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PROCEDIMENTO CAUTELAR DE ENTREGA
SUSPENSÃO DA FASE EXECUTÓRIA
CAUSA PREJUDICIAL
Sumário
Sumário: (da responsabilidade do relator): A suspensão da acção principal de reivindicação, por pendência de causa prejudicial, não determina a suspensão da fase executória da providencia cautelar de entrega, que havia sido, preliminarmente, decretada.
Texto Integral
Acordam os juízes na 8.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO
1.1. AA, requerido nos autos de procedimento cautelar comum que lhe move Hotel das Flores – Gestão e Exploração Hoteleira, S.A., veio interpor recurso de apelação da decisão proferida em 08.07.2025, que indeferiu o requerimento, por si apresentado em 03.07.2025, para que fosse ordenada a suspensão da fase executória da providencia cautelar, já decretada, de entrega à requerente do Palácio ..., livre e desocupado de pessoas e bens, até seja proferida decisão definitiva numa outra acção que identifica e cuja pendência determinou a suspensão, por prejudicialidade, da acção de reivindicação de que aquele procedimento é dependente.
Pretende que seja «revogada a decisão proferida em primeira instância quanto ao indeferimento da suspensão das diligências executórias, bem como da decisão que veio a determinar que são totalmente irrelevantes os prejuízos que venham a ser suportados pelo Recorrente com o cumprimento da providência decretada» e, para tanto, alinhou as seguintes conclusões:
«A) No âmbito da acção principal (reivindicação) e á qual a presente providência cautelar se encontra apensa, em 16 de Junho de 2025, foi proferida decisão, já transitada em julgado, determinando a suspensão da instância nos termos e ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 272º do Código de Processo Civil até que seja proferida decisão com trânsito em julgado na acção que se encontra a correr termos sob o nº ..../22 neste ... Cível, por se considerar que esta acção encontra-se numa relação de dependência em relação àquela outra acção, na qual se está a apreciar validade do contrato de arrendamento. B) Face ao teor da referida decisão, por requerimento apresentado em 03 de Julho, o ora Recorrente, AA, veio requerer que, fosse proferida decisão ordenando a suspensão da fase executória da providencia cautelar, até que seja proferida decisão definitiva quanto a validade do contrato de arrendamento no processo que se encontra a correr termos sob o n.º ..../22 neste .... C) Por despacho proferido em 08 de Julho de 2025 e que ora se submete à apreciação de V. Exª foi indeferida a suspensão da fase executória do procedimento cautelar e determinado que, nesta ocasião, são totalmente irrelevantes quaisquer prejuízos que venham a ser suportados pelo Recorrente com o cumprimento da providência decretada. D) A interposição do presente recurso é manifestamente admissível nos termos e ao abrigo do disposto na alínea g) do nº 2 do artigo 644º do CPC, na medida em que, estamos perante uma decisão proferida depois da decisão final e, por conseguinte, encontra-se legalmente assegurada a possibilidade da sua impugnação, E) A decisão ora proferida não se reporta à sindicância da sentença proferida, estando, isso sim, relacionada com a suspensão temporária das diligências para entrega do imóvel até que seja proferida uma decisão definitiva no processo que se encontra a correr termos sob o nº ..../22, ou, inclusivamente, até que seja proferido o Acórdão que se encontra em apreciação na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, poderá vir a determinar a caducidade da presente providência. F) Por outro lado, no que respeita ao efeito a atribuir ao presente recurso, de acordo com o disposto no Artigo 647º do CPC, deve ser atribuído efeito suspensivo à apelação da decisão que ponha termo ao processo nas ações referidas nas alíneas a) e b) do nº 3 do artigo 629º e nas que respeitem à posse ou à propriedade da casa de habitação. (sublinhado nosso). G) Ora, a questão central deste litígio e da defesa deduzida pelo Recorrente não só assentou na alegada existência de um contrato de arrendamento, o qual, de acordo com a sua convicção constitui facto obstativo á pretensão da Recorrida, como também, existe diversa factualidade provada que demonstra claramente que o imóvel objecto dos presentes autos reporta-se á casa de morada de família do Recorrente e do seu agregado familiar: H) Ou seja, a presente providência cautelar, na qual se integra a fase executória da decisão, está directamente relacionada com a posse do imóvel, pelo que, encontram-se preenchidos os requisitos legais para que ao recurso seja atribuído efeito suspensivo nos termos do artigo 647º, nº3, alínea. b), do Código de Processo Civil. I) Ora, no que respeita à fundamentação do presente recurso, previamente, cabe referir que, é manifestamente inequívoco que, existe uma situação de prejudicialidade entre a acção principal (reivindicação) e o processo que se encontra a correr termos sob o nº ..../22 – Juiz 15 – ... Cível – Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, e, por conseguinte, existe um reconhecimento expresso na acção principal, no sentido de que, o ora Recorrente jamais poderá ser condenado nessa prestação de facto (entrega do imóvel), sem que previamente seja apreciada a questão respeitante á validade do contrato de arrendamento. J) Pelo que, a questão que se coloca à apreciação de V. Exªs, consiste em apurar se como consequência da suspensão da acção principal, não deverá proceder-se, temporariamente, à suspensão da fase executória da providência cautelar até que seja proferida uma decisão no Proc. nº ..../22, ou, até à prolação do Acórdão que se encontra em apreciação na 6ª Secção do Tribunal da Relação. K) Desde já, salvo devido respeito, o ora Recorrente discorda totalmente da decisão proferido pelo Tribunal a quo, que veio a indeferir a suspensão das diligências executórias, isto porque, é manifestamente incongruente que a acção principal fique suspensa a aguardar pela decisão que vier a ser proferida no Proc. nº ..../22 e que tal suspensão não seja extensível á providência cautelar, com a consequente suspensão das diligências em curso respeitantes à execução da decisão proferida nesta providência e directamente relacionadas com a obrigação de entrega do imóvel pelo ora Recorrente. L) Acresce que, também não podemos deixar de fazer referência às características da instrumentalidade e da dependência do procedimento cautelar relativamente à acção principal, ou seja, não só, a decisão proferida no procedimento cautelar, não constitui caso julgado definitivo, como também, é uma decisão manifestamente precária e transitória, M) Ora, face a estas características da providência cautelar – inexistência de caso julgado, precariedade, provisoriedade, instrumentalidade e dependência em relação á acção principal – e encontrando-se a acção principal suspensa, em virtude de não poder ser tomada uma decisão quanto a um dos pedidos formulados pela Recorrida – condenação do Recorrente na entrega do imóvel – sem que esteja definitivamente apurado naquela outra acção se o Recorrente detém ou não um título legitimo para a sua permanência, N) A continuidade das diligências para a entrega do imóvel no âmbito da presente providência cautelar não pode deixar de se configurar como um acto desproporcionado, excessivo e ilegítimo, tanto mais que, caso venha a ser julgada improcedente a acção de reivindicação, tal decisão terá um efeito inútil, dado que, o Recorrente já foi desapossado do imóvel e, com toda a segurança, não terá condições de reassumir a posse. O) E, por outro lado, também não podemos deixar de fazer referência á desproporcionalidade existente entre os danos e prejuízos causados ao Recorrente e os “prejuízos” causados á ora Recorrida, ou seja, enquanto os prejuízos derivados da suspensão da fase executória da providência cautelar para a Recorrida, Afáveis & Ponderados, são nulos, o dano provocado ao Recorrente com a concretização da medida cautelar executória é irreversível e irrecuperável; P) Isto porque, com a concretização da venda do “Palácio...” á sociedade Recorrida, os credores da sociedade Hotel das Flores, S.A., mais concretamente, o Fundo BlueCrow, já se encontram integralmente ressarcidos das quantias emprestadas, a sociedade Hotel das Flores também já se encontra dotada dos meios financeiros necessários para assumir o cumprimento das suas obrigações encontrando-se erradicada qualquer hipótese de ser decretada a insolvência e a ora Recorrida, é a actual dona e legitima proprietária do referido prédio urbano; Q) Tendo a ora Recorrida aceite proceder à aquisição do imóvel com a perfeita consciência da ocupação do imóvel por parte do Recorrente e da natureza do litígio em causa, tendo no referido acto notarial declarado que aceitava a compra , “sem quaisquer ónus ou encargos, com excepção da ação que corre trâmites sob o numero 25551/22,2T8LSB, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa , Juiz 22 , proposta por AA com o seguinte pedido: que seja reconhecida a validade e a vigência do contrato de arrendamento outorgado em 01 de Setembro de 2018 entre o autor e a ré , registada através da apresentação cinco mil, setecentos e quarenta e oito, de 31 de Outubro de 2022” R) Porém, o mesmo já não se pode dizer em relação ao Recorrente, isto porque, conforme se encontra demonstrado, o referido imóvel corresponde á sua habitação, á sua casa de família, ao local onde reside permanente com os seus filhos, pelo que, caso não se proceda á suspensão das diligências executórias, os danos causados são definitivos e irreversíveis. S) Motivo pelo qual, não se pode aceitar a decisão proferida e que ora se submete á apreciação de V. Exªs, no sentido de que, a medida decretada deve ser executada contra tudo e contra todos, independentemente dos danos e prejuízos que se venha, a causar; T) O direito à habitação é um direito humano fundamental, consagrado na Constituição da República Portuguesa (cfr. art.º 65.º, n.º 1 da Constituição) e na Lei de Bases da Habitação (cfr. art.º 10.º, n.º 2 e 4) e, por conseguinte, todos têm direito à proteção da sua habitação permanente, gozando a casa de morada de família de especial proteção legal; U) Mais, o direito à habitação consagrado no nº 1 do art. 65º da Constituição, assume, uma dupla natureza ou dimensão, ou seja, por um lado, tem uma dimensão negativa ou defensiva, que se traduz no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenham de atos que prejudiquem tal direito e, por outro lado, tem uma dimensão positiva, que corresponde ao direito dos cidadãos a medidas e prestações estaduais, visando a sua promoção e proteção. V) Ora, tal conforme vem sendo defendido pelo Tribunal Constitucional o direito à habitação pode justificar limitações à propriedade, em relação a terceiros, contudo, tais limitações terão de obedecer sempre a um princípio de equidade e de proporcionalidade, devendo proceder-se à análise a que título e em que circunstâncias quem pretende beneficiar da tutela desse direito acedeu ao espaço habitacional e quais os fundamentos que poderão motivar a cessação do direito com base no qual se legitimava a utilização do espaço em causa. W) Sendo assim, em face dos factos supra referenciados, não só, a manutenção das diligências para execução da providência decretada ofende frontalmente os direitos á habitação e à protecção da casa de morada de família consagrados na nossa Constituição, como também, a decisão que ora se submete á apreciação de V. Exªs indeferindo a suspensão das diligências executórias consubstancia uma decisão violadora do princípio da proporcionalidade consagrado constitucionalmente (cfr. art.º 18.º, n.º 2 do Constituição da República Portuguesa), designadamente, por violação do subprincípio da necessidade (indispensabilidade da medida para o fim visado em comparação com outras medidas menos restritivas) e, do subprincípio da racionalidade (justeza da medida em termos qualitativos e quantitativos relativamente ao fim visado). X) De facto, é manifestamente inequívoco que, o fim visado pela providência cautelar já se encontra acautelado, pelo que, a execução da entrega do imóvel é e sempre foi dispensável para a concretização do objectivo da Recorrida e, por outro lado, a manutenção da execução das referidas diligências, sem que seja proferida decisão quanto à (in)validade do contrato de arrendamento é uma medida completamente desproporcionada e desequilibrado face aos prejuízos e danos que irá causar ao Recorrente; Y) E, nem tão-pouco, se venha afirmar que, a caução já prestada pela sociedade Hotel das Flores irá colmatar o dano provocado ao Recorrente com a entrega do imóvel, isto porque, não existe qualquer contrapartida financeira que vá minimizar o dano provocado, ou seja, a perda da sua habitação, da sua casa de morada de família e do local onde tem instalada a sua vida familiar e social há décadas; Z) Dano esse que, poderá ser evitado, caso seja decretada a suspensão da execução da diligência, de forma temporária, isto porque, nada poderá ser mais injusto, desproporcional e ofensivo do que o ora Recorrente se ver desapossado da sua habitação e, afinal, vir a constatar que, a sua pretensão é totalmente legitima e procedente AA) Em face do exposto, a douta decisão ora recorrida, salvo sempre o devido respeito, peca por uma violação clara da lei substantiva, por erro de interpretação e de aplicação de determinados preceitos legais, nomeadamente, do art. 364º nº 4 do Código de Processo Civil, BB) E, ainda, de determinados direitos e princípios que norteiam o n/ ordenamento jurídico, mais concretamente, do direitos á habitação e á proteção da casa de morada de família, bem como do princípio da proporcionalidade, verificando-se, por conseguinte, uma clara violação e uma errónea interpretação do disposto no nº 2 do art. 18º e do nº 1 do art. 65º da Constituição da República Portuguesa, bem como do art.º 10.º, n.º 2 e 4 da Lei de Bases da Habitação aprovada pela Lei n.º 83/2019 de 03 de Setembro)».
1.2. A requerente/recorrida contra-alegou, pronunciando-se pela confirmação da decisão recorrida, pedindo que:
«a) Que seja imediatamente julgada extinta a presente instância recursiva, por se verificarem circunstâncias que obstam ao conhecimento do recurso, designadamente a inutilidade superveniente da lide, em virtude da concretização da ordem de entrega do prédio, não havendo, assim, que conhecer do objeto da apelação, ao abrigo do disposto nos artigos 277.º, alínea e), e 652.º, n.º 1, alíneas b) e h), do Código de Processo Civil; e b) Caso assim não se o entenda, havendo que conhecer do objeto do recurso de apelação (o que apenas por mero dever de patrocínio se admite): i. Que, nos termos do disposto no artigo 647.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, seja fixado o efeito meramente devolutivo do recurso de apelação; e ii. Que seja julgado integralmente improcedente o recurso de apelação, interposto pelo recorrente, determinando-se, em consequência e em qualquer dos casos, a manutenção do segmento decisório contido no ponto 6. do Despacho proferido pelo Tribunal a quo, a 8 de julho de 2025», para o que formulou as seguintes conclusões:
«1. Em conformidade com aquilo que resulta das conclusões da apelação, o presente recurso tem por objeto o segmento decisório contido no ponto 6. do Despacho proferido pelo Tribunal a quo, a 8 de julho de 2025, referência n.º 446971337, que indeferiu a pretensão que havia sido deduzida pelo requerido, agora recorrente, por via do seu Requerimento de 3 de julho de 2025, referência n.º 52824851, no sentido de se suspender a presente instância até que seja proferida “decisão definitiva” no âmbito do processo que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, ... Cível de Lisboa, Juiz 10, com o n.º ..../22 2. Por sua vez, tanto quanto é possível à requerente, ora recorrida, descortinar, esta apelação aparenta se encontrar suportada em dois (pretensos) fundamentos, isto é, por um lado, a hipotética violação, erro de interpretação e de aplicação do disposto no artigo 364.º, n.º 4, do Código de Processo Civil e, por outro lado, a suposta violação e erro de interpretação do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 65.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e 10.º, n.ºs 2 e 4, da Lei n.º 83/2019, de 3 de setembro, na sua redação vigente. 3. Acontece que, em primeiro lugar, a aqui recorrida é do entendimento de que este Douto Tribunal ad quem nem sequer deverá conhecer do objeto deste recurso de apelação. 4. De facto, como se retira das alegações e das conclusões do recurso agora interposto pelo recorrente, a pretensão do mesmo, subjacente à apresentação do recurso, era obstar à concretização da ordem de entrega do Palácio... à recorrida, de forma a manter a ocupação ilícita que vinha retirando do prédio. 5. Porém, na presente data, é patente que tal pretensão já não se poderá verificar, visto que o Palácio... foi entregue à recorrida, no seguimento da diligência de entrega coerciva do prédio, iniciada a 5 de agosto de 2025. 6. Consequentemente, tendo-se verificado a entrega do prédio à recorrida, esta apelação, nos moldes em que foi interposta pelo recorrente – ou seja, com o intuito de evitar essa mesma entrega – não terá qualquer utilidade, pois que, ainda que a mesma viesse a ser julgada procedente e, em decorrência disso, se substituísse o segmento decisório recorrido por outro que determinasse a suspensão da instância – o que não se concede, e que apenas por mera hipótese de raciocínio se admite – ainda assim, tal facto (a suspensão da instância ocorrida após a concretização da entrega do prédio) não seria suscetível de obstar e/ou invalidar a mesma. 7. Assim, encontramo-nos em face de uma inutilidade superveniente da lide (artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil) que, nos termos do disposto nas alíneas b) e h), do n.º 1, do artigo 652.º do referido diploma legal, constitui uma circunstância que obsta ao conhecimento desta apelação e que determina com que a respetiva instância recursiva seja julgada extinta, não havendo que conhecer do seu objeto. 8. Mas, mesmo que assim não o fosse – o que, mais uma vez, não se concebe, mas que por mero dever de cautelar se admite – ainda assim, esta apelação estará destinada ao fracasso, pois que é desprovida de qualquer fundamento. 9. Não obstante, antes de passarmos à análise do mérito da referida apelação, importa, a título prévio, salientar que, caso se aprecie o objeto deste recurso, impor-se-á a este Douto Tribunal ad quem atribuir ao mesmo efeito meramente devolutivo (e não suspensivo, como pugnando pelo recorrente), pois que a decisão recorrida não se trata de uma decisão que coloca termo à causa (como confessado pelo próprio recorrente, nas conclusões do seu recurso), nem o Palácio... corresponde à casa de morada de família e/ou de habitação do recorrente, visto que tal facto não ficou provado nos autos. 10. Desta forma, não mostram verificados os requisitos prescritos na alínea b), do n.º 3, do artigo 647.º do Código de Processo Civil, nem de qualquer outra das alíneas que compõem o elenco daquele normativo, pelo que, não se tendo também o recorrente oferecido para prestar caução, o efeito a se atribuir à apelação apenas poderá ser meramente devolutivo (artigo 647.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). 11. Nestes termos, passando à análise dos alegados fundamentos da apelação, como atrás se disse, o recorrente insurge-se, contra a decisão recorrida, argumentando, em primeiro lugar, que a mesma viola o disposto no n.º 4, do artigo 364.º do Código de Processo Civil, pois que, tendo-se suspendido os autos principais com fundamento em causa prejudicial, tal suspensão é, alegadamente, extensível ao procedimento cautelar apenso, supostamente, por força da instrumentalidade e dependência deste da respetiva ação principal. 12. Para além disso, o recorrente sustenta também que, se encontrando pendente a apreciação de um recurso de apelação, é igualmente, nas suas palavras, de “equacionar” a suspensão dos autos, com hipotético fundamento nessa apelação pendente. 13. Ora, no que se reporta a esta última questão, é claro para a recorrida que o recorrente abusa, desde logo, do seu direito ao recurso, na medida em que, nunca tendo suscitado tal questão ao Tribunal recorrido, se conformou com o prosseguimento dos autos, não obstante a pendência de uma apelação (à qual, saliente-se, foi atribuído efeito meramente devolutivo), 14. O que implicará com que, nesta parte, não se conheça do presente recurso, novamente, ao abrigo do disposto nas alíneas b) e h) do n.º 1, do artigo 652.º do Código de Processo Civil. 15. Dito isto, e entrando agora na apreciação de mérito deste primeiro fundamento de recurso, é evidente para a recorrida que a decisão aqui em apreço não viola, nem erra na interpretação e na aplicação do disposto no n.º 4, do artigo 364.º do Código de Processo Civil, 16. Aliás, em abono da verdade, nem sequer se descortina como é que da argumentação do recorrente, nesta parte do seu recurso, se poderia retirar uma hipotética violação, erro de interpretação e de aplicação daquela norma, pois que aquilo que o recorrente refere é que o Tribunal a quo deveria ter suspendido a instância, com fundamento em pretensas causas prejudiciais, isto é, ao que parece, os autos principais, a causa prejudicial desses autos e a apelação pendente, 17. Revelando-se, assim, que esta violação, erro de interpretação e de aplicação do n.º 4, do artigo 364.º do Código de Processo Civil não passa de um mero subterfúgio do verdadeiro vício que o recorrente pretende opor ao segmento decisório recorrido, que se afigura ser a suposta violação do disposto no n.º 1, do artigo 272.º do Código de Processo Civil, 18. E bem se percebe esta necessidade de recurso ao aludido subterfúgio, visto que bem sabe o recorrente que, em circunstância alguma, poderia o Tribunal a quo ter determinado a suspensão desta instância, por pretensa existência de alegadas causas prejudiciais, porquanto encontra-se transitada nos autos uma decisão (a Decisão Final) que contém um segmento decisório que negou a suspensão da instância que havia sido anteriormente requerida, com esse mesmo hipotético fundamento, pois que, como o disse o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, ... Cível de Lisboa, Juiz 9 e o Tribunal da Relação de Lisboa, a suspensão da instância, suportada em causa prejudicial, não é aplicável aos procedimentos cautelares. 19. Assim, por força do disposto no artigo 620.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o Tribunal recorrido estava mesmo obrigado a indeferir o pedido aqui em apreço do agora recorrente, sob pena de gritante violação do caso julgado formal, formado pelo trânsito em julgado da Decisão Final. 20. Por último, socorre-se ainda o recorrente do argumento que de a decisão recorrida padece de uma suposta violação e erro de interpretação do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 65.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e 10.º, n.ºs 2 e 4, da Lei n.º 83/2019, de 3 de setembro, na sua última redação, porquanto, na perspetiva deste, ao decidir nestes moldes, o Tribunal a quo violou, alegadamente, o direito à habitação e à casa de morada de família do recorrente, bem como o princípio da proporcionalidade. 21. Sucede que, mais uma vez, não assiste qualquer razão ao recorrente, 22. Desde logo porque, em primeiro lugar, o Palácio... não é a casa de habitação e/ou de morada de família do recorrente, não se encontrando tal facto dado como provado nos autos (e tendo mesmo o Tribunal da Relação de Lisboa excluído uma modificação da decisão de facto neste sentido, no âmbito do recurso de apelação que foi interposto pelo recorrente da Decisão Final, por, na ótica deste Douto Tribunal ad quem, não constar deste processo prova segura a este respeito). 23. E, em segundo lugar, porque aquilo que o recorrente pretende é, mais uma vez, uma nova apreciação dos requisitos que determinaram o decretamento da providência (cuja decisão já se mostra transitado em julgado). 24. Com efeito, se o Tribunal decretou a providência objeto dos autos, assim o fez em virtude de ter entendido que tal providência era adequada e proporcional, pois que a adequação e a proporcionalidade são pressupostos do decretamento da mesma. 25. Ou seja, o Tribunal já emitiu um juízo quanto à adequação e proporcionalidade da providência, juízo esse que consta de uma decisão já transitada, que não é, por sua vez, suscetível de ser alterada (artigo 620.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). 26. Concomitantemente, não se verifica nenhum dos vícios apontados pelo recorrente ao segmento decisório sub judice, 27. Impondo-se, nestes termos (e em qualquer das circunstâncias), julgar improcedente esta apelação, determinando-se a manutenção de tal segmento decisório».
1.3. O recurso foi admitido, sem reclamações, como apelação, com subida imediata, por apenso e com efeito meramente devolutivo, sendo que, quanto à pretendida inadmissibilidade do recurso, por, em momento posterior à apresentação das alegações recursórias, ter sido concretizada entrega do imóvel em causa, o tribunal a quo entendeu que: «(…) É inegável que a decisão recorrida decidiu em sentido oposto àquele que fora preconizado pelo recorrente no requerimento apreciado e que a mesma o prejudica, já que não foi suspensa a entrega do imóvel em causa. Assim, cabe reconhecer-lhe legitimidade para a impugnar (cfr. n.º 1 do artigo 631.º do Código de Processo Civil). E, aferindo-se o interesse em recorrer pela utilidade que para o recorrente pode resultar da procedência do recurso , deve-se concluir que, diferentemente do que se preconiza, o eventual acolhimento da pretensão recursória aduzida pelo recorrente não se tornou, em virtude daquele facto, supervenientemente inútil para aquele. Na verdade, a revogação do despacho apelado acarretará, forçosamente, a restituição do imóvel ao apelante em virtude da anulação do pertinente processado subsequente ao despacho apelado, mormente a efectivação da entrega do imóvel. Daí que não se deva reconhecer que, na actualidade, o recorrente não dispõe de interesse em recorrer».
1.4. Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Decorre do disposto nos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 do CPC, que as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pág. 105 a 106).
Assim, atendendo às conclusões supra transcritas, a questão essencial a decidir consiste em saber se a execução da providência decretada deveria ou não ser suspensa em virtude da suspensão da acção principal (de revindicação), por pendência de causa prejudicial.
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos relevantes a atender para efeitos de apreciação do objecto do presente recurso são os seguintes, todos decorrentes da própria tramitação do processo:
1. Por decisão de 12.02.2024, proferida nos autos de procedimento cautelar comum instaurados por Hotel das Flores – Gestão e Exploração Hoteleira, S.A., contra AA (que correram, inicialmente, termos sob o n.º 4981/23.8T8LSB, no ... Cível de Lisboa - Juiz 9), foi determinada a «entrega do Palácio..., devidamente id. nos autos, à Requerente, ordenando-se, para este efeito, que o Requerido lhe entregue o referido imóvel, livre e desocupado de pessoas e bens, bem como todas as chaves de acesso ao mesmo Mais se determina que, caso seja necessário e na medida do necessário, o recurso à força pública para assegurar o cumprimento do ora ordenado, com recurso a arrombamento se necessário»;
2. Por acórdão da Relação de Lisboa de 04.06.2024, foi decidido «manter a decisão de procedência do procedimento cautelar, sem prejuízo da execução da providência ficar condicionada à prévia prestação de caução pela requerente no valor de trezentos mil euros por depósito ou mediante garantia bancária, a qual só se extinguirá com o primeiro de dois eventos: o trânsito em julgado da ação principal a intentar com total procedência a favor da requerente ou três anos após o trânsito em julgado da decisão que decrete a caducidade da providência»;
3. Por acórdão do STJ de 16.01.2025 foi, definitivamente, rejeitada a revista;
4. Na acção declarativa, de que o referido procedimento cautelar foi preliminar (processo n.º 19991/24.0T8LSB do no ... Cível de Lisboa - Juiz 15), o Hotel das Flores – Gestão e Exploração Hoteleira, S.A., deduziu contra AA, os seguintes pedidos:
«a) Que seja reconhecido o direito de propriedade que a Autora detém sobre o Palácio... (correspondente ao prédio urbano em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, composto por edifício de rés-do-chão, sobreloja, 1.º e 2.º andares com terraço e jardim, e 3.º. andar com terraço e águas furtadas e ainda uma cave, sito na ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º 94/19931013 da freguesia de São Paulo, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º 995 da freguesia de Misericórdia, concelho e distrito de Lisboa). b) Que seja o Réu condenado a restituir à Autora o Palácio.... c) Que seja definitivamente confirmada a decisão provisória, que ordenou ao Réu a entrega do Palácio... à Autora, proferida no âmbito do Procedimento Cautelar que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, ... Cível de Lisboa, Juiz 9, com o número de processo 4981/23.8T8LSB. d) Deve, ainda e em todo o caso, o Réu ser condenado ao pagamento de custas processuais, procuradoria e demais encargos legais»;
5. Por despacho de 16.06.2025, proferido na referida acção, foi decidido, ao abrigo do n.º 1 do artigo 272.º do Código de Processo Civil, declarar suspensa a instância até ao trânsito em julgado da decisão a proferir no processo n.º ..../22 do mesmo ... Cível de Lisboa;
6. Por requerimento apresentado nos autos de procedimento cautelar em 03.07.2026, o requerido AA requereu que «seja proferida decisão ordenando a suspensão da fase executória da providencia cautelar, até que seja proferida decisão definitiva quanto a validade do contrato de arrendamento no processo que se encontra a correr termos sob o n.º ..../22 neste ...», com os seguintes fundamentos:
«(…) 4º Ora, em face do exposto, como consequência da suspensão da acção principal, deverá, igualmente, ser decretada a suspensão da fase executória da presente providência cautelar. 5º Efectivamente, é manifestamente incongruente que a acção principal fique suspensa a aguardar pela decisão que vier a ser proferida no Proc. nº ..../22 e que tal suspensão não seja extensível á providência cautelar, com a consequente suspensão das diligências em curso e directamente relacionadas com a obrigação de entrega do imóvel pelo ora Requerido. Acresce que, 6º Não podemos deixar de fazer referência ás características da instrumentalidade e da dependência do procedimento cautelar relativamente à acção principal, ou seja, não só, a decisão proferida no procedimento cautelar, assume, sempre, uma natureza precária, como também, é proferida no pressuposto de vir a ser favorável ao requerente a decisão a produzir no processo principal. 7º E, no caso sub judice, nem tão-pouco, se venha a afirmar que, a questão relacionada com a suspensão da providência cautelar com fundamento na pendência de outras acões já foi apreciada e julgada nos presentes autos pelos Tribunais Superiores, isto porque, as decisões anteriormente proferidas quer pelo Tribunal da Relação, quer pelo Supremo Tribunal de Justiça, foram proferidas num contexto totalmente distinto. 8º Ou seja, presentemente, já não está em causa a suspensão da instância com fundamento na acção que corre termos sob o n.º ..../22 neste ..., mas sim, a suspensão da fase executória da providência como consequência da suspensão da instância da própria acção principal. 9º Efectivamente, é o próprio Tribunal a reconhecer que, a acção de reivindicação instaurada pelo Autor (no âmbito do qual, foi formulado o pedido de condenação do Réu a proceder á entrega do Palácio...), não pode prosseguir até que seja definitivamente resolvida a questão respeitante á validade do contrato de arrendamento. Acresce que, 10º Os prejuízos derivados da suspensão da fase executória da providência cautelar para a ora Autora/Requerente, Afáveis & Ponderados, são totalmente nulos, enquanto que, o dano proveniente para o ora Requerido/Réu com a concretização da medida cautelar executória são manifestamente irreversíveis e irrecuperáveis. Senão vejamos: 11º A sociedade Hotel das Flores, S.A. veio instaurar a presente providência cautelar não especificada, com vista a obter a entrega do imóvel denominado “Palácio...” completamente devoluto de pessoas e bens, encontrando-se a causa de pedir alicerçada nos seguintes argumentos: (i) A sobrevivência da sociedade está dependente da urgente desocupação do seu imóvel pelo Requerido, de forma a permitir a retoma das diligências para a promoção de venda do Palácio... e, assim, por termo aos incumprimentos alegados pelo Fundo BlueCrow; (ii) Com efeito, só dessa forma a Requerente poderá impedir o vencimento antecipado da sua divida para com o Fundo BlueCrow e, dessa forma, evitar novamente numa situação de insolvência; (iii) A Requerente encontra-se em risco sério e iminente de, caso não seja posto termo urgentemente ao comportamento do Requerido e este não desocupe o Palácio..., de imediato, o Fundo BlueCrow declarar o efectivo incumprimento do Acordo de Investimento e, nessa sequência, declarar o vencimento antecipado do seu avultado crédito, com um valor aproximado de € 11.000.000,00 (onze milhões de euros). Sucede que, 12º Em 14 de Agosto de 2024, a sociedade Hotel das Flores, S.A. representada pelos seus administradores, Srs. BB e CC procedeu á venda do imóvel denominado “Palácio...” à sociedade, ora Habilitada Afáveis & Ponderados, Lda. pelo montante de € 15.600.000,00 (quinze milhões e seiscentos mil euros) Acresce que, 13º O detentor da totalidade do capital social da, Afáveis e Ponderados, Lda., é o BlueCrow Growth Fund I – FCR – que, mais não era do que o credor hipotecário da sociedade Hotel das Flores - Gestão e Exploração Hoteleira, S.A. 14º E, por conseguinte, na presente data, os credores da sociedade Hotel das Flores, S.A., mais concretamente, o Fundo BlueCrow, já se encontram integralmente ressarcidos das quantias emprestadas, a sociedade Hotel das Flores também já se encontra dotada dos meios financeiros necessários para assumir o cumprimento das suas obrigações encontrando-se erradicada qualquer hipótese de ser decretada a insolvência e a ora Requerente/Autora, Afáveis & Ponderados, presentemente, é a actual dona e legitima proprietária do referido prédio urbano. 15º Pelo que, a suspensão da fase executória da providência cautelar nenhum prejuízo acarreta, quer de forma directa para a ora Requerente, Afáveis & Ponderados, quer de forma indirecta para o Fundo BlueCrow, 16º E, o mesmo já não se pode dizer para o ora Requerido, isto porque, conforme se encontra demonstrado, o referido imóvel corresponde á sua habitação, á sua casa de família, ao local onde reside permanente com os seus filhos. 17º Logo, na eventualidade de o Requerido ter de proceder a entrega do imóvel e caso venha a ser proferida decisão que considere válido o contrato de arrendamento e, por conseguinte, julgue improcedente a acção de reivindicação, tal decisão terá um efeito inútil, dado que, o Requerido já foi desapossado do imóvel e, com toda a segurança, não terá condições de reassumir a posse. 18º E, nem tão-pouco, se venha afirmar que, a caução já prestada pela sociedade Hotel das Flores irá colmatar o dano provocado ao Requerido com a entrega do imóvel, isto porque, tal não corresponde á verdade. 20º Efectivamente, não existe qualquer contrapartida financeira que vá minimizar o dano do Requerido, ou seja, a perda da sua habitação, da sua casa de morada de família e do local onde tem instalada a sua vida familiar e social»;
7. Por decisão de 08.07.2025 (ora recorrida), foi indeferido o requerido, nos seguintes termos:
«O Requerido requereu a suspensão dos presentes autos, aduzindo, em síntese, que, por despacho proferido nos autos principais, a tramitação da acção fora suspensa e que os prejuízos decorrentes da decisão de não suspender a tramitação da fase executória da providência decretada seriam, para si, irreparáveis, dado que não teria condições de reaver o imóvel e a caução prestada não colmatará o dano que estima vir a sofrer. Face à simplicidade com que se apresenta a questão a decidir, tem-se por desnecessária a audição da Requerente (cfr. n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil). A suspensão da instância por causa prejudicial pressupõe, logicamente, que esta ainda esteja em curso. Ora, o presente procedimento cautelar mostra-se findo (cfr. alínea a) do artigo 277.º do Código de Processo Civil) mediante o julgamento de facto e de Direito, constante da douta decisão tomada pelo V. Tribunal da Relação. Em curso (e há demasiado tempo, por força de vicissitudes várias), está unicamente a diligência destinada a efectivar a providência decretada (i.e. a entrega do imóvel à Requerente), a qual, por não assumir autonomia própria, não infirma aquela conclusão. A este relevante óbice, acresce que, em sede cautelar, foram já definitivamente fixados os factos e aplicadas as pertinentes normas jurídicas, pelo que os fundamentos do despacho exarado nos autos principais não podem ser automaticamente extensíveis a estoutra sede. Não cabe, assim e em função da preclusão ocasionado pela formação do caso julgado, aguardar a definição que vier a ser dada às questões solvendas que devem, em primeira mão, ser dirimidas no processo n.º ..../22 Acrescente-se que, concomitantemente, a instrumentalidade e a dependência do presente procedimento cautelar em relação à acção principal revelar-se-ão, apenas e só, na eventual extinção da providência decretada com os fundamentos a que se referem as alíneas c) e e) do n.º 1 do artigo 373.º do Código de Processo Civil). Relembre-se, aliás, que o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa acautelou precisamente esse desfecho, estabelecendo uma caução a favor do Requerido. Daí que a tramitação do procedimento cautelar não possa, nesta ocasião, ser suspensa em virtude de prejudicialidade relativamente àquela acção ou por qualquer outro motivo. Resta ainda a acrescentar que, nesta ocasião, irrelevam os eventuais prejuízos que vierem a ser suportados pelo Requerido com o cumprimento da providência decretada, não se divisando, em todo o caso, qualquer plausibilidade na alegação contida na parte final do artigo 17.º do requerimento em apreço ou na aventada irreparabilidade de tais danos»;
8. No dia 05.08.2025 realizou-se a diligência de entrega do Palácio... à requerente;
9. Por acórdão da Relação de Lisboa de 11.09.2025, foi decidido julgar improcedente a apelação e manter o despacho recorrido de 31.01.2025, que indeferiu, no procedimento cautelar, a pretensão do requerido AA de ser julgada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, em virtude da substituição da requerente, pela venda a terceiro do imóvel objecto da ordenada entrega.
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Sustenta o recorrente que a suspensão da acção principal (de revindicação), por pendência de causa prejudicial, é extensível ao procedimento cautelar e determina a suspensão da fase executória da providência decretada.
E, por isso, imputa à decisão recorrida os seguintes vícios:
- violação e erro de interpretação e de aplicação do disposto no art. 364.º, n.º 4, do CPC;
- erro de interpretação do disposto nos arts 18.º, n.º 2, e 65.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e 10.º, n.ºs 2 e 4, da Lei de bases da Habitação (Lei n.º 83/2019, de 03.09).
Não lhe assiste qualquer razão, não podendo deixar de referir-se que o presente recurso constitui mais uma infeliz tentativa do requerido de impedir a execução da providencia cautelar decretada em 12.02.2024, ao lado de todas as outras já refutadas, quer pelo tribunal a quo, quer pelos tribunais superiores, que indicia um uso manifestamente reprovável dos meios processuais, roçando, por isso, a litigância de má-fé.
Tal como o tribunal a quo, entendemos que a suspensão da acção principal (de revindicação), por pendência de causa prejudicial (onde se discute a validade e subsistência de um contrato de arrendamento), não é extensível ao procedimento cautelar, nem determina a suspensão da fase executória da providência decretada.
O procedimento cautelar visa, precisamente, a tutela provisória de um direito ameaçado, através da adopção de medidas adequadas a evitar o risco do perecimento desse direito, decorrente da demora no processamento da acção principal.
Tal como escreve Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, I, 3.ª ed., p. 623 e segs. «a providência cautelar não se propõe dar realização directa e imediata ao direito substantivo, mas tomar medidas que assegurem a eficácia duma providência subsequente, esta destinada à actuação do direito material», sendo que «aprovidência cautelar é posta ao serviço de uma outra providência, sendo que esta é que há-de definir, em termos definitivos, a relação jurídica litigiosa».
A providência de entrega em causa foi decretada por se ter entendido que estavam reunidos, in casu, os pressupostos essenciais ao seu decretamento:
a) a titularidade de um direito ou de um interesse legalmente protegido ("fumus bonis iuris") e
b) o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito próprio, que é manifestação de um pressuposto comum a qualquer providência cautelar e que consiste no justificado receio de que a natural demora na resolução definitiva do litígio cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação ("periculum in mora").
Quaisquer outros juízos posteriores acerca da necessidade/indispensabilidade e racionalidade/justeza da medida decretada, bem como do seu carácter desproporcional, excessivo, desequilibrado ou ilegítimo violariam as decisões anteriores proferidas e transitadas em julgado, onde tais juízos foram necessariamente, efectuados.
A providência decretada (por decisão transitada em jugado) tem, naturalmente, que ser cumprida, sendo certo que já se reconheceu não ter ocorrido inutilidade superveniente da lide (cfr. n.º 9 dos ponto III).
De resto, são, completamente, alheias à execução da providência decretada quaisquer vicissitudes da acção principal, apenas tendo reflexo no procedimento cautelar as ocorrências contempladas no art. 373.º do CPC, onde não se insere a suspensão da acção principal.
Aliás, dir-se-ia mesmo que a suspensão da acção principal torna até mais premente a adopção e execução de medidas cautelares e provisórias, posto que agudiza o receio de demora na resolução definitiva do litígio e, por conseguinte, de superveniência de maiores prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação.
Incongruente seria, isso sim, suspender a execução da entrega do imóvel, quando esta foi decretada para assegurar a eficácia da decisão definitiva a tomar na acção principal, em face da normal demora da prolação dessa decisão.
Nem se vê que tal entendimento viole os princípios da instrumentalidade ou dependência da providência cautelar relativamente à acção principal, na medida em que aquela visa, precisamente, acautelar ou antecipar provisoriamente o efeito útil da providência definitiva, na pressuposição de a composição definitiva do litígio (a proferir na acção principal) vir a ser favorável à requerente.
Refira-se que a questão da suspensão da instância no procedimento cautelar, em virtude da pendência do processo ..../22, foi objecto de apreciação no acórdão de 04.06.2024, em termos aplicáveis, mutatis mutandis, à pretensão do requerido ora em apreciação:
«A este propósito, refere TEIXEIRA DE SOUSA, CPC ONLINE, art.º 130.º a 361.º, Versão de 2024/04, p. 157: “A suspensão da instância com fundamento em prejudicialidade não pode ocorrer nos procedimentos cautelares. A tal se opõe o fumus boni iuris que é suficiente nestes procedimentos (art. 365.º, n.º 1, e 368.º, n.º 1), o que impede que o procedimento cautelar deva ser suspenso até à decisão de um processo no qual o direito acautelado esteja em apreciação.” Na jurisprudência, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.9.2020, Bernardo Domingos, 1948/17, também se entendeu que: “A suspensão da instância por alegada pendência de causa prejudicial, prevista no art.º 272º do CPC, é incompatível com a natureza dum procedimento cautelar e como tal inaplicável a estes procedimentos.” Neste aresto refere-se, pertinentemente, que a suspensão da instância não foi pensada para os procedimentos cautelares, mas sim para as ações principais. Na verdade, há que atentar no escopo central do procedimento cautelar. Conforme refere RITA LYNCE DE FARIA, A Tutela Cautelar Antecipatória no Processo Civil Português, Um Difícil Equilíbrio entre a Urgência e a Irreversibilidade, UCE, 2016, p. 132: “(…) a função da tutela cautelar traduzir-se-á em afastar um perito de dano marginal relativamente ao prevenido pela ação principal e perante o qual a ação judicial não tem capacidade de atuar. E esse dano marginal traduz-se precisamente no que pode resultar do tempo necessário ao proferimento dessa decisão, fator inerente a todo o processo e que, não podendo ser eliminado, apenas pode ser acautelado através da medida cautelar. Aquele dano acaba por acrescer ao que resulta da necessidade de recurso à via judicial. E encontra nas providências cautelares a resposta de prevenção adequada. Daí que, uma vez concedida a providência cautelar, o requerente não perca o interesse na ação principal. Em suma, a providência cautelar previne um dano com uma fonte muito específica: aquele dano que pode resultar da demora da ação judicial, e não o dano de que qualquer direito é suscetível de padecer e que encontra tutela adequada no direito de ação principal.” Sendo a função do procedimento cautelar prevenir um dano marginal decorrente da demora da ação principal, admitir-se a suspensão da instância do procedimento cautelar com fundamento na pendência de outras ações seria, na prática, esvaziar a função do procedimento cautelar, em síntese, representaria a completa subversão da vocação do procedimento cautelar».
Acresce que não se descortina em que medida a decisão ora recorrida possa violar o n.º 4 do art. 364.º do CPC (onde se estipula que «nem o julgamento da matéria de facto, nem a decisão final proferida no procedimento cautelar, têm qualquer influência no julgamento da acção principal»).
Pelo contrário, a suspensão da acção principal, por pendência de causa prejudicial, revela que o tribunal a quo não se deixou influenciar pela decisão tomada no procedimento cautelar (que ordenou a entrega do imóvel por entender que inexistia título que legitimasse o seu uso pelo requerido e lhe permitisse opor-se à entrega), optando por aguardar o desfecho da acção onde se discute, em termos definitivos, a existência e/ou validade do referido título, reconhecendo a precariedade e provisoriedade da media cautelar tomada e dos fundamentos fácticos e jurídicos em que assentou.
E se é certo que a providência decretada tem caráter antecipatório e que tal pode acarretar o risco de irreversibilidade dos respectivos efeitos, não menos certo é que estamos perante uma tutela provisória, que não dispensa a requerente de obter uma tutela definitiva na acção principal.
A possível irreversibilidade da tutela cautelar antecipatória obriga, naturalmente, a um maior rigor e cuidado no juízo acerca da probabilidade da existência do direito do requerente, mas esse juízo foi feito na decisão que decretou a providência e não pode voltar a ser formulado na fase de execução da mesma.
Os eventuais danos decorrentes da irreversibilidade da medida determinarão, quanto muito, a responsabilização do requerente e não a paralisação da sua execução, sendo certo que, tal como se salienta na decisão recorrida, foi prestada caução pela requerente como garantia da sua responsabilidade (que funciona como uma espécie de contra-providência cautelar a favor do requerido).
O requerido/recorrente argumenta que «não existe qualquer contrapartida financeira que vá minimizar o dano provocado», mas não logrou concretizar esta afirmação vaga, não indicando, minimamente, as razões pelas quais considera ser a caução prestada insuficiente, sendo certo que o respectivo montante foi considerado adequado por decisão transitada em julgado (acórdão da RL de 04.06.2024 – cfr. n.º 2 do ponto III).
Sustenta, ainda, o recorrente que a manutenção das diligências de entrega do imóvel à requerente e, por conseguinte, a decisão recorrida violam o direito do requerido à habitação e à protecção da casa de morada de família.
No recurso da decisão que decretou a providência de entrega o requerido havia já sustentado que «a decisão por parte do Tribunal a quo determinou a entrega do Palácio... à Requerente/Recorrida, ordenando a entrega por parte do Requerido/Recorrente do imóvel em causa, livre e desocupado de pessoas e bens, bem como todas as chaves de acesso ao mesmo, ter-se-á de considerar inconstitucional, nos termos do artigo 65º n.º 1 da CRP, dado que, o imóvel aludido nos autos corresponde à casa de morada da família do Requerido/Recorrente», não tendo o recurso sido apreciado nessa parte (cfr. acórdão da RL de 04.06.2024).
Ora, o acórdão da RL em causa transitou em julgado, pelo que, permitir que o recorrente discuta, novamente, embora na fase da execução da medida decretada, a questão da “inconstitucionalidade da entrega” seria, mais uma vez, violar o caso julgado já formado.
De resto, ainda que assim se não entendesse, sempre teríamos que em lugar algum dos factos provados no procedimento cautelar resulta que o imóvel em causa constitua a casa de morada de família do requerido.
O que decorre da factualidade aí demonstrada é, apenas, que «o requerido utiliza o imóvel até ao presente detendo todas as chaves do mesmo» (cfr. n.º 149) e que «no dia 03.11.2022, ABV e FBV, na respetiva qualidade de Presidente e Vogal do Conselho de Administração da Requerente, deslocaram-se ao Palácio... para efetuar a mudança das chaves de acesso ao mesmo, tendo verificado que o Palácio... se encontrava ocupado pelos filhos do Requerido» (cfr. n.º 155), matéria, obviamente, insuficiente para se entender que o imóvel constitua a sua casa de morada de família.
Acresce que as normas que consagram o direito constitucional à habitação, como direito de índole social, não são directamente aplicáveis (ao contrário do que se passa com as respeitantes aos direitos, liberdades e garantias), e, por isso, aquele direito traduz-se, apenas, numa pretensão, face ao Estado, autarquias e regiões autónomas, de medidas legislativas e administrativas destinadas à sua concretização.
Ou seja, o direito constitucional à habitação não tem como destinatários os particulares, e, por isso, não pode ser invocado como forma de impedir a entrega de um imóvel ordenada com fundamento na falta de título do ocupante.
A entrega ordenada não suscita qualquer conflito de direitos à habitação, na acepção abstracta e imprópria em que a Constituição emprega esta fórmula, porque tais direitos não se movem no círculo das relações entre particulares, antes têm como alvo o Estado, no sentido de que a este cabe a responsabilidade política de planear, adoptar e executar providência tendentes a criar as condições necessárias para todos poderem ter habitação condigna.
As questões suscitadas nos autos, relacionadas com a existência ou não de título de ocupação, são alheias ao preceito constitucional do artigo 65,º, onde se acolhe uma directriz programática, uma tarefa imposta ao Estado, de realização gradual.
Não desconhecemos que, em virtude do referido preceito constitucional, o legislador comum pode impor restrições ao proprietário privado, no intuito de assegurar o direito à habitação, atendendo aos princípios do respeito pela dignidade humana e da proporcionalidade.
Não vemos, contudo, que, na situação dos autos, existam motivos suficientemente relevantes para impor à requerente/recorrida o sacrifício do seu direito, em nome da função social da propriedade ou de uma pretensa solidariedade com o requerido/recorrente, sendo certo, repete-se, que tal juízo foi, necessariamente, formulado aquando da decisão que ordenou, cautelarmente, a entrega.
Finalmente, no que respeita à desproporção entre os danos causados ao requerido com a execução da providência de entrega e os prejuízos causados à requerente, o acórdão da RL de 04.06.2024, também já se pronunciou sobre a questão: «Quanto ao requisito enunciado sob e) (Não exceder o prejuízo resultantes da providência o dano que com ela se quer evitar – cf. Artigo 368º, nº2, do Código de Processo Civil ), trata-se de um facto impeditivo cuja prova incumbe ao requerido, nos termos do Artigo 342º, nº2, do Código Civil (cf. TEIXEIRA DE SOUSA, CPC Online, Art. 362º a 409º, Versão de 2024/04, p. 24). O requerido não logrou fazer essa prova, nomeadamente que a circunstância de ser desapossado do imóvel lhe cause um prejuízo superior ao que decorrerá para a requerente de continuar a ser privada da disponibilização do mesmo para honrar, quanto antes, o seu passivo. Com efeito, não está demonstrada a situação financeira global do requerido nem que soluções para alojamento do próprio e família lhe serão (in)acessíveis».
Enfim, e tal como bem salienta a recorrida, o que o requerido/recorrente pretende é que se faça, na fase executiva, uma nova apreciação dos requisitos que determinaram o decretamento da providência, recuperando, com alguma astúcia, argumentos já rebatidos, definitivamente, por decisão judicial, no âmbito deste procedimento cautelar, e que sempre estaria vedado alterar (cfr. arts. 619.º e segs. do CPC).
E, assim sendo, conclui-se pela improcedência das conclusões dos recorrentes, devendo manter-se a decisão recorrida.
O recorrente suportará as custas do recurso, por ter ficado vencido (art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
V – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar totalmente improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Notifique.
*
Lisboa, 25.09.2025
Rui Oliveira
Fátima Viegas
Teresa Catrola