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EXECUÇÃO DE SENTENÇA
ENTREGA DE IMÓVEL
ART.º 864º DO NCPC
NORMA EXCEPCIONAL
DEFERIMENTO DA DESOCUPAÇÃO
CASA DE HABITAÇÃO
DETENTOR PRECÁRIO
DIREITO À HABITAÇÃO
Sumário
Sumário: (Da responsabilidade da Relatora, nos termos do artº 663º, nº 7 do NCPC) I - O art.º 864º do NCPC, apresentando-se como norma excepcional, não é susceptível de aplicação analógica a outros contratos distintos do arrendamento (art.º 11 do CC) e bem assim, por maioria de razão, à execução fundada em sentença que decretou a entrega do imóvel ao Exequente, na sequência de acção declarativa de reivindicação. II – Na medida em que o diferimento de desocupação previsto nos artºs 864º e 865º do NCPC constitui um meio de tutela excepcional, estando reservado aos casos neles previstos, ou seja, de execução para entrega de casa de habitação arrendada, é inviável o recurso a interpretação extensiva daquele, na medida em que o legislador distinguiu cabal e expressamente as situações de arrendamento e todas as outras situações em geral em que se pretende a entrega de imóveis que constituam habitação do executado. III - Não detendo a qualidade de arrendatário ou insolvente, a quem o legislador entendeu conferir, de forma exclusiva e nos estreitos termos definidos pelas als. a) e b) do nº 2 do art.º 864º, a tutela legal, não é de reconhecer essa mesma tutela legal com o direito ao diferimento da desocupação aos meros detentores do imóvel condenados à sua restituição por sentença transitada em julgado, ainda que relativamente a eles se verifiquem “razões sociais imperiosas” e cumpram algum dos critérios previstos nas referidas alíneas. IV – A restrição do direito de propriedade em que se traduz este instituto só pode ocorrer nos casos expressamente previstos na lei e no caso de se mostrarem reunidos os requisitos legais, não sendo possível a sua aplicação quer por analogia quer por interpretação extensiva, a outras situações que não sejam as expressamente previstas.
Texto Integral
Acordam na 8ª Secção (cível) do Tribunal da Relação de Lisboa [1],
Relatório[2]:
Nos autos de execução de sentença com o nº 1795/25.4T8(…), que AA, BB, CC e DD movem contra EE e FF, a ora recorrente EE requereu [3] o diferimento da desocupação do imóvel na petição inicial de embargos de executado.
Alegou ali a recorrente que: “Caso, se venha a entender que não existem fundamentos para deferir pedido de suspensão da execução, subsidiariamente, impõe-se requer e ordenar o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, nos termos previstos no artigo 864.º do CPC, por aplicação analógica e/ou extensiva. Para este efeito a executado reproduz o alegado nos pontos 76 a 79, 82 a 84 (Acresce que no prédio urbano em questão, habitam e residem 4 idosos doentes e totalmente dependentes de terceiros, sendo que 1 vive com a embargante em economia comum, ou seja, em comunhão de mesa e habitação há mais de 14 anos, tendo estabelecido uma vivência em comum de entreajuda ou partilha de recursos, e 3, em regime de acolhimento familiar (Decreto-Lei n.º 391/91, de 10 de Outubro, com elevados graus de incapacidade e dependência de terceiros, totalmente dependentes dos cuidados da embargante, que lhes presta assistência diária para comer, tomar banho, deitar-se, levantar-se, vestir-se, mudar de roupa, tomar medicação... Na verdade, o ex-casal, com o conhecimento da falecida GG e dos exequentes e sem a sua oposição, como forma de subsistência e sustento, passam a acolher idosos na sua casa para lhes prestarem cuidados e assistência a tempo inteiro, 24/dia e 8 dias/semana. A executada continua actualmente a cuidar e a prestar assistência a idosos (Vide doc. 17- Fotos). É inquestionável que o despejo dos idosos que habitam na moradia põe em causa a sua integridade física, a sua saúde e a sua própria vida, podendo provocar-lhes a morte (Vide doc. 18 – Relatório Médico da idosa V.). A acrescer que a executada não tem condições, nem meios financeiros para proceder ao seu realojamento e em especial ao realojamento dos idosos. Na verdade, alguns dos idosos não têm familiares e outros, os familiares não têm condições de os realojar e prestar cuidados e assistência. É do conhecimento público a crise que se vive na RAM, no que respeita à carência de estabelecimentos de lar de idosos e as altas problemáticas e as enormes dificuldades que se vive actualmente para encontrar estabelecimentos com lugares vagos para internamento de idosos com elevados graus de incapacidade e de dependência de cuidados diários. É manifesto que se encontra devidamente justificado o diferimento da desocupação por razões sociais imperiosas. Ao já supra alegado importa mencionar que os idosos não têm rendimentos (reformas e pensões) que lhes permitam de imediato ingressar num lar privado. Por sua vez, a executada, em face ao actual contexto de grande procura e aumento exponencial das rendas, não tem condições de, no imediato, encontrar um locado adequado para se mudar com os idosos que consigo habitam e residem. Mais, atendendo às condições físicas e de saúde dos idosos, é manifesto que as mesmas limitam e restringem drástica e dramaticamente as suas opções de realojamento. Sendo certo que no caso em apreço será necessário recorrer aos serviços da Segurança Social e de acção social. A segurança Social, e do conhecimento púbico tem listas de espera e não tem capacidade para de imediato realojar ou receber os idosos. Dispõe o nº 2 do artº 864º que o diferimento da desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstâncias de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habita com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde, em, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas (…) Num quadro de estrema crise no sector da habitação, não subsistem dúvidas que por razões de dignidade e protecção das pessoas que habitam e residem no prédio urbano, justificasse plenamente deferir o diferimento da desocupação.”
Na sequência desse requerimento, a Primeira Instância proferiu em 16.06.2025, o seguinte despacho: “I (ref. 57356211) A executada “EE” requereu, nos termos conjugados dos artigos 861.º n.º 6 e 863.º n.º 5 do CPC, a suspensão da entrega do imóvel em causa nos autos. Alegou, em síntese, residirem no imóvel, além de si, quatro idosos doentes e totalmente dependentes dos seus cuidados e que a diligência de entrega põe em perigo a vida destes. Apreciando. O artigo 861.º n.º 6 do CPC consagra: «Tratando-se de casa de habitação principal do executado, é aplicável o disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo 863.º e, caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais.» Por seu turno, o artigo 863.º n.ºs 3 a 5 do CPC dispõe o seguinte: «3. Tratando-se de arrendamento para habitação, o agente de execução suspende as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco a vida pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda. 4. Nos casos referidos nos n.ºs 2 e 3, o agente de execução lavra certidão das ocorrências, junta os documentos exibidos e adverte o detentor, ou a pessoa que se encontra no local, de que a execução prossegue, salvo se, no prazo de 10 dias, solicitar ao juiz a confirmação da suspensão, juntando ao requerimento os documentos disponíveis, dando do facto imediato conhecimento ao exequente ou ao seu representante. 5. No prazo de cinco dias, o juiz de execução, ouvido o exequente, decide manter a execução suspensa ou ordena o levantamento da suspensão e a imediata prossecução dos autos.» A propósito do n.º 6 do artigo 861.º do CPC, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, p. 294-5) ensinam: «Se o imóvel a entregar constituir a casa de habitação principal do executado, pode ocorrer a suspensão das diligências executivas, verificados os requisitos enunciados no n.º 3 do art. 863.º. Suscitando-se sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução, antecipadamente e em tempo útil, deve comunicar o facto à Câmara Municipal e às entidades assistenciais competentes (n.º 6). A jurisprudência vem decidindo que a comunicação em causa não determina a suspensão das diligências executivas para entrega do imóvel, entendendo que, nada data designada a diligência se executará, no pressuposto de que as entidades notificadas tiveram oportunidade para analisar a situação e providenciar pela solução do problema do alojamento do executado. Mesmo que tal não tenha ocorrido, a execução da entrega de imóvel não se suspende, uma vez que a leio não o afirma, ao contrário do caso previsto no n.º 3 do art. 863.º, sendo que o legislador terá ponderado que não seria justo onerar o exequente com a inércia ou a incapacidade dos organismos oficiais, cometendo-lhe uma tutela de facto que legalmente não lhe caberia, com a inerente e injustificada compressão dos seus direitos […]. Tendo o legislador estabelecido um regime distinto consoante o imóvel a entregar seja arrendado (art. 864.º) ou não arrendado (861.º, n.º 6), não há qualquer lacuna na lei que permita uma interpretação analógica no sentido de o regime previsto para os imóveis arrendados (864.º) se aplicar também aos não arrendados […]». Quanto ao disposto no artigo 863.º n.º 3 do CPC, os referidos autores (ob. cit., p. 296-7) sustentam: «Os n.ºs 2 e 3 regulam um incidente declarativo de suspensão precária da execução, que comporta duas fases: suspensão liminar, pelo agente de execução, e uma fase de apreciação judicial, para confirmação, ou não, da suspensão. […] Sendo deduzida oposição à entrega com o fundamento de que o imóvel constitui a habitação de quem se encontra no local, o agente de execução deve suspender as diligências para desocupação até decisão judicial, se ocorrerem os seguintes requisitos cumulativos: apresentação de atestado médico; indicação fundada do prazo durante o qual se deve suspender a execução; indicação de que a imediata desocupação põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local; constatação de que o risco de vida seja decorrente de doença aguda (entendida como doença súbita e inesperada, realidade diversa de doença crónica: RL 12- 6-08,4457/2008); solicitação por parte do ocupante do imóvel, ao juiz, da confirmação da suspensão, juntando os documentos disponíveis no prazo de 10 dias após a suspensão precária das diligências determinada pelo agente de execução […].» Como decorre deste enquadramento, a decisão de suspensão da entrega é da competência do agente de execução, seguindo-se um incidente com vista à confirmação judicial, precedido de contraditório. Pelo exposto, convolo o requerimento identificado em epígrafe (artigos 75.º a 85.º) em requerimento dirigido à Sr.ª AE (artigos 719.º, 861.º n.º 6 e 863.º n.º 3 do CPC), que deverá analisar o pedido de suspensão tendo em conta os requisitos cumulativos enunciados nos artigos 861.º n.º 6 e 863.º n.º 3 do CPC. Consigno que a decisão do Sr. AE deverá ser devidamente justificada por escrito, nos termos do artigo 863.º n.º 4 do CPC. Caso seja suspensa a entrega pela Sr.ª AE, seguir-se-á apreciação judicial prevista no artigo 863.º n.º 5 do CPC. Notifique. II A executada “EE” requereu subsidiariamente, nos termos do artigo 864.º do CPC, o diferimento da desocupação do imóvel, pelo prazo de 5 (cinco) meses. A sentença exequenda, proferida em 02/10/2024 no processo n.º 1791/22.3T8(…), que correu termos no Juízo Central Cível (…) (Juiz 2), apresenta o seguinte dispositivo: «[J]ulga-se a acção totalmente procedente, por provada e consequentemente, condenam-se os réus: a) a reconhecerem que a autora é cabeça-de-casal das heranças abertas por óbito de HH e de GG; b) a reconhecerem que o prédio urbano situado na Rua (…), freguesia do (…), concelho do (…), inscrito na matriz sob o artigo (…)4, e descrito na Conservatória do Registo Predial do (…) sob o nº (…)7 e a metade do prédio rústico situado na Rua (…), e Rua (…), da mesma freguesia, inscrito na matriz cadastral sob parte dos artigos 2(…) e 2(…) da secção G, e descrito na mencionada conservatória sob o nº (…)4, pertencem àquelas heranças; c) a entregarem-lhe o prédio urbano e a parte que ocupam do prédio rústico, livres de pessoas e de coisas [sic].» Apreciando. O artigo 864.º do CPC dispõe: «1. No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo da oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três. 2. O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância do arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que o habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos: a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção; b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%. 3. No caso de diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste.» Este mecanismo legal visa salvaguardar razões sociais imperiosas, mas só pode ser concedido quando se verifique, em concreto, uma das circunstâncias previstas nas alíneas a) e b) do n.º 2, «que operam como presunções legais da verificação de razões sociais imperiosas», na expressão de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa. No caso vertente, perante o teor da sentença, facilmente se verifica que não está em causa a entrega de imóvel arrendado para habitação, não beneficiando a executada da prerrogativa consagrada no artigo 864.º do CPC. Impõe-se, por isso, indeferir liminarmente a petição de diferimento da desocupação [artigo 865.º n.º 1 b) do CPC]. Pelo exposto, indefiro liminarmente a petição de diferimento da desocupação apresentada nos termos do artigo 864.º do CPC (artigos 86.º a 97.º do articulado). Custas do incidente a cargo da executada/requerente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal (artigo 7.º n.º 4 e tabela II do RCP). Notifique.”
Inconformada, a Executada “EE” interpôs o presente recurso [4], pugnando pela revogação da decisão que indeferiu liminarmente a petição de diferimento da desocupação.
As conclusões das alegações de recurso são as seguintes:
“1. O presente recurso tem por objecto a decisão de indeferimento liminar da petição de deferimento da desocupação apresentada nos termos do artigo 864.º do CPC pela executada/recorrente, nos pontos 86 a 97, com remissão para os pontos 76 a 79 e 82 a 84 do articulado de embargos de executado. 2. O presente recurso visa colocar em crise matéria de facto (não considerada por omissão) e matéria de direito. 3. O Tribunal a quo fundamentou a decisão de indeferimento liminar da petição de deferimento da desocupação de modo precoce, simplista e altamente restritivo, por entender que da sentença que constitui o título executivo, resulta que não está em causa a entrega de imóvel arrendado para habitação e que o deferimento só pode ter lugar nos casos previstos nas als. a) e b) do n.º 2 do art. 864.º do CPC. Sem razão, vejamos: 4. O Tribunal a quo não apreciou, nem considerou todos os factos alegados e provados, mais concretamente: (i) 2.1.7.- Há cerca de dez anos, a “GG”, como cabeça-de-casal da herança do seu marido, permitiu que o R. “FF”, que em consequência de divórcio ficara sem casa onde morar, residisse a título provisório no prédio urbano acima identificado em 2.1.5. (ii) 2.1.8.- Entretanto o R. casou com a R. “EE”, no regime da comunhão de adquiridos, a qual passou a residir aí com ele no imóvel acima referido. (iii) 2.1.13.- Entretanto os R.R. estão em processo de divórcio, permanecendo na ocupação dos prédios identificados pelo menos a R. “EE”. (iv) 2.1.15.- Contudo a R. não o fez e nada respondeu, e vem usando o prédio urbano para hospedagem de terceiros, em proveito próprio. (Factos julgados provados pela sentença que serve de título executivo, junta a fls (..) dos autos de execução). (v) O casamento foi dissolvido por divórcio, por sentença proferida a 22.09.2022 e transitada em julgado a 24.10.2023 (Vide doc. 9 – Cópia da acta da audiência dejulgamento e doc. 10 – Cópia da certidão de nascimento, juntos com a petição de embargos de executado, juntos com a petição de embargos de executado a fls (…) dos autos de embargos de executado). (vi) O imóvel objecto da execução para entrega de coisa certa constituía a casa de morada de família do casal composto pelos executados “EE” e “FF” (Vide doc. 9 supra); (vii) Na sequência da conversão do divórcio litigioso em divórcio por mútuo consentimento, foi acordado entre os cônjuges quanto à utilização da casa de morada de família o seguinte: “A casa de morada de família fica atribuída à cônjuge mulher até ao momento da partilha ou venda” (Vide doc. 9, junto com a petição de embargos a fls (….) dos autos). (viii) Este acordo foi homologado por douta sentença proferida a 22.09.2022, já transitada em julgado, no âmbito do processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge n.º 90/22.5(…), que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca (…), Juízo de Família e Menores (…) – Juiz 2 (Vide doc. 9). (ix) Acresce que no prédio urbano em questão, habitam e residem 4 idosos doentes e totalmente dependentes de terceiros, sendo que 1 vive com a embargante em economia comum, ou seja, em comunhão de mesa e habitação há mais de 14 anos, tendo estabelecido uma vivência em comum de entreajuda ou partilha de recursos, e 3, em regime de acolhimento familiar (Decreto-Lei n.º 391/91, de 10 de Outubro, com elevados graus de incapacidade e dependência de terceiros, totalmente dependentes dos cuidados da embargante, que lhes presta assistência diária para comer, tomar banho, deitar-se, levantar-se, vestir-se, mudar de roupa, tomar medicação... (Vide doc. 17 juntos com a petição de embargos de executado, a fols (…) dos autos). (x) O ex-casal, com o conhecimento da falecida “GG”, mãe dos exequentes e sem a sua oposição, como forma de subsistência e sustento, passam a acolher idosos na sua casa para lhes prestarem cuidados e assistência a tempo inteiro, 24/dia e 8 dias/semana. (xi) A executada continua actualmente a cuidar e a prestar assistência a idosos (Vide doc. 17 supra). (xii) O despejo dos idosos que habitam na moradia põe em causa a sua integridade física, a sua saúde e a sua própria vida, podendo provocar-lhes a morte (Vide doc. 18 - Relatório Médico da idosa V., junto com a petição de embargos de executado). (xiii) A acresce que a executada não tem condições, nem meios financeiros para proceder ao seu realojamento e em especial ao realojamento dos idosos. (xiv) Na verdade, alguns dos idosos não têm familiares e outros, os familiares não têm condições de os realojar e prestar cuidados e assistência. (xv) É do conhecimento público a crise que se vive na RAM, no que respeita à carência de estabelecimentos de lar de idosos e as altas problemáticas e as enormes dificuldades que se vive actualmente para encontrar estabelecimentos com lugares vagos para internamento de idosos com elevados graus de incapacidade e de dependência de cuidados diários. (xvi) Os idosos não têm rendimentos (reformas e pensões) que lhes permitam de imediato ingressar num lar privado. (xvii) Por sua vez, a executada, em face ao actual contexto de grande procura e aumento exponencial das rendas, não tem condições de, no imediato, encontrar um locado adequado para se mudar com os idosos que consigo habitam e residem. (xviii) Mais, atendendo às condições físicas e de saúde dos idosos, é manifesto que as mesmas limitam e restringem drástica e dramaticamente as suas opções de realojamento. (xix) Sendo certo que no caso em apreço será necessário recorrer aos serviços da Segurança Social e de acção social. (xx) A segurança Social, e do conhecimento púbico tem listas de espera e não tem capacidade para de imediato realojar ou receber os idosos. 5. Está em causa a entrega do imóvel que corresponde à casa de morada de família do ex-casal, composto pelos executados, cuja utilização foi atribuída à recorrente até à sua partilha ou venda, por sentença judicial transitada em julgado, na qual habitam, para além, da recorrente, 4 idosos doentes e totalmente dependentes de terceiros (da executada) e com graus de incapacidades superiores a 60 %, sendo que 1 vive em economia comum com a executada e 3 lá residem ao abrigo do regime de acolhimento familiar (Decreto Lei n.º 391/91, de 10 de Outubro). 6. É manifesto que se impõe garantir e assegurar o realojamento, quer da executada, quer dos idosos, por razões (sociais imperiosas) de saúde e protecção da respectiva integralidade física e psíquica. 7. A norma do artigo 864.º não reveste natureza excepcional mas especial (neste sentido vide Ac. do TRL, de 19.12.2029, Proc. n.º2068/19.7T8FNC-A.L1-2, consultável in www.dgsi.pt.: “II - Trata-se de norma especial e não de norma excepcional, pelo que não estava vedada a sua aplicação por analogia, numa situação em que se provou que no prédio se encontram a residir 17 pessoas idosas, sem alojamento, não tendo a Segurança Social, contactada para o efeito, capacidade para os acolher.” ) 8. A ratio legis da norma consiste na protecção do direito constitucional à habitação, enquanto direito fundamental associado à dignidade das pessoas. 9. As razões sociais imperiosas subjacentes ao diferimento da desocupação, atenta a factualidade e circunstâncias do caso sub judice, são ainda mais fortes e justificativas, do que nos simples casos de imóvel arrendado para habitação. 10. É irrefutável que estando em causa o uso e gozo temporário de um imóvel com base no regime da protecção do direito à casa de morada de família, afecto ao acolhimento de idosos doentes, incapacitados e totalmente dependentes de cuidados, impõe-se concluir que estamos perante uma lacuna da lei que deve ser preenchida com a norma aplicável ao caso análogo, por ser manifesto que no caso omisso procedem as razões justificativas da regulamentação do caso previsto pela lei (Art. 10.º do CC). 11. Caso assim não venha este Venerando Tribunal a entender e se venha a considerar estar em causa uma norma excepcional, o que só por cautela e dever de patrocínio se concebe, impõe-se obter o mesmo resultado e finalidade com recurso à interpretação extensiva, por, tendo em conta a ratio legis da norma a que corresponde o artigo 864.º, se justificar incluir no seu âmbito, a utilização temporária da casa de morada de família e a sua afectação ao acolhimento de idosos doentes, dependentes e com graus de incapacidade superior a 60%. 12. Por fim, urge alegar que se porventura este Venerando Tribunal entender que a factualidade alegada e provado não é suficiente para a boa apreciação da petição de diferimento da desocupação, deve, então, ser determinado que o processo baixe ao Tribunal de primeira instância para prosseguir os seus normais termos, designadamente notificação dos exequentes e produção de prova e prolação de nova decisão. H) Nomas jurídicas violadas: - Artigo 864.º do CPC; - Artigos 10.º e 9.º do CC.”
* Questões a Decidir
São as Conclusões da Recorrente que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de actuação do Tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na Petição Inicial, como refere, Abrantes Geraldes [5]), sendo certo que, tal limitação, já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.
Com efeito, o objecto do recurso é delimitado e definido pelas questões suscitadas nas conclusões do recorrente, (artºs 5º, 635º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3 do NCPC) sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do NCPC. No caso, é uma única e jurídica a questão a decidir: a da admissibilidade de aplicação do diferimento da desocupação de imóvel à desocupação emergente da sentença que condena os detentores de um imóvel (comodato) a procederem à sua restituição. In casu, e na decorrência das Conclusões da Recorrente, importará verificar: Se a norma do artigo 864.º reveste natureza excepcional ou especial, admitindo, no segundo caso, que não está vedada a sua aplicação por analogia.
Com efeito, nos presentes autos o Tribunal “a quo” não decidiu do mérito da questão apresentada, mas antes proferiu despacho de indeferimento liminar, por considerar que a pretensão da ora recorrente não se enquadrava no disposto no artº 864º do NCPC.
*
Cumpre decidir. Fundamentação:
Temos a considerar a factualidade já supra referida e ainda, em concreto, que:
Foi dada à execução uma sentença datada de 02.10.2024, transitada em julgado, proferida na acção de processo comum que, com o nº 1791/22.3(…), correu termos no Tribunal Judicial da Comarca (…), Juízo Central Cível (…), Juiz 2.
Nesse processo, a ali Autora e aqui co-Exequente, “AA”, na qualidade de cabeça de casal das heranças indivisas de “HH” e de “GG”, peticiona que sejam os Réus (aqui Executados) condenados a :
a) Reconhecer que a Autora é cabeça de casal das heranças abertas por óbito de “HH” e de “GG”;
b) Reconhecer que o prédio urbano e a metade do prédio rústico identificados nos artºs 6º e 7º da petição inicial pertencem a essas heranças;
c) Entregarem-lhe o prédio urbano e a parte que ocupam do prédio rústico, livres de pessoas e de coisas. Naquele processo, resultaram provados os seguintes factos:
2.1.1.- No dia 9 de Junho de 2003 faleceu, na freguesia do Monte, concelho do Funchal, “HH”, sem testamento, e no estado de casado, na comunhão geral de bens, com “GG”, tendo deixado como únicos herdeiros, para além desta sua esposa, quatro filhos: a A. “AA”, “BB”, “DD”, e o Réu “FF”.
2.1.2.- Por sua vez, a “GG” faleceu a 26 de Setembro de 2020, na dita freguesia do Monte, com testamento, e no estado de viúva, deixando como únicos herdeiros os mesmos quatro filhos: a A. “AA”, “BB”, “DD”, e o Réu “FF”.
2.1.3.- Os falecidos deixaram bens, que ainda não foram partilhados, pelo que as heranças permanecem indivisas.
2.1.4.- A A. é a actual cabeça-de-casal dessas heranças.
2.1.5.- Das heranças acima referidas faz parte o prédio urbano, destinado a habitação, composto por casa de dois pavimentos e logradouro, situado na Rua (…), freguesia do (…), concelho do Funchal, com a área de 202,45m2, inscrito na matriz sob o artigo (…)4, e descrito na Conservatória do Registo Predial do (…) sob o nº (…)7, onde está registado ainda a favor da “GG” e dos seus quatro filhos, em comum e sem determinação de parte ou direito, pela Ap. 1273 de 2012/07/10.
2.1.6.- Bem como metade do prédio rústico situado na Rua (…), e Rua (…), da mesma freguesia do (…), composto por terreno inculto, com a área de 2.680m2, inscrito na matriz cadastral sob parte dos artigos (…)2 e (…)3 da secção G, e descrito na mencionada conservatória sob o nº (…)4, onde está registado a favor dos mesmos titulares, em comum e sem determinação de parte ou direito, pela mesma Ap. 1273 de 2012/07/10.
2.1.7.- Há cerca de dez anos, a “GG”, como cabeça-de-casal da herança do seu marido, permitiu que o Réu “FF”, que em consequência de divórcio ficara sem casa onde morar, residisse a título provisório no prédio urbano acima identificado em 2.1.5.
2.1.8.- Entretanto o R. casou com a R. “EE”, no regime da comunhão de adquiridos, a qual passou a residir aí com ele no imóvel acima referido.
2.1.9.- Os R.R. começaram a usar também a parte do prédio rústico identificado em 2.1.5. confinante com o prédio urbano para sul, para estacionarem as suas viaturas.
2.1.10.- Os RR. passaram a ocupar aqueles prédios gratuitamente e por mera tolerância da então cabeça-de-casal “GG”;
2.1.11.- Porém, falecida a “GG”, os restantes herdeiros, ou seja, a A. e os seus irmãos “BB” e “DD”, querem proceder à partilha das heranças.
2.1.12.- Ou então vender o prédio urbano e a metade das heranças no prédio rústico, para partilharem o respectivo produto.
2.1.13.- Entretanto os R.R. estão em processo de divórcio, permanecendo na ocupação dos prédios identificados pelo menos a R. “EE”.
2.1.14.- Por carta registada e com aviso de recepção expedida no dia 27 e recebida no dia 31 de Janeiro de 2022, a A., invocando a sua qualidade de cabeça-de-casal das heranças, interpelou a R. para entregar-lhe as chaves das portas de entrada dos dois prédios e da casa do urbano, no prazo de 15 dias.
2.1.15.- Contudo a R. não o fez e nada respondeu, e vem usando o prédio urbano para hospedagem de terceiros, em proveito próprio.
2.1.16.- Os réus fizeram algumas obras de melhoramento no prédio acima identificado em 2.1.5., não se apurando em concreto a natureza das mesmas.
Na fundamentação da referida sentença, o Juízo Central Cível (…) escreveu: “(…) Nos termos do disposto no artigo 1311º, nº 1, do C.Civil, “o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence”. Ficou provado que as heranças de “HH” e “GG”, representada pela autora e pelo demais herdeiros intervenientes nestes autos, são donas e legítimas proprietárias do prédio urbano situado na Rua (…), freguesia do (…), concelho do (…), com a área de 202,45m2, inscrito na matriz sob o artigo (…)4, e descrito na Conservatória do Registo Predial do (…) sob o nº (…)7 e da metade do prédio rústico situado na Rua (…), e Rua (…), da mesma freguesia, inscrito na matriz cadastral sob parte dos artigos (…)2 e (…)3 da secção G, e descrito na mencionada conservatória sob o nº (…)4 (vd. 2.1.5. e 2.1.6). Na verdade, aqueles imóveis estão inscritos no registo predial como sendo propriedade daquelas heranças. Deste modo, as referidas heranças indivisas de “HH” e “GG”, sempre beneficiariam da presunção da titularidade do direito inscrito, uma vez que o artigo 7º do Código de Registo Predial consagra a presunção de que o direito existe na esfera do titular inscrito, sendo certo que a ré não contestou o direito de propriedade daquelas heranças. Ora, os réus só podiam evitar a restituição daqueles imóveis se conseguissem provar que estes lhe pertenciam por qualquer título legítimo, ou que tinham sobre a coisa qualquer outro direito real ou que detinham a coisa, por virtude de direito pessoal bastante. No entanto, os réus não lograram demonstrar ter qualquer título que lhes permita ocupar os imóveis acima referidos. Deste modo, não tendo os réus qualquer título que legitime a ocupação dos imóveis pertencentes às heranças de que a autora é cabeça de casal, terá de proceder o pedido, condenando-se os réus a entregar à autora aqueles prédios livres e devolutos de pessoas e bens.(…)” (negrito e sublinhado nossos)
Consta da parte decisória da sentença que ora se executa, o seguinte: “(…) Em face da argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, julga-se a acção totalmente procedente, por provada e consequentemente, condenam-se os réus: a) a reconhecerem que a autora é cabeça-de-casal das heranças abertas por óbito de “HH” e de “GG”; b) a reconhecerem que o prédio urbano situado na (…), freguesia do (…), concelho (…), inscrito na matriz sob o artigo (…)4, e descrito na Conservatória do Registo Predial do (…) sob o nº (…)7 e a metade do prédio rústico situado na Rua (…), e Rua (…), da mesma freguesia, inscrito na matriz cadastral sob parte dos artigos (…)2 e (…)3 da secção G, e descrito na mencionada conservatória sob o nº (…)4, pertencem àquelas heranças; c) a entregarem-lhe o prédio urbano e a parte que ocupam do prédio rústico, livres de pessoas e de coisas. (…)”
Compulsados os autos e face ao teor da sentença dada à execução, analisemos o Direito aplicável.
Nos termos do art. 864.ºdo NCPC (que tem por epígrafe «diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação»): «1 - No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três. 2 - O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos: a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção; b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %. 3 - No caso de diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste».
E, estabelece o art. 865.ºdo Código de Processo Civil (que tem por epígrafe «termos do diferimento da desocupação»: «1 - A petição de diferimento da desocupação assume carácter de urgência e é indeferida liminarmente quando: a) Tiver sido deduzida fora do prazo; b) O fundamento não se ajustar a algum dos referidos no artigo anterior; c) For manifestamente improcedente. 2 - Se a petição for recebida, o exequente é notificado para contestar, dentro do prazo de 10 dias, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três. 3 - O juiz deve decidir do pedido de diferimento da desocupação por razões sociais no prazo máximo de 20 dias a contar da sua apresentação, sendo, no caso previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo anterior, a decisão oficiosamente comunicada, com a sua fundamentação, ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social. 4 - O diferimento não pode exceder o prazo de cinco meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder».
Decorre dos preceitos transcritos que o diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação está previsto como forma de suspensão da execução para entrega de coisa certa quando o objecto da mesma seja – como decorre da denominação da figura – um imóvel arrendado para habitação.
Os arts. 863.º a 865.º do NCPC, para além de regras de procedimento, contêm os requisitos substantivos para a procedência do diferimento da desocupação, fazendo apelo ao conceito de «necessidade social imperiosa» (art. 864.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), para cujo preenchimento devem ser tidas em consideração «as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas» (art. 864.º, n.º 2 do NCPC).
Todavia, como decorre do art. 864.º, n.º 2 do Código de Processo Civil e é destacado pela Jurisprudência, «depois do apelo a estes conceitos gerais que o legislador manda considerar de acordo com o “prudente arbítrio do tribunal”, impõe, ainda, que tal pretensão só seja concedida se se verificar algum dos fundamentos previstos nas duas alíneas do número 2 do artigo 864º» (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08.04.2024, processo n.º 22142/23.4T8PRT.P1,); «a invocação das referidas “razões sociais imperiosas” não vale, só por si, para obter a tutela legal, que pressupõe a verificação de pelo menos um dos fundamentos condicionantes taxativamente previstos nas als. a) e b) do preceito. Com efeito, o juiz só será chamado a apreciar as primeiras, no uso do poder discricionário que a lei lhe concede (cf. n.º 4, in fine do artigo 152.º do CPCivil), se verificada uma de duas situações atinentes à pessoa do arrendatário (…) a saber: a) carência de meios, a qual se presume relativamente a beneficiário do subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção; b) ser portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% (cf. n.º 2 do art.º 864.º)» (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-10-2019, processo n.º 308/19.1T8OER-A.L1-6, reproduzindo uma passagem do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto 11-09-2017, processo n.º 3481/10.0TBVNG-A.P1).
No presente caso, como decorre da análise dos autos e é expressamente reconhecido pela ora Recorrente, não está preenchida qualquer uma das situação previstas nas duas alíneas do n.º 2 do art. 864.º do Código de Processo Civil; nem ocorre uma situação de cessação do arrendamento por falta de pagamento de rendas devido a carência de meios do arrendatário, nem a Apelante é arrendatária, nem é portadora de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
Por outro lado, o que a Apelante confessa é que “O ex-casal, (…), como forma de subsistência e sustento, passou a acolher idosos na sua casa para lhes prestarem cuidados e assistência a tempo inteiro, 24/dia e 8 dias/semana.” E que “A executada continua actualmente a cuidar e a prestar assistência a idosos (…).” Ou seja, conforme refere a sentença dada à execução, a Apelante tem, no imóvel em causa, que não lhe pertence e para o qual não tem qualquer título que legitime a sua ocupação, instalado um negócio e “vem usando o prédio urbano para hospedagem de terceiros, em proveito próprio”.
Todavia, no entender da Recorrente, não se deverá proceder a uma aplicação rígida do artigo 864.º do NCPC. E defende a Recorrente, estribando-se no decidido no Ac. do TRL, de 11.12.2019, Proc. n.º 2068/19.7T8FNC-A.L1-2 que o disposto no n.º 2, do art.º 864.º do CPC pode ser aplicado por via analógica.
Refira-se, contudo que o thema decidendum apreciado no Ac. do TRL, de 11.12.2019, Proc. n.º2068/19.7T8FNC-A.L1-2 não é idêntico ao caso dos autos. Naquele processo, admitiu-se a aplicação analógica da norma em questão a uma sociedade comercial arrendatária, que usava o imóvel para lar de terceira idade, não tendo a Segurança Social capacidade para acolher os idosos em causa, mas onde se apreciava em termos de objecto de recurso, apenas os pressupostos da intervenção do Fundo de Socorro Social a fim de proceder ao pagamento das rendas atinentes ao período do diferimento da desocupação.
Escreve-se naquela decisão nomeadamente que: “(…) Repete-se que não é objecto do recurso o segmento da decisão que, com fundamento na dita interpretação extensiva da al. a) do n.º 2 do art. 864.º do CPC, concedeu o diferimento da desocupação. (…)” (negrito nosso).
Aqui, com efeito, trata-se de apreciar efectivamente a possibilidade da aplicação da norma (artº 864º do NCPC) a uma situação não expressamente por ela contemplada e por via de uma interpretação analógica.
Porém, no contexto do diferimento da desocupação de imóvel arrendado pra habitação prevista no art.º 864º do CPC, esta norma tem sido entendida como excepcional, que não comporta aplicação analógica – cfr. art.º 11º do Código Civil.
Assim, se entendeu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.07.2018, processo n.º 719/17.7T8OER-A.L1-7, a propósito da aplicação do art.º 864º do CPC numa situação em que o executado não tinha a qualidade de arrendatário: “(…) As situações previstas são claramente excepcionais, representando a compressão do direito de propriedade do senhorio ou do direito dos credores do insolvente no âmbito do processo respectivo em favor de quem já não terá título para deter o imóvel.
Conforme se disse no Ac. da Relação do Porto de 13.5.2014 a propósito desta questão: “(…) Nos termos do regime em questão há, então, uma equiparação do insolvente ao arrendatário habitacional, numa circunstância de perda do direito que fundava a ocupação da casa onde habitavam: no primeiro caso, o direito de propriedade; no segundo caso, o direito contratual ao gozo do arrendado. Estamos, em qualquer caso, perante soluções jurídicas de excepção, pois a regra é a de que, mediante circunstâncias que constituem o pressuposto da obrigação de entrega do imóvel, este seja efectiva e imediatamente entregue, ora ao senhorio exequente, no caso do fim do arrendamento; ora ao administrador da insolvência, no caso da perda de propriedade, por apreensão para a massa insolvente, ora ao adquirente, no caso da sua venda ou adjudicação. São, com efeito, excepcionais as normas que permitem o diferimento do cumprimento de obrigação de entrega de uma coisa ao seu dono, porque restritivas do respectivo direito de propriedade, designadamente em favor de quem não tem já qualquer título para as manter. (…).” Estando, assim, em causa normas excepcionais, as mesmas não permitem aplicação analógica, embora consintam interpretação extensiva, de acordo com o art.º 11 do C.C.. […] se a analogia pressupõe a existência de uma lacuna da lei, que determinada situação não está compreendida nem na letra nem no espírito da lei, para recorrermos à interpretação extensiva temos de concluir que o caso está contemplado na lei, mas que o texto legal atraiçoou o pensamento do legislador que, ao formular a norma, disse menos do que efectivamente pretendia dizer. (…).” [6]
Mais recentemente, o acórdão da Relação do Porto de 11.12.2024, procº nº 7372/24.0T8PRT.P1 [7] voltou a afirmar o artº 864º do NCPC como norma excepcional, não susceptível de aplicação analógica sequer a outros contratos distintos do arrendamento, por se entender que o legislador entendeu conferir, de forma exclusiva e nos estreitos termos definidos pelas als. a) e b) do nº 1 do artº 864º, a tutela legal, não sendo de reconhecer aos meros detentores de um imóvel, ainda que quanto a eles se possam verificar “razões sociais imperiosas”. Como bem se refere nesta decisão que seguimos de perto “(…) temos para nós que o diferimento de desocupação previsto nos art.ºs 864.º e 865.º do CPC (como no NRAU, bem assim convocado) constitui um meio de tutela excepcional, estando assim reservado aos casos nele previstos, ou seja, de execução para entrega de casa de habitação arrendada e, por força da remissão operada pelo art.º 150.º, n.º 5 do CIRE, também aos casos de entrega da casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente à massa insolvente ou ao adquirente. É que a restrição ao direito de propriedade em que se traduz o diferimento da ocupação só poderá ocorrer nos confinados casos previstos na lei e se verificados os pressupostos nela exigidos, estando vedada a sua aplicação analógica a outras situações que não as especificamente previstas. Não detendo a qualidade de arrendatário ou insolvente, a quem o legislador entendeu conferir, de forma exclusiva e nos estreitos termos definidos pelas als. a) e b) do nº 1 do art.º 864º, a tutela legal, não é de reconhecer aos meros detentores do imóvel vendido, ainda que relativamente a eles se verifiquem “razões sociais imperiosas” e cumpram algum dos critérios previstos nas referidas alíneas, o direito ao diferimento da desocupação. A protecção requerida está prevista nos art.ºs 864.º e 865.º do CPC, aplicável ao processo de insolvência com as necessárias adaptações por força do disposto no n.º 5 do art.º 150.º do CIRE (cuja remissão para o pretérito art.º 930.º-A do CPC deverá ser entendida como sendo hoje feita para o art.º 862.º que lhe sucedeu), tendo em vista suspender a diligência de entrega. Na situação decidenda a questão vem a ser a de determinar se é possível atribuir a tutela conferida pelos mencionados preceitos, de forma autónoma, a quem não é arrendatário (nem insolvente). Com efeito, no caso que nos ocupa quem se apresenta a requerer o diferimento da desocupação é o comodatário cujo título de ocupação cessou, convocando a sua situação económica e de saúde e a dos consigo residentes. Prevê a lei, no n.º 1 do art.º 864.º, para o caso de execução para entrega de coisa imóvel arrendada que, por razões sociais imperiosas, o juiz difira para momento posterior - sendo que o diferimento, nos termos do n.º 4 do art.º 865.º não pode exceder o prazo de 5 meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder - a desocupação do imóvel. Tal regime é aplicável “à desocupação da casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente”, por força do disposto no n.º 5 do art.º 150.º do CIRE. Sempre a invocação das referidas “razões sociais imperiosas” não vale, só por si, para obter a tutela legal, que pressupõe a verificação de pelo menos um dos fundamentos condicionantes taxativamente previstos nas als. a) e b) do preceito. Com efeito, o juiz só será chamado a apreciar as primeiras, no uso do poder discricionário que a lei lhe concede (cf. n.º 4, in fine do art.º 152.º do CPC), se verificada uma de duas situações atinentes à pessoa do arrendatário ou, para o que aqui releva, insolvente, a saber: a) carência de meios, a qual se presume relativamente a beneficiário do subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção; b) ser portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% (cf. n.º 2 do art.º 864.º). E tais pressupostos condicionantes terão de se verificar, nos termos da lei, na pessoa do arrendatário/insolvente, irrelevando para este efeito a situação económica e social ou condições de saúde daqueles que com ele residam, razões que só poderão/deverão ser ponderadas se forem alegados e demonstrados factos que permitam subsumir a situação a alguma das referidas alíneas. Sendo este o recorte do regime legal, a questão que imediatamente se coloca é, portanto, a de saber se o direito ao deferimento da desocupação poderá ser reconhecido de forma autónoma a detentores do imóvel relativamente aos quais se verifiquem razões sociais imperiosas, cumprindo eles algum dos critérios previstos nas als. a) e b) do n.º 1 do art.º 864.º, mormente quando em causa a casa de habitação onde resida habitualmente o requerente. Conforme se observa no aresto do TRP de 13/5/2014, proferido no processo 6371/07.0TBMTS-J.P1, acessível em www.dgsi.pt, em causa a perda do direito que fundava a ocupação da casa onde habitavam: no caso de insolvência, o direito de propriedade; no caso do arrendamento, o direito contratual ao gozo do arrendado. Trata-se, contudo, em ambas as situações, de um regime jurídico de excepção, porquanto “a regra é a de que, mediante circunstâncias que constituem o pressuposto da obrigação de entrega do imóvel, este seja efectiva e imediatamente entregue, ora ao senhorio exequente, no caso do fim do arrendamento; ora ao administrador da insolvência, no caso da perda de propriedade, por apreensão para a massa insolvente, ora ao adquirente, no caso da sua venda ou adjudicação”. E porque se trata de normas excepcionais, elas não permitem aplicação analógica (cf. art.º 11.º), estando assim vedada a sua aplicação a situações nelas não previstas (cf. art.º 11.º do CC). Poderá questionar-se agora se a situação em causa não poderá considerar-se coberta pela previsão normativa pelo recurso à interpretação extensiva, sabendo-se que nesta, ao invés da analogia, que pressupõe uma lacuna, o legislador disse menos do que aquilo que pretendia, de modo que por via interpretativa e pela extensão da letra da lei é possível colocar sob a alçada do regime uma situação não expressamente prevista mas cuja inclusão estava na mente do legislador e foi por este querida. Pergunta-se assim se pela via da interpretação extensiva será possível estender o regime excepcional do diferimento da ocupação do imóvel comodado, findo ou extinto o comodato, conforme é aqui o caso, vista a situação de quem o ocupa sem título. A resposta é, como adiantamos, negativa. Continuando a seguir de perto, pela pertinência, o referido aresto da Relação do Porto, uma resposta positiva à questão enunciada seria autorizar qualquer detentor precário a recusar, na sequência de acção de reivindicação procedente, a entrega do imóvel que ocupa, o que não se indicia ter sido querido pelo legislador, não encontrando apoio em qualquer elemento interpretativo. “Na verdade, não se vislumbra que o texto destas duas normas tenha atraiçoado o pensamento do legislador e que este, ao redigi-las, disse menos do que efectivamente pretendia dizer. Bem pelo contrário, entendemos que o legislador disse, de forma precisa, o que queria dizer, daí resultando que só o arrendatário habitacional poderá lançar mão do incidente de diferimento da desocupação do imóvel. Não há assim norma que, perante os poderes do proprietário, acautele a posição do possuidor ou detentor sem título, mesmo que se trate de pessoa a atravessar fase de grandes dificuldades económicas.” Note-se que o fundamento da tutela legal conferida e consequente limitação do direito de propriedade do senhorio ou adquirente no processo de insolvência será ainda, conforme cremos que correctamente se ponderou no citado aresto do TRP, uma sorte de “ultra-vigência de um direito anteriormente reconhecido, admitindo-se o prolongamento (a curto prazo) dos seus efeitos em face da boa-fé do respectivo titular e das suas necessidades e das pessoas que vivem consigo. É esse o significado da referência à boa-fé constante do n.º 2 do art.º 864º do CPC. Ou seja, dada a boa-fé, a legítima confiança na produção dos efeitos desse direito anterior por parte do arrendatário ou dos insolventes (alicerçada no seu direito contratual de gozo ou de propriedade, respectivamente), designadamente quanto à expectativa de ocupação e habitação no imóvel a entregar, o legislador protege esses anteriores titulares relativamente a uma perda súbita do seu direito, em determinadas circunstâncias. Faculta-lhes mais algum tempo para que possam suprir a perda do direito à habitação no prédio que legitimamente e de boa-fé ocupavam. Mas já não protege esses mesmos interesses, autonomamente, relativamente a quem não tiver sido titular desses direitos, pois em relação a tais terceiros já não se identifica qualquer direito no qual se possa sediar, de per si, a ultra-vigência desses efeitos, a continuidade da tutela desses interesses”. Não se ignora que o direito à habitação goza de justificada tutela constitucional -cf. art.º 65.º da CRP, que proclama, no seu art.º 1.º “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. Todavia, assegurar tal direito fundamental de natureza social é incumbência do Estado, não de particulares (cf. n.ºs 2, 3 e 4 do preceito), pelo que se afigura conforme à lei fundamental a opção legislativa no sentido de limitar a tutela legal ao arrendatário e insolvente e desde que verificados determinados pressupostos condicionantes (cf. neste sentido, ainda que a propósito da extensão do regime ao arrendatário rural que habita no prédio arrendado, o Acórdão do TC n.º 581/2014, de 17 de Setembro, processo n.º 650/12, no qual se refere que “O direito à habitação tem, assim, o Estado - e, igualmente, as regiões autónomas e os municípios - como único sujeito passivo e nunca, ao menos em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios”). Aqui se convoca bem assim, o recente Acórdão deste Tribunal e secção, no processo 12031/24.0T8PRT-A.P1, de 24-10-2024, acessível na base de dados da dgsi, no qual se decidiu, em síntese, que, tratando-se duma norma excepcional, o art.º 864º do CPC não pode ser objecto de aplicação por analogia a quaisquer outros contratos, designadamente o contrato de comodato (art.º 11 do CC). E ademais que também não é caso de recurso a interpretação extensiva do art.º 864º CPC dado que o legislador soube distinguir entre as situações de arrendamento e todas as outras situações em geral em que se pretende a entrega de imóveis que constituam habitação do executado. Assim, i. À entrega de coisa imóvel arrendada (art.º 862º) determina-se a aplicabilidade dos artigos 863º a 866º, onde se insere a possibilidade de suspensão da execução e o diferimento da desocupação; ii. À entrega de casa de habitação principal do executado (art.º 861º nº 6 do CPC), não arrendada, determina-se apenas a aplicabilidade dos números 3 a 5 do art.º 863º sobre a suspensão da execução. Sempre a suspensão da execução ao abrigo do art.º 863º nº 3 do CPC não abrange todas e quaisquer doenças graves e prolongadas, designadamente doenças crónicas, que podem ser prevenidas ou controladas. O preceito reporta-se a doença aguda que é a que se manifesta de forma súbita e inesperada, podendo conduzir a risco de vida. Como se anota naquele Acórdão citado em último lugar, do regime das execuções para entrega de coisa certa, resulta que o diferimento da desocupação integra uma norma excepcional, ditada “por razões sociais imperiosas”, tanto assim que só pode ser concedido em duas situações (alíneas do nº 2 do art.º 864º): - quando, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta desse pagamento resulte da carência de meios do arrendatário; - quando o arrendatário seja portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %. O incidente está desenhado para situações de contratos de arrendamento e, mais do que isso, que a cessação do contrato tenha resultado da falta de pagamento de rendas. A jurisprudência convocada pelo Recorrente admite a interpretação extensiva da norma a outras situações de cessação do contrato de arrendamento (o que já admitimos), mas nada dela se extrai quanto à possibilidade ou virtualidade de justificação daquela ampliação a outros contratos ou situações jurídicas de detenção/ocupação não titulada. Vedada, legal ou sistemicamente, a aplicação analógica do instituto, sequer se antevê a analogia ou paralelismo das situações subjacentes, como se esclarecerá infra. Sempre a interpretação extensiva na situação decidenda não se afirma, visto que esta é função do apuramento do resultado da interpretação das leis, quando «o intérprete chega à conclusão que a letra do texto fica aquém do espírito da lei, que a fórmula verbal adoptada peca por defeito, pois diz menos do que aquilo que se pretendia dizer. Alarga ou estende então o texto, dando-lhe um alcance conforme ao pensamento legislativo, isto é, fazendo corresponder a letra da lei ao espírito da lei. Não se tratará de uma lacuna da lei, porque os casos não directamente abrangidos pela letra são indubitavelmente abrangidos pelo espírito da lei. Da própria ratio legis decorre, p. ex., que o legislador se quer referir a um género; mas, porventura fechado numa perspectiva casuística, apenas se referiu a uma espécie desse género. A interpretação extensiva assume normalmente a forma de extensão teleológica: a própria razão de ser da lei postula a aplicação a casos que não são directamente abrangidos pela letra da lei mas são abrangidos pela finalidade da mesma.» Ora, como se anota no Acórdão desta Relação referido em último lugar, que continuamos a seguir bem de perto, o regime legal de ambos os contratos, de arrendamento e comodato, não caracteriza qualquer similitude entre contrato de arrendamento e de comodato, pois que sujeitos e regras bem distintas. O comodato é o contrato pelo qual se entrega a alguém uma coisa móvel ou imóvel para que esse alguém se sirva dela com a obrigação de a restituir, sendo sua característica essencial a gratuitidade: art.º 1129º do CC. Esta gratuitidade é perspectivada pelo lado do comodatário, ou seja, «(...) onde não há, por conseguinte, a cargo do comodatário, prestações que constituam o equivalente ou o correspectivo da atribuição efectuada pelo comodante.» E, como refere Rodrigues Bastos, «A causa do comodato é a vontade de suprir uma necessidade alheia e pretende ser, normalmente, a concessão de um favor, explicado pelas relações de cortesia ou de amizade existentes entre as partes.» Sempre o legislador distinguiu expressamente as diversas situações, nos artigos 861º a 866º do CPC, quando em causa a execução para entrega de coisa certa que se reconduza a entrega de imóveis que constituam habitação do executado. Assim, entre a entrega de coisa imóvel arrendada (art.º 862º), a que se aplicam os artigos 863º a 866º, onde se insere a possibilidade de suspensão da execução e o diferimento da desocupação; e a entrega de casa de habitação principal do executado (art.º 861º nº 6 do CPC), em geral, quanto à qual se estabelece a aplicabilidade dos números 3 a 5 do art.º 863º sobre a suspensão da execução. Não se evidencia, pois, a necessidade de recurso a interpretação extensiva. (…)” (negrito nosso).
Embora, face ao que resulta provado e que decorre da sentença dada à execução, não estejamos objectivamente perante uma situação de comodato (em virtude de não se ter logrado provar mais do que uma ocupação do imóvel devido à mera tolerância), entendemos que o caso já referido supra tem plena correspondência com o caso dos autos, por maioria de razão.
Aderimos integralmente, face ao supra exposto, aos fundamentos explanados nesta decisão [8].
Correcta, pois, a douta decisão recorrida.
* Decisão:
Por tudo o exposto, decide-se negar provimento ao presente recurso de apelação e consequentemente confirmar a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pela Apelante.
Registe e Notifique.
Lisboa, 25 de Setembro de 2025.
Margarida de Menezes Leitão
Teresa Sandiães
Rui Vultos
_______________________________________________________ [1] Relatora: Des. Margarida de Menezes Leitão
1º Adjunto: Des. Teresa Sandiães
2º Adjunto: Des. Rui Vultos [2] Por opção da Relatora, a Decisão utilizará a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1945.
A jurisprudência citada no presente Acórdão, salvo indicação expressa noutro sentido, está acessível em http://www.dgsi.pt/ e/ou em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ [3] Em 12.06.2025. [4] REFª: 52852509 de 07.07.2025. [5]António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6.ª edição Actualizada, Almedina, 2020, página 183. [6] Veja-se, no mesmo sentido, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-10-2019, processo n.º 308/19.1T8OER-A.L1-6 e do Tribunal da Relação de Évora de 11-07-2019, processo n.º 25/16.4 T8PTG-A.E1. [7]https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/7372-2024-929645075 [8] Veja-se, neste sentido, a unanimidade da jurisprudência, a título de exemplo, do Supremo Tribunal de Justiça, acórdão de 17/03/2016, processo 217/09.2TBMBR-B.P1.S1; da Relação do Porto, acórdãos de 09/12/2020, processo 3566/18.5T8STS-D.P1, de 08/04/2024, processo 22142/23.4T8PRT.P1 e de 11/09/2017, processo 3481/10.0TBVNG-A.P1; da Relação de Lisboa, acórdãos de 12/07/2018, processo 719/17.7T8OER-A.L1-7, de 10/10/2019, processo 308/19.1T8OER-A.L1-6 e de 11/12/2019, processo 2068/19.7T8FNC-A.L1-2; da Relação de Coimbra, acórdãos de 17/01/2017, processo 59/14.3TBSCD-F.C1 e de 11.12.2024, processo 3188/24.1T8LRA.C1; da Relação de Guimarães, acórdãos de 21/03/2019, processo 153/15.3T8CHV-C.G1, de 04/05/2023, processo 799/21.0T8VNF-C.G1 e de 16/12/2021, processo 4206/16.2T8VCT-C.G1 e da Relação de Évora, acórdãos de 14/01/2021, processo 260/14.0TBTVR-J.E1 e de 20.02.2024, processo 1684/12.2TBABF-E.E1, este último em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/1684-2024-878647875 .