I – É no processo de inventário que, por regra, devem ser suscitadas, apreciadas e resolvidas todas as questões que importem à exacta definição do acervo patrimonial a partilhar, maxime as que são objecto de reclamação de relação de bens.
II - Nos termos do artº 1093º, nº 2, ex vi do artº 1105º,nº 3, ambos do CPC, a apreciação e julgamento de qualquer questão suscitada em reclamação de relação de bens só pode e deve, excepcionalmente, ser relegada para os meios comuns caso a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes.
Tribunal recorrido: Juízo de Família e Menores de Vila do Conde
Recorrente: AA (interessado CC)
Recorrida: BB (interessada)
I.
AA, divorciado, residente na Rua ..., ... RC ESQ ..., Vila do Conde, interessado com funções de cabeça de casal nos autos de inventário PROCESSO Nº 1758/20. 6T8VCD – A (partilha de bens em casos especiais – divórcio) e em que é requerente e co-interessada BB, divorciada, NIF ... residente na Rua ..., ..., ... Póvoa de Varzim, deduziu recurso da decisão proferida no dia 21.4.2024, no termo da fase da reclamação à reclamação de bens (arts. 1104 e sgts. do CPC), decisão esta ao abrigo 1105.º n.º3, 1093.º e 1110.º, n.º1, al.a), todos do CPC
Apresentada a relação de bens pelo CC[1] a interessada BB apresentou reclamação por requerimento de 15.10.24, além do mais para o que releva ao objecto do recurso, reagindo quanto aos termos da relação das verbas 4 e 11 do passivo nos seguintes termos:
«14.
É falso o constante na “Verba 4”, neste momento não se encontram vencidas nenhuma das prestações. A aqui requerente envia todos os meses o montante de 100 euros para o seu ex-marido, para pagamento da casa. Valor este acordado por ambos pelo facto de este se encontrar lá a residir.- CFR doc 2, como exemplo ilustrativo que aqui se dá como integralmente reproduzido para todos os devidos efeitos legais.
15.
(…)
Não aceitamos o constante na “Verba onze” uma vez que o empréstimo contraído para aquisição de um veículo automóvel que foi dado à troca aquando da aquisição de um veículo novo.»
Respondeu o cabeça de casal.
Realizada audiência prévia no dia 3.12.24, os interessados acordaram parcialmente quanto ao dissenso iniciado com a reclamação à relação de bens, ficando por acordar e em aberto por controvertido a verificação das verbas do passivo nº3, 4, 10 e 11, para o que interessa ao objecto do recurso, das verbas 4 e 11.
Homologada a transacção parcial, foi a final proferido o seguinte despacho:
«II. Prosseguimento da instância
Concede-se à reclamante o prazo máximo de 10 dias para juntar aos autos os documentos que protestou juntar no requerimento da reclamação à relação de bens.
Decorrido o prazo para o Cabeça de Casal se pronunciar quanto aos documentos que vierem a ser juntos, abra conclusão para proferir decisão.»
Juntos os documentos pela interessada reclamante (16.12.24), pronunciando-se a propósito o cabeça de casal (13.1.25), foi proferida a seguinte decisão, sendo o seguinte o teor da mesma e na parte que releva para o presente recurso:
«(….)
Quanto à verba quatro do Passivo da exclusiva responsabilidade de BB.
Descreveu o cabeça de casal tal verba, como “O Cabeça de Casal é CREDOR da Interessada BB pelo valor de 7.680,80 € correspondente a metade do valor das 78 prestações mensais do empréstimo habitacional, vencidas desde o mês de Dezembro de 2017 até Maio de 2024 num total de 15.361,59 €, a que acresce o valor das que se vencerem até à partilha.”
Antes de mais, importa dizer que a sentença supra aludida decretou o divórcio, por mútuo consentimento, homologando os acordos.
Nesta verba, o cabeça de casal, contabiliza as prestações mensais que ele próprio pagou desde 17 dezembro de 2017, relativamente ao empréstimo para aquisição da habitação.
Digamos, desde já, que sem razão, atento o disposto no art.º 1789º, n.º 1 do Código Civil.
A ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge foi proposta em 30/11/2020. É verdade que na petição inicial foi pedido a final que o tribunal decretasse o divórcio, com efeitos em que a separação de facto teve inicio, sendo que da leitura da petição inicial se conclui que o cabeça de casal situou essa separação de facto em dezembro de 2017.
Decorre, no entanto que tal ação foi convertida em divórcio por mútuo consentimento, e assim sendo não tendo as partes optado pela discussão e prova da data da separação de facto em data anterior à propositura da ação, não houve lugar ao disposto no art.º 1789º, n.º 2 do Código Civil, pois não se provou a data da separação de facto, nem a mesma foi fixada pelo tribunal.
Não pode ora, o cabeça de casal, em sede de inventário fazer operar o disposto em tal preceito.
O pagamento das prestações devidas com o empréstimo da habitação, contabilizado até novembro de 2020, cabia ao casal, e nem sequer está demostrado que até novembro de 2020, o cabeça de casal tenha pago as prestações do empréstimo com dinheiro próprio, caso em que seria evidentemente credor sobre o património comum e não sobre a interessada, pelo que só a partir da data da propositura da ação, considerando-se aí a cessação dos efeitos patrimoniais entre os cônjuges, se terá que atender ao montante que foi pago pelo cabeça de casal.
Neste sentido, vide Ac. do TRL, de 15/10/2015, Rel. Teresa Prazeres Pais, Proc. n.º 1760 / 14.7TMLSB-C.L1-8, inhttps: / / www. dgsi.pt / jtrl.nsf// 6E9DB9FD03CFA23480257 EF10056D333 em cujo sumário se sustenta que “O preceituado no art. 1789º nº2 do CC apenas se aplica ao divórcio sem o consentimento do outro cônjuge”.
Mais adiante escreve-se que:
“Nos termos do art.º 1789º, n.º 1 2.ª parte do CC, os efeitos do divórcio retrotraem-se à data da propositura da acção, quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges. Com esta excepção ao princípio geral proclamado na 1.ª parte do n.º 1 do mesmo artigo, visa-se evitar que um dos cônjuges seja prejudicado pelos actos de insensatez, de prodigalidade ou de pura vingança, que o outro venha a praticar, desde a propositura sobre os valores do património comum.
A outra excepção ao princípio geral da eficácia constitutiva da sentença de divórcio é a prevista no n.º 2 do art.º 1789º. Segundo ela os efeitos do divórcio - patrimoniais e não só retrotraem-se à data fixada na sentença em que a coabitação cessou.
Tal sucederá quando a falta de coabitação estiver provada no processo, e um dos cônjuges requeira a retroacção dos efeitos da dissolução à data em que haja cessado a coabitação conjugal.
Os Profs Miguel Teixeira de Sousa e Pereira Coelho, respectivamente em «O Regime Jurídico do Divórcio», ibidem, pág. 105; Francisco Pereira Coelho, “Curso de Direito de Família”, Vol. I, 2.ª Ed., Coimbra Editora – 2001, pág. 657 sustentaram que hipótese nunca se verificará em relação ao divórcio por mútuo consentimento.
Por isso, bem se argumentava que esta faculdade prevista no n.º 2 do art.º1789º, visava proteger o cônjuge inocente ou não principal culpado, afastando, por exemplo, a comunicabilidade de um bem adquirido por esse cônjuge antes da acção divórcio, mas depois de ter cessado a coabitação. O cônjuge declarado único ou principal culpado não pode servir-se desta faculdade.
(…)
“Na modalidade de divórcio por mútuo consentimento não está em causa a alegação ou prova de qualquer facto que impeça a vida comum. Os cônjuges reservam para si a intimidade e a privacidade do interagir das suas relações matrimoniais.
Logo, não está em causa a data da separação, ou seja, esta é de todo irrelevante.
Por isso, como querer que nesta modalidade de divórcio se faça retroagir os efeitos do divórcio como sucede com o divórcio litigioso/ sem consentimento do outro cônjuge?
Ora, precisamente porque estamos perante diversas modalidades de divórcio, com fundamentos bem diversos, é que a conclusão de que no divórcio por mútuo consentimento há uma “privação de fazer retroagir os efeitos”, tal como sucede na outra modalidade,não faz sentido; é que estamos mesmo perante realidades sociais diversas que obtém também soluções jurídicas diversas”.
Assim sendo, não são devidas seguramente pela interessada as prestações para amortização do empréstimo habitacional contabilizadas desde dezembro de 2017, mas somente desde dezembro de 2020, uma vez que a ação de divorcio foi proposta a 30/11/2020..
De qualquer forma sempre se dirá o seguinte: não decorre da documentação junta aos autos o valor que em concreto o cabeça de casal pagou desde a data da propositura da ação de divórcio até pelo menos ao momento da apresentação da relação de bens, para além de que a interessada demonstrou ter efetuado pagamento mensais no valor de € 100,00, para amortização, se bem que também em valor não concretamente apurado.
Destarte, sempre terão os cabeça de casal e interessada de discutir nos meios comuns o valor desse crédito que o cabeça de casal detém sobre a interessada, sem prejuízo de, ele ainda ser atendido, na partilha, caso cheguem a acordo na conferência de interessados.
Pois no que respeita aos créditos do cabeça de casal sobre o património comum ou sobre o de cada um deles apenas poderão ser considerados desde que posteriores à data da propositura da ação de divórcio.
Ora, “como é sabido, no decurso da sociedade conjugal (...) os cônjuges tornam-se reciprocamente devedores entre si e tal situação verifica-se sempre que (...), tratando-se de dívida da responsabilidade solidária de ambos, um dos cônjuges satisfez voluntariamente maior quantia que o outro” – cfr. Lopes Cardoso in “Partilhas Judiciais”, vol. III, 4ª Ed, 1991, pág. 392.
Todavia, tal “disciplina não impõe que na partilha se dê pagamento ao cônjuge credor do que o outro cônjuge lhe está devendo” (loc. cit.) dado que tais créditos “não respeitam ao património comum mas ao património individual do cônjuge credor, constituindo, em contrapartida um elemento negativo do cônjuge devedor” (loc. cit.).
Nessa medida e até – diferentemente do nosso entendimento, que não vimos obstáculos à sua relacionação - ainda segundo Lopes Cardoso (loc. cit.) tais créditos “não deverão ser objeto de relacionação, isto mau grado deverem ser considerados no momento da partilha para serem satisfeitos na conformidade do disposto no art. 1698º, nº 3 do CCivil”, respondendo pelos mesmos, em primeira linha, a meação do cônjuge devedor no património comum e na, insuficiência desta, os bens próprios do devedor.
Obviamente que, nesta sede, se os valores concretos valores estivessem apurados documentalmente, o que nem o cabeça de casal nem a interessada logrou efetuar e pelas razões supra citadas, considera-se que o direito de crédito – verba quatro do passivo da responsabilidade de BB- invocado pelo cabeça de casal não poderá ser incluído na relação de bens, devendo as partes ser remetidas para os meios comuns.
Cumpre esclarecer que devem ser remetidas para os meios comuns as questões incidentais que não possam ser decididas em sede de inventário sem redução das garantias das partes e de forma sumária, não no sentido técnico processual, mas no sentido gramatical, querendo com isso significar a simplicidade da prova a produzir, a facilidade da decisão a proferir, a singeleza da questão a apreciar, contrapondo-se assim à da questão de larga indagação a que poria termo decisão fundamentada em provas minuciosas, complicadas e exaustivas.
O crédito que o cabeça de casal se arroga sobre a interessada carece de mais prova, terá que ser contabilizado desde dezembro de 2020. Por outro lado, terá que se apurar e discriminar as concretas transferências nos extratos bancários, e terá que se apreciada a natureza do acordo celebrado, em virtude do cabeça de casal ter ficado a habitar a casa.
Resulta evidente que a complexidade e minúcia da questão não é compatível com o caráter incidental do processo de inventário, pelo que nos abstemos de conhecer esta matéria, remetendo as partes para os meios comuns (cf. 1093.º CPC), quanto à verba quatro, sem prejuízo das partes na conferência de interessados até chegarem a acordo quanto ao valor da aludida verba quatro, para posteriormente ser tido em conta, nos termos do art.º 1689º, n.º 3 do Código Civil.
(…)
Impugnou ainda a reclamante a verba onze do passivo da exclusiva responsabilidade de BB.
Consta de verba onze
O cabeça de casal é credor da interessada BB pelo montante de € 2.03,05 decorrente do contrato de empréstimo n.º ..., feito com a Banco 1..., para aquisição do veículo automóvel, pelo qual a conta conjunta do dissolvido casal com o IBAN ..., no Banco 2... S.A., passou a ser mensalmente debitado o montante mensal de € 132,57, desde o mês de janeiro de 2020 (nosso sublinhado) até ao presente mês de setembro, sendo por isso até essa data o Cabeça de casal credor de metade do valor pago, resultante de 45 meses x 62,29, pois foi o mesmo que suportou o pagamento integral da prestação.”
A reclamante impugnou o teor da verba onze, alegando que “o empréstimo contraído para aquisição de um veículo automóvel que foi dado à troca aquando da aquisição de um veículo novo”
Nada disto, foi provado.
E de acordo com a documentação junta pelo cabeça de casal, decorre que o cabeça de casal e a interessada, ainda na vigência do casamento contraíram um empréstimo para a aquisição de um veículo.
Como tal e como já supra referido, e reiterando o que supra consta a propósito do propósito do empréstimo contraído aquisição da habitação própria, este crédito só poderá ser contabilizado a partir da data da propositura da ação de divórcio e nunca antes, como o fez o cabeça de casal.
Obviamente que, nesta sede, e pelas razões supra citadas, considera-se que o direito de crédito – verba onze do passivo da responsabilidade de BB- invocada pelo cabeça de casal não será incluído na relação de bens, e será remetido para os meios comuns para contabilizar corretamente os montantes que o cabeça de casal terá pago após a instauração da ação de divórcio, pois sempre a contabilização efetuada pelo tribunal poderia levar a inexatidões em face da necessidade de demais prova.
Mas sempre se dirá que, desde que interessada e cabeça de casal acordem quantos aos valores das verbas quatro e onze do Passivo da exclusiva responsabilidade de BB, sempre o poderão exarar o acordo na ata da conferência de interessados a realizar, para que a final, no momento da partilha, possam ser deduzidos à meação do respetivo devedor, nos termos do disposto no art.º 1689º, n. 3 do Código Civil.
Decisão:
Pelo exposto, julgo a reclamação parcialmente procedente e, em consequência, decide-se que
(…)
- Remeter as partes para os meios comuns, quantos às verbas quatro e onze do Passivo da exclusiva responsabilidade de BB, sem prejuízo de as partes acordarem quantos aos valores dessas verbas e exararem na ata da conferência de interessados, para que a final, no momento da partilha, possam ser deduzidos à meação do respetivo devedor, nos termos do art.º 1689º, n.º 3 do Código Civil, evitando assim a propositura de ações e de custos inerentes.
(…)»
Perante esta decisão insurge-se o recorrente por entender que o tribunal estaria em condições de conhecer da verificação das citadas verbas, sendo ilegal a remessa para os meios comuns conforme se decidiu.
Conclui nos seguintes termos:
A) Versa a presente apelação a decisão que remeteu as partes para os meios comuns quanto às questões suscitadas na Relação de Bens relativamente às Verbas Quatro e Onze do Passivo, as quais o Recorrente entende serem da exclusiva responsabilidade da Recorrida;
B) A decisão recorrida é NULA na medida em que viola outra, já proferida e transitada em julgado, onde as questões e factos que a Sra. Juiz a quo remete para os meios comuns já foram decididas e contemplados, o que integra a nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do Cód. de Processo Civil;
C) Por outro lado, verifica-se erro de julgamento quanto à data da efectiva separação de facto, que se encontra já fixada entre o Recorrente e a Recorrida na acção de divórcio da qual estes autos são apenso, onde ambos reconheceram, no Acordo exarado na Acta de Audiência de Discussão e Julgamento, que a mesma ocorreu a 14/12/2017;
D) Acordo, homologado por sentença, enquanto documento com força probatória plena – é a causa e alicerce para o Recorrente ter relacionado a Verba n.º Quatro e Onze da Relação de Bens como Passivo “da exclusiva responsabilidade de BB”, facto que nunca podia ter sido ignorado pelo Tribunal a quo, até porque tal acordo foi redigido e confirmando pelo próprio;
E) A sentença recorrida viola o teor constante nesse documento, em violação das regras de direito probatório material, designadamente quanto ao valor probatório pleno dos documentos, e das regras legais que regulam a confissão como meio de prova, nos termos dos arts.º 341.º; 349.º; 352.º; 355.º; 358.º, n.º 1; 362.º; e 371.º, todos do Cód. Civil;
F) Mais resulta expressamente reconhecido nesse Acordo que ambos os débitos contraídos e as quantias transferidas a partir de 14/12/2017 (data fixada para a separação de facto) são da exclusiva responsabilidade da Recorrida, e que os mesmos não foram consentidos, nem minimamente conhecidos pelo Cabeça de Casal/Recorrente;
G) Razão pela qual a Recorrida naqueles autos assumiu que “tais quantias seriam pagas pela meação que possui nos bens do casal”;
H) O que significa que a Recorrida reconheceu de forma clara e directa a verdade do facto alegado pelo Recorrente, declaração essa expressa, registada na Ata de Julgamento, que tem de ser valorada enquanto confissão expressa pela própria, e que por isso tinha de ser considerada como tal na sentença proferida pelo Tribunal a quo;
I) A sentença recorrida olvidou em absoluto o teor do documento “Acordo” exarado no processo de divórcio, do qual estes autos são apenso, assim como a sua força probatória enquanto confissão, e não tomou conhecimento sobre questões das quais, s.m.o. dispunha de meios de prova bastantes para decidir, ferindo a sentença de nulidade nos termos do disposto no art.º 615.º, n.º 1 al. d) do Cód. de Processo Civil, e nos termos do disposto no art.º 619.º do Cód. de Processo Civil, pela inobservância do decidido nos autos de divórcio, decisão que há muito transitou em julgado;
J) Neste sentido pronuncia-se a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (aresto proferido no âmbito do processo n.º 1902/06.6TBVRL.P1.S1, datado de 11/11/2020, disponível em www.dgsi.pt): “A confissão feita fora dos articulados também pode adquirir força probatória plena, como modalidade de confissão judicial, designadamente quando feita espontaneamente, mas carece de ser «firmado pela parte pessoalmente ou por procurador especialmente autorizado» (art.º 356.º/1 do Cód. Civil).”;
K) Pelo que mal andou Tribunal a quo ao não considerar nem admitir o exarado pelo Recorrente e Recorrida naquele Acordo, na medida em que diz a jurisprudência que se um Acordo entre as Partes contiver a admissão de um facto relevante para o caso, essa admissão tem o valor de confissão que, enquanto meio de prova pleno, foi totalmente ignorada e desconsiderada na sentença recorrida;
L) Considerando as declarações expressas e a prova documental que existe nos autos, a apreciação das questões em apreço – que a Sra. Juiz remeteu para os meios comuns – depende apenas, e essencialmente, da análise daquela Acta de Audiência e de Discussão e Julgamento no processo de divórcio (processo principal n.º 1758/20.6T8VCD) e do Acordo nela constante, bem como dos extractos bancários juntos pelo Recorrente;
M) Daqui resulta que estão devidamente escrutinados nos presentes autos e que os mesmos se encontram dotados de meios de prova que alicerçam e possibilitam a decisão quanto às Verbas Quatro e Onze do Passivo da Relação de Bens, sendo absolutamente inútil a remissão dessas questões para os meios comuns, seja porque não estamos perante qualquer complexidade da matéria de facto a apreciar no âmbito de um incidente processual, seja porque tais factos resultam confessados por documento com força probatória plena: Acta de Audiência e de Discussão e Julgamento no processo de divórcio (processo principal n.º 1758/20.6T8VCD) e do Acordo nela constante;
N) A sentença recorrida viola por isso o disposto nos arts.º 615.º, n.º 1 al. d) e 619.º do Cód. de Processo Civil, porque dispunha de meios para decidir e não decidiu, e porque ignorou decisão transitada em julgado, ferindo a sentença recorrida de nulidade, e os arts.º 341.º; 349.º; 352.º; 355.º; 358.º, n.º 1; 362.º; e 371.º todos do Cód. Civil, quanto à violação das regras de direito probatório material e das regras legais que regulam a confissão como meio de prova.
Pede a final:
Nestes Termos e nos mais de direito aplicáveis que mui doutamente serão supridos deve a presente apelação ser dada como provada e procedente e, em consequência, ser proferido douto acórdão que declare as nulidades de que enferma a sentença recorrida, assim como os erros de direito probatórios, e que, em consequência, ordene o Tribunal a quo a decidir sobre as Verbas n.ºs Quatro e Onze do Passivo da Relação de Bens apresentado pelo Cabeça de Casal/Recorrente, na medida em que os autos de Inventário estão dotados de meios probatórios suficientes para ser proferida decisão.
Foram colhidos os vistos legais.
Os elementos a relevar para a decisão que se impõe são os que constam do relatório que antecede e do teor da acta constante do processo de divórcio de 02-03-2022 e que infra se transcreverá em trecho com relevo para a decisão do presente recurso.
O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos arts.s 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente[2].
Isto com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr. a este propósito o disposto nos arts. 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).
Neste pressuposto, é uma única a questão a decidir neste recurso: decorre da causa vertente, na fase da decisão da reclamação à relação de bens, face à natureza da matéria a decidir, uma situação cuja complexidade que lhe está subjacente torna inconveniente a sua apreciação por implicar redução das garantias da partes?[3]
Têm o seguinte teor tais verbas:
«(…)
III – Passivo da exclusiva responsabilidade de BB
VERBA QUATRO
O Cabeça de Casal é CREDOR da Interessada BB pelo valor de 7.680,80 € correspondente a metade do valor das 78 prestações mensais do empréstimo habitacional, vencidas desde o mês de Dezembro de 2017 até Maio de 2024 num total de 15.361,59 €, a que acresce o valor das que se vencerem até à partilha.
VERBA ONZE
O Cabeça de Casal é CREDOR da Interessada BB pelo montante de 2.803,05 € decorrente do contrato de empréstimo n.º ..., feito com a Banco 1..., para aquisição do veículo automóvel, pelo qual a conta conjunta do dissolvido casal com o IBAN ..., no Banco 2... S.A., passou a ser mensalmente debitado o montante mensal de 132,57 €, desde o mês de Janeiro de 2020 até ao presente mês de Setembro, sendo por isso, até essa data o Cabeça de Casal credor de metade do valor pago, resultante de 45 meses x € 62,29, pois foi o mesmo que suportou o pagamento integral da prestação.
(…)»
Argumenta o tribunal a quo para fundar a remessa das parte para os meios comuns quanto à discussão e decisão da verificação de tais créditos a benefício do CC o seguinte:
Quanto à verba quatro
«De qualquer forma sempre se dirá o seguinte: não decorre da documentação junta aos autos o valor que em concreto o cabeça de casal pagou desde a data da propositura da ação de divórcio até pelo menos ao momento da apresentação da relação de bens, para além de que a interessada demonstrou ter efetuado pagamento mensais no valor de € 100,00, para amortização, se bem que também em valor não concretamente apurado.
Destarte, sempre terão os cabeça de casal e interessada de discutir nos meios comuns o valor desse crédito que o cabeça de casal detém sobre a interessada, sem prejuízo de, ele ainda ser atendido, na partilha, caso cheguem a acordo na conferência de interessados.
(….)
Obviamente que, nesta sede, se os valores concretos valores estivessem apurados documentalmente, o que nem o cabeça de casal nem a interessada logrou efetuar e pelas razões supra citadas, considera-se que o direito de crédito – verba quatro do passivo da responsabilidade de BB- invocado pelo cabeça de casal não poderá ser incluído na relação de bens, devendo as partes ser remetidas para os meios comuns.
Cumpre esclarecer que devem ser remetidas para os meios comuns as questões incidentais que não possam ser decididas em sede de inventário sem redução das garantias das partes e de forma sumária, não no sentido técnico processual, mas no sentido gramatical, querendo com isso significar a simplicidade da prova a produzir, a facilidade da decisão a proferir, a singeleza da questão a apreciar, contrapondo-se assim à da questão de larga indagação a que poria termo decisão fundamentada em provas minuciosas, complicadas e exaustivas.
O crédito que o cabeça de casal se arroga sobre a interessada carece de mais prova, terá que ser contabilizado desde dezembro de 2020. Por outro lado, terá que se apurar e discriminar as concretas transferências nos extratos bancários, e terá que se apreciada a natureza do acordo celebrado, em virtude do cabeça de casal ter ficado a habitar a casa.
Resulta evidente que a complexidade e minúcia da questão não é compatível com o caráter incidental do processo de inventário, pelo que nos abstemos de conhecer esta matéria, remetendo as partes para os meios comuns (cf. 1093.º CPC), quanto à verba quatro (….)»
Quanto à verba onze
«Impugnou ainda a reclamante a verba onze do passivo da exclusiva responsabilidade de BB.
(…)
A reclamante impugnou o teor da verba onze, alegando que “o empréstimo contraído para aquisição de um veículo automóvel que foi dado à troca aquando da aquisição de um veículo novo”
Nada disto, foi provado.
E de acordo com a documentação junta pelo cabeça de casal, decorre que o cabeça de casal e a interessada, ainda na vigência do casamento contraíram um empréstimo para a aquisição de um veículo.
(….)
Obviamente que, nesta sede, e pelas razões supra citadas, considera-se que o direito de crédito – verba onze do passivo da responsabilidade de BB- invocada pelo cabeça de casal não será incluído na relação de bens, e será remetido para os meios comuns para contabilizar corretamente os montantes que o cabeça de casal terá pago após a instauração da ação de divórcio, pois sempre a contabilização efetuada pelo tribunal poderia levar a inexatidões em face da necessidade de demais prova.
(…)»
Decidiu-se a final
«Pelo exposto, julgo a reclamação parcialmente procedente e, em consequência, decide-se que
(…)
- Remeter as partes para os meios comuns, quantos às verbas quatro e onze do Passivo da exclusiva responsabilidade de BB, sem prejuízo de as partes acordarem quantos aos valores dessas verbas e exararem na ata da conferência de interessados, para que a final, no momento da partilha, possam ser deduzidos à meação do respetivo devedor, nos termos do art.º 1689º, n.º 3 do Código Civil, evitando assim a propositura de ações e de custos inerentes.»
No âmbito do inventário para partilha dos bens comuns (art.º1133.º, n.º1, CPC)[4] o CC deve apresentar a relação de bens contendo o activo do património conjugal.
Dessa relação, para além de constarem os bens comuns do casal segundo o regime e comunhão que tenha vigorado no casamento, «bens que sejam comuns no momento da propositura da acção matrimonial (art.º1688.º e 1789.º, n.º1, do CC) ou, se estiver provada a separação de facto, no momento do início da separação (art.º1789.º, n.º2, CC).
(….) deve também constar o passivo do património conjugal. Integram esse passivo:
I. As compensações devidas pelo património comum aos patrimónios próprios de cada um dos ex-cônjuges, ou seja, as dívidas do património comum aos patrimónios próprios (art.º1726.º, n.º2, CC) (cf. RL 6/4/10 (113-D/2001), RL 12/7/18 (38/10)
II. As dívidas comuns dos ex-cônjuges perante terceiros (art.º 1691.º, 1693.º, n.º2, e 1694.º CC).
III. As dívidas de cada um dos cônjuges perante o outro (art.º1689.º, n.º3, CC; cf. arts 1681.º, 1682.º, n.º4, 1695.º, n.º1, e 1697.º, n.º1, CC) (Lopes Cardoso III, 337 ss; RC 12/3/13 (797/08). Nestas dívidas só relevam aquelas que respeitam à partilha dos bens comuns, que são apenas aquelas que devem ser levadas em conta na meação de cada um dos ex-cônjuges e que, por isso, sejam, não tanto dívidas do ex-cônjuge, mas antes dívidas da meação. Não é o caso da reparação que um dos cônjuges deva pagar ao outro pela dissolução do casamento por divórcio (art.º1792.º do CC) (dif. Lopes Cardoso III, 333 s).»[5]
Na sequência da apresentação da relação de bens pelo cabeça de casal é facultado aos interessados, nos termos do art.º1104.º, n.º1, al. d) e) do CPC, apresentar reclamação contra ela e impugnar os créditos e as dívidas (…).
«Com o objetivo de concentração da suscitação de todos os meios de defesa, o n.º1 als. d) e), estende a dedução da oposição por parte dos interessados diretos a dois aspetos, respeitantes, não já à delimitação subjetiva do universo dos interessados na partilha, mas à definição objetiva do acervo patrimonial, ativo ou passivo, a partilhar:
a) cabe aos interessados directos deduzir no articulado de oposição qualquer reclamação quanto à relação de bens apresentada pelo requerente ou pelo cabeça de casal (n.º1, al.d)), sustentando, nomeadamente, a insuficiência dos bens, o excesso dos bens relacionado, a inexactidão da sua descrição ou impugnando o valor que lhes foi atribuído.
(….)
b) a mais relevante inovação que consta do n.º1 é a que se traduz em criar para os interessados directos o ónus de impugnar neste momento os créditos e as dívidas da (…) (nº1, al.e)). Se discordarem do segmento da relação de bens que, segundo o art.º1098.º, n.º3, especifica separadamente os créditos, os interessados têm o ónus de os impugnar na próprio oposição.
(…)
No actual modelo, os interessados têm o ónus de impugnação dos créditos e das dívidas (…), semelhante ao que sobre eles incide no que respeita à reclamação quanto aos bens relacionados, antecipando-se, pois, para a subfase da oposição a suscitação de uma questão que anteriormente estava relegada para o momento da conferência de interessados. Se a controvérsia entre os interessados exigir uma pronúncia do juiz, esta terá lugar normalmente na fase de saneamentos do processo (arts.1106.º, n.º3 e 4, e 110.º, n.º1, al.a))»[6]
Nos termos do art.º 1105.º do CPC estabelece-se que:
«1- Se for deduzida oposição, impugnação ou reclamação, nos termos do artigo anterior, são notificados os interessados, podendo responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada.
2 - As provas são indicadas com os requerimentos e respostas.
3 - A questão é decidida depois de efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092.º e 1093.º
(…)»
O nº3 regula a decisão do juiz sobre factos que se tornaram controvertidos em toda a fase dos articulados, permitindo inclusivamente a produção oficiosa de prova (também art.411.º CPC)
«Atendendo ao disposto no art.º 1109.º, a decisão do juiz sobre questões controvertidas pode ser precedida da realização da audiência prévia, nomeadamente quando o juiz considere possível a obtenção de um acordo dos interessados sobre alguma daquelas questões. Frustrado, no entanto, este acordo, passa-se à produção da prova requerida pelas partes ou determinadas ex officio (art.º411.º), e à posterior decisão (n.º3).
Esta decisão, se não for tomada imediatamente (n.º3), incluir-se-á na fase de saneamento do processo de acordo com o disposto no art.º1110.º, n.º1, al.a), que se reporta à resolução, neste momento, de todas as questões susceptíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar.
Considerando a natureza da questão controvertida ou a complexidade da matéria de facto a ela subjacente, o juiz pode determinar a remessa das partes para os meios comuns (n.º3: cf.arts. 1092.º e 1093.º)»[7]
Dispõe de facto o art.º1093.º do CPC, preceito relevado pela decisão posta em crise, sob a epígrafe “Outras questões prejudiciais”, que: “1 - Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados directos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns”.
Resulta deste preceito, no tocante à remessa para os meios comuns, sendo uma previsão de excepção, que a lei mandar atender apenas à especial complexidade da matéria de facto subjacente à questão.
A este propósito podemos ver o Acórdão da Relação de Guimarães de 23.03.2023, tirado no processo 62/20.4T8VRL.G1: «(…) Todavia, podem suscitar-se no âmbito do processo de inventário questões de outra natureza, designadamente conexas com os bens relacionados e/ou com direitos de terceiros para cuja resolução se revelem inadequados os constrangimentos inerentes ao processo de inventário (cf. art. 1091º, n.º 1, quando remete para o regime dos incidentes da instância), cuja tramitação difere substancialmente da prevista para o processo comum ou para outros processos especiais.
Nestas situações, embora a apreciação de tais questões não seja excluída em absoluto do processo de inventário, segundo a regra geral do art. 91º, n.º 1, o litígio pode envolver larga indagação fáctica ou a produção demorada de meios de prova, podendo justificar a remessa dos interessados para os meios comuns. (…)
Destacam-se os casos em que para a apreciação das questões se revele inadequada a tramitação do processo de inventário para assegurar as garantias dos interessados, tendo em conta designadamente as restrições probatórias ou a menor solenidade associada a uma tramitação de cariz incidental.
Tal poderá ocorrer, por exemplo, quando esteja em discussão a área ou os limites de um imóvel envolvendo divergências com terceiros, a arguição da invalidade da venda de bens relacionados no processo de inventário, a invocação por parte de terceiro ou de um herdeiro, da aquisição por usucapião de um bem relacionado (cf. nº 5 do art. 1105º), a alegação da acessão industrial imobiliária sobre um imóvel relacionado (cf. art. 1339º CC) ou a dedução de um crédito ou de uma dívida da herança relacionada com a realização de benfeitorias”.
A «resolução, no âmbito do processo de inventário, de questões de natureza incidental obedece a uma tramitação menos solene do que a consagrada para o processo comum e mesmo para certos processos especiais, designadamente no que concerne aos meios probatórios admissíveis (arts. 1091 e 1105º, n.º 3), o que poderá justificar que não sejam sacrificados os valores da segurança e da justiça em função da maior celeridade na conclusão do processo de inventário.
Para o efeito, será importante apreciar as razões apresentadas, quer no sentido da resolução incidental das questões, quer dos benefícios da remessa para os meios comuns».
E mais adiante: «a opção de remessa para os meios comuns não pode ser orientada por meras razões de comodidade ou de facilitismos, apenas se justifica quando, estando unicamente em causa a complexidade da matéria de facto, a tramitação do inventário se revele inadequada, por implicar, designadamente, uma efectiva redução das garantias dos interessados, por comparação com o que pode ser alcançado através dos meios comuns».[8]
Será o caso?
Não cremos.
A prova no caso, trazida aos autos, é de natureza exclusivamente documental, nomeadamente extractos bancárias (juntos com a relação de bens e com o requerimento da interessada BB no dia 16.12.24), sendo «curtíssima» a matéria factual (duas verbas com residual alegação factual).
Quanto a isto voltaremos adiante.
Uma outra questão é também suscitada, bulindo com a data da separação e facto.
Trata-se, no entanto, em face da decisão, questão ultrapassada e que não dificulta a pronúncia quanto à reclamação relativamente às verbas em causa em sede de inventário.
Relativamente a este facto entende o recorrente que existe trânsito em julgado ocorrido no processo principal (divórcio), com isto também pretendendo (como se a questão não tivesse sido decidida) recrutar um argumento para concluir pela não complexidade das questões a resolver que justifique a remessa para os meios comuns.
Tal questão não foi levantada na reclamação, sequer na resposta a esta, o que, não obstante, não nos desobriga de relevá-la como objecto lateral do recurso[9]: trata-se de questão de conhecimento oficioso.
Ultrapassemos esta questão para concluir que não é ela óbice, nem o tribunal o disse, de resto decidiu a propósito, ao conhecimento da reclamação em sede inventário quanto às verbas postas em crise, assim também afastando a imputada nulidade à decisão (art.º615,º, n.º1, al.d), CPC).
Exige-se no caso julgado uma identidade tríplice: sujeitos, causa de pedir e pedido.
De facto «[a] função negativa do caso julgado é exercida através da exceção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas (artigo 580.º n.ºs 1 e 2 do CPC), implicando a tríplice identidade a que se reporta o artigo 581.º, n.º 1 do CPC, a saber: dos sujeitos (quando as partes são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica), do pedido (quando em ambas as causas se visa obter o mesmo efeito jurídico) e da causa de pedir (quando a pretensão deduzida em ambas procede do mesmo facto jurídico. (…)»[10]
No caso desde logo não consta qualquer pedido a propósito da data de separação de facto do ex-casal no divórcio por mútuo consentimento, e só esse releva por ter sido convertido para ele o sem consentimento oportunamente deduzido.
O pedido constante da acta de 2.3.24 nos autos principais (divórcio por mútuo consentimento) é o seguinte:
«(…) por ambas as partes foi dito estarem de acordo em converter a presente ação em Divórcio por Mútuo Consentimento, conversão que expressamente requerem.»
Na sequência do mesmo foi por despacho operada a conversão e apresentados de seguida os acordos legais:
«Seguidamente, Autor e Ré declararam firmar os seguintes Acordos:
I) Inexistem filhos menores;
II) Prescindem reciprocamente de alimentos
III) A utilização da Casa de morada de família é atribuída ao Autor, até à partilha/venda;
IV) Bens comuns a partilhar:
- O imóvel que corresponde à Casa de Morada de Família;
Autor e ré expressamente consignam que os débitos contraídos e as quantias transferidas a partir de 14/12/2017 são de exclusiva responsabilidade da Ré, não foram consentidos ou minimamente conhecidos pelo Autor, pelo que a mesma assume que tais quantias serão oportunamente pagas pela meação que possui nos bens do casal.
V) Animais de companhia (cfr. Lei n.º 8/2017 de 3/3):
- Não há animais de companhia.»
Não há, pois, qualquer pedido a propósito da fixação da data da separação e facto.
Por outro lado a decisão que decretou o divórcio não se pronunciou sobre a questão, não constando do dispositivo da decisão, aspecto sacramental para que pudesse considerar-se (o trânsito do caso julgado firma-se primacialmente pelo teor do dispositivo).
Decidiu-se:
«AA intentou a presente ação de Divórcio sem Consentimento do Outro Cônjuge demandando BB, sua esposa.
Na presente audiência, as partes requereram a conversão dos autos para Divórcio por Mútuo Consentimento, o que foi admitido e deferido, tendo ambas acordado nos termos exarados supra.
Em conformidade, passam os autos a seguir a tramitação definida pelos artigos 994º e segs. do Código de Processo Civil (assim o estatui o n.º4 do artigo 931º do mesmo diploma e o n.º 2 do artigo 1779º do Código Civil).
Dispõe o artigo 995º, n.º 1 do cit. CPC que, “não havendo fundamento para indeferimento liminar, o juiz fixará o dia da conferência a que se refere o artigo 1776º do Código Civil”.
Ora, nos autos foi já designada e realizada tentativa de conciliação, mantendo os cônjuges o propósito de se divorciarem, atento o estado dos autos e os acordos neles ora firmados, em termos que não nos merecem reparos.
Nestes termos será decretado o divórcio»
A questão da data da separação não foi objecto de decisão, não resultado o apuramento da mesma na sequência de decisão de um litígio a propósito ocorrido.
Por fim é patente a distinção das causa de pedir nas acções em causa: divórcio por mútuo consentimento vs inventário.
Certo que os fundamentos da decisão poderão estar cobertos, não pelo caso julgado, mas pelo autoridade da caso julgado.
De facto a autoridade do caso julgado, por via da qual é exercida a sua função positiva[11], pode funcionar independentemente da verificação da aludida tríplice identidade, formando-se perante a concreta decisão que foi proferida, assim pressupondo a decisão de determinada questão que não poderá voltar a ser discutida.
Não temos como não continuar a citar o acórdão Ac. do STJ de 4.7.24 atrás identificado em nota de rodapé.
«É reiteradamente afirmado pela jurisprudência do STJ que o caso julgado poderá ser perspectivado segundo uma óptica disjuntiva que se encontra ligada ao cumprimento de duas funções: i) uma função negativa, operada através da excepção (dilatória) do caso julgado (….); e (ii) uma função positiva, que radica na figura da autoridade do caso julgado e que pressupõe que a decisão de determinada questão – proferida em acção anterior e que se inscreve, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda – não possa voltar a ser discutida (…).
(…)
Nas palavras de Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, o efeito positivo do caso julgado conferido pela figura da autoridade “assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida (…) ou o fundamento da primeira decisão, excecionalmente abrangido pelo caso julgado (…) é também questão prejudicial na segunda ação.”
Este mesmo ponto foi sublinhado pelo seguinte segmento do sumário do acórdão do STJ de 29-09-2022, onde se pode ler: “a vertente positiva do caso julgado entronca no conceito de prejudicialidade. E uma causa é prejudicial relativamente a outra quando o desfecho possível de uma das causas seja suscetível de fazer desaparecer o fundamento ou razão de ser da outra, sendo necessário que exista uma precedência lógica entre o fim de uma ação e o da outra o que deverá ser perseguido no ângulo de conexão das respectivas relações materiais controvertidas.
A jurisprudência do STJ vem admitindo, em linha com a doutrina tradicional, que a figura da autoridade do caso julgado apenas prescinde da identidade objectiva (identidade atinente aos pedidos e causas de pedir entre as duas causas), não abdicando, todavia, para fazer operar o seu efeito de vinculação do tribunal posterior à decisão proferida pelo tribunal anterior, da identidade subjetiva entre as duas causas (cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 25-11-2014, de 24-03-2015, de 06-11-2018, de 26-02-2019, de 30-06-2020, de 11-11-2020, de 22-06-2021, de 21-06-2022, de 29-09-2022, de 25-03-2021 e de 02-03-2023.
Podemos, pois, afirmar, como princípio geral, que a verificação da figura da autoridade do caso julgado pressupõe, para além do trânsito em julgado da decisão anterior e da existência de uma relação de prejudicialidade entre as duas causas, a identidade subjetiva entre as mesmas, exigindo que as partes no processo em que foi proferida a decisão a impor sejam as mesmas do processo em que se pretende que seja imposta aquela decisão.[12]
No caso é evidente que só existiria uma relação de prejudicialidade entre as duas causas, estando-se, quanto ao facto em causa, perante antecedente lógico decidido no divórcio, se e necessariamente, a questão tivesse sido judicialmente dirimida anteriormente.
Não foi o caso, como vimos, como não foi quanto ao acervo patrimonial comum do ex-casal no autos de divórcio apresentado.
Apresentou-se uma única verba e, não obstante, tal facto não inibindo o apelante de apresentar uma relação com outra dimensão[13].
Assim sendo, também por via deste conjunto de argumentos se conclui que não opera no caso a autoridade do caso julgado, assim improcedendo o recurso nesta parte quanto à imputada nulidade da decisão em crise. (art.615.º n,º1, al d), do CPC).
Está, com o que se referiu, pois, a descoberto da autoridade do caso julgado a data a partir da qual se iniciou a separação de facto.
Releva, assim, a data da propositura da acção de divórcio - art.º1789.º, n.º1 e 2, do CC.
Dizer ainda a propósito da declaração feita por ambos os interessados[14] que em momento algum se reconhece a separação de facto desde 14.12.17, tão só a responsabilidade das dívida verificadas depois desta data pela interessada BB.
Não estamos pois, perante qualquer declararão confessória como a qualifica o recorrente.
Mas ainda que o fosse seria irrelevante por a lei exigir que a data de separação de facto anterior à data da propositura da acção de divórcio esteja provada nos autos e a sentença a fixe – art.º1789.º, n.º1 e 2, do CC.
Correcta pois a decisão quando refere: «Decorre, no entanto que tal ação foi convertida em divórcio por mútuo consentimento, e assim sendo não tendo as partes optado pela discussão e prova da data da separação de facto em data anterior à propositura da ação, não houve lugar ao disposto no art.º 1789º, n.º 2 do Código Civil, pois não se provou a data da separação de facto., nem a mesma foi fixada pelo tribunal.
Não pode ora, o cabeça de casal, em sede de inventário fazer operar o disposto em tal preceito.
O pagamento das prestações devidas com o empréstimo da habitação, contabilizado até novembro de 2020, cabia ao casal, e nem sequer está demostrado que até novembro de 2020, o cabeça de casal tenha pago as prestações do empréstimo com dinheiro próprio, caso em que seria evidentemente credor sobre o património comum e não sobre a interessada, pelo que só a partir da data da propositura da ação, considerando-se aí a cessação dos efeitos patrimoniais entre os cônjuges, se terá que atender ao montante que foi pago pelo cabeça de casal.»
(…)
« Assim sendo, não são devidas seguramente pela interessada as prestações para amortização do empréstimo habitacional contabilizadas desde dezembro de 2017, mas somente desde dezembro de 2020, uma vez que a ação de divorcio foi proposta a 30/11/2020.»
Voltando à questão central.
A dificuldade do tribunal para decidir as questões em aberto não as encontrou o tribunal a quo na data a relevar.
Encontrou-a, quanto a verba 4, na análise da prova existente nos autos[15], afirmando a propósito: «De qualquer forma sempre se dirá o seguinte: não decorre da documentação junta aos autos o valor que em concreto o cabeça de casal pagou desde a data da propositura da ação de divórcio até pelo menos ao momento da apresentação da relação de bens, para além de que a interessada demonstrou ter efetuado pagamento mensais no valor de € 100,00, para amortização, se bem que também em valor não concretamente apurado.»
Refere ainda: «O crédito que o cabeça de casal se arroga sobre a interessada carece de mais prova, terá que ser contabilizado desde dezembro de 2020. Por outro lado, terá que se apurar e discriminar as concretas transferências nos extratos bancários, e terá que ser apreciada a natureza do acordo celebrado, em virtude do cabeça de casal ter ficado a habitar a casa.»
Mas será assim, em face disto, a questão em causa de natureza complexa assim tornado inconveniente a apreciação da mesma no inventário por implicar redução das garantias das partes?
Dizer antes de mais que o tribunal dispõe de poderes a exercitar oficiosamente, que, querendo, permitirão viabilizar um consistente caminho na procura da verdade a propósito dos factos em causa.
Referimo-nos atrás, citando-se trecho autorizado, que «[f]rustrado, no entanto, este acordo, passa-se à produção da prova requerida pelas partes ou determinadas ex officio (art.º411.º), e à posterior decisão (n.º3)», mandando juntar documentos e se necessário ouvindo-se as partes em depoimento de parte .
Não vemos, de facto, o que na acção comum fosse mais relevante e essencial a atender que não os extratos ou outros documentos donde se retirem elementos relacionados com pagamentos, transferências, reconhecimentos de pagamentos (…), não vemos que outros meios de prova se pudessem usar no caso em apreço na acção declarativa que não possam ser utilizados no quadro da instrução probatória da decisão que no inventário se impõe.
Note-se que nenhum dos interessados arrolou testemunhas ou requerer a produção e qualquer outro meio probatório.
A prova será sempre eminentemente documental.
De todo o modo, na dúvida relevará o tribunal o disposto no art.º414.º do CPC.
E quanto à verba 11?
Refere o tribunal a quo que «A reclamante impugnou o teor da verba onze, alegando que “o empréstimo contraído para aquisição de um veículo automóvel que foi dado à troca aquando da aquisição de um veículo novo”
Nada disto, foi provado.
E de acordo com a documentação junta pelo cabeça de casal, decorre que o cabeça de casal e a interessada, ainda na vigência do casamento contraíram um empréstimo para a aquisição de um veículo.
Como tal e como já supra referido, e reiterando o que supra consta a propósito do propósito do empréstimo contraído aquisição da habitação própria, este crédito só poderá ser contabilizado a partir da data da propositura da ação de divórcio e nunca antes, como o fez o cabeça de casal.
Obviamente que, nesta sede, e pelas razões supra citadas, considera-se que o direito de crédito – verba onze do passivo da responsabilidade de BB- invocada pelo cabeça de casal não será incluído na relação de bens, e será remetido para os meios comuns para contabilizar corretamente os montantes que o cabeça de casal terá pago após a instauração da ação de divórcio, pois sempre a contabilização efetuada pelo tribunal poderia levar a inexatidões em face da necessidade de demais prova.»
Não encontramos complexidade nas questões de facto a decidir: o que constatamos é que a prova para suportar a decisão que logre a verdade dos factos, quanto a esta verba como quanto aqueloutra, é de natureza documental.
Todavia isso nada tem que ver com a complexidade das questões de facto, ao invés prendendo-se com a contingência própria da prova que também poderá ocorrer no processo comum.
O tribunal usará os poderes que entender necessário usar, mandando juntar outros documentos e produzindo outra provas que entender, e, em função isso decidirá, trabalhando como o ónus da prova e operando, se necessário, o disposto no art.º414.º do CPC.
Para fundar a remessa para os meios comuns, como o fez o tribunal a quo, a lei exige a especial complexidade da matéria de facto subjacente à questão por (1093.º, n.º1, CPC) o processo de inventário (cf. art. 1091º, n.º 1, quando remete para o regime dos incidentes da instância) implicar uma tramitação substancialmente diferente da prevista para o processo comum ou para outros processos especiais, assim implicando redução das garantia das partes.
Não encontramos na decisão a tomar quanto à verba 4 e 11 essas circunstâncias que justifiquem o uso no disposto no art.º1093.º nº1 do CPC.
Nem as questões de facto são complexas, nem se nos afigura que outras diligências pudessem ser requeridas no processo comum que não pudessem ter sido requeridas ou decididas (ou a decidir) oficiosamente no processo de inventário.
Pelo exposto, julgando procedente o recurso, revoga-se a decisão recorrida na parte que remeteu para os meios comuns o conhecimento das questões relacionadas com a verba 4 e 11, assim se determinando o prosseguimento dos autos de inventário nos termos atrás referidos para o conhecimento, quanto a elas, da reclamação à relação e bens.
Custas da apelação pela apelada.
Notifique.
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