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COMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL
ACIDENTE ESCOLAR
ESCOLA PRIVADA DE ENSINO PROFISSIONAL
SEGURO ESCOLAR
Sumário
Sumário: (da responsabilidade do relator): O Juízo Central Cível é materialmente competente para preparar e julgar uma acção, tendente a efectivar a responsabilidade civil pelos danos patrimoniais e danos não patrimoniais sofridos por um aluno, durante a frequência do curso de formação profissional de Mecatrónica Automóvel, intentada contra a escola privada de ensino profissional (não superior) que ministrava esse curso, a Seguradora de acidentes pessoais da mesma, bem como a oficina onde decorrida a vertente prática do curso e dois monitores mecânicos.
Texto Integral
Acordam os juízes na 8.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I – RELATÓRIO
1.1. AA instaurou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra IPTL - Instituto Profissional de Transportes e Logística da Madeira. Lda., Liberty Seguros S.A. (actualmente, Generali Seguros Y Reaseguros, S.A. – Sucursal em Portugal), C.R.A. Madeira - Centro Reparação Automóvel, Lda., BB e CC e mulher DD, na qual formulou os seguintes pedidos:
«seja: a) Reconhecido que o Autor AA, no dia 13 de junho de 2022, pelas 17h, quando se encontrava na oficina mecânica, sita ao ... Madeira - Centro Reparação Automóvel, Lda, no âmbito da vertente prática do curso formativo de Mecatrónica Automóvel, lecionada pela Ré IPTL – Instituto Profissional de Transportes e Logística da Madeira. Lda., formação essa, que foi ministrada sob a tutela da Ré IPTL, pela Ré C.R.A. Madeira - Centro Reparação Automóvel, Lda, sob a supervisão dos monitores mecânicos, e ora Réus BB e CC, teve um acidente escolar. b) Seja reconhecido que à conta do supra referido acidente, o Autor ficou com uma incapacidade permanente. c) Que os Réus, sejam condenados, no pagamento de uma indeminização por incapacidade permanente ao Autor que presentemente se fixa em € 108.450,00 (cento e oito mil quatrocentos e cinquenta euros) ou outra que vier a ser julgada nos termos do artigo 569.º do Código Civil, acrescidos de juros à taxa legal desde a citação. d) Que os Réus, sejam condenados, no pagamento de uma indeminização de € 32.535,00 ( trinta e dois mil e quinhentos e trinta e cinco euros) para os danos morais, ou outra que vier a ser julgada nos termos do artigo 569.º do Código Civil, acrescidos de juros à taxa legal desde a citação. e) Que os Réus sejam condenados no pagamento da assistência médica e medicamentosa, de transporte, alojamento, alimentação, e apoio de terceiro, a que o Autor tem direito, reclamando a este título que as Rés passem a se responsabilizar por tais prestações. f) Que os Réus sejam condenados no pagamento das taxas de justiça, custas de parte, e demais procuradoria do processo».
Para tanto, alegou, em síntese, que:
- entre 20.07.2020 e 04.07.2023, frequentou um curso de formação profissional de Mecatrónica Automóvel, leccionado pela 1.ª R., que é um estabelecimento de ensino de natureza privada, prosseguindo fins de interesse público, e certificada pela Secretaria Regional de Educação da Região Autónoma da Madeira;
- a vertente prática dessa formação foi ministrada, sob a tutela da 1.ª R., pela 3.ª R., sob a supervisão dos monitores mecânicos ora 4.º e 5.º RR., tendo decorrido a partir de 31.05.2022;
- no dia 13.06.2022, pelas 17h, quando se encontrava na oficina mecânica dos 3.º, 4.º e 5.º RR., onde lhe estava a ser ministrada a vertente prática do curso formativo e enquanto se encontrava a trabalhar no âmbito dessa formação, o A., inadvertidamente, sugou parte de um produto tóxico corrosivo, o que lhe provocou os ferimentos que refere e teve as consequências que descreve;
- o A. e a 1.ª R. accionaram junto da 2.ª R. o seguro de acidentes, titulado pela apólice n.º 1012535500, dado tratar-se de um acidente em meio escolar, sendo que a 2.º R. que apenas pagou ao A. algumas despesas de medicação.
Considera que as RR. são responsáveis pelo ressarcimento dos danos por si sofridos, ao abrigo do DL n.º 35/90, de 25.01, e da Portaria n.º 413/99, de 08.06, que instituiu a obrigatoriedade do seguro escolar, mas sempre o seriam civilmente, no âmbito da responsabilidade civil contratual e pelo risco.
1.2. Todos os RR. contestaram, tendo a 1.ª R., para o que ora releva, arguido a excepção dilatória da incompetência material do tribunal e requerido a sua absolvição da instância, nos seguintes termos:
«(…) 5º O Decreto-lei nº 35/90, de 25.01, que se reporta à gratuitidade da escolaridade obrigatória e aos apoios e complementos objectivos previstos na Lei de Bases dos Sistema Educativo, estabelece no seu artigo 1º que a mesma se aplica “(…) aos alunos que frequentam o ensino não superior em estabelecimentos de ensino oficial, particular ou cooperativo.” 6º No artigo 17º do referido diploma, sob a epígrafe “Prevenção e seguro escolar”, consta do nº1 que “nos estabelecimentos de ensino existirá um programa de prevenção de acidentes e seguro escolar”, e ainda que o referido programa consiste num “(…) esquema de seguro que garanta a cobertura financeira da assistência a prestar aos sinistrados, complementarmente aos apoios assegurados pelo sistema nacional de saúde”, conforme consta do nº2 da mesma norma. 7º O referido artigo 17º do Decreto-lei nº35/90, de 25.01, é densificado através da Portaria nº 413/99, de 08.06, que no seu preâmbulo refere que o diploma citado “(…) definiu um conjunto de modalidades de acção social escolar susceptíveis de apoiar o percurso dos alunos ao longo da sua escolaridade, de entre as quais se destaca o seguro escolar destinado a garantir a cobertura financeira na assistência a alunos sinistrados. (…)” 8º Acrescenta ainda que “a evolução verificada no sistema educativo aconselha a que se proceda à revisão do regulamento até agora existente, alargando às crianças que frequentam os jardins de infância e aos alunos dos ensino básico e secundário, incluindo os ensino profissional, artístico e recorrente, as acções de prevenção em caso de acidente escolar.” 9º E na indicada Portaria nº 413/99, de 08.06, no seu artigo 1º, estatui-se que o “seguro escolar constitui um sistema de protecção destinado a garantir a cobertura dos danos resultantes do acidente escolar.” 10º No nº1 do artigo 3º da Portaria nº 413/99 considera-se “(…) acidente escolar, para efeitos do presente Regulamento, o evento ocorrido no local e tempo de actividade escolar que provoque ao aluno lesão, doença ou morte.” 11º Como parece ser o caso dos presentes autos. 12º Importa, pois, aqui chegados, avaliar qual a natureza jurídica do denominado “Seguro Escolar”. 13º Conforme refere Manuel da Silva Gomes (1 “Seguro escolar: esse Ilustre (objectivamente) desconhecido – Anotação ao Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 19 de junho de 2019, Processo nº 051/18¨*”, Manuel da Silva Gomes, Revista da AAFDL, pág. 77 e segs.), “(…) a jurisprudência dominante tem entendido que “[o] chamado seguro escolar é uma medida de assistência social ou segurança social, um serviço público. A terminologia usada pelo legislador, ao falar em seguro, reporta-se ao que a doutrina vem classificando de seguro social, onde o Estado, intervindo embora como segurador, desempenha um serviço público e a relação de seguro nasce directamente da lei.” 14º De acordo com este entendimento, o seguro escolar é qualificado como um seguro social, 15º Pelo que, consequentemente, o Seguro Escolar “(…) não derivaria de contrato, mas, antes, da própria Lei. (…)” 16º Porém, de acordo com o mesmo Manuel da Silva Gomes (2 Na mesma obra), este tende a considerar que o seguro escolar tem uma natureza diferente, associando-o a um “(…) regime especial de responsabilidade extracontratual objectiva do Estado pelo exercício da função administrativa no âmbito de acidentes escolares.” 17º E sublinha a diferença que o seguro escolar tem face ao regime geral da responsabilidade civil extracontratual do Estado no âmbito da função administrativa, uma vez que este “(…) regime especial não exige a verificação dos pressupostos gerais referentes à culpa e à ilicitude, tudo numa lógica de socialização do risco escolar.” 18º E, não menos importante, nomeadamente no caso dos presentes autos, considera que “(…) num determinado acidente escolar, poderá, eventualmente, ocorrer a verificação de culpa assim como de ilicitude, contudo, na economia da Portaria nº 413/99, tal não se mostra necessário para que o Seguro Escolar possa ser acionado e confira o respectivo direito a indemnização.” 19º Ora, no caso dos presentes autos, da forma como o Autor configurou a presente acção – que é o relevante para a determinação da competência material do tribunal que julga a causa – é inequívoco concluir que o pedido se funda no acionamento do Seguro Escolar, 20º E não ao abrigo dos pressupostos gerais da responsabilidade civil extracontratual, seja do Estado seja dos privados aqui também demandados. 21º Assim sendo, parece-nos que o critério de competência material relevante para a presente causa é a que consta do artigo 4º nº2 do ETAF, que dispõe o seguinte: “2. Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.” 22º E, sendo a causa de pedir fundada no seguro escolar, a entidade demandada terá necessariamente de ser o Estado, e não as ora Rés, pelo menos não de forma isolada. 23º Para este resultado concorre o entendimento que a norma de competência material constante do artigo 4º nº2 do ETAF não exige a existência de uma relação jurídico administrativa entre o réu público e o autor. 24º Destaca-se, entre outros, o entendimento de José Carlos Vieira de Andrade (4 A Justiça Administrativa – Lições, 17ª Ed., Coimbra, 2019”, José Carlos Vieira de Andrade), que refere expressamente “(…) que se passou a admitir a atribuição pontual aos tribunais administrativos de questões de direito privado, designadamente de questões conexas com questões de direito administrativo, quando a causa de pedir seja complexa.” 25º Pelo que forçoso será concluir que o Tribunal Judicial da Comarca da Madeira é materialmente incompetente para julgar a presente causa, que deve ser atribuída aos tribunais administrativos e fiscais. 26º Nos termos do disposto na alínea a) do artigo 96º do CPC, determina a incompetência absoluta do tribunal a infracção das regras de competência em razão da matéria, neste caso, a violação do disposto no nº2 do artigo 4º do ETAF. 27º A incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e determina a absolvição da Ré da instância, nos termos do disposto no nº1 do artigo 99º do CPC, o que desde já se requer».
De relevante, a 1.ª R. alegou, ainda, que «ao contrário do que configura o Autor na sua petição inicial, a apólice de seguros que a Ré tem contratada com a companhia de seguros [apólice n.º 1012535500] é um seguro de acidentes pessoais, conforme lhe é imposto pela alínea d) do nº4 do artigo 5º da Portaria nº 74/2015, de 25.03, que estabelece as regras de funcionamento dos projectos de ensino profissional financiados pelo Fundo Social Europeu (FSE)» e «a apólice de seguros da Ré não corresponde nem se equipara ao Seguro Escolar a que se refere o Autor, entenda-se».
E concluiu que «o Autor, para obter o reconhecimento de que teve um acidente escolar tem de demandar o Estado, que é a entidade responsável pelos danos dele resultantes, e não a Ré» e que «em nenhuma circunstância, pode responder ou ser responsabilizada no âmbito do seguro escolar, que cabe única e exclusivamente ao Estado, no âmbito da justiça administrativa».
1.3. Na sua contestação, a 2.ª R. seguradora alegou, de relevante, que «confirma a existência de um contrato de seguro do ramo Acidentes Pessoais Grupo, titulado pela apólice n.º 1012535500, celebrado com o 1ª R, dos autos, o IPTL – Instituto Profissional de Transportes e Logística da Madeira, Lda.», pelo qual «garantiu o Tomador de Seguro, o 1º R. dos autos, ao conjunto de pessoas seguros constante da listagem anexa às Condições Particulares da Apólice (…) – ou seja, aos seus alunos – o pagamento dos capitais, subsídios e ou/indemnizações previstos para as coberturas contratadas ali elencadas e até aos limites ali fixados para cada uma».
1.4. O A. respondeu, pronunciando-se pela improcedência da excepção dilatória da incompetência material do tribunal, com os seguintes argumentos:
«(…) 3- Na verdade, não é a aplicação da Lei adjetiva e ou substantiva nos diplomas em apreço que define o foro do Tribunal Judicial/Civil, - que esta previsto nos termos da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que regula a Lei do Sistema Judiciário, vide, entre outro, designadamente artigos, 4.º, 8.º, 22.º, 37.º, 38.º, 40.º, 41,º, 44.º, 79.º, 80.º, 81.º, 117,º do respetivo diploma 4- ou do Tribunal Administrativo, - aplicável na litigância contra as entidades de potestas públicas, cf artigos 1.º e 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos, postergada na Lei 13/2012 de 19 de Fevereiro . 5- Podendo o Código Civil ser aplicado nos Tribunais Administrativos, como é, e o Código Procedimento Administrativo ser usado na aplicação da Lei nos Tribunais Judicias, como é. 6- Tanto mais, que é o Autor quem define quem são os Réus, - os identificados na sua peça, não tendo identificado qualquer entidade administrativa pública, 7- A Ré IPTL - factos aceites da Pi de 2 º a 5. - , é um estabelecimento de ensino de natureza privada, prosseguindo fins de interesse público, e certificada pela Secretaria Regional de Educação da Região Autónoma da Madeira. 8- Nesse facto, aplicável pois a Portaria 413/99 de 8 de junho 9- Sendo o Autor, obviamente alheio, as condições contratuais de seguro entre a 1º e 2 º Rés, que as impugna, como já supra referido, para todos os devidos e efeitos legais. 10- Pelo que, o sufragado pelo iminentíssimo, de 5.º a 28.º, e de 70 º a 94.º relativo a incompetência do Tribunal e de qualificação jurídica dos diplomas em apreço só pode improceder, cf artigos 5.º n.º 3, 30.º, 64.º, 65,º, 66.º, 71,º todos do Código Processo Civil».
1.5. Foi, de seguida, proferida decisão, que julgou verificada a excepção da incompetência em razão da matéria e absolveu os RR. da instância.
1.6. Inconformado apelou o A., pedindo que aquela decisão seja revogada e que se declare que os tribunais judiciais são competentes para apreciar a relação controvertida em apreço, formulando, para tanto, as seguintes conclusões: «I. Vem o Tribunal a quo, referir, que o presente litígio, a que se aduz nos autos da petição inicial, é da competência do Tribunal Administrativo, havendo, incompetência absoluta em razão da matéria do Tribunal judicial, com a consequente absolvição da instância, dos Réus. II. Ora, não podemos concordar com tal pronúncia, e subsunção da matéria de facto arguida, ao direito, não se verificando, no nosso entendimento, a mesma correta. III. Na verdade, entendemos que, a relação controvertida, a que aduz a petição inicial é da competência da jurisdição Judicial. IV. Pois, Prima, a Ré, IPTL – Instituto Profissional de Transportes e Logística, Lda., embora certificada pela Secretaria Regional de Educação, é uma entidade privada que, apesar de prosseguir fins de interesse público, não se configura como entidade pública para efeitos do artigo 4.º, n.º 2 do ETAF. V. A Ré, IPTL, é uma entidade privada, apesar de atuar em parceria com o sistema educativo público. E a relação entre o Autor e a aquela Ré não configura, e ou com qualquer outro Réu, uma relação jurídico-administrativa. VI. Aqui não há nenhum Réu que tenha qualquer natureza pública. VII. Assim, a responsabilidade civil decorrente das atuações das Rés, só pode ser apreciada no âmbito dos tribunais comuns. VIII. Secundo, a aplicação do Decreto-Lei n.º 35/90, de 25 de Janeiro, e que foi concretizado, através da Portaria n.º 413/99 de 8 de Junho, não estipula que todos os litígios relacionados com acidentes escolares devam ser exclusivamente julgados pela jurisdição administrativa. IX. Ao contrário, a responsabilidade de uma entidade privada pode ser apreciada por tribunais comuns, com base nas supras referidas leis, dada as transferências de poderes para uma entidade privada para ensinar . X. Na verdade, não é a aplicação da Lei adjetiva dos diplomas em apreço que define o foro do Tribunal Judicial/Civil, - que está previsto nos termos da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que regula a Lei do Sistema Judiciário, vide, entre outro, designadamente artigos, 4.º, 8.º, 22.º, 37.º, 38.º, 40.º, 41,º, 44.º, 79.º, 80.º, 81.º, 117,º do respetivo diploma XI. ou do Tribunal Administrativo, - aplicável na litigância contra as entidades de potestas públicas, cf artigos 1.º e 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos, postergada na Lei 13/2012 de 19 de Fevereiro . XII. Tanto mais, que é o Autor quem define quem são os Réus, - os identificados na sua peça, não tendo identificado qualquer entidade administrativa pública. XIII. O Autor, é obviamente alheio, as condições contratuais de seguro entre a Rés que as impugna, como já referido nos autos, para todos os devidos e efeitos legais, e pese embora, o Autor, ora Recorrente ter mencionado as leis aplicáveis, o juiz , não está sujeito as alegações das partes, quanto a interpretação e as regras do Direito. XIV. O que é importante para a relação material controvertida são os factos alegados, e que em suma, as partes Rés, já aceitaram como consta dos autos. XV. O Autor, ora Recorrente, tem direito a reparação de danos sofridos em contexto escolar, sendo que, in casu, o tribunal comum é apto a dirimir questões de responsabilidade civil e extracontratual decorrentes de acidentes, seja no contexto de seguro escolar ou não. XVI. Os Tribunais judiciais oferecem a garantia de uma análise mais abrangente e adequada ao caso concreto, permitindo ao Autor buscar a reparação integral dos danos sofridos. Limitar a apreciação ao âmbito da jurisdição administrativa não tem cabimento legal nenhum, porque até tanto, nenhuma Ré é pública. XVII. De acordo com o artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), os tribunais judiciais são os tribunais de competência genérica, cabendo-lhes julgar todas as causas que não estejam atribuídas a outra jurisdição. Este critério residual é reforçado pelo artigo 64.º do Código de Processo Civil (CPC), que determina que os tribunais comuns têm competência para julgar todas as causas que não sejam atribuídas a tribunais especializados. XVIII. Assim, a competência para dirimir o litígio deve ser atribuída aos tribunais comuns, embora o caso possa envolver o acionamento do seguro escolar, a relação jurídica controvertida não é administrativa. XIX. Com o devido respeito que é muito a jurisprudência referida pelo Tribunal a quo, não se pode imputar ao caso, XX. A jurisprudência portuguesa tem reconhecido que a competência dos tribunais administrativos depende da existência de uma relação jurídico-administrativa clara, e a competência dos tribunais deve ser aferida com base na causa de pedir e no pedido, tal como configurados pelo Autor. No presente caso, a causa de pedir e pedido envolve entidades privadas, não qualquer entidade pública, o que reforça a competência dos tribunais comuns».
1.7. Não foram apresentadas contra-alegações.
1.8. Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Decorre do disposto nos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do CPC, que as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pág. 105 a 106), sendo que o tribunal ad quem não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art. 5.º, n.º 3 do CPC).
Assim, atendendo às conclusões supra transcritas, a questão essencial a decidir consiste em saber se os tribunais judiciais, nomeadamente, o Juízo Central Cível do Funchal, são ou não competentes, em razão da matéria, para preparar e julgar a presente acção.
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos relevantes a atender para efeitos de apreciação do objecto do presente recurso são os que dimanam do antecedente relatório (ponto I deste acórdão)
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Conforme se referiu, a questão essencial a decidir consiste em saber se os tribunais judiciais, nomeadamente, o Juízo Central Cível do Funchal, são ou não competentes, em razão da matéria, para preparar e julgar a presente acção.
O tribunal a quo entendeu que a apreciação da pretensão ressarcitória do A. compete à jurisdição administrativa.
Vejamos. É incontroverso que a apreciação da competência material dos tribunais afere-se em função do pedido e da causa de pedir, tal como são configurados na petição inicial, em confronto com as normas delimitadoras da competência, sendo irrelevante o juízo de prognose que possa fazer-se quanto à viabilidade da acção, por se tratar de questão atinente ao mérito da pretensão (cfr. por exemplo, Manuel A. Domingues de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, p. 91; Artur Anselmo de Castro, in Lições de Processo Civil, II, 1970, p. 379; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in CPC Anotado, I, 2108, p. 97; acórdãos da RP de 21.06.2021, da RL de 21.03.2023, da RG de 23.03.2023, in www.dgsi.pt).
A competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva (são da competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto seja uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial) e de competência residual (são da competência dos tribunais comuns todas as causas não atribuídas a nenhum outro tribunal, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica assente no direito privado).
No caso presente, os pedidos formulados pelo A. fundam-se na ocorrência de um acidente por si sofrido durante a frequência de um curso de formação profissional leccionado pela 1.ª R.
A 1.ª R. é uma sociedade comercial por quotas, constituída nos termos da lei comercial, cujo objecto é, nomeadamente, o ensino secundário tecnológico, artístico e profissional, sendo, por isso, é uma pessoa coletiva de direito privado.
Trata-se de um estabelecimento de ensino e formação, que, no respectivo sítio da internet, se define como tendo «cariz de instituição de natureza privada, prosseguindo fins de interesse público e desenvolvendo as suas atividades culturais, científicas, tecnológicas e pedagógicas sobre a tutela da Secretaria Regional de Educação, Ciência e Tecnologia e certificação do Instituto para a Qualificação, IP-RAM» (cfr. https://iptl.pt/).
A 1.ª R. transferiu para a 2.ª R., através de contrato de seguro, a responsabilidade para si decorrente de acidentes sofridos pelos seus alunos e emergentes de risco profissional no exercício da sua actividade.
A 3.ª R. é uma sociedade comercial por quotas, constituída nos termos da lei comercial, que tem por objecto, nomeadamente, o comércio, a manutenção e reparação de veículos automóveis, motociclos, suas peças e acessórios.
Os 4.º e 5.º RR. são identificados pelo A. como “monitores mecânicos”, sem qualquer alusão à existência de vínculos dos mesmos à 1.ª R. (nomeadamente, enquanto trabalhadores), sendo que na sua contestação (cfr. art. 28.º) os 4.º e 5.º RR. afirmam ser gerentes da 3.ª R.
A 6.ª R. é demandada, apenas, por ser cônjuge do 5.º R.
Importa, pois, saber quais os tribunais competentes para preparar e julgar a presente acção: os tribunais judiciais ou os tribunais administrativos?
Nos termos do art. 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, «Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
Nesta sequência, dispõe o art. 1.º, n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) que «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto».
Trata-se de uma cláusula geral de atribuição de competência, assente no conceito de “relações jurídicas administrativas e fiscais”, que tem sido reconduzido, pela doutrina e pela jurisprudência maioritárias, ao sentido tradicional de relação jurídica de direito administrativo, regulada por normas de Direito Administrativo, que serão aquelas em que «pelo menos um dos sujeitos seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido» (cfr. acórdão da RG de 08.10.2015, in www.dgsi.pt).
No acórdão do Tribunal de Conflitos de 06.12.2012, in www.dgsi.pt, salientou-se que «…essa competência decorrerá do litígio emergir, ou não, de uma relação jurídica administrativa, maxime de um contrato administrativo, e não da mera figura do titular dos direitos ou interesses em jogo já que a Administração pode também celebrar contratos de direito privado. Dito de outra forma, não será apenas a qualidade pessoal de uma das partes – ser, ou não, um ente público - nem o tipo de interesses que ela defende na relação conflitual que será decisivo na determinação do Tribunal competente, visto essa competência decorrer também da natureza das relações que se estabeleceram, da forma que revestiram, dos poderes (de autoridade ou paridade) por ela conferidos e dos fins que elas visaram concretizar».
Conforme se escreveu no acórdão da RL de 15.07.2025, in www.dgsi.pt, «Relação jurídica administrativa é, por regra, aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração, de modo que nela pelo menos um dos sujeitos tem de actuar sob as vestes de autoridade pública, investido de ius imperium, com vista à realização do interesse público. Um dos modos mais frequentes de se estabelecerem relações jurídicas é através de contrato, que será administrativo quando se possa afirmar que através dele é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica de direito administrativo, isto é, aquela que “confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração.” Cf. Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo (vol. III), Lisboa, 1989, pp. 439-440».
Embora o conceito de relação jurídica administrativa seja decisivo para determinar a competência material dos tribunais administrativos, o art. 4.º do ETAF enuncia matérias que, em concreto, são identificadas como sendo da competência dos tribunais administrativos, entre as quais, para o caso, relevam as seguintes:
«1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: (…) d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos; e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes; f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo; g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso; h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público».
Como é consabido, nas sociedades modernas a Administração recorre, crescentemente, à colaboração dos privados para o exercício de tarefas públicas (privatização funcional).
Tal realidade tem colocado complexos problemas, nomeadamente, ao nível da qualificação das relações jurídicas estabelecidas, por se situarem, muitas vezes, na fronteira entre o direito administrativo e o direito privado, bem como da determinação das normas que as devem reger e da jurisdição a que ficam sujeitas em caso de litígio.
Coloca-se, por isso, cada vez mais frequentemente, a questão de saber em que situações deve um litígio entre particulares ser julgado nos tribunais administrativos.
Embora os particulares sejam as pessoas (singulares ou colectivas) cuja actuação ocorre com independência, ao abrigo da autonomia privada, e visando prosseguir essencialmente interesses individuais, não é de excluir que os mesmos prosseguirem interesses da colectividade, exercendo funções ou tarefas públicas e desempenhando uma função administrativa.
Na definição de Sandra Lopes Luís, in A Acção Contra Particulares no Contencioso Administrativo Português, Imprensa FDUL, 2021, p. 103, «funções públicas ou funções administrativas são as actividades através das quais os sujeitos normalmente públicos actuam ao abrigo de normas que lhes concedem especiais poderes e deveres, ou, que, pelo menos, os sujeitam a vinculações específicas decorrentes da necessidade de assegurar a prossecução de interesses públicos e a satisfação das necessidades da comunidade».
Ora, uma das formas de exercício de funções públicas por particulares é a do contrato de concessão ou de associação, através do qual são atribuídas aos particulares tarefas públicas.
E tal pode ocorrer, nomeadamente, ao nível da educação/ensino, como sucede com os contratos previstos no art. 9.º do Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo de nível não superior, aprovado pelo DL n.º 152/2013, de 04.11.
Nesta área, relevam, designadamente, os contratos de associação, que são contratos de colaboração em que se visa assegurar que os privados ministrem o ensino em condições de gratuitidade idênticas ao serviço público, mediante financiamentos públicos.
Nestes casos, sendo os contratos de associação contratos administrativos, não custa reconhecer que a sua execução se traduz no exercício de uma actividade de natureza pública, pelo que os litígios dela emergentes devem ser apreciados pelos tribunais administrativos (cfr., por exemplo, os acórdãos de STA de 11.05.2004, 14.12.2005 e de 03.07.2006, todos em www.dgsi.pt).
Sucede que, tal como já se referiu, a competência material dos tribunais afere-se em função do pedido e da causa de pedir, tal como são configurados na petição inicial, e tendo, ainda, em conta as demais circunstâncias disponíveis que relevem ao tribunal a exacta configuração da causa.
No caso dos autos, desconhece-se, por não ter sido alegado, se a 1.ª R. celebrou com o Estado algum contrato de associação ou cooperação, que a investisse no exercício de tarefas públicas e no desempenho de uma função administrativa.
Aliás, a relação material controvertida, alegada na petição inicial, não convoca a existência de qualquer contrato específico celebrado entre a 1.ª R. e o Estado/Região Autónoma, limitando-se o A. a dizer que a 1.ª R. prossegue uma actividade de “fins de interesse público, e certificada pela Secretaria Regional”.
Conforme nota Sandra Lopes Luís, Ob. Cit., p. 109 e 110, relativamente aos estabelecimentos de ensino superior privado, «embora não se possa considerar que sejam pessoas de utilidade publica, por não lhes ser atribuído o respectivo regime, a verdade é que, dado no regime jurídico das instituições de ensino superior, a Lei n.º 62/2007, de 10 de Setembro, existir um reconhecimento de interesse público face a estes estabelecimentos, que é obrigatório para o sue funcionamento, então parece que eles devem ser entendidos como particulares com funções públicas. E, neste sentido, pensamos também que grande parte das suas actuações, designadamente as que impliquem a prossecução da função administrativa (como sejam os actos de matrícula ou inscrição e os actos de avaliação de conhecimentos e correspondente certificação), devem revestir uma natureza pública da mesma forma que os análogos actos das universidades publicas».
Já no que concerne aos estabelecimentos de ensino privado não superior, a mesma autora refere que «em sentido inverso, já nos parece que os estabelecimentos de ensino privado não superior não se podem considerar, em regra, particulares com funções públicas, desde logo, porque não se exige o reconhecimento de interesse público para o seu funcionamento, sendo apenas uma mera possibilidade nos termos do art. 33.º do Decreto-Lei n.º 152/2013, de 4 de Novembro, existindo apenas uma autorização do Ministério da Educação e Ciência (art. 6.º, alínea c) do mesmo decreto-lei). Para além de que existe uma reduzida intervenção do Estado na sua actividade que se reconduz a poderes de fiscalização (art. 7.º)» (sublinhado nosso).
Ora, no caso sub judice, para além de nada ter sido articulado quanto à eventual celebração de contratos de associação ou cooperação com o Estado, também se ignora, por não ter sido alegado, se houve reconhecimento do interesse público para o funcionamento da 1.ª R., pelo que nada nos permite concluir que se lhe aplique o regime das pessoa colectivas de utilidade pública (cfr. art. 33.º do Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo de nível não superior).
Por conseguinte, embora a 1.ª R. exerça uma das funções também cometida ao Estado, que é a de educação (arts. 73.º e 74.º da CRP), a mesma não pode ser considerada um particular com funções públicas, nem beneficia das prerrogativas das pessoas colectivas de utilidade pública, sendo certo que a educação não é tarefa exclusiva do Estado.
Com efeito, o art. 75.º, n.º 2 do CRP ao dispor que «o Estado reconhece e fiscaliza o ensino particular e cooperativo, nos termos da lei», aceita que a acção levada a cabo por tais estabelecimentos corresponde ao exercício de um poder próprio, que tem o mesmo valor daquele que é atribuído às escolas públicas.
Neste sentido, o acórdão do STJ de 06.05.2010, in www.dgsi.pt, considerou que:
«2 – A actividade desenvolvida pelos estabelecimentos privados de ensino não superior situa-se no âmbito do direito privado: o ensino nas escolas privadas não se traduz no exercício de uma actividade pública delegada, mas antes numa actividade privada concorrente com o ensino público, actuando as escolas privadas no sector privado e no exercício de actividades privadas. 3 – A acção disciplinar exercida pelas escolas do ensino particular relativamente aos seus alunos corresponde a uma prerrogativa contratual da escola, destinada a assegurar a realização da prestação (sinalagmática) a que está vinculada nos termos do negócio celebrado com o aluno ou o seu representante legal, tendo, por isso, natureza privada e não se sujeitando a qualquer regime de direito público. 4 – A competência dos tribunais comuns é residual, estendendo-se a todas as áreas que não sejam atribuídas a outras ordens judiciais; aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, sendo estes os que se referem a uma controvérsia resultante de relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo ou fiscal e nas quais intervém a Administração. 5 – São os tribunais comuns os competentes para conhecer de um litígio em que a autora, invocando a ilicitude de processo disciplinar instaurado ao seu filho, menor, pela direcção do estabelecimento particular pertencente à ré, uma sociedade comercial, pede a condenação desta a eliminar do processo individual do aluno a sanção aplicada e a ressarci-la dos danos patrimoniais e não patrimoniais que alega ter sofrido em consequência de tal conduta ilícita e culposa da ré».
Escreveu-se neste aresto que «(…) o ensino nas escolas privadas não se traduz no exercício de uma actividade pública delegada, mas antes numa actividade privada concorrente com o ensino público. Ou seja, a Constituição portuguesa consagra um modelo de escola privada autorizada e não um modelo de escola pública delegada: o ensino privado é uma actividade livre, embora sujeita a autorização estadual para verificação da sua qualidade e dos interesses públicos inerentes, e não uma actividade própria do Estado concessionada aos privados. Daqui deriva que as escolas privadas actuam no sector privado, no exercício de actividades privadas. O campo de acção delas é a sociedade e são os direitos fundamentais: quer no ensino, quer na concessão de títulos e graus oficiais, as escolas privadas prestam um serviço privado, não actuando em colaboração com o Estado nem constituindo uma espécie de administração indirecta do Estado. As referências legais ao facto de as escolas privadas integrarem a “rede escolar” significam apenas que se trata de escolas integradas no sistema de ensino, que não sobrevivem à margem dele. E se é assim, segue-se que toda a actividade desenvolvida pelas escolas particulares pertence à esfera do direito privado. As suas relações com os alunos e professores, as avaliações e provas que realizam, os diplomas e os certificados que emitem, assumem-se como actos de direito privado, objecto de uma regulação de direito privado, embora possam ter efeitos públicos» (sublinhado nosso. No mesmo sentido, veja-se o acórdão do STA de 29.05.2008, in www.dgsi.pt).
Também o acórdão da RL de 20.11.2014, in www.dgsi.pt, entendeu que «A actividade de ensino exercida nos estabelecimentos de ensino privados, é de natureza privada. A acção destinada a efectivar responsabilidade civil fundada em actos praticados no exercício dessa actividade é da competência material dos tribunais comuns».
A decisão recorrida fundamentou o seu juízo de incompetência, essencialmente, na questão da existência do seguro escolar, afirmando que o pedido «se funda no acionamento do seguro escolar».
Lavrou, contudo, em equívoco.
Na petição inicial (cfr. art. 13.º), o A. afirma que «a 28 de junho de 2022, pelo Autor AA e pela Ré ITPL foi acionado o seguro de acidentes junto da Ré Liberty Seguros S.A. ,apólice n.º 1012535500» e, acrescenta, de forma algo conclusiva, «dado tratar-se de um acidente para os efeitos legais que se considera em meio escolar».
O que se extrai dessa alegação, em termos fácticos, é a existência de um “seguro de acidentes”, celebrado entre a 1.ª R. e a 2.ª R., titulado pela apólice n.º 1012535500, sendo esse seguro que o A. pretende accionar.
Portanto, do pedido e da causa de pedir, resulta que o A. visa efectivar, também, a responsabilidade civil da 2.ª R., em virtude da celebração do referido contrato de seguro.
Através desse contrato de seguro, a 1.ª R. transferiu para a 2.ª R. a responsabilidade para si decorrente de acidentes sofridos pelos seus alunos e emergentes de risco profissional no exercício da sua actividade.
Tal como as referidas RR. salientaram nas suas contestações (e decorre dos documentos nela juntos pela 2.ª R.), o seguro em causa é um seguro de acidentes pessoais, imposto pelo art. 6.º, n.º 4, al. d) da Portaria n.º 74/2015, de 25.03, que estabelece as regras de funcionamento dos projectos de ensino profissional financiados pelo Fundo Social Europeu (FSE).
Ou seja, o seguro que o A. pretende efectivar na acção não corresponde nem se equipara ao “seguro escolar”, a que se refere a decisão recorrida, sendo, obviamente, irrelevante e não vinculativa a denominação ou qualificação jurídica que dele possa fazer o A. na petição inicial (art. 5.º, n.º 3 do CPC), não estando o tribunal obrigado a enquadrar a situação fáctica descrita no âmbito do “seguro escolar”.
O denominado “seguro escolar”, referido no art. 41.º do DL n.º 55/2009, de 02.03. (que revogou o art. 17.º do DL n.º 35/90, de 25.01, mencionado, certamente por lapso, na decisão recorrida) e na Portaria n.º 413/99, de 08.06., constitui uma protecção de cariz social dada a todos os alunos que frequentem os ciclos de estudo da escolaridade obrigatória, sendo extensível aos alunos do ensino particular e cooperativo, em regime de contrato de associação, que garante a cobertura dos danos que decorram dos eventos ocorridos no local e tempo de actividade escolar ou actividade desenvolvida com conhecimento e sob a responsabilidade da Escola (acidente escolar).
Esse “seguro escolar” não tem uma apólice, nem está associado a uma seguradora, sendo um apoio financeiro gerido pelo Ministério de Educação, na qualidade de representante do Estado, complementar aos apoios disponibilizados pelo Sistema Nacional de saúde.
Se a pretensão do A. fosse a de accionar essa protecção, teria, certamente, demandado o Estado/Região Autónoma ou o Ministério da Educação/Secretaria Regional de Educação e não uma seguradora privada, completamente alheia à referida protecção social.
Enfim, embora a situação descrita pelo A. seja, com efeito, a de um “acidente escolar” (tal como ele a qualifica), decorre da petição inicial no seu conjunto que o A. pretende accionar o seguro de acidentes pessoais celebrado pelo estabelecimento de ensino que frequentava e não o “seguro escolar”, daí que considere que «as Rés são civilmente responsáveis, chamando-as na presente, a fim da assunção das suas responsabilidades» (art. 41.º da p.i.).
A tanto não obsta o facto de o A. proceder ao cálculo das indemnizações que pretende à luz dos critérios e com as limitações impostas pela Portaria n.º 413/99, de 08.06., pois que, mais uma vez, estamos perante um mero entendimento quanto à aplicação e interpretação das regras de direito, que não vincula o juiz.
De resto, o acórdão da RC de 02.03.2010, citado na decisão recorrida (que entendeu que «os casos de acidentes escolares, tanto no quadro da cobertura específica propiciada pelo chamado “seguro escolar”, referido no artº 17º do Dec. Lei nº 35/90, de 25/01 (diploma que, entretanto, foi substituído pelo Dec. Lei nº 55/2009, de 2/03), como num quadro que vise uma cobertura mais ampla, fundada na responsabilidade civil extracontratual, a competência material tem sido referida pelos nossos tribunais superiores, invariavelmente, à jurisdição administrativa»), trata de situação diversa da que nos ocupa. Nele estava em causa a competência dos tribunais judiciais para, por extensão, apreciar um pedido subsidiário contra o Estado Português respeitante a uma possível caracterização do evento danoso como “acidente escolar”, associado à cobertura deste pelo “seguro escolar”, sendo que o referido acórdão apenas considerou ser o tribunal judicial incompetente para conhecer desse pedido subsidiário e absolveu o R. Estado Português da instância, tendo a acção prosseguido, nos tribunais judiciais, contra os demais RR. (o estabelecimento de ensino e a Seguradora).
Considerou, ainda, a decisão recorrida que a situação dos autos integra as als. f) e h) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF.
Mais uma vez, não acompanhamos este entendimento.
Em primeiro lugar, e desde logo, porque o A. não pretende efectivar a responsabilidade civil extracontratual, fundando os pedidos que formula na relação (contratual) que mantinha com a 1.ª R., ao abrigo a qual aquela se obrigou a ministrar-lhe um curso (ainda que a correspondente retribuição pudesse ser paga através de apoios da Secretaria Regional de Educação da Região Autónoma da Madeira, o que não foi alegado e se desconhece), sendo os 3.º a 5.º RR. meros auxiliares por ela contratados para o cumprimento dessa obrigação (cfr. art. 800.º do CC).
Em segundo lugar, porque, como se viu, a 1.ª R. não é uma pessoa colectiva de direito público, nem lhe é aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Com efeito, nos termos do art. 1.º, n.º 5 do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31.12., as disposições do mesmo são aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, mas, apenas, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.
Ora, no caso dos autos, a 1.ª R., ainda que se entendesse que exerce funções públicas (o que, como concluímos, não é o caso), não actuou no exercício de prerrogativas de autoridade, nem a sua actuação estava sujeita à aplicação de normas e princípios de direito administrativo.
Concluímos, pois, que os tribunais judiciais, nomeadamente, o Juízo Central Cível do Funchal, são, materialmente, competentes para preparar e julgar a presente acção.
Em consequência, impõe-se revogar a decisão sob recurso.
As custas do recurso são da responsabilidade dos recorridos, atento o seu decaimento (art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
V – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, declarando-se os tribunais judiciais, nomeadamente, o Juízo Central Cível do Funchal, materialmente competentes para preparar e julgar a presente acção.
Custas pelos apelados.
Notifique.
*
Lisboa, 25.09.2025
O Juiz Desembargador,
Rui Oliveira
Fátima Viegas
Cristina Lourenço