artigo 12.º da contestação que «o contrato permaneceu em vigor, ou seja, pelo menos até 1 de Maio de 2024, porque as partes assim o quiseram».
Estes factos são de momento controvertidos, pelo que o tribunal terá obrigatoriamente de proceder à produção dos meios de prova antes de os julgar provados ou não provados. Uma vez que alegadamente repercutem a «vontade real das partes» é manifesto, para nós, o seu interesse para a apreciação do mérito do primeiro pedido, pelo que deverão submetidos à produção de prova antes de o tribunal poder julgar este pedido.
Eis porque quanto a esta parte da decisão recorrida, esta tem de ser revogada a fim de que os autos prossigam para julgamento da matéria de facto relevante para esse conhecimento (v.g. a relativa à vontade real e ao contexto da celebração da transacção judicial).

B. Pedido de indemnização por danos:
Já depois de conhecer de parte deste pedido, o Mmo. Juiz a quo sentiu a necessidade de justificar essa opção, afirmando que «ponderou remeter a apreciação de todo o pedido indemnizatório para final, em ordem a evitar possíveis contingências processuais que pudessem resultar de recursos interlocutórios. Ocorre no entanto que, por um lado, e sempre salvaguardando muito respeito por outro entendimento, o tribunal assume poucas dúvidas a respeito da interpretação e aplicação do direito que sustenta este conhecimento parcial do mérito, e por outro tem presente que o apuramento da factualidade que sustenta a parte do pedido que ora se conhece redundaria numa extensa actividade instrutória inútil, num autêntico atentado à economia processual».
Salvo o devido respeito, esta posição é inaceitável.
O conhecimento parcial não é algo cuja realização dependa da vontade discricionária do juiz; ele só pode ter lugar se e quando estiver preenchida a circunstância em que isso é consentido pela lei processual; essa circunstância é a de todos os factos indispensáveis para esse conhecimento se encontrarem já provados ou só podendo ser provados por documento autêntico a parte ter sido notificada para o juntar e não o ter feito.
As dúvidas de direito são irrelevantes até pela simples razão de que para decidir o juiz tem de superar as suas dúvidas intelectuais e tomar uma posição final sobre a interpretação e aplicação das regras jurídicas, pelo que a dúvida é um estado transitório do processo mental da decisão, jamais é critério de decisão.
Esses factos indispensáveis estão provados? A resposta é claramente não.
Tanto assim que na decisão recorrida o Mmo. Juiz a quo não elenca um único facto para servir de fundamentação de facto da decisão proferida, o que inclusivamente gera de imediato a nulidade da própria decisão por falta de fundamentação (de facto). Acresce que este pedido não coloca uma pura questão de direito pelo que não prescinde do apuramento da matéria de facto que suporte a decisão.
Para conhecer do mérito deste pedido o tribunal a quo recorreu a documentos particulares juntos aos autos, interpretando-os e considerando inelutável a interpretação que deles fez. Essa opção não é, com todo o devido respeito, aceitável porque esses documentos são meros meios de prova e podem ser complementados por outros meios de prova, sendo certo que tendo sido oportunamente impugnados os factos que através deles se pretende demonstrar, eles permanecem controvertidos e têm de ser submetidos a julgamento, antes de o juiz poder decidir com fundamento nos factos que se vierem a provar (por intermédio desses documentos e/ou de outro qualquer meio de prova ainda não produzido).
Para mostrar que isto tem aplicação prática no caso refira-se o que segue.
Em relação aos lugares de estacionamento a autora alegou que independentemente do que consta do contrato a ré se obrigou a disponibilizar-lhe 44 lugares, conforme aliás fez na vigência dos anteriores contratos e continuou a fazer até à pandemia.
A autora terá de provar este facto e pode prová-lo independentemente do que consta do contrato, sendo certo que o modo como o contrato era executado é uma boa ferramenta para decidir o concreto teor da vontade das partes.
Em relação ao fornecimento de energia eléctrica a autora alegou que a ré se obrigou a fornecer-lhe energia a preço inferior em 40% ao custo de mercado, facto que foi impugnado.
Apesar do que consta do contrato, a autora não está impedida de provar esse facto, sendo certo que existe no contrato uma cláusula a mencionar precisamente que a energia fornecida à autora «tem um custo inferior ao do mercado em cerca de 40%, situando-se na data de assinatura do presente contrato em 12,2 cêntimos de EUR / kwh».
Ora na actividade da autora essa energia é um custo de funcionamento particularmente relevante, pelo que se pode questionar a razão de ser dessa cláusula do contrato e o que a mesma encerra verdadeiramente, sendo certo que a boa fé na celebração do contrato como no seu cumprimento é obrigação de ambas as partes.
Onde nos parece que é acertada a decisão de julgar já parcialmente improcedente o pedido de indemnização é em relação à parcela de €78.847,50 dos danos alegadamente suportados em virtude de a ré ter instaurado uma acção judicial contra a autora e por essa via estar ter perdido a oportunidade de entrada de um investidor no seu capital social.
Esse segmento do pedido pode ser julgado já porque a questão que determina esse julgamento e o respectivo desfecho é puramente jurídica e a solução abstrai do que se provar relativamente ao conteúdo do contrato.
Com efeito, em principio, deve distinguir-se a responsabilidade contratual da responsabilidade civil ou delitual.
Se o fundamento da acção é a responsabilidade contratual, o autor necessita de alegar a existência de uma relação contratual que sejam parte o próprio autor e a pessoa demandada. A responsabilidade contratual é a responsabilidade pelo incumprimento das obrigações a que a contraparte se obrigou perante o lesado no âmbito de um contrato entre ambos celebrado. A ilicitude que gera a obrigação de indemnizar é a violação dos deveres de prestação correspondentes a essas obrigações contratuais, da inexecução pelo devedor da prestação a que estava obrigado (artigo 798º do Código Civil).
Ora, como é óbvio, embora existisse entre as partes uma relação contratual, dessa relação contratual não resulta para nenhuma das partes o dever de prestação de não demandar judicialmente a outra para obter o cumprimento do contrato ou responsabilidade pelo seu não cumprimento!
Ao invés, é dos princípios básicos do estado de direito não apenas o direito ao cumprimento das obrigações assumidas perante si como o direito de qualquer pessoa poder recorrer aos tribunais para exercer os seus direitos ou os direitos de que se considera titular. Por outras palavras, o facto de uma parte num contrato instaurar uma acção contra a outra com fundamento no alegado incumprimento do contrato não é, jamais, geradora de responsabilidade contratual.
E pode ser fundamento de responsabilidade extracontratual? A resposta é que em regra não, mas excepcionalmente, nos casos previstos na lei, até pode ser.
Nos termos do artigo 483.º do Código Civil, “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. Ao definir o âmbito da responsabilidade civil, este preceito distingue duas modalidades básicas de ilicitude: a violação de um direito de outrem e a violação de qualquer disposição legal destinada à protecção de interesses alheios.
No primeiro caso, a ilicitude advém da ofensa perpetrada a um determinado bem jurídico que a lei protege mediante a qualificação desse interesse como um verdadeiro direito da pessoa. No outro, a ilicitude provém de uma actuação desconforme com a regra de conduta que a lei impõe como forma de tutela de interesses de outrem. Ao lado dessas duas modalidades básicas de ilicitude para efeitos de responsabilidade civil, encontram-se várias outras previsões específicas de actos ilícitos (e não, como defendem os recorrentes, consagrações particulares de preenchimento da segunda parte da previsão do n.º 1 do artigo 483.º).
Uma deles é o artigo 484.º do Código Civil, segundo o qual quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom-nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados. Aqui a ilicitude traduz-se na ofensa ao crédito ou ao bom-nome de uma pessoa singular ou colectiva, através da divulgação de factos susceptíveis de os prejudicar.
A ofensa ao crédito da pessoa ocorre quando se atinge, diminui ou coloca em causa a confiança dos outros na capacidade ou na vontade de uma pessoa para satisfazer as suas obrigações, a crença dos outros em que a pessoa não faltará aos seus compromissos. Já o bom nome de uma pessoa é ofendido quando se prejudica, diminui ou coloca em crise o conceito favorável que a pessoa tem na comunidade, o reconhecimento público da imagem positiva que ela logrou obter ou construir na comunidade com que se relaciona e onde é conhecida, o seu prestígio ou reputação.
A instauração da acção por incumprimento contratual pode afectar o direito ao crédito do demandado, ou seja, a imagem pública de que o demandado beneficiava quanto à sua capacidade ou vontade de honrar e satisfazer os seus compromissos de natureza económica, a projecção social das aptidões e capacidades económicas dos autores (apud Capelo de Sousa, in O Direito Geral de Personalidade, Coimbra, 1995, pág. 304).
Contudo, não há violação do direito ao crédito de alguém sem a publicitação do acto que pode afectar esse direito, sem se tornar pública a imputação a alguém de uma actuação que possa atingir, diminuir ou colocar em causa a confiança dos outros na capacidade ou na vontade da pessoa para satisfazer as suas obrigações.
Para haver ilicitude, consubstanciada numa violação injusta do direito ao crédito, é necessário que o agente tenha tornado pública a imputação da actuação que pode importar a lesão do direito, tenha transmitido essa imputação a terceiros levando-os a crer na imputação e a formarem uma convicção sobre a veracidade da imputação e a actuarem em conformidade com isso.
Apenas por considerar que tinha um crédito sobre a autora e por reclamar desta a satisfação desse crédito a ré não cometeu qualquer ilicitude! Se assim não fosse nenhuma acção judicial poderia ser instaurada porque qualquer afirmação de que o demandado não cumpriu obrigações a que se vinculou contratualmente é susceptível de comprometer o direito ao crédito deste. Nessa situação, o artigo 484.º do Código Civil deixaria de ser uma previsão de tutela delitual (responsabilização do devedor) para ser converter na derradeira protecção do inadimplente (responsabilização do credor)!
Não tendo sido alegado que a acção foi instaurada com a intenção directa de afectar o direito ao crédito do demandado e que a sua instauração foi intencionalmente comunicada aos eventuais investidores da demandada, jamais se pode considerar que a ré violou o disposto no artigo 284.º do Código Civil.
A vida é feita de relações, umas desejadas outras indesejadas. Toda a existência em comunidade pressupõe riscos. Não é possível a qualquer pessoa reclamar para si um esfera de intocabilidade, de insusceptibilidade de ser atingida senão por relações úteis, agradáveis, fundadas, favoráveis, desejadas ou queridas. Na sua actuação, a pessoa move-se por crenças, convicções, juízos, nos quais radica as suas decisões e em função dos quais actua, ainda que por vezes se venha a deparar com decisões erradas, com actos, afinal, injustificados. O mesmo risco, a mesma álea tem de aceitar e permitir aos outros.
A mera instauração da acção pode ser fundamento de responsabilidade?
Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil anotado, vol. II, pág. 259, afirmava que “o Estado tem … de abrir o pretório a toda a gente, tem de pôr os seus órgãos jurisdicionais à disposição de quem quer que se arrogue um direito, corresponda ou não a pretensão à verdade e à justiça”.
O direito de acesso ao direito é um instrumento da defesa dos direitos e interesses legítimos, mas é igualmente elemento integrante do princípio material da igualdade e do próprio princípio democrático, já que este não pode deixar de exigir também a democratização do direito – assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, pág. 162 -.
No direito de acesso aos tribunais inclui-se o direito de acção, ou seja, o direito subjectivo de provocar a decisão de um órgão jurisdicional sobre determinada pretensão, requerendo a abertura de um processo com essa finalidade.
Nas palavras de Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, 1999, vol. I, pág. 3, o direito de acção exerce-se mediante a dedução de pretensões (ou pedidos, como o código continua a preferir chamar-lhes), pelas quais o autor (ou o réu reconvinte, ou ainda o terceiro interveniente principal activo ou oponente) se afirma titular dum direito ou outro interesse legítimo e, consequentemente, solicita uma providência processual para a respectiva tutela. A disponibilidade da tutela jurisdicional exprime-se, antes de mais, pela liberdade de decisão sobre a instauração do processo (art.º 3º, nº 1). Não podendo o tribunal substituir-se nunca às partes na iniciativa destas, ao autor cabe dar início à instância, mediante a propositura da acção; por seu lado, o réu pode deduzir reconvenção ao abrigo do art.º 266º numa situação de litígio relacionado com o prefigurado na acção.
Contudo, a instauração de uma acção judicial (declarativa ou executiva) e a causação com a mesma de um resultado danoso, pode, excepcionalmente, suscitar várias possibilidades de enquadramento da responsabilidade do autor da iniciativa processual pelos danos causados ao demandado pela tramitação da acção.
A primeira possibilidade é estritamente processual ou de responsabilidade civil processual (por oposição a responsabilidade civil material). Tratar-se-á da responsabilidade que se ancora em normas estritamente processuais, destinadas essencialmente a proteger a neutralidade da utilização do mecanismo judicial, mediante a imposição às partes de deveres de rectidão de comportamento no exercício do direito de acção ou de defesa como forma de criar as condições para que o tribunal actue e possa fazer justiça no seio de um processo equitativo.
Essa é a responsabilidade que resulta em primeira linha do instituto da litigância de má fé previsto nos artigos 542.º a 545.º do Código de Processo Civil. Mas que resulta ainda de outras normas espalhadas pelo Código de Processo Civil e mesmo pelo Código Civil que se aplicam em situações processuais específicas e que encontram a sua razão na circunstância de nessas situações haver uma maior possibilidade de afectação dos direitos do demandado injustamente: os procedimentos cautelares em que a tutela jurisdicional é conferida após análise sumária (artigos 374.º do Código de Processo Civil e 621.º do Código Civil) e o processo executivo sumário em que a penhora é feita antes de o executado poder exercer a sua oposição à execução (artigos 858.º e 774.º do Código de Processo Civil). O que estas normas têm de característico é o de tornarem ilícitos comportamentos processuais, não obstante a Constituição da República Portuguesa consagrar o direito de acesso aos tribunais e à justiça entre os direitos fundamentais que são dotados de uma tutela extremamente densa e ampla em comparação com outros direitos.
Para além da responsabilidade processual, a actuação no processo pode perfeitamente fazer o seu autor incorrer em responsabilidade civil, bastando para o efeito que essa actuação, para além dos efeitos processuais que produz e sem prejuízo destes, consubstancie uma violação ilícita de direitos subjectivos legítimos da parte visada por eles.
Num simples exemplo: se a parte aproveita o seu articulado de uma acção para produzir graves ofensas à honra e consideração social da outra parte, nada impede que essas afirmações possam fazer o seu autor incorrer em responsabilidade civil perante o ofendido. Para o efeito, apenas é necessário que estejam reunidos todos os requisitos do instituto da responsabilidade consagrados no artigo 483.º do Código Civil, sendo certo que não é por consubstanciar actos processuais que a actuação do agente deixa de ser ilícita por ser violadora de direitos subjectivos alheios, ainda que se deva ter presente o disposto no artigo 150.º, n.º 2, do Código de Processo Civil que representa uma causa de exclusão da ilicitude baseada na necessidade de adequação prática dos direitos subjectivos de uma parte com o direito de acesso à justiça da parte contrária.
Também não se pode excluir que exista entre as partes no processo uma relação especial de confiança, que pode ser já uma relação contratual ou ainda apenas uma relação de negociação (artigo 227.º do Código Civil), que lhes imponha deveres de actuação ou de abstenção de actuação cujo incumprimento seja gerador de responsabilidade pelos danos causados. Esse comportamento (activo ou omissivo) gerador da obrigação de indemnização pode ser, e na maior parte das situações será, extrajudicial, ao nível das situações normais da vida dos agentes, mas também pode ser processual, designadamente quando a parte se arroga num direito que essa relação não lhe confere e actua judicialmente para exercer um direito de que sabe não ser titular.
Decorre da garantia geral do património (artigo 601.º do Código Civil) a responsabilidade de todos os bens do devedor pelo cumprimento das suas obrigações. Não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor com essa finalidade (artigo 817.º do Código Civil). Por conseguinte, o accionamento pelo credor dos mecanismos judiciais tendentes a obter a satisfação (na medida do possível) do seu crédito, onde se inclui a liquidação em benefício dos credores em processo de insolvência, é, em princípio, lícita.
O direito de acesso à justiça é um direito constitucionalmente garantido, dotado da tutela que é própria dos direitos fundamentais. Essa circunstância impõe algum cuidado na responsabilização da parte que toma a iniciativa do processo pelas consequências da sua instauração. Designadamente, não pode nunca permitir que da simples perda da demanda se conclua pela ilegitimidade da iniciativa processual e pelo dever de indemnizar a parte contrária dos prejuízos sofridos em consequência da demanda.
Mas esse direito não é, como não são outros de maior relevo, irrestrito ou insusceptível de adequação prática e, portanto, não pode servir nunca para legitimar toda e qualquer iniciativa processual. Seria inconcebível que o processo, enquanto conjunto de regras instrumentais destinadas a permitir a aplicação do direito substantivo ao caso concreto e a realização da Justiça, pudesse afinal permitir a violação impune de direitos materialmente consagrados. Se o processo serve, por exemplo, para que uma pessoa ofendida nos seus direitos de personalidade possa obter o ressarcimento dos danos que essa violação lhe causou, evidentemente que não pode servir para acobertar nova violação desses direitos no decurso do processo e através do processo e isentar de responsabilidade o autor do novo acto ilícito.
O direito de acção é um direito instrumental, no sentido de que não consubstancia em si mesmo um direito subjectivo material, mas é somente o mecanismo através do qual se obtém a tutela dos direitos substantivos. Esse direito não compreende nem exige no e para o seu exercício qualquer carta branca para se poder dizer ou fazer tudo no processo, designadamente violar legítimos direitos de outrem.
A Constituição de República Portuguesa consagra no seu artigo 20.º o direito de acesso aos tribunais, dizendo que a todo o direito corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente. O mesmo consagra o legislador ordinário no artigo 2.º do Código de Processo Civil. Em ambos os casos a consagração é irrestrita, isto é, não exceptua as violações de direitos perpetradas no âmbito de um processo judicial, o que significa, precisamente com base nesses preceitos, que também a pessoa que viu os seus direitos violados no âmbito de um processo goza da faculdade de lançar mão dos mecanismos judiciais que tenham por objecto reconhecer os seus direitos em juízo, prevenir ou reparar a violação deles, realizá-los coercivamente.
Acresce que o princípio da boa fé, enquanto ideia conformadora dos direitos e dos respectivos exercícios, é hoje uma aquisição inalienável da ordem jurídica, que nela actua de forma transversal em ordem à justa tutela das posições jurídicas. Um dos corolários desse princípio é o instituto do abuso de direito que está presente em todo o sistema jurídico e, como tal, também, no sistema de regras que é o caminho para a realização dos direitos materiais, isto é, o processo. O processo visa antes de mais a protecção, a defesa, a realização, o ressarcimento da violação dos direitos legítimos, dos direitos merecedores - quanto ao conteúdo ou ao modo de exercício - dessa tutela e, por isso, tem de ser ele mesmo inócuo, no sentido de que tal como deve ser garantia da efectiva tutela a que tende, não pode ser ele mesmo fonte de violação desses direitos. O contrário seria uma afronta flagrante do princípio da boa fé que nada justifica e, sobretudo, uma violação das próprias regras de direito material enformadas por aquele.
Assim, em regra, uma actuação processual que importe a violação de direitos materiais legítimos não pode deixar de constituir um acto recusado pela ordem jurídica, um acto ilícito quae tal. Por isso, desde que essa actuação corresponda a um acto culposo, não pode deixar de implicar responsabilidade civil pelos danos que forem consequência dessa actuação.
Portanto, a questão não é se é possível violar direitos legítimos de outrem através de um processo judicial, coisa que nos parece aceitável, mas apenas se no caso concreto a actuação processual foi efectivamente ilegítima e preencheu a totalidade dos requisitos da figura jurídica onde radica a responsabilidade.
No caso concreto, face à causa de pedir que a autora elegeu para a sua pretensão, não está em causa na acção a eventual responsabilidade (processual) da ré por litigância de má fé.
Poderá estar em causa a responsabilidade civil. Mas esta requer como primeiro requisito a ilicitude da actuação violadora dos direitos de outrem. Ora, na definição do âmbito da responsabilidade civil (artigo 483.º do Código Civil), a nossa legislação divide a ilicitude em duas modalidades básicas: a violação de um direito de outrem e a violação de qualquer disposição legal destinada à protecção de interesses alheios. A melhor doutrina considera, com apoio no elemento histórico e de coerência sistemática, que o direito de outrem que a norma tem em vista tem de pertencer à categoria dos direitos subjectivos. Como quer que se defina o conceito de direito subjectivo, há-de reconhecer-se que o mesmo não se confunde com os meros interesses jurídicos nem com os direitos relativos ou de crédito cuja violação importa responsabilidade contratual.
Porém, existe um espaço de actuação que de forma alguma pode ser reconduzida ao espaço da liberdade geral de agir em que responsabilidade esteja ausente. É o caso das condutas destinadas a causar dolosa ou intencionalmente danos a outrem. Mas muito embora não exista na parte relativa ao direito das obrigações e especificamente à responsabilidade civil qualquer normativo que consagre um dever de indemnização como decorrência dessas condutas, encontra-se na parte geral do Código Civil consagrada, em termos suficientemente amplos, a figura do abuso do direito (artigo 334.º).
É altamente controversa a questão de saber se o abuso do direito constitui uma fonte específica de responsabilidade delitual, ou seja, se a ilegitimidade com que o instituto cobre uma determinada actuação encerra um juízo de ilicitude quae tale que permita fundar uma obrigação de indemnização dos danos causados por essa actuação. Porém, pela via do recurso à previsão normativa específica do artigo 334.º do Código Civil e ao instituto do abuso de direito enquanto fonte de ilicitude geradora de responsabilidade delitual ou pela via de um princípio cogente da vida jurídica em comunidade imposto pelo mínimo ético-jurídico aceitável e, portanto, com recurso a uma norma não escrita que permita suprir a manifesta mas intolerável lacuna de previsão do nosso sistema de responsabilidade civil, a doutrina aceita comummente que os danos causados dolosamente com ofensa dos bons costumes geram obrigação de indemnização, mesmo quando provindos de condutas que não correspondem ao exercício de direitos em sentido técnico mas apenas ao normal usufruto da liberdade de agir.
Tendo a parte o direito constitucionalmente garantido de acesso aos tribunais e à justiça, a instauração de uma acção, qualquer que ela seja, é, em princípio, um acto lícito, no sentido de ser consentido pela ordem jurídica.
A afirmação de que isso é assim no pressuposto de que a parte tenha o direito que por via da acção quer exercer, não pode obviamente ser acolhida porque qualquer acção judicial tem inerente a controvérsia sobre o direito, a possibilidade legitima de as partes possuírem versões desencontradas sobre o direito, ainda que só a uma delas venha a ser dada razão.
A demonstração prévia da existência do direito material que se quer exercer não pode nunca ser um requisito do exercício do direito de acção, pois só quando o tribunal profere a decisão se pode saber se a pretensão do autor era ou não fundada. O direito de acesso aos tribunais compreende necessariamente o direito de poder demonstrar em juízo que se tem o direito, mesmo que se venha a decair nessa pretensão. Nessa medida, a instauração da acção não se torna ilegítima e ilícita se a final o autor decair na sua pretensão. Para ser considerada ilícita é necessário encontrar o fundamento da ilicitude da iniciativa processual noutra sede.
Nessa medida, a não ser que se demonstre que a exequente tinha absoluta consciência de que não era titular do direito de crédito que pretendeu exercer e que actuou apenas com intenção de causar prejuízos à autora, caso em que se poderia equacionar a sua responsabilização com fundamento no instituto do abuso do direito ou na apontada lacuna do nosso sistema de responsabilidade civil (tutela do mínimo ético-jurídico), está excluída a possibilidade de fundar a obrigação de indemnização dos danos causados pela iniciativa processual na norma do artigo 483.º do Código Civil.
Ora no caso nenhum desses factos foi alegado pelo que fica afastada a ilicitude da decisão de instaurar a mencionada acção e, consequentemente, excluída a obrigação de indemnizar os danos que eventualmente se tenham produzido na esfera jurídica da autora como reflexo do conhecimento por outrem da pendência da acção.
Por estas razões de natureza puramente jurídica e, como tal, passíveis de serem apreciadas já, essa parte do pedido é inelutavelmente improcedente.
Em conclusão, com excepção desta parte, a decisão recorrida deve ser revogada, de forma a que os autos prossigam os seus termos para julgamento e oportuno conhecimento de mérito. Esse desfecho prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas nos recursos.

IV. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar os recursos da autora e da ré parcialmente procedentes e, em consequência:
a) confirmam a decisão recorrida na parte em que julga improcedente o pedido de indemnização formulado pela autora quanto à parcela de €78.847,50 por danos decorrentes da instauração de uma acção judicial pela ré, absolvendo esta do pedido nessa parte;
b) revogam a decisão recorrida na parte restante, ordenando o prosseguimento dos autos para julgamento e ulterior conhecimento do mérito com base na fundamentação de facto que se provar.
Custas dos recursos por ambas as partes na proporção de metade.
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Porto, 22 de Setembro de 2025.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 907)
Isabel Ferreira
Manuela Machado

[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]