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INVENTÁRIO
ADQUIRENTE DE QUINHÃO HEREDITÁRIO
LEGITIMIDADE ATIVA
Sumário
A massa insolvente para a qual foi apreendido um quinhão hereditário possui legitimidade processual para requerer inventário para partilha dessa herança.
Texto Integral
Processo: 118/22.9T8VLC.P1
Acordam os Juízes que integram a 3ª secção do
Tribunal da Relação do Porto
Relatório:
A massa insolvente de AA, representado pelo administrador da insolvência, intentou perante notário processo de inventário destinado à partilha da herança deixada por óbito de BB, falecido a 25 de Maio de 1998, CC, falecida a 22 de Junho de 1998, com última residência em ..., ..., Vale de Cambra.
Ainda antes de nomeado cabeça-de-casal foi determinada a remessa dos autos para os meios comuns, ao abrigo do disposto no artigo 12º da Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro, sendo o processo distribuído ao juízo de competência genérica de Vale de Cambra.
DD foi nomeada cabeça-de-casal [despacho de 06 de Julho de 2023, referência nº 128296048].
Citada, a cabeça de casal veio arguir a ilegitimidade processual da requerente para a instauração do processo de inventário, por, defende, a massa insolvente não possuir a qualidade de interessado directo para efeitos do disposto no artigo 2101º do Código Civil.
Conclui pedindo a declaração de ilegitimidade processual da requerente do inventário, com a consequente extinção da instância.
Notificada, a requerente do inventário pronunciou-se sobre a questão, defendendo a improcedência da excepção arguida.
Na sequência, é proferida decisão que, julgando procedente a excepção dilatória de ilegitimidade processual activa da requerente do inventário, declara a extinção da instância.
É desta decisão que, inconformada, a requerente do inventário vem interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1- O princípio aferidor do conceito de legitimidade no âmbito do inventário tem consagração no artº 1085º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Civil, que estipula que têm legitimidade: «Os interessados diretos na partilha e o cônjuge meeiro ou, no caso da alínea b) do artigo 1082.º, os interessados na elaboração da relação dos bens”;
2- O ter ou não ter interesse direto na partilha é que comanda a legitimidade para requerer ou intervir no inventário e não a qualidade de herdeiro, sendo que o conceito de interessado direto é bastante mais abrangente do que o de herdeiro.
3- Faz errada interpretação da Lei o Tribunal a quo quando considera que não assiste legitimidade ativa à Massa Insolvente para requerer a partilha da herança, porquanto não adquiriu o estatuto de herdeira, nem se tornou interessada direta.
4- O processo de insolvência é um processo de execução universal, que tem como finalidade a satisfação de todos os credores de um devedor através da liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do respetivo produto pelos credores.
5- A massa insolvente eì integrada por “todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo” – Art.46º do CIRE.
6- O quinhão hereditário tem determinada utilidade económica (em função dos bens, direitos e obrigações que compõem a herança) e é alienável (cfr. art. 2124º, C.C.) e partilhável (cfr. Art.2101º. do Código Civil).
7- O intuito da apreensão do quinhão hereditário para a Massa Insolvente é a sua liquidação e repartição do produto pelos credores do insolvente, em linha com a finalidade do próprio processo de insolvência. Esta liquidação tanto pode ocorrer por meio da venda do quinhão hereditário, como por meio da venda dos bens que vierem a preencher a sua quota, ou eventualmente, pelo recebimento de tornas;
8- Nessa medida, não pode deixar de ser reconhecido à massa insolvente um interesse direto e legitimo na partilha da herança;
9- A apreensão do quinhão hereditário, excluídos os poderes estritamente pessoais do herdeiro insolvente, transfere para a Massa Insolvente todos os seus direitos ou toda a sua posição relativamente ao bem, e entre estes está o direito de exigir a divisão nos termos do Art. 2101º do Código Civil;
10- Aleìm disso, prescreve o artº 81º, nº 1, do CIRE, que a “declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência”, e o n.º 4 estabelece que “O Administrador da Insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de caráter patrimonial que interessam à insolvência”;
11- Deste normativo não resulta apenas a subtração dos poderes de disposição e administração dos bens ao insolvente, com a consequente impossibilidade de ser requerente do processo de inventário;
12- Resulta do espírito das normas que compõem o CIRE que a declaração de insolvência é de natureza patrimonial, que se reflete nos poderes de atuação do insolvente nesse domínio da esfera jurídica, e que os poderes de que o devedor fica privado são atribuídos ao administrador da insolvência;
13- Assim, não é de acolher a posição tomada quer pelo Tribunal a quo, no sentido de tolher ao herdeiro declarado insolvente, o direito de requerer o inventário para partilha do acervo hereditário, quer por si, quer enquanto massa insolvente, quer através do administrador de insolvência, constrangendo-o com a sua tese a permanecer na indivisão;
14- A prevalecer o entendimento tendente à ilegitimidade processual ativa do Sr. Administrador de Insolvência, para em representação da massa insolvente instaurar o presente inventário, incorreria numa clamorosa, conquanto inconstitucional, denegação de justiça deixando o tempo da partilha exclusivamente na vontade dos demais interessados, com consequências prejudiciais óbvias para os credores e manietando o legítimo exercício dos poderes adjetivos e substantivos conferidos ao administrador da massa insolvente;
15- E doutra sorte uma violação da tutela jurisdicional efetiva, no que à actuação daquele interveniente processual concerne, porquanto tal traduzir-se-ia num mero exercício teórico que concede(ria) ao administrador da insolvência a possibilidade de, em representaçaÞo do insolvente, intervir, como parte principal, num processo de inventário pendente, e negar-lhe a possibilidade de ser ele a tomar a iniciativa processual;
16- A apontada inconstitucionalidade, reconduz-se à interpretação combinada do preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 30.º. 1082.º, al. a), 1085.º, n.º 1 a) e 1099.º, todos do Código de Processo Civil, e bem assim do art.º 81.º, n.º 4 do CIRE, que não reconheça através das mesmas a Legitimidade Processual Ativa ora em crise, vedando-lhe desse modo a possibilidade de instaurar o processo de Inventário;
17- Decidindo-se pelo seu deferimento, haveria violação dos artigos 13.º, n.ºs 2 e 3 do art.º 18.º, n.º 1 do art.º 20.º e 202.º, n.º 2, todos da CRP, termos em que, desde já, cumprido fica o ónus da suscitação;
18- Por conseguinte, e salvo melhor opinião em sentido contrário, verifica-se que o Tribunal a quo incorreu numa aplicação e interpretação errada da lei substantiva e da lei processual;
19- Afigura-se imperativo que à Massa Insolvente seja reconhecida legitimidade para intentar e fazer seguir processo de inventário tendo em vista a partilha e composição do quinhão hereditário apreendido.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que certamente V. Excias. certamente mandarão suprir, se requer a revogação da sentença recorrida e, consequentemente, seja substituída por outra que:
I- Julgue totalmente improcedente, por manifesta não verificação dos respetivos requisitos legais, a exceção de Ilegitimidade Processual Ativa do Sr. Administrador de Insolvência, para em representação da massa insolvente instaurar o presente inventário deduzida pelo Cabeça de Casal;
II- Julgue manifestamente inconstitucional a interpretação combinada do preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 30.º. 1082.º, al. a), 1085.º, n.º 1 a) e 1099.º, todos do Código de Processo Civil, e bem assim do art.º 81.º, n.º 4 do CIRE, que não reconheça a Legitimidade Processual Ativa ora em crise, por manifesta inobservância dos artigos 13.º, n.ºs 2 e 3 do art.º 18.º, n.º 1 do art.º 20.º e 202.º, n.º 2, todos da CRP, assente em denegação de justiça e violação do Princípio da Tutela Jurisdicional Efetiva.
E assim, pela correcta aplicação do Direito, se fazendo Justiça!
Apenas a cabeça-de-casal apresentou contra alegações, que findou com as seguintes conclusões:
1- Considera a recorrida que nada deve ser apontado à sentença proferida nos autos, pois interpretou correctamente o que resulta claro do artigo 1327 do CPC quanto à identidade rigorosa das pessoas com legitimidade para requerem um inventário para partilha duma herança, que não deixa qualquer dúvida quanto à objectiva ilegitimidade duma Massa Insolvente (MI), para esse efeito, quer o que a maioria da jurisprudência, e o Supremo Tribunal de Justiça, tem decidido nesta matéria concreta, quer ainda aos princípios estruturantes do direito de família, mormente o das regras e relações familiares especificas na transmissão de bens entre os interessados numa herança;
2- Deve a recorrida sublinhar o que, na sentença em causa. é referido, «(…)na articulação dos regimes enunciados, avulta que apontado o direito de exigir a partilha como direito pessoal, embora de carácter indubitavelmente patrimonial, o respetivo titular insolvente está impossibilitado de o exercer, não o podendo igualmente fazer o administrador da insolvência, face à indelével pessoalidade desse direito, em substituição seu titular, ele sim interessado direto na partilha, assim como o acórdão da R.C. de 09/11/2021, proc. 94/21.5T80HP.C1, in www.dgsi.pt “….
O administrador da insolvência não tem, pois, legitimidade para requerer o inventário para partilha de herança, uma vez que o direito da massa insolvente recai sobre o quinhão hereditário do insolvente – cfr. ainda neste sentido “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, M. Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego. A. Abrantes Geraldes e Pedro Torres, p. 33 e Ac. R. L. de 24/09/2020, porc. 31/20.T8MTA.L1- 2, in www.dgsi.pt;
3- Não pode o AMI invocar, independentemente da forma obscura como o faz, a qualidade de representante da MI, operando no verso e no anverso de representante dos insolventes e simultaneamente da Massa Insolvente, sem se saber bem qual é, afinal, a entidade que representa efectivamente, para avançar para a partilha dos bens que os insolventes herdaram dos seus pais, na medida em que a qualidade de “ representante “ destes se limita a um determinado conjunto de matérias que não a que constitui o objecto deste recurso e deve ater-se aos aspectos de natureza patrimonial que interessam à insolvência mas que não prejudiquem terceiros nem a recuperação económico/financeira dos insolventes, devendo sujeitar-se ao objectivo da defesa dos interesses da MI mas também ao da celeridade e ao caracter urgente do processo insolvencial e, em qualquer caso, respeitando a contenção que resulta dos limites legais das suas competências;
4- Neste caso concreto, a MI, tendo imputado à sentença recorrida a violação de norma com dimensão constitucional, por considerar percutir o princípio da tutela jurisdicional efectiva, não obstante, a fundamentação em que se sustenta é juridicamente insuficiente e não se verifica a inconstitucionalidade de que se socorre com a insuficiência de fundamentos desajustada do significado do princípio da tutela jurisdicional efectiva e desacompanhada de qualquer decisão do STJ e de qualquer parecer que a conforte;
5- Independentemente do facto de que o requerimento de inventario da MI constitui uma intromissão ilegal numa partilha duma herança familiar que, normalmente, se circunscreve, como qualquer inventário, aos familiares de alguém que deixou um herança e que encerra um conjunto de direitos e deveres de natureza profundamente pessoal, a recorrente profere preposições incorrectas, alegando um conjunto de direitos que apenas resultam duma errada interpretação da lei porque lhe não foram conferidos, interpretando-os contra a Lei;
6- A recorrente retira do disposto no 1327 do CPC e do próprio 81 do CIRE um sentido que decidiu extrair dessa disposição não porque nela esteja contido mas porque assim o decidiu pois a MI, não é, objectivamente, nem nunca foi, um interessado directo na partilha em conformidade com o sentido que resulta, de forma evidente, do conceito definido pela al. a) do n º 1 do artigo 1085 do CPC;
7- E assim é de tal forma que o Supremo Tribunal de Justiça não proferiu qualquer acórdão que tenha posto em causa nem decidiu de forma diferente do que tal superior instancia determinou, por unanimidade, no seu Acórdão de 09 de Novembro de 2022, Processo n.º775/22.6T8LRA.C1.S1, nem também nenhuma jurisprudência conhecida pôs em crise o decidido nesse douto aresto, pois a recorrida desconhece qualquer outro acórdão do Supremo que contrarie o que se invocou;
8- A tese da Massa Insolvente de que o artigo 81 do CIRE lhe confere os direitos de requerer o inventário é construída a partir duma interpretação exorbitante do que deve ser retirado do conceito legal de representante ou do conteúdo que deve ser efectivamente aceite como sendo os poderes do “ representante legal “: - A lei em momento algum conferiu ao Administrador de Insolvência a qualidade de representante legal que o Ex.mo Sr. AMI de AA invoca para requerer um inventário judicial:- Não é esse o sentido que resulta do amplo conceito de representante legal;
9- O Administrador da Massa Insolvente com o acto de requerer o inventário não está a actuar em nome dos insolventes, não está a beneficiá-los, nem a eles nem, muito menos, aos seus familiares e nem aos restantes interessados desse património autónomo, não está senão a agir em nome da Massa Insolvente mas sim, de forma abusiva, a agir contra os interesses dos insolventes e dos seus familiares, sem levar em consideração as relações de natureza familiares próprias que ocorrem no seio da partilha duma herança e próprias duma família, e reinterpretando de forma inaceitável os taxativos direitos que a lei lhe confere nesse artigo 81 do CIRE;
10- A qualidade invocada pelo administrador da Massa insolvente, como representante legal, é uma norma com excepções relevantes, logo infirmada e contrariada por várias disposições do CIRE em que tal qualidade não existe e é mesmo desconsiderada e não aceite, por ser totalmente incompatível com os direitos ou com a posição eventual do insolvente, designadamente no caso previsto no nº 2 do art 146 do CIRE, em que a Massa Insolvente deixa de ter qualquer direito de representar o insolvente/devedor, sendo que o insolvente é mesmo citado para esse tipo de acções (de separação de bens apreendidos pela Massa) onde pode assumir posição totalmente contrária à Massa Insolvente e é notória a exclusão da ilegitimidade do administrador de insolvência para representar o insolvente;
11- Não sendo a recorrente titular do direito que invoca e, muito menos ainda, dos direitos da dimensão que a Constituição da República Portuguesa elevou ao patamar dos direitos fundamentais e de não estarem sequer tais direitos em causa na matéria destes autos, a que acresce a constatação de nunca terem sido violados, na decisão recorrida, nenhum dos princípios aludidos pela MI, pois que esta nunca foi impedida de praticar no próprio processo de insolvência os actos que lhe competem ou competiam, o que resulta do seu recurso é mesmo a invocação da violação de normas que nunca lhe foram conferidos pela lei, e por isso, na opinião da recorrida, o AMI, à falta duma fundamentação razoável para o que invoca, não tem o direito de elevar à categoria de direitos constitucionais fundamentais os que lhe não são nem foram atribuídos nem cabem na sua esfera de competências.
Nestes termos e nos que doutamente serão supridos, deve ser negado provimento ao recurso, assim fazendo V.Excas, JUSTIÇA
O recurso foi admitido como de apelação por despacho proferido a 18 de Junho de 2025 [referência nº 137227695], a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
No exame preliminar considerou-se nada obstar ao conhecimento do objecto do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Fundamentação
Como é sabido, o teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta, onde sintetiza as razões da sua discordância com o decidido e resume o pedido (nº 4 do artigo 635º e artigos 639º e 640º, todos do Código de Processo Civil), delimita o objecto do recurso e fixa os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente.
Assim, atentas as conclusões da recorrente, mostra-se colocada à apreciação deste tribunal a seguinte única questão – a legitimidade processual do administrador da insolvência para requerer a partilha judicial de herança na qual o insolvente figura como interessado directo.
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A matéria de facto relevante mostra-se já enunciada no relatório da presente decisão, e resulta da simples análise da tramitação processual na plataforma citius.
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A simples leitura das alegações e contra-alegações das partes evidencia a profunda cisão que a resposta à questão acima enunciada tem suscitado na jurisprudência dos nossos tribunais superiores [não obstante afigurar-se claro que, junto do Supremo Tribunal de Justiça, tem-se relevado esmagadoramente maioritário o entendimento que recusa ao administrador da insolvência a faculdade de, em substituição do insolvente, legitimidade processual para instaurar inventário com vista à partilha de herança em que este é herdeiro. Isto, é claro, sem apreciar a conformidade de tal orientação aos valores constitucionais, sobre o que o Tribunal Constitucional foi recentemente chamado a pronunciar-se (acórdão nº 310/2025, de 25 de Abril, disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20250310.html). Mas a esta questão adiante retornaremos].
As duas posições e os seus argumentos são conhecidos – de um lado, aqueles que, entendendo que o direito dos credores a satisfazerem os seus créditos está limitado [como, aliás, refere o nº 1 do artigo 46º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas] pelo património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como pelos bens e direitos que adquira na pendência do processo, essencialmente afirmam que o direito do herdeiro insolvente, no momento da declaração da insolvência, incide apenas sobre o quinhão hereditário e não sobre cada um dos bens que integram a herança, pelo que o pagamento aos credores apenas poderá ser feito através da alienação dessa quota hereditária ideal, e não através da venda bens concretos [posição aqui defendida pela recorrida e acolhida pelo tribunal a quo]; de outro, os que, recordando que a herança apenas integra relações jurídicas patrimoniais [artigo 2024º do Código Civil], consideram incompreensível, por isso o recusando, que se impeça o insolvente de requerer a partilha [totalmente limitado, como passa a estar a partir da declaração de insolvência, na faculdade de administrar e dispor do seu património – nº 1 e 6 do artigo 81º do CIRE], e simultaneamente se vede aos credores a possibilidade de potenciar a recuperação dos seus créditos ao impedir-se que também o administrador da insolvência promova a partilha [entendimento propugnado pela recorrente].
Assim, afigura-se desnecessário aqui elencar as diversas decisões que, de um lado e outro, têm dado corpo a esta verdadeira controvérsia jurisprudencial [apenas se citando o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22 de Novembro de 2022, processo nº 7362/20.1T8LSB.L1-7 (disponível em https://jurisprudencia.pt/acordao/211313/), aliás também referido pela recorrida, atenta a completa resenha que adianta relativamente às duas posições], antes cumprindo indicar de forma directa e clara os fundamentos em que a presente decisão assenta.
Partindo da letra da lei [princípio e limite de qualquer esforço interpretativo – nº 2 do artigo 9º do Código Civil], vemos que os artigos 2101º do Código Civil [Qualquer co-herdeiro ou o cônjuge meeiro tem o direito de exigir partilha quando lhe aprouver] e 1085º do Código Civil [1- Têm legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervirem, como partes principais, em todos os atos e termos do processo: a) Os interessados diretos na partilha e o cônjuge meeiro ou, no caso da alínea b) do artigo 1082.º, os interessados na elaboração da relação dos bens; b) O Ministério Público, quando a herança seja deferida a menores, maiores acompanhados ou ausentes em parte incerta] verdadeiramente não oferecem apoio decisivo a qualquer das teses, na medida em que não se referem [expressa ou implicitamente], nem se vê que tivessem de se referir, à hipótese de o requerimento para partilha ser apresentado por um substituto ou representante do interessado directo, seja este representante voluntário [artigos 258º e 262º do Código Civil], seja legal [artigos 145º, 258º, 1878º, 1881º e 1922º, todos do Código Civil].
Isto naturalmente considerando evidente que no inventário destinado a colocar um fim à comunhão hereditária apenas se discute o destino de relações jurídicas patrimoniais.
E, tendo presente a alínea l) do nº 1 do artigo 1889º, bem como a alínea c) do nº 1 do artigo 1938º, ambos do Código Civil [que vedam ao progenitor e ao tutor, sem autorização judicial, a intervenção apenas em partilha extra-judicial], parece claro que, pelo menos ao representante legal do menor, estará livremente aberta a possibilidade de, em nome deste, requerer a partilha judicial de herança em que o menor seja herdeiro.
Os tópicos decisivos terão de ser procurados partindo da ponderação dos lugares paralelos do sistema, sempre na perspectiva da uniformidade da interpretação e aplicação do Direito [nº 3 do artigo 8º do Código Civil], concretizando uma jurisprudência referida a valores.
Desde logo, quanto à natureza da actuação do administrador da massa insolvente, e não obstante o teor literal do nº 4 do artigo 81º do CIRE, parece claro não estarmos perante verdadeira representação legal, mas antes face a um mecanismo de substituição, já que os interesses patrimoniais do insolvente mostram-se expressamente subordinados à satisfação dos créditos reclamados na insolvência [artigos 1º e 55º do CIRE], devendo o administrador da insolvência em primeira linha acautelar os interesses dos credores.
Nessa medida, mais próximo estaremos dos mecanismos que o legislador coloca ao dispor do credor singular para garantir e satisfazer o seu crédito [artigo 606º do Código Civil].
A este, credor singular, por princípio é reconhecida a faculdade de exercer, contra terceiro, os direitos de conteúdo patrimonial que competem ao devedor, embora apenas na medida em que a substituição [pelo mecanismo da sub-rogação] seja essencial à satisfação do crédito, e ressalvando-se os casos em que o direito em questão, por natureza ou por disposição expressa, só possa ser exercido pelo respectivo titular [nºs 1 e 2 do artigo 606º do Código Civil].
No específico âmbito do instituto sucessório, e a propósito do que nos ocupa, vemos que, por lei expressa, o credor pode substituir-se ao devedor na aceitação da herança [nºs 1 e 2 do artigo 2067º do Código Civil; artigo 1041º do Código de Processo Civil – o exercício desta faculdade tem como pressuposto que o devedor tenha já declarado o repúdio, e, por isso, acarreta a destruição dos efeitos deste último, no que obviamente se distingue da pura e simples sub-rogação], embora somente na medida que releva à satisfação do seu crédito, mas inexiste norma correspondente que admita ao credor requerer a partilha em substituição do herdeiro.
Este silêncio que se surpreende na lei vigente quanto à possibilidade de substituição no exercício do direito a por fim à comunhão hereditária, em concreto pelo credor de um herdeiro, de forma absolutamente idêntica decorre também dos diversos diplomas que há mais de 50 anos regulam a questão – nº 1 do artigo 4º da Lei nº 23/2013, de 05 de Março, nº 1 do artigo 1327º do Código de Processo Civil aprovado pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro; nº 2 do artigo 1326º do Código de Processo Civil aprovado pelo Decreto-Lei nº 44129, de 28 de Dezembro de 1961, intocado pela reforma introduzida pelo Decreto-Lei nº 47690, de 11 de Maio de 1967.
Ora, a propósito do problema dá nota João António Lopes Cardoso [“Partilhas Judiciais”, volume I, Livraria Almedina, 4ª edição, 1990, página 180]: “(…) no que respeita ao credor de algum dos comparticipantes na comunhão hereditária, entidade a que o autor do Anteprojecto em referência pretendeu outorgar legitimidade «quando não possa tornar efectivo o seu crédito sobre outros bens do devedor». Mau grado tal proposta haver sido justificada em termos muito hábeis, não a aceitou a Comissão Revisora, que ao artigo 1326º, nº 2, atribuiu a redacção actual inequívoca [ou seja, a estabelecida pelo Decreto-Lei nº 44129, de 28 de Dezembro de 1961] no sentido de só consentir que o inventário possa ser requerido pelas pessoas directamente interessadas na partilha”.
Ou seja, o legislador histórico expressamente ponderou e recusou a possibilidade de o credor singular do herdeiro vir requerer a cessação da comunhão hereditária, pelo que o silêncio acima referido apenas pode ser interpretado como encerrando uma intenção [o silêncio eloquente - Prof. Baptista Machado, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, Coimbra, 1985, páginas 194 e ss], a saber, a de vedar tal acto ao credor singular do herdeiro.
A dúvida será se a posição do credor singular, exclusivamente civilística e inter-partes, para este efeito deverá totalmente equiparar-se à do conjunto dos credores que visam cobrar os seus créditos no âmbito do processo de falência [não esqueçamos, repete-se, que a actuação do administrador da insolvência deve ser orientada à máxima satisfação do conjunto dos créditos reclamados, à prossecução do interesse dos credores, portanto].
E a verdade é que razoavelmente não parece que assim deva ser.
É que o esmagador volume da quantidade de dívida acumulada pelo insolvente, ao ponto de se mostrar necessária a intervenção do poder público a retirar-lhe a administração do seu património, altera a situação [um momento em que a quantidade transforma a qualidade (como a gota de água é quantitativa, e só por isso qualitativamente diferente, do oceano), um dos princípios que a dialéctica Hegeliana convoca para explicação da modificação da natureza das coisas], re-centrando o problema na protecção da saúde económica do tecido empresarial e do mercado - «O objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores. Quem intervém no tráfego jurídico, e especialmente quando aí exerce uma actividade comercial, assume por esse motivo indeclináveis deveres, à cabeça deles o de honrar os compromissos assumidos. A vida económica e empresarial é vida de interdependência, pelo que o incumprimento por parte de certos agentes repercute-se necessariamente na situação económica e financeira dos demais. Urge, portanto, dotar estes dos meios idóneos para fazer face à insolvência dos seus devedores, enquanto impossibilidade de pontualmente cumprir obrigações vencidas. Sendo a garantia comum dos créditos o património do devedor, é aos credores que cumpre decidir quanto à melhor efectivação dessa garantia, e é por essa via que, seguramente, melhor se satisfaz o interesse público da preservação do bom funcionamento do mercado» [ponto 3- do preâmbulo do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas].
Portanto, ainda que o credor singular esteja impedido de requerer inventário para partilha de herança em que o seu devedor é herdeiro, o interesse público na protecção do mercado justifica solução contrária no específico âmbito do processo de insolvência, desde que tal se revele um mecanismo eficiente à integral liquidação do património do insolvente.
Mas, ponderando agora os interesses em presença, que valor jurídico poderá razoavelmente justificar uma limitação da actuação do(s) credor(es) na recuperação do(s) seu(s) crédito(s) como a decidida pelo tribunal a quo [seguindo, como se disse, o caminho já trilhado por várias decisões dos nossos tribunais superiores]?
Seguramente, não será de admitir um qualquer interesse patrimonial do próprio insolvente, como se sabe por princípio irrelevante(s) face aos interesses que norteiam o processo de insolvência.
A resposta, entendemos, residirá na própria essência da possibilidade de fruição de bens em comum.
A regulação do acesso aos bens e sua utilização, como se sabe, até pelos conflitos que esse acesso e essa utilização potenciam no seio da comunidade, constitui uma das questões fundamentais a que todos os ordenamentos jurídicos têm procurado dar resposta desde o dealbar da humanidade.
O sistema jurídico português, obviamente nesse campo não sendo excepção, escolheu o direito de propriedade, com o seu ius utendi, fruendi e abutendi [artigo 1305º do Código Civil], como matriz de referência para todas as restantes formas de apropriação, incluindo as que fazem apelo à ideia de ter em comum – obviamente, a compropriedade e a comunhão; num certo sentido, a sociedade e a propriedade horizontal.
Por outras palavras, ser o proprietário exclusivo de uma coisa ou ser dela contitular é uma escolha/opção que se abre aos privados no uso da sua liberdade de determinação, independentemente das motivações [económicas; emocionais; com o objectivo do lucro; simples fruição; etc, etc] que estarão na origem da decisão.
Não proceder à divisão de um património hereditário que um conjunto de herdeiros decidiu manter em comum é uma decisão tão legítima como o seu contrário.
Cabe a cada um decidir no uso da liberdade individual, valor que cresceu e ganhou as suas formas entretecido na tradição judaico-cristã, enquanto faculdade/maldição que a cada um permite/impõe tomar o destino nas próprias mãos [veja-se o caso dos autos, em que, tendo os inventariados falecido há quase 30 anos, ainda nenhum dos co-herdeiros se decidiu pela partilha] – aliás, será pacífico que «a Constituição protege a propriedade privada porque a encara como um espaço de autonomia pessoal, isto é, como um instrumento necessário para a realização de projectos de vida livremente traçados, responsavelmente cumpridos, e que não podem nem devem ser interrompidos ou impossibilitados por opressivas ingerências externas» [acórdão do Tribunal Constitucional nº 299/2020, de 18 de Setembro, disponível em https://diariodarepublica.pt/dr/analise-juridica/acordao-tribunal constitucional/299-2020-143189682].
Admitir que o credor imponha a divisão aos herdeiros ou aos comproprietários significa negar a estes a possibilidade de ter em comum, de legitimamente utilizar um mecanismo que o sistema jurídico coloca ao seu dispor no acesso e utilização dos bens.
E não se diga que o caminho da divisão é inevitável ainda que precedido da alienação da quota do comproprietário ou do quinhão hereditário [por ser expectável que o adquirente logo de seguida promova o fim da indivisão], na medida em que aos comproprietários e aos herdeiros estará sempre aberta a faculdade de excluir o adquirente através do exercício do direito de preferência que a lei lhes reconhece [artigos 1409º e 2130º, ambos do Código Civil].
Afigura-se-nos claro, pois, que será a tutela da posição jurídica dos restantes contitulares do direito que fundamenta a opção de recusar ao credor a iniciativa da partilha ou da divisão da coisa comum.
Ora, temos assim, de um lado, o interesse exclusivamente privado de manter a situação de indivisão, interesse que não configura verdadeiro direito subjectivo de qualquer dos contitulares, já que basta que apenas um deles se decida pela partilha, em qualquer momento, para que o ter em comum cesse [ressalvado o caso de acordo expresso de indivisão (artigo 1412º do Código Civil; nº 2 do artigo 2101º do Código Civil), embora este sempre de eficácia temporária. De qualquer modo, no caso em apreço nem sequer foi invocada a existência de qualquer acordo de indivisão]; de outro, o interesse público na protecção e tutela do mercado, personificado no conjunto dos credores.
Entendemos que por princípio a tutela pública deve sobrepor-se ao mero interesse privado, justificando-se tratamento diferenciado entre as posições do credor singular e do conjunto de credores enquadrados no processo de insolvência.
De outro modo seremos reconduzidos a uma perplexidade jurídica: a existência de um direito subjectivo irrenunciável e imprescritível [o de requerer a partilha – nºs 1 e 2 do artigo 2101º do Código Civil] não referível a qualquer sujeito jurídico – nem ao insolvente, como se sabe, por estar limitado no exercício de qualquer faculdade relativa ao seu património; nem ao administrador da massa insolvente, em substituição do insolvente, na prossecução dos interesses dos credores.
Obviamente situações haverá em que a partilha, com a consequente extinção do património hereditário e das dinâmicas eventualmente geradoras de riqueza que poderão ter-se estabelecido entre os diversos bens que o integram [pense-se numa unidade agrícola composta por vários imóveis individualizados integrada em herança], poderá não corresponder ao interesse dos credores em maximizar o património do insolvente com vista à satisfação das dívidas.
Nesses casos caberá ao administrador da insolvência aferir quanto ao melhor caminho a seguir: alienar o quinhão hereditário ou promover a partilha para concretização do que é propriedade exclusiva do insolvente, consoante o que, como afirmado no preâmbulo do CIRE, mais se mostre eficiente à integral liquidação do património em presença – por outras palavras, abrir ao administrador da insolvência a porta do inventário não significa que necessariamente ele tenha de a transpor.
Finalmente, recordemos que o Tribunal Constitucional, no seu recentíssimo acórdão nº 310/2025, de 29 de Abril [disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20250310.html)], em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade considerou que a dimensão normativa que se retira da articulação entre o artigo 81º do CIRE e o artigo 1085º do Código de Processo Civil, nesta se fundando a recusa de legitimidade ao administrador da insolvência para requerer inventário para partilha de herança em que o insolvente figura como herdeiro, limita desproporcionadamente a garantia constitucional do acesso ao direito e à tutela judicial efectiva e da propriedade privada – designadamente, entendendo que a privação da faculdade de requerer a abertura do inventário não é reconduzível à prossecução de uma finalidade constitucionalmente atendível.
Logo, respeitando o princípio da interpretação conforme à Constituição, impõe-se ler os artigos 81º do CIRE e 1085º do Código de Processo Civil como não vedando ao administrador da insolvência a possibilidade de requerer a partilha das heranças abertas por óbito do BB e da CC.
O recurso procede.
Uma última nota.
Dos autos consta apenas uma simples cópia da sentença que declarou a insolvência de uma pessoa singular, AA, em Abril de 2016 – ou seja, há mais de 9 anos.
Atento o período temporal já decorrido [e, designadamente,a possibilidade de ter sido concedida a exoneração do passivo restante – artigos 235º e ss do CIRE], convirá averiguar se os efeitos da declaração de insolvência ainda se mantêm.
Ou seja, pelo trânsito em julgado da presente decisão ficará definitivo no processo que o administrador da insolvência tem legitimidade processual para requerer o inventário para partilha de herança em que o insolvente figura como herdeiro, mas nada mais - designadamente, nada determina quanto à manutenção dos efeitos da declaração de insolvência decretada em 2016.
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Sumário – nº 7 do artigo 663º do Código de Processo Civil:
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Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a 3ª secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao presente recurso, revogando a sentença proferida em 1ª instância e determinando o prosseguimento do processo de inventário, caso nenhum outro fundamento a tal obste.
Mais se condena a recorrida nas custas do recurso – artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
Porto, 22/9/2025
António Carneiro da Silva
Aristides Rodrigues de Almeida
José Manuel Correia