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CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RENDA
MORA DO CREDOR
RECUSA DA PRESTAÇÃO
EMISSÃO DE RECIBOS
DEPÓSITOS LIBERATÓRIOS
Sumário
I- O recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto tem o ónus de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; não cumpre tal ónus o recorrente que invoca, sem os especificar, que deviam ter sido dados como provados os factos consubstanciados nas cartas anexas a certo requerimento e descriminadas as ações (judiciais) descritas na contestação. II- A recusa do recebimento da renda tem que resultar de factos objetivos que atestem que o senhorio se opõe ao recebimento das rendas, não querendo receber a prestação. III- A não emissão de um único recibo de renda, solicitado após o respetivo pagamento e o silêncio do senhorio à missiva do arrendatário onde informa que considera existir, por via daquela não emissão, recusa em receber a renda, não são suficientes para afirmar uma situação de recusa no recebimento das rendas, não ocorrendo mora do credor com tal fundamento. IV- A recusa da prestação, prevista no n.º2 do art.787.º do C.C., só é legítima relativamente àquela que é oferecida e cuja correspetiva quitação é exigida e havia de ser passada, não legitimando a recusa de cumprimento de prestações futuras por mor da falta de emissão de quitação de prestação já satisfeita; tal norma não tem aplicação em caso de prestações não correspetivas. V- Não são liberatórios os depósitos da renda efetuados pelo arrendatário, invocando recusa na emissão dos recibos, numa situação em que apenas um recibo não foi emitido e respeitava a renda já paga aquando do pedido de quitação, porquanto, o pagamento das rendas subsequentes, que foram depositadas, não dependia da emissão daquele recibo, a não emissão do recibo não impedia o pagamento dessas rendas ou o oferecimento dessa prestação, não estando integrada a previsão normativa do art.813.º do C.C. “o credor não pratica os actos necessários ao cumprimento”. VI- O depósito das rendas posteriores ao primeiro depósito efetuado é consentido desde que a causa determinante deste subsista (art.20.º do NRAU); cessando essa causa os depósitos posteriores não são liberatórios.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I-Relatório
1- TFCS (Lisbon) Investment, Lda., propôs contra A… e B…, ação declarativa de condenação com o seguinte pedido: “…ser reconhecida a validade da resolução operada do contrato de arrendamento e, em consequência, condenar-se os RR.: - Ao pagamento do montante de 8.400,00 €, a título de rendas vencidas e não pagas, acrescido de juros vencidos e vincendos até o seu integral pagamento, que neste momento ascendem a 612,45 €; - ao pagamento de uma compensação por conta da retenção do imóvel calculada nos termos do artigo 1045.º do C.C. desde o início do mês de Maio até entrega efetiva do mesmo, no valor de 600,00 € por mês, acrescida de juros vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento, até efetiva entrega do imóvel; - Na restituição do imóvel livre de pessoas e bens e no estado em que se encontrava à data da celebração do contrato;”; alegou para tanto que é proprietária do prédio sito na Rua…, n.º…, 2º, Lisboa, e os réus são inquilinos e deixaram de pagar os valores correspondentes à renda desde janeiro de 2020, continuando a usar o locado; decorridos mais de dois meses sobre a data em que foi omitido o pagamento da primeira das rendas em falta, à A. era dado o direito de determinar a resolução do contrato e, por isso, em 21 de Dezembro de 2021, notificou-os judicialmente comunicando-lha, estando os réus obrigados à restituição do imóvel e pagamento das rendas vencidas e compensação a que se refere o artigo 1045.º/2 do C.C..
2- Citados os réus contestaram invocando que sempre pagaram a renda de €600 até 3 janeiro 2020, inclusive, através de transferência bancária para a conta da autora e esta, através do seu contabilista emitia os recibos de renda; por transferência efetuada em 3 janeiro 2020, pagaram a renda correspondente ao mês de fevereiro de 2020 e em 9 janeiro 2020, pediram o recibo correspondente o qual não lhe foi enviado, pelo que, depositaram na Caixa Geral de Depósitos, em 6 fevereiro 2020, a renda correspondente ao mês de março 2020 disso informando a autora e continuariam a depositar as rendas futuras até à data; o recibo da renda de fevereiro de 2020, ainda paga por transferência, só foi emitido em dezembro de 2020. Pugnam pela improcedência da ação e pedem a condenação da autora como litigante de má-fé em multa e indemnização a favor dos Réus de montante não inferior a €6.000,00 euros por entenderem que a autora deduz pretensão com falso fundamento.
3-No seguimento dos autos foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Com os fundamentos de facto e de direito supra expostos, julga-se a presente ação parcialmente procedente, por provada, e, em consequência, decide-se: a) Reconhece-se a validade da resolução do contrato de arrendamento que vigorava entre os Réus A… e B… e a Autora TFCS (Lisbon) Investment, Lda, respeitante ao prédio / “escritório”. sito na Rua…., n.º …, 2º, ….Lisboa. b) Condenar-se os Réus A… e B…. a restituir à Autora TFCS (Lisbon) Investment, Lda, o prédio referido em a), livre de pessoas e bens. c) Condenar-se os Réus A… e B… a pagar à Autora TFCS (Lisbon) Investment, Lda a quantia de €7.800,00 (sete mil e oitocentos euros), a título de rendas vencidas, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde o vencimento de cada renda. d) Condenar-se os Réus A… e B… a pagar à Autora TFCS (Lisbon) Investment, Lda o valor mensal de €300,00 a titulo de “rendas vencidas” desde maio de 2022 e até ao trânsito em julgado da sentença, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde o vencimento de cada “renda”. e) Condenar-se os Réus A… e B… a pagar à Autora TFCS (Lisbon) Investment, Lda, após trânsito em julgado da presente decisão, o valor mensal de €600,00 até que seja efetivamente entregue o locado. g) Absolver os Réus do demais peticionado. h) Absolver a Autora TFCS (Lisbon) Investment, Lda do pedido de condenação como litigante de má-fé.”
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4-É desta sentença que vem interposto o presente recurso pelos réus, que termina com as seguintes conclusões: 1. O presente recurso vem interposto sentença que decidiu do mérito da causa, reconheceu a validade da resolução do contrato de arrendamento e condenou os recorrentes, para além doutras decisões, a restituir à Autora o locado livre de pessoas e bens proferindo decisão errada e com a qual os Recorrentes não podem de modo algum conformar-se; 2. A sentença em crise não incluiu todos os factos que deviam ter sido considerados provados e incluiu, erradamente, como não provados factos que devia ter considerado provados; 3. Porque não fez uso, na sua plenitude, dos poderes que, além doutros, são conferidos pelo art. 5, CPC apesar de afirmar que o fez; 4. A decisão proferida não sancionou, ao invés, apoiou o comportamento antiético da Autora, com violação do princípio da boa-fé, para com os Recorrentes; 5. Previamente aos factos descritos sob o n.º 6 e seguintes dos Factos Provados constam dos autos outros factos que foram sujeitos ao contraditório e que, manifestamente influem no exame e decisão da causa; 6. São os factos constantes do requerimento dos Recorrentes, apresentado em 06-07-2023 com a referência citius 46068651; 7. Consubstanciados nas cartas ali anexas e que se dão por reproduzidas; 8. Tais documentos, embora não tenham sido referidos na contestação, foram alegados em resultado do desenvolvimento posterior dos autos e que manifestamente influem no exame e decisão da causa; 9. Face ao disposto no art.5-2-b), CPC, deviam constar dos Factos Provados e devidamente examinados na decisão de que se recorre; 10. O Tribunal, com a informação que lhe foi dada na contestação sobre as ações descritas nos arts. 33 a 36 da contestação, devia ter examinado os mencionados processos por resultar do exercício das suas funções; 11. A descriminação de tais ações deviam constar dos Factos Provados de modo a que o tribunal pudesse apreciar, após exame dos mesmos, o alegado no art.37 da contestação ao invés de liminarmente considerar o facto como não provado e absolver, deste modo, a Autora do pedido de litigância de má-fé; 12. Ora, resulta claramente dos Factos Provados sob os n.ºs 6, 10, 12, 13 e 15 que os Réus entenderam, como qualquer outro interlocutor, haver da parte da Autora recusa em receber as rendas; 13. O que conjugado com os documentos que acompanharam o requerimento dos Recorrentes, apresentado em 06-07-2023 com a referência citius 46068651, foi evidente que a Autora mantinha o que tinha escrito, isto é, que o contrato de arrendamento terminava em 31 de janeiro de 2020 e daí o não pretender receber mais rendas não emitindo os respetivos recibos; 14. Com este procedimento a Autora quebrou a relação de confiança que, na relação contratual devia existir entre senhoria e inquilinos; 15. Sucede, ainda, --o que é um facto notório-- que, à data, eram os Réus que tinham que preencher o nome do beneficiário da transferência; 16. Pelo que, ainda hoje, os Réus desconhecem se a Autora era a titular da conta que corresponde ao IBAN para onde efetuavam as transferências; 17. Considera a sentença em crise que seria suficiente os Réus continuarem a fazer o pagamento das rendas para o mencionado IBAN; 18. Mas, se o continuassem a fazer, sem receberem o respetivo recibo, sujeitavam-se a que mais tarde a Autora viesse dizer que tal IBAN não lhe pertencia; 19. Tendo sempre em mente as variadas ações que a Autora propôs contra os outros inquilinos e mencionadas em IV; 20. A que acresce o silêncio absoluto da Autora aos emails mencionados nos Factos Provados n.ºs 12 e 15.--vide Facto Provado sob o n.º 12; 21. Só a consignação em depósito das rendas deu aos Réus a segurança necessária ao cumprimento atempado da sua obrigação de pagamento das rendas; 22. A Autora sem motivo justificado, não aceitou a prestação oferecida pelos Réus, isto é, recusou-se a emitir os respetivos recibos como era sua obrigação e direito dos Réus --art.787, CC- -, incorrendo em mora. --art. 813, CC; 23. Forçando os Réus a consignar em depósito as rendas posteriores à recusa em emitir recibo das rendas --art. 17 NRAU e art. 841-1-a), CC; 24. Única solução que deu aos Réus a segurança necessária ao cumprimento atempado da sua obrigação de pagamento das rendas; 25. Sucede, ainda, que a Autora devia ter impugnado o depósito após a comunicação do mesmo pelos Réus no prazo fixado pelo art.21, NRAU; 26. O que não fez; 27. Ao invés, refugiou-se num silêncio absoluto e esperou 2 anos para vibrar um golpe traiçoeiro, à revelia da boa-fé, com a propositura da presente ação; 28. Que o tribunal deve sancionar e não apoiar como fez a sentença em crise; 29. A sentença em crise não teve em consideração os factos importantes para a decisão da causa indicados nas Conclusões 5, 6, 7, 10 e 11; 30. Aplicando erradamente a Lei a factos insuficientes violando, entre outros os arts. 17 e 21, NRAU, arts. 787, 813, 841-1-a), CC e arts. 5 e 7; CPC. Pelo exposto e pelo muito mais que resultar do douto suprimento de Vossas Excelências deve dar-se provimento ao recurso e, em conformidade, 1.-a)- deve acrescentar-se aos Factos Provados as cartas mencionadas nas Conclusões 6 e 7; b)- assim como deviam constar dos Factos Provados as ações mencionadas nas Conclusões 10 e 11; revogando-se a sentença em crise, e ordenando-se a baixa dos autos à 1.ª instância para que possam ser, de novo, apreciados os novos factos supra indicados com nova apreciação dos Factos Não Provados, lavrando-se sentença que aprecie, de novo, os pedidos formulados na contestação ou se inesperadamente não for assim entendido, 2. deve revogar-se a sentença em crise substituindo-se por outra que absolva os Réus dos pedidos da Autora, tudo com as legais consequências, designadamente as respeitantes a custas e justa procuradoria.”
5- Contra-alegou a A/recorrida, concluindo da seguinte forma: A. Os ora recorrentes vieram interpor recurso por considerar que o Tribunal a quo não fez uso dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 5.º do CPC, o que teve repercussão direta na decisão da matéria de facto dada como provada e não provada. B. Relativamente à inclusão dos factos descritos no requerimento dos recorrentes de 06.07.2023 à lista de factos provados o Tribunal a quo considerou, e bem, como irrelevante para a boa decisão da causa. C. A matéria ali alegada pelos recorrentes nada tem a ver com a matéria da petição inicial ou da contestação, reportando-se a acontecimentos anteriores aos descritos nas peças e a uma pretensão da recorrida de oposição à renovação do contrato de arrendamento e entrega do imóvel em causa nos autos. D. Também a inclusão na lista dos factos provados das ações judiciais mencionadas nos artigos 33 a 36.º da contestação é irrelevante para a boa decisão da causa. E. Nem poderia o Tribunal a quo incluir aquelas ações na lista dos factos provados, uma vez que não se encontram juntas as respetivas certidões judicias. F. A recorrida nunca recusou o recebimento de qualquer renda. G. A não emissão de recibo pelo senhorio não constitui uma recusa do recebimento da renda, pelo que não é motivo para o não pagamento das rendas posteriores. H. A não devolução das rendas pela recorrida equivale à sua aceitação. I. Os recorrentes optaram por, a partir da data de pagamento da renda de março de 2020, não efetuar o pagamento das rendas mediante transferência bancária para a conta da recorrida, sendo certo que o pagamento da renda do mês anterior (fevereiro de 2020, efetuada a 03 de janeiro de 2020 mediante transferência bancária), não foi devolvido. J. O depósito efetuado pelos recorrentes em conta da Caixa Geral de Depósitos não tem o efeito liberatório invocado, verificando-se um incumprimento, presumidamente culposo, da obrigação de pagamento da renda. K. Em face do exposto, deve o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir
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Objeto do recurso/questões a decidir:
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões apresentadas, nos termos conjugados dos arts.635.º n.º4 e 639.º n.º1 do CPC, sem prejuízo das questões de que o tribunal possa conhecer oficiosamente (art.608.º, n.º 2, in fine, em conjugação com o art. 663.º, n.º 2, parte final, ambos do CPC), prefiguram-se no presente caso as seguintes questões a decidir:
-impugnação da matéria de facto;
- mérito da decisão quanto à válida resolução do contrato de arrendamento.
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II- Fundamentação
2.1- Fundamentação de facto:
2.1.1- Na sentença objeto de recurso foram considerados provados os seguintes factos: 1) Mediante um acordo denominado “arrendamento”, a 11 de janeiro de 1928, foi cedido o gozo do prédio sito na Rua…., n.º…, 2º, …Lisboa, para fins de “escritório”. 2) O acordo referido em 1) sofreu diversas vicissitudes, figurando na atualidade os Réus como inquilinos no mesmo, mediante uma contrapartida pecuniária mensal. 3) Desde que a Autora passou a emitir recibos de renda, o seu contabilista, C…, da empresa T…, entendeu emitir 2 recibos de renda, no valor de €300 mensais cada um, sendo um em nome do Réu A… e outro em nome do B…, perfazendo o valor de €600,00. 4) Até 3 janeiro 2020, inclusive, os Réus pagavam a renda à Autora através de transferência bancária o valor de €600,00, para a conta da Autora com o IBAN PT5000..…., e enviavam um email ao seu contabilista contendo em anexo o comprovativo da transferência com a identificação do mês de renda a que dizia respeito, e a Autora, por sua vez, através do seu referido contabilista, emitia os recibos de renda correspondentes. 5) O envio aos Autores dos recibos correspondentes ao pagamento da renda ocorria nos dias imediatamente a seguir ao email que informava da transferência do valor da renda. 6) Em 3 janeiro 2020, mediante transferência bancária, os Réus pagaram à Autora a renda correspondente ao mês de fevereiro de 2020. 7) Em 9 janeiro 2020, em face da ausência de envio aos Réus do recibo referente ao pagamento referido em 6), o Réu A…, enviou, às 15,50 horas, um email ao contabilista C…, da empresa T…, a solicitar-lhe com urgência o envio dos recibos. 8) Em 9 de janeiro de 2020, o Réu A… telefonou ao contabilista C… da empresa T…, que o informou que não tinha instruções para emitir mais recibos de renda. 9) Na sequência do email referido em 7) C…, da empresa T…, no mesmo dia 9 janeiro 2020, às 16,14 horas, com cópia para o escritório dos Réus, enviou um e-mail à Autora no qual comunicou que, face ao pagamento de renda feita pelos Réus, ou devolvia o dinheiro ou emitia os recibos. 10) Em 27 janeiro 2020, às 11,19 horas, o Réu A…, em face da ausência de qualquer comunicação por parte da Autora e como se aproximava o fim do mês após o qual os Réus teriam que pagar uma nova renda, enviou um novo email a C…, da empresa T…, com o seguinte teor: “Confirmamos o nosso e-mail infra e que que lhe enviámos em 9 janeiro 2020. Caso não obtenhamos resposta até 31 janeiro 2020 ou se não nos enviarem até àquela data os recibos que nos são devidos vimos informar que consideramos existir recusa da TFCS em receber as rendas pelo que passaremos a depositar as rendas futuras que ficarão à ordem do tribunal.”. 11) No dia 27 janeiro 2020, às 13,03 horas, C…, da empresa T… respondeu, através de email, no qual disse só ter competência para emitir recibos e que a Autora devia ser contactada para o email desta: s...@u....com. 12) Na sequência do email referido em 11), o Réu A… enviou nesse mesmo dia, 27 janeiro 2020, às 16,21 horas, um email à Autora, com conhecimento a C…, da empresa T…, para o endereço eletrónico fornecido por aquele, endereço eletrónico que até aquela data os Réus desconheciam, com o seguinte teor: “Vimos, por este meio, informar que caso não obtenhamos de V. Exas resposta até 31 janeiro 2020 ou se não nos enviarem até àquela data os recibos que nos são devidos vimos informar que consideramos existir recusa da TFCS em receber as rendas pelo que passaremos a depositar as rendas futuras que ficarão à ordem do tribunal.”. 13) A Autora não respondeu ao email referido em 12) nem enviou os recibos solicitados (referentes ao pagamento da renda do mês de fevereiro de 2020) no prazo ali indicado. 14) Em 6 fevereiro 2020, na sequência do descrito em 11) a 13), os Réus depositaram na Caixa Geral de Depósitos o valor correspondente à renda do mês de março 2020. 15) No dia 7 fevereiro 2020, às 17,38 horas o Réu A… enviou um email à Autora, com conhecimento a C…, da empresa T…, com o seguinte teor: “Uma vez que a TFCS, Lda, não nos remeteu os recibos das rendas pagas em janeiro 2020 nem respondeu ao nosso email infra, vimos informar que, por uma questão de segurança, depositámos na Caixa Geral de Depósitos, as rendas devidas no mês de fevereiro e respeitantes ao mês de março 2020, no valor de 300,00 euros, cada uma, no total de 600,00 euros, e continuaremos a depositar as rendas futuras até haver uma manifestação da vontade, por escrito e inequívoca, por parte da TFCS, Lda, de pretender que as rendas voltem a ser pagas por transferência bancária como até à data.”. 16) Todos os emails enviados pelo Réu A… foram endereçados sempre em nome de ambos os Réus. 17) A partir dessa data, março de 2020, os Réus passaram a depositar mensalmente na Caixa Geral de Depósitos o valor correspondente às rendas. 18) Os recibos relativos à renda de fevereiro 2020 acabaram por ser enviados aos Réus pelo Contabilista C…, da empresa T…, com data de emissão de 30 dezembro 2020. 19) A Autora não devolveu o valor pago pelos Réus a 03 de janeiro de 2020 mediante transferência bancária referente à renda de fevereiro de 2020, cf. referido em 6). 20) Em 21 de Dezembro de 2021, a Autora submeteu pedido de notificação judicial dos Réus comunicando a resolução do contrato. 21) A notificação do Réu B… foi efetuada em 07 de janeiro de 2022 e a do Réu A… em 31 de março de 2022. 22) Os Réus responderam às notificações referidas em 20) e 21) por cartas remetidas a 25 de fevereiro de 2022 e 06 de abril de 2022, registadas com AR para a morada da sede indicada pela Autora, as quais vieram ambas devolvidas com a indicação “Não Atendeu. Avisado”. As cartas referidas em 21) continham, designadamente, o seguinte teor: “1. As rendas têm sido pagas integral e atempadamente até à presente data. 2. Não é verdadeiro o alegado no art. 6 das notificações avulsas já que a TFCS,LDA, emitiu os recibos correspondentes ao pagamento efetuado em janeiro 2020 correspondente às rendas de cada um dos signatários relativas ao mês de fevereiro de 2020. 3. As cartas que constituem o doc . 4 das notificações avulsas, que têm aposta a data de 14 dezembro 2021, nunca foram recebidas e passámos a ter conhecimento do teor das mesmas na data em que recebemos as notificações avulsas. Uma vez que temos sempre pago atempadamente as rendas do locado não aceitamos, e repudiamos, a declaração de resolução do contrato de arrendamento e os pedidos que lhe são acessórios, os quais são proferidos com manifesta má fé por ser do perfeito conhecimento da TFCS, LDA, que os factos alegados não são verdadeiros .” 23) Os Réus continuam a utilizar o prédio referido em 1).
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2.1.2- Na sentença objeto de recurso constam como factos não provados os seguintes: a) Encontra-se registado a favor da Autora o prédio sito na …, n.º …, 2º, …Lisboa, descrito na CRP do Registo Predial de Lisboa sob o n.º … inscrito na respetiva matriz sob o artigo … b) A contrapartida / renda mensal que incumbe aos Réus é no valor de €300,00. c) Desde que adquiriu o prédio dos autos a Autora tem pressionado os Réus com argumentos legais incompreensíveis com a intenção de os obrigar a defenderem-se e com o objetivo de provocar a desocupação do imóvel, perturbando-os e desestabilizando-os. d) A Autora pretende com a presente ação pressionar os Réus com argumentos legais incompreensíveis com a intenção de os obrigar a defenderem-se e com o objetivo de provocar a desocupação do imóvel, perturbando-os e desestabilizando-os.
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2.2-Fundamentação de direito:
As questões a conhecer no recurso são aquelas que ressaltam das respetivas conclusões como já acima se disse, questões que ficaram, assim, também, acima identificadas.
· Impugnação da matéria de facto:
A primeira questão a apreciar face ao que consta das conclusões de recurso traduz-se na discordância dos recorrentes quanto à decisão sobre a matéria de facto, tendo em conta o afirmado na conclusão n.º2.
Dispõe o art.640.º do CPC que estabelece o “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”: 1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
Resulta evidente do artigo transcrito que pretendendo a parte recorrer na parte atinente à decisão de facto, impugnando-a, tem que cumprir diversos ónus, sob pena do recurso quanto à matéria de facto ser rejeitado e, por isso, não chegar a ser apreciado pelo Tribunal da Relação. Por conseguinte, numa primeira linha de exigências (n.º1 do art.640.º), deve obrigatoriamente especificar a) os concretos pontos de facto incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa; c) a decisão (diversa) que deve ser proferida. E numa segunda linha de exigência, se os meios indicados como fundamento do erro na apreciação das provas tiverem sido gravados, sob pena de imediata rejeição do recurso, tem o recorrente que indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda.
A jurisprudência é pacífica quando à necessidade de cumprimento de tais ónus. Assim, v.g. Acórdão do STJ Uniformizador de Jurisprudência, de 17.10.2023 onde se diz “Com efeito, no art.º 640, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, consta do n.º1, Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgado; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida; e quanto ao ora em análise, c) A decisão que no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Apontados como ónus primários, pois têm como função delimitar o objeto do recurso, fundando os termos da impugnação, daí a sua falta traduzir-se na imediata rejeição do recurso, em contraposição aos ónus secundários, previstos no n.º2 do art.º640 relativos à alínea b) do n.º1, enquanto instrumentais do disposto no art.º 662, que regula a modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto pelos Tribunais da Relação, permitindo assim, um efetivo segundo grau de jurisdição no conhecimento das questões de facto, na procura da sua melhor realização, em termos relevantes, isto é, na busca da verdade material com a decorrente justa composição dos litígios.”; ou nos dizeres do sumário do Ac. TRG de 12.10.2023 (relatora Maria João Matos), “I. O ónus de impugnação da matéria de facto julgada exige que, cumulativamente, o recorrente indique os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os meios probatórios e as exactas passagens dos depoimentos que os integrem que determinariam decisão diversa da tomada em primeira instância - para cada um dos factos que pretende impugnar -, e a decisão que deverá ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (art.º 640.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC).”, ou ainda no Ac. TRP de 12.7.2023 (Paula Leal de Carvalho) “A impugnação da decisão da matéria de facto deve ser rejeitada quando o Recorrente: não deu cumprimento, nas conclusões, aos requisitos previstos nas als. a) e c) do nº 1 do art. 640º, do CPC pois que não indicou os concretos pontos da decisão da matéria de facto de que discorda e as respostas que, em seu entender, deveriam ter sido dadas, sendo que são estas que delimitam o objeto do recurso; não deu igualmente cumprimento a tais requisitos no corpo das alegações, pois que, aí, limita-se a transcrever os factos provados e não provados e a dizer que o juiz “não poderia ter dado todos os factos acima identificados como não provados” sem concreta indicação das respostas que, em seu entender, deveriam ter sido dadas; não cumpriu o disposto na al. b) do nº 1 do citado art. 640º, mais não fazendo do que uma impugnação em bloco, não conexionando cada facto individualizadamente (ou, pelo menos, grupos de factos que estejam em intimamente relacionados) com os concretos meios de prova que aduz; e não cumpriu o disposto no art. 640º, nº 2, al. a), não localizando, na gravação, o momento temporal (minutos) correspondente aos depoimentos que transcreve.”, ou Ac. TRL de 11.7.2024 (Paulo Fernandes da Silva) “II.–Sob pena de rejeição do recurso da decisão de facto, na impugnação desta o Recorrente tem um triplo ónus: (i) concretizar os factos que impugna, (ii) indicar os concretos meios de prova que justificam a impugnação e impõem uma decisão diversa, sendo que caso tenha havido gravação daqueles deve o Recorrente indicar as passagens da gravação em que funda a sua discordância, e (iii) especificar a decisão que entende dever ser proferida quanto à factualidade que impugna.”, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
Haverá, também, de ter em conta que, relativamente à forma/modo de cumprimento do ónus previsto na al. c) do n.º1 do art.640.º, questão que vinha gerando controvérsia, o já mencionado Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º12/2023, de 17.10.2023, com a retificação operada pela declaração de retificação n.º25/23 (DR de 28.11.2023) uniformizou a jurisprudência da forma seguinte: «Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações».
Já quanto ao cumprimento do ónus previsto na al. a) do n.º1 do art.640.º do CPC, como ressalta também desse mesmo acórdão uniformizador, a indicação dos concretos pontos de facto terá, sob pena de rejeição, que constar das conclusões do recurso.
Quanto à indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (al. b) do n.º1 do art.640.º), vem sendo entendido que tal ónus se cumpre se for possível extrair com segurança das alegações de recurso a indicação dos concretos meios probatórios em que o recorrente se funda para defender que se impõe decisão diferente sobre cada um dos pontos de facto concretamente impugnados.
Por outro lado, ainda, não há lugar a convite ao aperfeiçoamento, tendo em vista o cabal cumprimento dos ónus impostos ao recorrente quando impugna a decisão sobre a matéria de facto (Ac. STJ de 25.11.2020 (Paula Sá Fernandes) “II. Omitindo a Recorrente o cumprimento dos ónus processuais a que se refere o artigo 640.º do CPC, impõe-se a imediata rejeição da impugnação da matéria de facto, não sendo aplicável o convite ao aperfeiçoamento das conclusões a que se refere o n.º1, b) do artigo 652.º do CPC.”; Ac. STJ de 14.2.2023 (Jorge Dias), “III - No recurso sobre a matéria de facto se as conclusões forem deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não contemple o estatuído no art. 640.º, o relator não tem o dever de convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, na parte afetada. IV - Ou seja, quando o recurso da matéria de facto se apresenta deficiente, sem dar cumprimento ao disposto no art. 640.º do CPC, não há lugar a despacho de convite ao aperfeiçoamento.”, - acessíveis em www.dgsi.pt.
Acresce, que o conhecimento da impugnação da matéria de facto, pelo Tribunal da Relação, haverá de se revelar necessário e relevante para a apreciação das questões objeto do recurso, donde, evidenciando-se que a alteração dos factos pretendida não tem a virtualidade de se repercutir, alterando ou modificando os termos da questão a apreciar no recurso, o tribunal superior não tem que conhecer do recurso sobre a impugnação da matéria de facto, ou conhecê-lo na sua totalidade, podendo a apreciação cingir-se aqueles concretos pontos de factos relevantes e cuja alteração, supressão ou aditamento, tenham a virtualidade de se puderem repercutir na decisão final do recurso, em face das demais questões objecto do mesmo. Neste sentido, entre outros, Ac. STJ de 3.11.2023 (Mário Belo Morgado); Ac. TRL de 26.9.2019 (Carlos Castelo Branco) – “I)– Não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.).”; Ac. TRC de 25.10.2022 (João Moreira do Carmo); Ac. TRG de 22.10.2020 (Maria João Matos) -” V. Por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(eis) de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter(em) relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil.” (acessíveis em www.dgsi.pt)
Em face do que fica dito, vejamos o caso dos autos e desde logo para saber se os recorrentes deram cumprimento nas conclusões de recurso ao ónus de indicação dosconcretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados. Extrai-se da conclusão 2.ª já mencionada que os recorrentes entendem que a sentença não inclui todos os factos que deviam ter sido considerados provados, pelo que, pretendem ampliar a matéria de facto provada com aditamento de outros factos. Mister é que os tenham concretamente identificado. E visto que vem dito nas conclusões 5, 6 e 7, extrai-se também que se reportam aos factos que dizem constar do requerimento de 6.7.2023 “consubstanciados nas cartas ali anexas”. Ora, os recorrentes não especificam nessas conclusões nem em quaisquer outras os concretos pontos de factos alegadamente constantes do citado requerimento que pretendem ver provados, limitando-se a dizer que os mesmos se consubstanciam nas cartas ali anexas, cartas estas que, tratando-se de documentos, são meios de prova e, por isso, não podem, para os efeitos que nos ocupam, ser consideradas como os concretos pontos de facto que pretendem ver provados. Aliás das afirmações dos recorrentes neste particular nem se consegue saber se os mesmos pretendem que se dê como provado o envio das cartas, o seu conteúdo ou algum concreto facto – alegado no citado requerimento – que entendem provar-se em face dessas cartas. Os recorrentes não distinguem como se lhes impunha os factos dos meios de prova que eventualmente os demonstram, referindo-se tão só às cartas juntas com o requerimento, em número de oito como constatamos dos autos. Os recorrentes tinham que especificar, ou seja, identificar com determinado conteúdo os factos que, tendo sido alegados, pretendiam ver aditados e provados, o que manifestamente não fazem com as afirmações lacónicas e inespecíficas “constam dos autos outros factos que foram sujeitos ao contraditório e que, manifestamente influem no exame e decisão da causa … São os factos constantes do requerimento dos Recorrentes, apresentado em 06-07-2023 …Consubstanciados nas cartas ali anexas e que se dão por reproduzidas;”, que constam das conclusões 5 a 7 ou a igualmente inespecífica alusão que fazem no final do recurso “1.-a)- deve acrescentar-se aos Factos Provados as cartas mencionadas nas Conclusões 6 e 7. Note-se que da impugnação da matéria de facto deve conseguir extrair-se as razões porque a parte pretende ver provado certo facto ou as razões da sua discordância quanto à prova de certo facto, em termos de permitir ajuizar da relevância dessa factualidade para a decisão da causa em face das questões jurídicas que se prefiguram no recurso e daí, também, que a lei exija que o recorrente especifique (…) os concretos pontos de facto que pretende que o tribunal de recurso reavalie. No caso, não obstante a alusão às cartas/documentos, desconhecendo-se os factos concretos que pretendem ver provados, porque os recorrentes não cumpriram o ónus de impugnação, nem se logra apreciar a relevância da impugnação para a decisão do recurso. Assim, em conformidade, neste segmento (conclusões 5 a 9 e 29), rejeita-se a impugnação.
Invocam ainda aos recorrentes, nas conclusões 10.ª e 11.ª que “O Tribunal, com a informação que lhe foi dada na contestação sobre as ações descritas nos arts. 33 a 36 da contestação, devia ter examinado os mencionados processos por resultar do exercício das suas funções;” “11. A descriminação de tais ações deviam constar dos Factos Provados de modo a que o tribunal pudesse apreciar, após exame dos mesmos, o alegado no art.37 da contestação ao invés de liminarmente considerar o facto como não provado e absolver, deste modo, a Autora do pedido de litigância de má-fé;”, mas, também aqui, os recorrentes não fazem a correta distinção entre meios de prova e factos, pois, parece entenderem que o tribunal tinha que levar aos factos provados a menção das ações que mencionam para, por essa via, se pronunciar sobre outra factualidade, como se evidencia do que dizem na conclusão 11.ª e que aponta claramente para a conclusão de que a factualidade relevante seria a alegada no art.37.º da contestação. De todo o modo, o certo é que, em termos de impugnação de facto, a conclusão 11.ª não permite, por um lado, identificar o facto concreto que pretendem ver provado o qual não está especificado, nem tem conteúdo, não se concedendo que tal especificação se possa reconduzir a “a descriminação de tais ações” ou “ações descritas no art.33 e 36 da contestação”; e, por outro lado, também não consta dessa conclusão a especificação do facto não provado que, parece, devia ter sido, como pretendem julgado provado. Note-se que a especificação do facto não provado que é impugnado devia fazer-se relativamente aos factos não provados constantes da sentença, o que não consta. Ademais, o que foi alegado no art.37.º da contestação – ou seja, - Toda esta sequência de ações, incluindo a presente, tem o objetivo claro da Autora de, como se disse, pressionar praticamente todos os inquilinos do prédio dos autos --excetuam-se 2 arrendatários de lojas de que os contestantes tenham conhecimento-- a deixar o imóvel – não está transposto talqualmente para os factos não provados, pelo que, a alusão a esse artigo 37.º não supre a omissão da especificação do facto concreto não provado que, parece, pretenderem impugnar. E dizemos parece, porque as conclusões de recurso nem são claras nessa parte se tivermos em conta que, embora na conclusão 11.ª se mencione “…ao invés de liminarmente considerar o facto não provado”, (sem o identificar), na parte final das mesmas conclusões, ao contrário do que sucede com a questão das cartas e das ações, acima analisadas, nada se diz relativamente a factos não provados constantes da sentença que os recorrentes entendem que deviam ter sido considerados provados. E do que se acaba de dizer resulta evidente a relevância do recorrente cumprir escrupulosamente os ónus de impugnação em termos de recurso sobre a matéria de facto, já que o tribunal superior tem que apreender com clareza quais os factos concretos que são impugnados, não se compadecendo a apreciação da impugnação com incertezas sobre a concreta factualidade que se pretende ver provada ou não provada. Manifestamente os recorrentes não cumpriram o ónus de especificação dos concretos pontos de facto que querem ver apreciados, pelo que, de igual forma, neste segmento (conclusão 10.ª e 11.ª e 29.ª), se rejeita a impugnação, nos termos do art.640.º n.º1 a) do CPC.
Em decorrência, mantém-se a decisão sobre a matéria de facto tal como consta da sentença recorrida, devendo as demais questões ser apreciadas à luz dessa factualidade.
· Mérito da decisão
Entendem os réus/recorrentes que a sentença deve ser revogada, aduzindo que: i) resulta dos factos provados que a autora recusa receber as rendas (conclusão 12.ª); ii) a autora mantinha que o contrato de arrendamento terminava a 31.1.2020 e daí não pretender receber as rendas e emitir recibos; iii) desconhecem se a autora era titular do Iban para onde faziam as transferências bancárias. De tudo concluindo que só a consignação em depósito das rendas dava segurança ao cumprimento atempado da obrigação e que a autora/recorrida incorreu em mora ao recusar emitir recibo.
A questão subjacente a apreciar é a de saber se os depósitos das rendas a que os recorrentes procederam são ou não liberatórios, posto que da correspondente resposta resultará a “validade” ou não da resolução do contrato com fundamento em falta de pagamento da renda.
A sentença recorrida considerou que os depósitos das rendas feitos pelos recorrentes não são liberatórios e por isso decidiu reconhecer a validade da resolução do arrendamento por não pagamento da renda por período superior ao legalmente permitido. Para tanto discorreu da seguinte forma: “O pagamento da renda pode ser provado através de documento de quitação emitido pelo senhorio (art.ºs 395º e 364º, n.º 2 do Código Civil), através de documento comprovativo dos depósitos em qualquer agência de instituição de crédito, cf. previsto nos artigos 17.º e 18.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano e 1042.º do Código Civil, ou de confissão expressa do senhorio (neste sentido vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/02/2003, in www.dgsi.pt documento n.º SJ200302130046207) - que não houve no caso. O credor constitui-se em mora quando, sem justificação, não aceite a prestação oferecida em termos legais ou não pratique os atos necessários ao cumprimento da obrigação (artigo 813.º do Código Civil), podendo o obrigado recusar a prestação enquanto a quitação não lhe for dada ou exigir a mesma quitação após o cumprimento (artigo 787.º, n.º 2 do Código Civil), bem como, facultativamente, proceder à consignação em depósito da prestação (artigo 841.º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do Código Civil). A consignação em depósito da prestação pode também resultar da circunstância do devedor, sem culpa sua, não puder efetuar a prestação ou não puder fazê-lo com segurança, por qualquer motivo relativo à pessoa do credor: artigo 841.º, n.º 1, al. a) do Código Civil). No que tange à quitação ou recibo, é este um documento particular no qual o credor declara ter recebido a prestação: “mais não é do que um documento em que o credor declara ter recebido a prestação que lhe é devida, constituindo uma simples declaração de ciência certificativa do facto de que a prestação foi cumprida pelo devedor e recebida pelo credor” – neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 18/02/2013, processo 78/11.1TTSTS.P1, disponível em www.dgsi.pt. No caso sub judice, resultou provado que os Réus pagavam a renda à Autora através de transferência bancária para a conta da Autora com o IBAN PT5000…., sendo entendimento corrente da jurisprudência que o talão de depósito / de transferência bancária substitui o mencionado recibo - neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 20/05/2008, processo 0821166, disponível em www.dgsi.pt. Daqui decorre que, tendo as partes convencionado que as rendas seriam pagas por depósito/ transferência bancária, aos réus bastará o talão da transferência bancária para fazer prova do cumprimento da obrigação e da correspondente aceitação pelo credor (sem necessidade por isso da emissão de outro recibo por parte do senhorio), acompanhando-se, assim, o entendimento do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 18/05/2006, processo 0632549, disponível em www.dgsi.pt, e onde se pode ler: “Os depósitos das rendas na conta de uma das AA. equivalem a pagamentos feitos diretamente a estas, dado que o estabelecimento bancário atua como representante ou procurador das senhorias. E nessa medida, os depósitos feitos extinguem a obrigação da Ré, por tudo se passar como se tivesse havido pagamento feito diretamente ao credor. Assim, ao receber o talão de depósito emitido pelo banco, a Ré tem em seu poder a prova do pagamento das rendas, sendo a isso mesmo que se destina a emissão de recibo por banda do senhorio: prova do pagamento, através da correspondente quitação de quem afirma ter recebido. Quer dizer que, havendo depósito e emissão pelo banco do respetivo talão, se torna desnecessária a emissão de outro recibo, a não ser que as partes o tivessem convencionado.(…) A não devolução pelas AA. das rendas depositadas equivale à sua aceitação e o recibo é constituído pelo talão do depósito.”. E veja-se ainda o sumário proferido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 12/11/2002, em que foi Relator Nuno Cameira: “I - O depósito das rendas em conta bancária do senhorio, com o acordo deste, tem o mesmo valor que o pagamento a ele diretamente feito e o documento emitido pelo banco equivale ao respetivo recibo. II - Se o senhorio e o arrendatário estipularam expressamente, na escritura de arrendamento, que as rendas seriam pagas mediante o depósito mensal numa conta bancária, deve entender-se que o arrendatário renunciou antecipadamente ao direito de exigir os recibos correspondentes às rendas pagas, na medida em que obteve o direito de proceder ao referido depósito e, com o talão emitido, fazer prova plena do pagamento. III - Em tal caso, não incorre em mora o senhorio que se nega a dar quitação.”. Nesta conformidade, verifica-se que os factos alegados pelos Réus não são de molde a fazer prevalecer a exceção invocada, uma vez que os talões das transferências bancárias servem o mesmo propósito de quitação e nada foi convencionado em contrário pelas partes, pelo que a não emissão de recibo pela senhoria não justifica, neste caso, o não pagamento das rendas. Diferente seria se, por exemplo, após transferência bancária para a conta da Autora com o IBAN PT5000……, o Banco informasse da devolução do montante da renda por encerramento da conta. Todavia, tal não é o caso, pois os Réus optaram por, a partir da data de pagamento da renda de março de 2020, não efetuar o pagamento das rendas mediante transferência bancária para a conta da Autora, sendo certo que o pagamento da renda do mês anterior (fevereiro de 2020, efetuada a 03 de janeiro de 2020 mediante transferência bancária), não foi devolvido. Assim, conclui-se que o depósito efetuado pelos Réus em conta da Caixa Geral de Depósitos não tem o efeito liberatório invocado e que se verifica incumprimento da obrigação de pagamento do preço, presumidamente culposo (artigo 799.º, n.º 1 do Código Civil).”
Vejamos:
No caso não é controvertido nem as partes o discutem que se estabeleceu entre autora e réus um contrato de arredamento relativo ao imóvel identificado nos factos provados. De tal contrato deriva para os réus/recorrentes a obrigação de pagar a renda no local e pela forma acordada. Permitem os factos provados concluir, relativamente ao pagamento da renda, no valor de €600, que a mesma era paga por transferência bancária para o Iban de conta da autora, referido no ponto 4 desses factos. Era ainda prática instituída o envio pelos recorrentes do comprovativo da transferência para o contabilista da autora e este emitia os recibos de renda. Daqui resulta que os arrendatários comprovavam o pagamento da renda à recorrida/autora através do envio do comprovativo da transferência bancária, e a autora emitia, dias depois, os recibos. Em janeiro de 2020 os réus transferiram o valor da renda para a conta da autora, assim a pagando, posto que não foi devolvida. Os réus pediram o recibo correspondente e o mesmo não foi passado pelo contabilista da autora nem por esta. Nada resulta dos factos provados, mormente dos supra analisados, que permita concluir que a autora se recusou a receber as rendas e a tal não se pode equiparar a não emissão do recibo, nem tal recusa se pode extrair do silêncio da autora às missivas dos réus mencionadas nos factos provados onde informam que consideram existir essa recusa. A recusa tem que resultar de factos objetivos que atestem que o senhorio se opõe ao recebimento das rendas, não se bastando com o entendimento subjetivo do inquilino resultante da sua, também, subjetiva interpretação de uma certa realidade que, do seu ponto de vista, traduziria aquela oposição. Ou seja, embora objetivamente a autora não tenha emitido o recibo da renda paga em janeiro e os réus entendam que tal corresponde a uma recusa, o certo é que tal não emissão, sobretudo quando a prática instituída entre as partes é o pagamento por transferência bancária, não corresponde por si a qualquer recusa do senhorio ao recebimento da renda, tanto mais que se trata de um único acto isolado relativo a uma única renda, não espelhando por isso um comportamento reiterado e consistente em certo sentido que possa apoiar a conclusão que os recorrentes daí pretendem extrair. Nem se pode sequer afirmar, com propriedade, que a autora/recorrida se recuse a emitir recibos de renda, porquanto, se atesta apenas que a autora não emitiu um recibo de renda. Desta feita, resulta insustentado o que vem dito na conclusão 13.ª do recurso, sendo certo, ainda, que inexistem factos provados de onde se possa retirar que a não emissão do recibo relativo ao pagamento de janeiro corresponde à vontade da autora de não pretender receber mais rendas e/ou ao seu entendimento de que o contrato terminava a 31 de janeiro de 2020. Assim, a equiparação que os recorrentes fazem na conclusão 22.ª entre a não aceitação da prestação e a recusa na emissão do recibo, não pode colher. Por outro lado, como já acima dito, do ponto 4) dos factos provados, resulta que o Iban para onde se faziam as transferências era de conta da autora, pelo que, irreleva, também, o que vem dito nas conclusões 15.ª, 16.ª e 18.ª, não permitindo sustentar o entendimento plasmado na conclusão 21.ª de que só a consignação em depósito das rendas permitia aos réus adquirirem segurança no cumprimento da obrigação. Em síntese, excetuando a não emissão de recibo relativamente à transferência bancária do valor da renda, feita em 3.1.2020, nada mais existe em termos factuais que haja de ser considerado para apreciar a questão de saber se os recorrentes podiam proceder à consignação em depósito das rendas com base na existência de mora do credor ou uma situação de insegurança no cumprimento da obrigação. Assim, o facto que se prova suscetível de suportar os depósitos feitos pelos recorrentes é atinente à não emissão de um recibo de renda pela autora/recorrida. Posto que todas as rendas subsequentes a janeiro de 2020 foram já depositadas e não pagas por transferência bancária, não se coloca a questão de emissão do recibo correspondente.
A sentença recorrida entendeu, citando jurisprudência em abono, que tendo os réus efetuado a transferência bancária ficando com o respetivo comprovativo (o qual, como dissemos acima, era por eles enviado à autora informando do pagamento), não se exigia que a autora lhe passasse mais um recibo de renda, correspondendo aquele comprovativo já à quitação, pelo que, inexistia mora do credor que justificasse o depósito das rendas pelos réus.
Nos termos do art.813.º do C.C. “O credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação.”.
Por outro lado, diz-nos o art.787.º do C.C. que “1. Quem cumpre a obrigação tem o direito de exigir quitação daquele a quem a prestação é feita, devendo a quitação constar de documento autêntico ou autenticado ou ser provida de reconhecimento notarial, se aquele que cumpriu tiver nisso interesse legítimo. 2. O autor do cumprimento pode recusar a prestação enquanto a quitação não for dada, assim como pode exigir a quitação depois do cumprimento.”
Ora resulta do já acima analisado que não há, no caso, nenhuma recusa da prestação/renda, pelo que, a mora apenas poderia assentar na previsão legal o credor não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação. Não se desconhece que é em geral entendido que a recusa em emitir recibos de renda se reconduz a esta previsão legal. Mas, como é evidente, cada caso é um caso e o caso são as suas circunstâncias concretas, pelo que, se impõe verificar se na situação sub judice a não emissão do recibo suporta a afirmação de que o credor, com isso, não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação, ou seja, se a recorrida ao não emitir o recibo da renda de janeiro, paga previamente ao momento em que o recibo seria passado de acordo com a prática estabelecida entre as partes, inviabiliza o cumprimento da obrigação. E a nosso ver a resposta deve ser negativa. É certo que o art.787.º já acima referido confere ao devedor o direito de exigir quitação e o n.º2 permite ao devedor recusar a sua prestação enquanto a quitação não for dada, mas deste n.º2 não resulta, face à interpretação normativa que se impõe, que a dita recusa possa operar em situações como a que ocorre no presente caso. A recusa que aí se prevê tem como correspetivo o oferecimento da prestação cuja quitação havia de ser passada e não já a recusa de prestações futuras por mor da falta de emissão de quitação de prestação já satisfeita. E tanto assim se nos afigura ser que, para o caso da prestação já ter sido efetuada, o que se prevê nesse mesmo n.º2 é o direito de exigir a quitação depois do cumprimento. Como se escreve no Ac. TRP de 16.5.2023 (rel. João Diogo Rodrigues), acessível em www.dgsi.pt, com interesse para a situação em análise “Ora, no âmbito do contrato de locação, entre a obrigação de pagamento da renda, que impende sobre o inquilino (artigo 1038.º, al a), do Código Civil), e a obrigação de quitação desse pagamento, que recai sobre o senhorio (artigo 787.º, n.º 1, do Código Civil) não há qualquer correspetividade ou interdependência. Pelo contrário, aquela primeira obrigação é a contrapartida pela cedência de gozo do locado (artigo 1022.º, do Código Civil). E, assim, a falta de oportuna entrega do recibo de quitação não pode justificar a recusa de pagamento da renda, com base na exceção de não cumprimento do contrato[4]. Pode justificar essa recusa, mas com base numa outra exceção (dilatória) de direito material. Referimo-nos à que vem prevista no já citado artigo 787.º, n.º 2, do Código Civil. Como já vimos, quem cumpre a obrigação tem o direito de exigir que o credor lhe entregue recibo de quitação. E se esta entrega não for satisfeita, tem também o autor do cumprimento o direito de “recusar a prestação enquanto a quitação não for dada, assim como pode exigir a quitação depois do cumprimento”. Este é um modo de tutela da posição jurídica do devedor[5]. Designadamente, como vimos, tendo em vista o ónus que recai sobre o mesmo de demonstrar o cumprimento.
Se o credor, pois, injustificadamente, se recusar a cumprir a sua obrigação de quitação, pode entrar em mora, por falta de colaboração no cumprimento (artigo 813.º, do Código Civil). E, perante essa atitude, o devedor, por seu turno, pode também recusar legitimamente o pagamento. Isto porque são duas obrigações que devem ser cumpridas simultaneamente[6].
Para que tal aconteça, porém, ou seja, para que recusa do devedor seja válida é necessário que estejam verificados alguns requisitos. Em primeiro lugar, a recusa do credor deve ser aferida em relação a cada uma das prestações concretas que sejam oferecidas ou realizadas pelo devedor (ou por alguém em seu nome). Depois, é igualmente indispensável que esteja demonstrada a exigência do recibo de quitação, ao credor[7]. E, por fim, não pode deixar de estar igualmente comprovada a recusa de entrega desse recibo pelo mesmo credor.”, ou seja, nas palavras do respetivo sumário: “ III - O que o arrendatário pode opor ao senhorio, em caso de incumprimento injustificado da obrigação de quitação, é a recusa de pagamento da correspondente prestação. IV - Mas para que tal recusa seja válida é necessário que, reportando-se aquele incumprimento a uma prestação concreta, tenha sido exigida ao credor a entrega do correspondente recibo e este se tenha, injustificadamente, negado a entrega-lo.”. (sublinhados nossos). Efetivamente, se o n.º2 do art.787.º, estabelece uma, digamos, especifica exceção de não cumprimento, exige concomitantemente a reciprocidade das prestações, mantendo o sinalagma funcional entre as mesmas prestações, pelo que, não tem aplicação em caso de prestações não correspetivas. Por conseguinte, o arrendatário não pode recusar-se a pagar a renda do mês v.g. de janeiro porque o senhorio não lhe passou o recibo da renda do mês anterior. Pode recusar-se sim se lhe oferecer a renda de janeiro e pedir a quitação deste pagamento e não lhe for dada. E no caso concreto? Como já se viu não há recusa de recebimento da renda pela senhoria nem os recorrentes podiam recusar-se a pagar as rendas que se venciam em fevereiro de 2020 e meses seguintes por não ter sido emitido o recibo da renda vencida em janeiro. Ademais, como, também, já se aflorou, tratando-se de um ato isolado por parte da recorrida/senhoria, não se pode extrapolar do mesmo para concluir que persistiria no futuro com idêntico comportamento para daí extrair adicionais conclusões. Quer isto dizer que o fundamento invocado pelos recorrentes para procederem ao depósito das rendas – recusa em emitir recibo – não se tem por verificado. Concomitantemente não se pode conceder que se verifique mora do credor por não praticar os actos necessários ao cumprimento da obrigação, actos esses que, nas circunstâncias concretas, se não descortinam quais fossem. O pagamento das rendas que foram depositadas não dependia da emissão de recibo de renda já paga, nem a não emissão desse único recibo impedia o pagamento dessas rendas ou o oferecimento dessa prestação.
Ora o depósito de rendas está previsto no art.17.º do NRAU, constando do n.º1 que - O arrendatário pode proceder ao depósito da renda quando ocorram os pressupostos da consignação em depósito, quando lhe seja permitido fazer cessar a mora e ainda quando esteja pendente ação de despejo. Por seu turno, a consignação em depósito é permitida, nos termos do art.841.º do C.C., a) Quando, sem culpa sua, não puder efectuar a prestação ou não puder fazê-lo com segurança, por qualquer motivo relativo à pessoa do credor; b) Quando o credor estiver em mora. No caso, como resulta de tudo quanto já se disse, não temos por verificado nenhum desses pressupostos legais, tendo-se já arredado a situação de mora da credora e as demais situações em que os recorrentes alicerçavam a falta de segurança também não ocorrem como antes de viu, desde logo a que vinha invocada relativa ao Iban. Acrescente-se que, tendo a renda vencida em janeiro de 2020, sido paga por transferência bancária, ficando os recorrentes com o respetivo comprovativo, a circunstância de não ter sido emitido tal recibo, não se pode entender como demonstrativa de uma situação de insegurança relativa à pessoa do credor que justificasse o depósito das rendas, para efeito de integrar a acima transcrita 2.ª parte da alínea a) do art.841.º, aliás, traçada essencialmente para casos em que há duvidas relativamente a quem deve ser feita a prestação - motivo relativo à pessoa do credor.
Em face do exposto, ainda que se considerasse, ao contrário do que foi entendido pelo tribunal recorrido, que o facto da renda ser paga por transferência bancária ficando o credor munido de comprovativo de pagamento não exclui o seu direito à quitação, ou seja ao recibo de renda, o que se nos afigura mais conforme com o quadro legal acima referenciado, no caso concreto continuavam a não estar reunidos os pressupostos que permitiam aos réus passar a depositar as rendas, consignando-as em depósito.
A tudo acresce, ainda, uma outra circunstância: provou-se que o recibo em falta veio a ser emitido em dezembro de 2020 (facto n.º18). Contudo, os recorrentes continuaram a depositar as rendas como vinham fazendo até então. Resulta do art.20.º do NRAU que “1 - Enquanto subsistir a causa do depósito, o arrendatário pode depositar as rendas posteriores, sem necessidade de nova oferta de pagamento nem de comunicação dos depósitos sucessivos. 2-Os depósitos posteriores são considerados dependência e consequência do depósito inicial, valendo quanto a eles o que for decidido em relação a este.”. Desta norma legal resulta que o depósito das rendas posteriores ao primeiro depósito é consentido desde que a causa de depósito invocada subsista. Assim, ainda que se entendesse – no que se não concede pelas razões deixadas acima – que o primeiro depósito tinha arrimo na lei, a causa que o determinou cessou com a emissão do recibo em falta, pelo que, a partir de então os depósitos subsequentes não podiam ser considerados dependência e consequência do depósito inicial. Os recorrentes continuaram durante mais de um ano até lhe ser comunicada a resolução, a depositar as rendas sem atender ao facto de ter sido emitido o recibo em falta. Não subsistindo a causa do depósito, os depósitos posteriores não poderiam ser considerados liberatórios.
Em conformidade, embora com fundamentação não integralmente coincidente, impõe-se concluir como o tribunal a quo que os depósitos efetuados pelos réus/recorrentes não são liberatórios e, por isso, não permitem que se considere cumprida a obrigação de pagamento da renda devida pelo locado, tendo os recorrentes incumprido tal obrigação.
Resta apenas apreciar o que vem dito nas conclusões 25.ª e 26.º, onde os recorrentes afirmam que a recorrida não impugnou o depósito. Visto o elenco dos factos provados e não provados nada consta relativamente a ter havido ou não ter havido impugnação dos depósitos, o que se percebe porque os réus nada alegaram na contestação quanto a esse facto, nem suscitaram nenhuma questão relativa à não impugnação do depósito. Por isso o tribunal recorrido não se pronunciou nem de facto nem de direito sobre a ora alegada não impugnação do depósito pela recorrida. Donde, esta questão é uma questão nova apenas suscitada em recurso. Em recurso não podem ser suscitadas questões novas, porque o tribunal a quem reaprecia – salvo as questões de conhecimento oficioso – as questões objeto de apreciação pelo tribunal a quo que sejam objeto de recurso, não lhe cabendo apreciar ex novo questões que não tenham sido suscitadas pelas partes e sobre as quais, por isso, o tribunal recorrido nenhuma pronuncia proferiu. Como lapidarmente se enuncia no sumário do Ac. STJ de 5.6.2024 (relator Ramalho Pinto), “Os recursos, enquanto meios de impugnação das decisões judiciais, apenas se destinam a reapreciar decisões tomadas pelo tribunal a quo e não a decidir questões novas que perante eles não foram equacionadas.” (acessível em www.dgsi.pt). Não tendo os réus alegado o facto correspetivo nem suscitado tal questão nos autos, e não o podendo fazer agora ex novo em recurso, não há que apreciar tal questão e que, ademais, exigiria a prova de que o depósito não foi impugnado, o que, no rigor das coisas, se desconhece. O recurso improcede.
III- Decisão:
Pelo exposto, acordam as juízas da 8.ª Secção Cível em julgar improcedente o recurso e manter a sentença recorrida, ainda que com fundamentação não integralmente coincidente.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 25.9.2025
Fátima Viegas
Ana Paula Nunes Duarte Olivença
Margarida de Menezes Leitão