Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
INDEMNIZAÇÃO
Sumário
Sumário: (elaborado ao abrigo do disposto no art. 663º, nº 7 do CPC) - O dano biológico, independentemente da incidência que tenha sobre a capacidade de trabalho da vítima, reporta-se essencialmente à violação da integridade física e psíquica da pessoa, com repercussão ao nível somático e funcional do lesado e, reflexamente, na sua vida pessoal e profissional; - Para a reparação de dano biológico da Autora, à data do acidente com 60 anos de idade, com incapacidade geral parcial permanente de 11 pontos, sem incapacidade para o trabalho mas com esforços acrescidos, aposentada aos 62 anos de idade por motivos alheios ao acidente, observando os critérios jurisprudenciais para a fixação de uma indemnização equitativa atendendo a casos similares contemporâneos, é adequada a compensação fixada em € 32.000,00; - Para os danos não patrimoniais sofridos pela Autora, consistentes num quantum doloris de 4 numa escala de 7, repercussão na actividade sexual de grau 2, numa escala de 7, com humor deprimido em consequência do acidente e das limitações físicas, ansiedade e pesadelos nocturnos relacionados com a memória do evento; receio de atravessar ruas a pé e de conduzir veículos automóveis e a sentida frustração pela interrupção do projecto profissional em que se achava envolvida e de que muito gostava, com perda da classificação de serviço que tinha, por não poder cumprir os objectivos do seu trabalho, observando os critérios jurisprudenciais para a fixação de uma indemnização equitativa atendendo a casos similares, é equilibrada a indemnização fixada em € 22.000,00.
Texto Integral
ACORDAM NA 8ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I-RELATÓRIO
R, contribuinte fiscal n.º.., intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum contra a Companhia de Seguros…, S.A. pessoa colectiva nº …, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 467,74 acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento e os valores relativos a danos não patrimoniais, danos patrimoniais ou dano biológico na vertente patrimonial, a liquidar “em execução de sentença”. Alegou, em síntese, que foi atropelada por um veículo tendo a ré assumido a responsabilidade do seu segurado pela produção do acidente. Em consequência do acidente resultaram para a autora ferimentos no ombro e braço direitos, ficou com dificuldade em dormir, com as dores e dormências que sente, estando impedida de conduzir veículos automóveis, tendo ficado com medo de atravessar ruas. Além disso, está diminuída nas actividades domésticas que antes exercia, sendo portadora de um défice funcional de, pelo menos, 10/15 pontos. Mais alega que despendeu a quantia de € 467,74 euros em despesas médicas e com a certidão do auto da ocorrência.
*
A ré contestou excepcionando a dedução de um pedido genérico ilegal, aceitou a responsabilidade do seu segurado na produção do evento danoso, mas impugnou os factos relativos aos danos, bem como os montantes reclamados pela autora.
A ré pediu a intervenção principal provocada da Caixa Geral de Aposentações, IP, a pretexto de o acidente ser qualificável também como um acidente de serviço e a autora ter sido ou poder vir a ser ressarcida por essa entidade.
*
Na sequência de convite ao aperfeiçoamento, a autora apresentou novo articulado, no qual reformulou o seu pedido, peticionando agora a condenação da ré no pagamento da quantia de € 55.467,74, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, e ainda indemnização por danos patrimoniais, danos não patrimoniais e dano biológico na vertente patrimonial, a liquidar “em execução de sentença”.
*
Foi admitida a intervenção principal provocada da Caixa Geral de Aposentações, IP, como associada da Autora.
Devidamente citada, a chamada não interveio na acção.
Por requerimento de 4/9/24, a Autora veio requerer a ampliação do seu pedido para a quantia de € 231.528,74, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, sendo:
- € 6.215,00 por danos patrimoniais – lucros cessantes;
- € 54.846,00 por danos patrimoniais futuros;
- € 110.000,00 por danos não patrimoniais e
- € 60.000,00 pelo dano Biológico.
O requerido foi recebido e requalificado como incidente de liquidação, nos termos do art. 358º e seguintes do CPC.
A Ré deduziu oposição ao incidente, impugnando os factos articulados e os valores liquidados pela Autora, refutando, designadamente, o nexo de causalidade entre o acidente e a incapacidade para o trabalho que determinou a aposentação daquela.
*
Procedeu-se à realização da audiência final com a prolação de sentença que julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados pela Autora na acção e no incidente de liquidação, contra a ré e, nessa mesma medida, condenou esta a pagar àquela:
“I. A quantia de 355,42 euros (trezentos e cinquenta e cinco euros e quarenta e dois cêntimos) de indemnização por danos patrimoniais, acrescida do montante de 63,96 euros (sessenta e três euros e noventa e seis cêntimos) de juros de mora vencidos até esta data, bem como dos juros de mora que se vençam após a mesma, à taxa legal de juros civis, até integral pagamento. II. A quantia de 32.000,00 (trinta e dois mil euros) de indemnização por dano biológico na componente patrimonial, acrescida dos juros de mora que à taxa legal de juros civis se vençam desde esta data até integral pagamento. III. A quantia de 22.000,00 (vinte e dois mil euros) de compensação por danos não patrimoniais, acrescida dos juros de mora que à taxa legal de juros civis se vençam desde esta data até integral pagamento. IV. O valor a despender pela Autora com a aquisição de medicação (analgésicos e ansiolíticos), necessária para ultrapassar a sintomatologia causada pelas sequelas do sinistro, a liquidar em incidente posterior, tendo como limite o pedido líquido formulado na ação (quando somado o valor a obter da liquidação com os valores arbitrados supra), acrescido de juros de mora, à taxa legal de juros civis, desde a data da notificação do requerimento de liquidação até integral pagamento. Julga-se, na restante parte, improcedente o pedido formulado pela Autora R contra a Ré COMPANHIA DE SEGUROS..., S.A e do mesmo se absolve esta. As custas da ação ficarão a cargo da Autora e da Ré, na proporção de 76,53% para a primeira e 23,47% para a segunda”.
*
Inconformada com a sentença, a Autora interpôs recurso, finalizando com as seguintes conclusões: “a) Sobe a presente apelação da douta sentença de fls., que julgou procedente condenou a recorrida “Companhia de Seguros…, S. A.” a pagar (…) II. A quantia de 32.000,00 (trinta e dois mil euros) de indemnização por dano biológico na componente patrimonial, acrescida dos juros de mora que à taxa legal de juros civis se vençam desde esta data até integral pagamento. III. A quantia de 22.000,00 (vinte e dois mil euros) de compensação por danos não patrimoniais, acrescida dos juros de mora que à taxa legal de juros civis se vençam desde esta data até integral pagamento. (…) b) Porém, a ora recorrente não se pode conformar com a mesma, daí o presente recurso que passa, no seu entendimento pela interpretação e aplicação do direito em relação à matéria carreada para os autos respeitante ao sinistro aí referido. c) Em que a recorrente vem impugnar a matéria de facto em relação ao atropelamento e suas consequências. d) Ora, considerando o alegado nas presentes alegações, devem consideradas não provadas as alíneas k), l) e m), que, por sinal, estão comprovados nos factos nºs.-19, 24 e 25. e) E, por via disso, a recorrida ser condenada a pagar a quantia de 6.215,00 €, a título de lucros cessantes. f) E, ainda, pelos danos patrimoniais futuros sofridos pela recorrente, a recorrida seguradora ser condenada a pagar a quantia de 54.846,00 €, acrescidos de juros de mora desde a citação até integral pagamento. g) Por outro lado, considerando a prova documental carreada para os autos, as declarações de parte da recorrente R e da testemunha T (depoimentos gravados sem qualquer referência), devem ser dadas como provadas as alíneas b), c), d), e) e, f) e, assim, a ora recorrida ser condenada a indemnizar a lesada em 110.000,00 €. h) Por fim, conforme o alegado nos números XLIX a LXV, destas alegações, suportadas pela inserção de documentos, por um lado e, por outro, nos que se encontram junto aos autos, deve ser considerado como não provado o facto nº.-29. i) E, sendo assim, a recorrida “Companhia de Seguros…, S. A.” ser condenada a pagar uma quantia mínima de 60.000,00 €, pelo dano biológico sofrido na vertente patrimonial, pela ora recorrente. Termos em que contando com o douto suprimento de V. Exas., se deve conceder provimento ao recurso da ora recorrente, revogando a douta sentença recorrida e concluir-se pela condenação da “Companhia de Seguros…, S. A.”, na quantia de 231.416,42 €, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, com as consequências legais, tal como é de Justiça”.
*
A Ré “Companhia de Seguros…, S. A.” apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso, concluindo da seguinte forma:
“Considerando-se todos os fatores relevantes para o apuramento do quantum indemnizatório em apreço, nomeadamente, idade, lesões, esperança de vida e o facto de não ter havido efetiva perda de retribuição, conjugados num juízo de equidade ou justiça no caso concreto, tendo em conta um esforço de uniformidade de critérios, baseado na Jurisprudência conhecida, considera a ora Recorrida adequada a indemnização por dano biológico no montante de € 32.000,00, conforme arbitrado pelo douto Tribunal a quo, devendomanter-se este valor indemnizatório, sob pena de errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 483.º, n.º 1; 562.º; 563.º; 564.º; e 566.º, n.º 3, todos do CC”.
*
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
*
II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
São estas as questões a apreciar:
- Se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto;
- Se, em face dos factos provados, a sentença recorrida se deve manter e/ou se deve ser alterada a fixação das verbas fixadas na sentença a título de lucros cessantes, danos patrimoniais futuros, danos não patrimoniais e dano biológico.
*
III-FUNDAMENTAÇÃO
1. Os factos
Na primeira instância foi considerada a seguinte factualidade: “FACTOS PROVADOS Tendo presente, por um lado, a matéria assente por acordo das partes e provada por documentos dotados de força probatória plena, e por outro, o resultado da produção de prova e discussão da causa, julgam-se demonstrados os seguintes factos: 1. No dia 28 de outubro de 2019, pelas 9.30 horas, no entroncamento entre a Praça … e a Rua …, em Lisboa, quando a Autora se encontrava a atravessar a passadeira de peões existente na última das referidas artérias, a fim para apanhar o autocarro com destino ao seu local de trabalho, foi colhida pelo veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula …. 2. Esse veículo era conduzido por M, por conta e sob as ordens da sociedade de táxis “…,Lda”. 3. Na sequência da colisão, a Autora foi transportada de ambulância para o Hospital de São José, em Lisboa, onde deu entrada com dores no pé direito, tórax lado esquerdo e no ombro direito, bem como hematomas dispersos na zona do tórax. 4. Foi examinada nesse hospital, onde efetuou RX que não detetou então a existência de fraturas, pelo que recebeu alta, no mesmo dia, para o domicílio. 5. Como mantivesse dores na região torácica e no ombro direito, efetuou novos exames no Hospital CUF- Infante Santo, que revelaram microfratura trabecular e contusão óssea na extremidade proximal do troquíter, microrrotura do tendão do supraespinhoso por tendinopatia agudizada e fraturas condrocostais à direita da 1ª e da 3ª à 5ª, lesões causadas pelo atropelamento. 6. Foram-lhe prescritos tratamentos de fisioterapia que realizou até fevereiro de 2020. 7. Em consequência das referidas lesões, esteve em situação de défice funcional temporário parcial (30%) e incapacitada para exercer, na totalidade, a sua atividade profissional, entre 28 de outubro de 2019 e 17 de fevereiro de 2020, num total de 113 dias. 8. As lesões causadas pelo mesmo evento estão consolidadas, do ponto de vista médico-legal, desde 17 de fevereiro de 2020. 9. Sofreu, em consequência dessas lesões, dores de grau 4, numa escala de sete graus de gravidade crescente. 10. Tem o humor deprimido em consequência das limitações decorrentes do atropelamento, sofre de ansiedade e tem pesadelos noturnos relacionados com a memória do evento e receio da sua repetição. 11. Tem receio de atravessar ruas a pé e deixou de conduzir veículos automóveis, por medo de o fazer, também em razão da memória do atropelamento. 12. À data do acidente a Autora exercia profissionalmente as funções de técnica..., e estava a trabalhar no …, em Lisboa, tendo como função específica a investigação em arquivos históricos. 13. Na ocasião deste evento estava a trabalhar no projeto …, com o qual se encontrava muito envolvida e entusiasmada, tendo realizado grande parte da investigação subjacente ao mesmo. 14. A investigação sobre…, na qual começara a trabalhar em 2015. 15. A Autora retomou o seu trabalho no dia 17 de fevereiro de 2020. 16. Quando regressou ao trabalho, teve dificuldade em corresponder às exigências daquele projeto, por sentir dores no decurso das reuniões e ter dificuldade em trabalhar ao computador, mercê das dores no ombro e braço direitos, o que a fez sentir-se frustrada. 17. Por não conseguir cumprir os objetivos do trabalho, a sua classificação de serviço baixou de “excelente” para “satisfatório”. 18. Em consequência das lesões causadas pelo acidente deixou de realizar atividades domésticas, como limpeza, arrumação e confeção de alimentos, tendo contratado esses serviços a terceiros e tendo necessidade de ser acompanhada nas compras, pela dificuldade em carregar pesos. 19. Está afetada, em consequência do referido atropelamento, de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 11 pontos, o que inclui os sintomas dolorosos decorrentes da fratura dos arcos costais, da fratura do ombro, bem como a ansiedade e o humor deprimido, causados pelo evento. 20. As lesões causadas por esse evento são compatíveis com o exercício da atividade profissional que tinha, mas implicam esforços suplementares, consideradas as dores no tórax e no ombro direito de que padece. 21. As mesmas lesões têm uma repercussão na atividade sexual de grau 2 (numa escala de sete graus de gravidade crescente). 22. Necessita de recorrer permanentemente a analgésicos e ansiolíticos, segundo prescrição do médico assistente. 23. Antes do atropelamento fazia caminhadas, aos fins-de-semana, acompanhada do marido, atividade que deixou de realizar, mas que não é impedida pelas sequelas das lesões causadas por aquele evento. 24. Nos meses de outubro e novembro de 2019 a Autora auferia um vencimento mensal de 1.802,22 ilíquido (sujeito a desconto de 3,5% por contribuição para a ADSE, desconto de 20,6% por IRS, desconto de 11% de desconto para a CGA e de 1% para o sindicato) e 95,40 de subsídio de refeição. 25. No mês de dezembro de 2019 o referido vencimento mensal ilíquido era de 1.819,38 euros e o subsídio de refeição de 100,17 euros. 26. A Direção-Geral do Património Cultural pagou à Autora a totalidade dos salários líquidos e subsídios de refeição, relativos aos meses de outubro de 2019, novembro e dezembro de 2019, incluindo subsídio de Natal, bem como janeiro e fevereiro de 2020. 27. A mesma entidade solicitou à Ré o reembolso das quantias por si pagas, entre 28 de outubro de 2019 e 16 de fevereiro de 2020, num total de 8.598,19 euros, que a Ré lhe pagou. 28. Na sequência do parecer de Junta Médica da Caixa Geral de Aposentações realizada no dia 5 de setembro de 2023, a Autora foi considerada absoluta e permanentemente incapaz para o exercício das suas funções profissionais, tendo sido aposentada por esse motivo, com o pagamento de pensão a partir de 1 de novembro de 2023. 29. A incapacidade decidida pela referida Junta Médica foi motivada por doença renal crónica, sem relação com o evento atrás descrito. 30. No ano de 2020 a Autora auferiu a quantia de 25.547,76 do seu trabalho, sujeita a retenção de 5.236,00 de IRS, de 3.704,40 para contribuições e de 219,00 para quotizações sindicais. 31. No ano de 2021 a Autora auferiu do seu trabalho a mesma quantia e foram-lhe efetuadas nesse vencimento as mesmas retenções. 32. No ano de 2022 a Autora auferiu a quantia de 25.427,80 do seu trabalho, sujeita a retenção de 5.008,00 de IRS, de 3.699,25 para contribuições e de 217,43 para quotizações sindicais. 33. A responsabilidade civil inerente à circulação da viatura de matrícula …, atrás referida, encontrava-se, à data do mencionado evento, transferida para a Ré, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º …, tendo aquela assumido a responsabilidade pela regularização dos danos causados pelo sinistro. 34. A Autora despendeu a quantia de 343,72 euros na realização de fisioterapia para recuperação das lesões causadas pelo atropelamento e aquisição de medicamentos para as dores provocadas pelo mesmo evento. 35. A mesma despendeu ainda a quantia de 11,70 euros em fotocópias e despesas postais para o envio à Ré dos comprovativos dos custos acima referidos. 36. A Autora nasceu no dia 12 de julho de 1959. * FACTOS NÃO PROVADOS Não se provaram quaisquer outros factos além dos acima enunciados e dos levados a temas de prova, com relevância para a decisão de mérito, nomeadamente, não se provou: a) Que em consequência do sinistro a autora tenha sofrido outros ferimentos além dos descritos nos factos provados. b) Que a mesma vá continuar o programa de fisioterapia que iniciou após o atropelamento. c) Que a Autora acorde, muitas vezes, de noite, com dores e dormências com dores nos membros superiores, com incidência na coluna e na anca. d) Que sofra de dores sempre que há mudança de tempo. e) Que se encontre impedida de conduzir automóveis e de fazer grandes deslocações desse modo e que, mesmo nas deslocações de percurso mais curto, seja obrigada a fazer pausas para descansar das dores. f) Que antes do atropelamento praticasse ginástica de manutenção. g) Que esteja a decorrer o processo de acidente de serviço, relativo à ocorrência do atropelamento da Autora, ainda sem conclusão. h) Que a Autora tenha despendido a quantia de 79,41 euros com a certidão do auto da ocorrência e montante de 388,33 euros em despesas médicas. i) Que a Ré tenha pagado à Autora todas as despesas que a mesma apresentou, diretamente relacionadas com o acidente e, bem assim, despesas diversas nos valores de 341,71 euros, 384,42 euros e 374,42 euros. j) Que as funções que a Autora desempenhava na Direção-Geral …, exigissem o transporte de volumes para manuseamento e consulta. k) Que a Autora seja portadora, em consequência do atropelamento, de um défice funcionapermanente da integridade físico-psíquica de 10/15 pontos. l) Que a mesma, à data desse facto, tivesse um vencimento de 2.000 euros mensais. m) Que tivesse, na mesma data, um salário médio de 1.650 euros. n) Que as sequelas das lesões causadas pelo acidente se vão agravar com o tempo. *
2. O direito
2.1. Da modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto
Defende a recorrente que as als. b), c), d), e), f), k), l) e m) dos factos não provados devem passar a constar dos factos provados e que o ponto 29 dos factos provados deve ser dado como não provado.
Existem requisitos específicos para a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, os quais, se não observados, conduzem à sua rejeição.
Assim, o artigo 640º do Código de Processo Civil, impõe ao recorrente o ónus de:
a) especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
É hoje indiscutível a inadmissibilidade de recursos que se insurgem em abstracto contra a decisão da matéria de facto: o recorrente tem que especificar os exactos pontos que foram, no seu entender, erroneamente decididos e indicar também com precisão o que entende que se deve dar como provado.
Impõe-se que nas conclusões o recorrente indique concretamente os pontos da matéria de facto que impugna, apresentando a sua pretensão de forma inequívoca, de forma a que se possa, com clareza, separar a mera exposição da sua apreciação sobre a prova da reivindicação da alteração da matéria de facto.
Com a imposição destas indicações pretende-se impedir “recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente” - Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 2022, 7ª ed. p.195.
Por estes motivos, o recorrente, além de ter que assinalar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, tem também que especificar os meios de prova constantes do processo que determinam decisão diversa quanto a cada um dos factos, evitando-se que sejam apresentados recursos inconsequentes, não motivados, com meras expressões de discordância, sem fundamentação que possa ser perceptível, apreciada e analisada.
Quanto a cada um dos factos que pretende que se obtenha diferente decisão da tomada na sentença, tem o recorrente que, com detalhe, indicar os meios de prova deficientemente valorados e ponderar criticamente os mesmos.
Relativamente ao ónus de especificar os concretos meios probatórios, particulariza o nº 2 do artigo 640º, que: “Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Entendemos que o recurso interposto pela Recorrente relativo à impugnação da matéria de facto cumpre o ónus imposto pelo art. 640º do CPC, pelo que passaremos à análise da referida impugnação.
Apreciando.
Comecemos pelas als. b), c), d), e) e f) dos factos não provados, que a recorrente defende deverem passar a constar dos factos provados.
A Srª Juiz a quo escreveu o seguinte para motivar a inserção dos factos descritos nestas alíneas (incluindo as als. i) e j) na matéria de facto não provada: “Estão em causa factos para cuja prova não foram carreados os necessários elementos probatórios, sendo de reter que a Ré não juntou os documentos pertinentes à prova da alegação do art. 49º da sua contestação e, apesar de se tratar de matéria de exceção à qual a Autora não respondeu, mesmo que se entenda que a Autora tinha o correspondente ónus, sempre se verificaria, salvo melhor juízo, o efeito impeditivo da admissão por acordo, previsto no nº 2 do art.º 574.º do Código de Processo Civil, por referência “a facto que está em oposição com a petição inicial”.
A este respeito, a recorrente defende que outra deveria ter sido a decisão do tribunal, tendo em conta as declarações de parte da Autora e o depoimento da testemunha T.
Ouvidos que foram por este tribunal as declarações de parte da Autora e o depoimento da referida testemunha,não vemos motivos para divergir do entendimento alcançado pela Sra. Juiz da primeira Instância, já que nem uma, nem outra, se referiram, durante os respectivos depoimentos, à necessidade de a recorrente continuar a fazer fisioterapia, ao facto de a recorrente acordar com dores durante a noite, sentir dormências nos membros superiores, com incidência na coluna e na anca, se aquela tem dores sempre que há mudança de tempo, se se encontra impedida de conduzir automóveis e de fazer grandes deslocações de carro, mesmo nas deslocações de percurso mais curto, nem mencionaram se, antes do acidente, a autora praticava ginástica de manutenção.
Assim, e na falta de outros elementos de prova, nomeadamente documental [com a junção de uma prescrição médica ou recibos de pagamento quanto a sessões de fisioterapia, recibos de pagamentos de mensalidades num ginásio e, por exemplo, relatórios médicos dos quais resultassem as sequelas descritas nas als. c), d) e e)], bem andou o tribunal a quo ao considerar que “Estão em causa factos para cuja prova não foram carreados os necessários elementos probatórios”, razão que motivou a sua inserção no elenco dos factos não provados.
A recorrente impugna, ainda, as als. k), l) e m) dos factos não provados, defendendo que a respectiva matéria factual deve ser considerada provada.
Quanto à al. k), a recorrente apoia a sua argumentação nas conclusões do relatório médico-legal, de onde resulta que o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é de 11 pontos.
Ora, tendo que do ponto 19 dos factos provados resulta precisamente que a Autora “Está afetada, em consequência do referido atropelamento, de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 11 pontos”, não vemos a razão de ser desta impugnação. O que não podia ficar provado, e não ficou, é que a Autora tem um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica com uma amplitude entre os 10/15 pontos (como alegado na petição inicial corrigida e junta aos autos a 11/5/2021).
No que respeita às als. l) e m), respeitantes ao vencimento da Autora à data do acidente e “salário médio”, na mesma data, também não vemos qualquer motivo para alterar a decisão, atento o que resultou provado nos pontos 24 e 25, constando da motivação que “esses factos foram extraídos das “notas de abonos e descontos” juntas com a petição inicial aperfeiçoada”. Efectivamente, os pontos 24 e 25 dos factos provados reflectem o que consta da nota de abonos e descontos dos meses de Outubro, Novembro e Dezembro do ano de 2019 (documentos juntos com o requerimento da Autora de 11/5/2021). Aliás, em declarações de parte, a Autora afirmou que à data do acidente auferia um vencimento ilíquido de € 1700,00, a que acrescia o subsídio de refeição e por vezes algumas ajudas de custo. Por outro lado, as declarações de IRS a que a recorrente faz referência nas suas alegações, a fim de impugnar a decisão do tribunal recorrido, dizem respeito a rendimentos auferidos nos anos posteriores ao acidente, designadamente de 2020, 2021 e 2022 (cfr. documentos juntos com o articulado superveniente de 4/9/2024).
Improcede, assim, nesta parte a impugnação da matéria de facto.
A recorrente impugna, ainda, a matéria factual descrita no ponto 29 dos factos provados, segundo o qual “A incapacidade decidida pela referida Junta Médica foi motivada por doença renal crónica, sem relação com o evento atrás descrito”, sustentando que a mesma deve passar a constar dos factos não provados. Este ponto vem na sequência do ponto 28 dos factos provados, onde é referido: “Na sequência do parecer de Junta Médica da Caixa Geral de Aposentações realizada no dia 5 de setembro de 2023, a Autora foi considerada absoluta e permanentemente incapaz para o exercício das suas funções profissionais, tendo sido aposentada por esse motivo, com o pagamento de pensão a partir de 1 de novembro de 2023”.
A este respeito pode ler-se na sentença recorrida: “Nºs 26 a 29 – Consideraram-se, nessa parte, o documento nº 2 junta á contestação, os documentos emitidos pela Caixa Geral de Aposentações juntos com o articulado da Autora de 4 de setembro de 2024 e as informações prestadas pela mesma entidade em 24 de setembro seguinte. A falta de nexo causal entre a doença renal e o sinistro resulta cabalmente do relatório pericial e foi corroborada pelo depoimento da testemunha M… (médica, prestadora de serviços à Ré)” (sublinhado nosso).
A Autora defendeu no seu articulado superveniente que face à gravidade e consequências das lesões sofridas com o acidente, foi considerada absoluta e permanentemente incapaz para o exercício de toda e qualquer profissão ou trabalho pela Junta Médica realizada em 5/7/2023, pela Caixa Geral de Aposentações.
Vejamos os documentos com relevância para a decisão.
O documento nº 2 junto com a contestação diz respeito às importâncias pagas pela entidade patronal da Autora, importando apenas para a motivação dos pontos 26 e 27.
Os dois documentos emitidos pela Caixa Geral de Aposentações, juntos com o articulado superveniente da Autora, apresentado a 4/9/2025, mencionam a Junta Médica a que a Autora foi submetida. O primeiro, datado de 6/9/2023, dá conta que na junta médica realizada no dia 5/9/2023, a Autora foi considerada absoluta e permanentemente incapaz para o exercício das suas funções. O segundo, é uma Declaração da mesma entidade, emitida em 3/7/2024, atestando que a Autora foi aposentada em virtude de ter sido considerada absoluta e permanentemente incapaz para o exercício de toda e qualquer profissão ou trabalho, por Junta Médica realizada em 5/9/2023.
A 24/9/2024, a Caixa Geral de Aposentações juntou cópia do Auto de Junta Médica em causa, onde se pode ler que o que motiva a incapacidade absoluta da Autora para qualquer profissão ou trabalho é “DRCrónica estadio 5 sob hemodiálise 3x/semana e a aguardar transplante (ainda sem previsão). Incapacidade laboral Associada ao cansaço, astenia e dificuldade na gestão das tarefas e da diálise”. Ou seja, ao contrário do defendido pela recorrente nas suas alegações, resulta deste documento que a aposentação decorre do seu estado de saúde/insuficiência renal crónica estádio 5.
Por seu turno, do relatório de perícia de avaliação do dano corporal, junto aos autos a 21/7/2023, resulta que a recorrente é insuficiente renal desde 2007, por causa desconhecida, tendo iniciado hemodiálise no ano de 2022. Das lesões e/ou sequelas relacionáveis com o evento não foi indicado o agravamento da insuficiência renal da Autora (apesar de esta, aquando da avaliação, ter referido que sentiu agravamento do seu estado de saúde geral).
Do documento junto pela Autora com o requerimento de 25/6/2024, “Atestado Médico de Incapacidade Multiuso”, datado de 18/4/2023, não vemos como se possa extrair o indicado nexo de causalidade entre o acidente e aincapacidade decidida pela Junta Médica motivada por doença renal crónica. Nada de concreto é referido a esse respeito.
Feita a análise destes documentos, temos de concluir que a Autora não logrou demonstrar, como por si alegado, que a “incapacidade decidida pela referida Junta Médica” (relacionada, como vimos com o agravamento da sua doença renal) foi consequência das lesões sofridas com o acidente.
Desta forma, também nesta parte improcede a impugnação da recorrente.
*
2.2. Cumpre, agora, analisar se, em face dos factos provados, que se mantiveram inalterados, a sentença sob recurso pode manter-se.
A ré assumiu a responsabilidade do seu segurado na regularização dos danos causados pelo acidente em causa nos autos, pelo que não se discutirá a dinâmica do evento e o preenchimento dos pressupostos do art. 483º, nº 1 do Código Civil.
No presente recurso apenas está em causa a indemnização fixada pelo tribunal recorrido.
A recorrente defende que a recorrida devia ser condenada a pagar a quantia de € 6.215,00 a título de lucros cessantes, € 54.846,00 a título de danos patrimoniais futuros, a quantia de € 110.000,00 a título de danos não patrimoniais e, por fim, a quantia de € 60.000,00 pelo dano biológico sofrido pela recorrente.
Na sentença recorrida estão desenvolvidos de forma correcta e exaustiva os princípios e teorias que presidem à obrigação de indemnizar e os critérios que devem presidir à fixação dos danos patrimoniais e não patrimoniais, pelo que nos escusamos de reproduzir aqui, por desnecessidade, tal matéria.
Debrucemo-nos, pois, sobre cada um dos pedidos formulados pela Autora, não concedidos ou totalmente concedidos pelo tribunal a quo.
A Autora reclamou a título de lucro cessante a perda do rendimento do seu trabalho no período de 113 dias. Defendendo que, à data, auferia um rendimento mensal de € 1650,00, conclui que lhe deve ser arbitrada a quantia de € 6215,00.
Efectivamente, resulta do ponto 7 dos factos provados que a Autora “esteve em situação de défice funcional temporário parcial (30%) e incapacitada para exercer, na totalidade, a sua atividade profissional, entre 28 de outubro de 2019 e 17 de fevereiro de 2020, num total de 113 dias”. No entanto, como consta nos pontos 26 e 27, “A Direção-Geral do Património Cultural pagou à Autora a totalidade dos salários líquidos e subsídios de refeição, relativos aos meses de outubro de 2019, novembro e dezembro de 2019, incluindo subsídio de Natal, bem como janeiro e fevereiro de 2020”, ou seja, até à sua alta, tendo a mesma entidade solicitado à Réo reembolso das quantias por si pagas, num total de € 8.598,19, que a Ré pagou. Deste modo, não se vê qual o fundamento legal para a Autora reclamar da Ré o montante de “lucros cessantes a título de danos patrimoniais sofridos” (art. 8º do articulado superveniente), pois a este título não teve um efectivo prejuízo.
Improcede, pois, esta parte do recurso.
Quanto ao dano patrimonial futuro, a recorrente sustenta que deve ser fixado o valor de € 54.846,00, com a seguinte argumentação: a Autora tinha sessenta anos de idade à data do acidente; em virtude do acidente ficou com uma incapacidade para o trabalho. Tendo em conta a que a média de vida das mulheres em Portugal ronda 84 anos, a Autora teria ainda uma esperança de vida de 24 anos. Assim, levando em consideração o alegado ordenado médio mensal de € 1650,00, a Autoria podia auferir anualmente a quantia de € 23.100,00, que multiplicados por 24 anos, daria a quantia de € 554.400,00. Aplicando a incapacidade de 11 pontos atribuída, “onde já está incluído o dano futuro”, seria alcançado o valor de € 60.940,00. Considerando que a recorrente receberia o capital adiantado, reputa como justo retirar àquele valor uma percentagem de 10%, pelo que a indemnização a arbitrar a este título seria de € 54.846,00.
Além desta quantia, a recorrente pretende, ainda, que este tribunal de recurso suba para € 60.000,00 a quantia arbitrada pelo dano biológico sofrido, em vez da quantia de € 32.000,00 fixada na sentença.
Que dizer?
Como se sabe, a Autora ficou afectada com um défice funcional permanente na sua integridade físico-psíquica equivalente a 11 pontos. As lesões causadas pelo acidente são compatíveis com o exercício da actividade profissional que tinha, mas implicam esforços suplementares, consideradas as dores no tórax e no ombro direito de que padece (pontos 19 e 20 dos factos provados).
Além disso, sabemos que, ao contrário do sustentado pela recorrente, a incapacidade da Autora para toda e qualquer actividade profissional e que determinou a sua aposentação pela Caixa Geral de Aposentações (em Setembro de 2023) foi motivada por doença renal crónica, sem relação com o acidente (ponto 29 dos factos provados).
Como bem exposto na sentença recorrida, estamos em face do chamado “dano biológico”. Na verdade, como ali se pode ler, “A maior penosidade no exercício da atividade profissional tem um valor económico, por significar em absoluto que o indivíduo para obter a mesma retribuição tem de desenvolver um maior esforço. No caso, para continuar a trabalhar como investigadora em arquivos históricos a Autora teve de exercer as mesmas tarefas que exercia antes das lesões, mas agora lidando com a adversidade das dores no ombro direito e no tórax (nºs 20 da matéria provada). Essa componente patrimonial ou económica do dano biológico, quando este importa esforços acrescidos para o trabalho, é amplamente reconhecida pelos Tribunais superiores (…). O valor económico desse dano, no caso, não é apenas o relativo aos anos de exercício profissional (entre a data da consolidação médico-legal e a da aposentação, cerca de 3 anos e 9 meses) em que a Autora teve que lidar com aquela penosidade acrescida, mas também a perda económica associada à impossibilidade de realizar as tarefas domésticas que antes exercia e que hoje têm de ser executadas por outros (nº 18 dos factos provados)”.
Efectivamente, a indemnização que seja devida ao lesado a título de perda da sua capacidade de ganho, não contempla a compensação do dano biológico, consubstanciado na diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na sua vida pessoal e profissional, na medida em que estamos perante dois danos de natureza diferente.
Enquanto a primeira indemnização tem por objecto o dano que decorre da perda da capacidade (total ou parcial) do lesado para o exercício da sua actividade profissional, durante o período que seria previsível que a viesse a desempenhar, a compensação do dano biológico tem por base “a perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da actividade habitual do lesado, impliquem ainda assim um maior esforço no exercício dessa actividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expectável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual” (cfr. Ac. do STJ de 13/7/2017, proc. 3214/11, disponível em www.dgsi.pt).
Como se pode ler no Ac. do STJ de 10/10/2012, proc. 632/2001, igualmente disponível em www.dgsi.pt“(…) a compensação do dano biológico tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou conversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar; quer a acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas”.
Ou seja, o dano biológico, independentemente da incidência que tenha sobre a capacidade de trabalho da vítima, reporta-se essencialmente à violação da integridade física e psíquica da pessoa, com repercussão ao nível somático e funcional do lesado e, reflexamente, na sua vida pessoal e profissional.
É um dano que concerne não propriamente com a capacidade da vítima de obter rendimentos do seu trabalho, mas, como refere João António Álvaro Dias, in “Dano Corporal, Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios”, Coimbra, 2001, p. 272, com a “diminuição ou lesão da integridade psico-física da pessoa, em si e por si considerada, e incidindo sobre o valor homem em toda a sua concreta dimensão”.
Deste modo, o dano biológico, constituiria, como referido no Ac. do STJ de 5/7/17, proc. 4861/11, um “dano autónomo”, considerado em vista “de uma função reparadora ao nível do lesado em manter um exercício funcional idêntico ou com a mesma amplitude e desenvoltura que faria se não tivesse sofrido a lesão corporal que determina a obrigação de indemnizar” (acórdão igualmente disponível no mesmo sitio da internet). Na mesma senda, vd., o Ac. do STJ de 3/11/2016, proc. 1971/12, segundo o qual “O dano biológico, perspectivado como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na vida pessoal e profissional de quem o sofre, é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial” (ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Como referido no Ac. da RL de 25/1/2024, proc. 361/22, disponível em www.dgsi.pt, “o homem, na sua integridade psico-somática, desenvolve a sua existência terrena na sua vida e realização profissionais e na sua vida relacional – relacionando-se e interagindo com os demais seres humanos – pelo que pode haver dano corporal, nesta faceta da sua vida relacional, tenha ou não havido qualquer rebate anátomo-funcional.
Importa, no entanto, evitar “super-equações” de danos (com indemnizações em duplicado ou em triplicado), tendo presente que há zonas de tangência e até de intersecção entre vectores diferenciados e autonomizados duma mesma realidade. Daí que, após um momento inicial, em que alguns chegaram a admitir que o “dano biológico” seria um tertium genus, com um lugar próprio que não caberia no clássico dualismo patrimonial/não patrimonial, se tenha passado a entender que o mesmo (autónomo ou não) cabe em tal dualismo, sem prejuízo de poder ter uma vertente patrimonial e uma vertente não patrimonial, sendo que, quando está em causa e se pretende indemnizar o dano causado por uma incapacidade permanente geral (que impõe ao lesado esforços acrescidos no desempenho da sua profissão, mas que não se repercute numa perda da capacidade de ganho), se está perante a vertente patrimonial do “dano biológico”. Em síntese, a lesão do direito ao corpo e à saúde é, enquanto dano autónomo, fonte de obrigação de indemnização, a suportar pelo autor do facto ilícito e em benefício de quem viu a sua integridade corporal beliscada, independentemente de quaisquer consequências pecuniárias ou actuais repercussões patrimoniais de qualquer natureza, mas a sua avaliação tem que ser acompanhada duma correta delimitação de realidades e conceitos, para que não haja sobreposições (cfr. ac. do STJ de 17.01.2023, in www.dgsi.pt)”.
No caso dos autos, como dá conta o tribunal recorrido, está em causa o valor económico do dano relativo aos anos em que a Autora ainda exerceu a sua profissão (cerca de 3 anos e 9 meses), durante os quais teve que lidar com uma penosidade acrescida e esforços suplementares, mas também a perda económica associada à impossibilidade de realizar as tarefas domésticas que antes exercia.
Nesta vertente patrimonial do dano biológico, “o quantum indemnizatório em causa destina-se sim à reparação da perda da capacidade geral efetivamente comprovada, na medida em que – como se afirmou supra – essa perda se reveste necessariamente de valor económico. (…) Por outro lado, não pode deixar de se atribuir relevância ao trabalho das «lides domésticas», seja em si mesmo considerado, seja pelos custos da sua realização por terceiro” (cfr. Ac. do STJ de 29/10/2020, proc. 111/17, disponível em www.dgsi.pt, também citado na sentença recorrida).
A indemnização pelo dano biológico, quer nesta vertente patrimonial (como também na vertente não patrimonial), deve ser fixada com base em equidade dentro dos limites que o tribunal tiver como provados (cf. art. 566 nº3 do CC, sendo a nossa jurisprudência praticamente unânime neste sentido), não podendo seguir a teoria da diferença (entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos) prevista no art. 566 nº2 do CC, por o valor exacto de tal dano biológico não ser determinável. Deverá ser, ainda, considerado o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei (art. 13º da Constituição da República Portuguesa e do art. 8º nº 3 do Código Civil), comparando o caso concreto com situações análogas equacionadas noutras decisões judiciais, não se perdendo de vista a sua evolução e adaptação às especificidades do caso concreto.
Note-se que na determinação dos montantes indemnizatórios aos lesados em acidentes de viação, os tribunais não estão obrigados a aplicar as tabelas contidas na Portaria nº 377/2008, alterada pela Portaria nº 679/2009, de 25 de Junho, ali apenas se estabelecendo padrões mínimos, a cumprir pelas seguradoras, na apresentação aos lesados de propostas sérias e razoáveis de regularização dos sinistros, indemnizando o dano corporal. Foi este também o caminho seguido pela Sra. Juiz a quo ao referir “A utilização de modelos de cálculo financeiro que fazem incidir o défice funcional de que o lesado está afetado (no caso, 11 pontos) sobre o seu rendimento, retirando, com utilização de várias fórmulas matemáticas possíveis, um capital indemnizatório, negligencia a asserção essencial do juízo médico-legal que está subjacente à prova do facto: o lesado não está afetado nessa medida para o exercício do trabalho, ou melhor, o mesmo não tem uma perda de rendimento equivalente à pontuação do défice. Essa metodologia (de novo, com o devido respeito) potencia situações de desigualdade entre os lesados, por tratar da mesma forma lesados com rebate profissional e lesados sem esse rebate profissional, mas com dano biológico com impacto económico”.
Assim, depois de na sentença se ter ponderado que o valor obtido pela aplicação da tabela IV Anexa à Portaria 679/2009 era manifestamente insuficiente, procurou a Sra. Juiz decisões jurisprudenciais relativas a casos similares ou aproximados, de lesados (alguns com idades aproximadas à da Autora) sem incapacidade laboral, mas com necessidade de realizar esforços suplementares no exercício da sua actividade laboral em virtude da incapacidade funcional permanente de que ficaram a padecer. Seguidamente, fazendo apelo às especificidades do caso concreto, reputou como justa a indemnização de € 32.000,00 pelo dano biológico na vertente patrimonial.
Vejamos a jurisprudência citada na sentença: o Ac. do STJ de 29/10/2020, proc. 111/17, num caso em que a autora tinha 62 anos de idade e ficou a padecer de um défice funcional de 9,17 pontos, com comprovada repercussão nas diferentes dimensões da sua vida fixou em € 32.000,00 a indemnização a atribuir por este dano; no Ac. da RP de 14/12/22, proc. 12616/20, ao autor, de 60 anos de idade, com um défice funcional de 11 pontos, foi atribuída uma indemnização de e € 40.000,00; no Ac. do STJ de 12/1/2017, proc. 3323/13, à autora, de 60 anos de idade, com 10 pontos de défice funcional, inactiva à data do acidente e passou a estar reformada, foi atribuída uma indemnização de € 20.000,00; no Ac. da RP de 27/9/2016, processo nº 791/09, ao autor, de 60 anos de idade, com défice funcional permanente de 3 pontos, fixou-se a quantia de € 10.000,00.
Ora, o valor fixado pela primeira instância para o dano biológico não se afasta significativa e injustificadamente das indemnizações fixadas nos casos supra referidos, se atentarmos nas idades e défices de integridade físico-psíquica apurados em cada um deles, pelo que atendendo a todas as circunstâncias do caso concreto, entende-se não ser de alterar o valor indemnizatório fixado pelo tribunal recorrido.
Tendo em conta a indemnização fixada para o dano biológico na sua vertente patrimonial, não se vê o fundamento legal para a peticionada quantia de € 54.846,00 a título de dano patrimonial futuro, como pretende a recorrente.
Como se diz na sentença recorrida, com inteira razão, além do “dano biológico na vertente patrimonialmais nenhum dano com incidência patrimonial se deteta na matéria de facto provada, posto que não existe nenhuma relação entre o sinistro e a aposentação da Autora, ocorrida no ano de 2023 e que se ficou a dever a doença crónica pré-existente (nº 29 da matéria provada)”.
Nestes termos, também aqui, improcede o recurso da recorrente.
Finalmente, quanto aos danos não patrimoniais, entende a recorrente que lhe deve ser arbitrada a quantia de € 110.000,00, ao invés da quantia de € 22.000,00 fixada na primeira instância.
Dispõe o art. 496 nº 1 do CC que na fixação da indemnização se deverá atender aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
A gravidade desses danos deverá medir-se por padrões objectivos em face das circunstâncias de cada caso, tendo presente que eles emergem directa e principalmente da violação da personalidade humana, não integrando propriamente o património do lesado, antes incidindo em bens como a vida, a saúde, a liberdade, a honra, o bom nome e a beleza, abrangendo vários danos como os derivados de receios, perturbações e inseguranças, causados pela ameaça em si mesma, e que o seu ressarcimento resulta directamente da lei, assumindo uma função essencialmente compensatória, embora sob a envolvência de uma certa vertente sancionatória (cfr. Rabindranath Capelo de Sousa in “O Direito Geral de Personalidade”).
Não sofre dúvidas que, em virtude do acidente em causa nos autos, a autora sofreu danos de natureza não patrimonial de gravidade suficiente para justificar o seu ressarcimento.
Estão em causa as dores que a Autora sofreu, qualificadas como de grau 4 numa escala de sete graus de gravidade crescente. Verifica-se, igualmente, repercussões na actividade sexual, de grau 2 numa escala de 7 (ponto 21 dos factos provados).
Por outro lado, tal como decidido na primeira instância, o défice da integridade física já referido, releva enquanto limitação genérica para as actividades da vida em geral, ou seja, para o uso do próprio corpo.
Acresce que a Autora tem o humor deprimido em consequência das limitações decorrentes do atropelamento, sofre de ansiedade e tem pesadelos nocturnos relacionados com a memória do evento e receio da sua repetição. Tem receio de atravessar ruas a pé e deixou de conduzir veículos automóveis, por medo de o fazer, também em razão da memória do atropelamento. De relevância, a frustração sentida pela Autora em consequência da abrupta e traumática interrupção do projecto profissional em que se achava envolvida e de que muito gostava e à perda da classificação de serviço que tinha, por não poder cumprir os objectivos do seu trabalho (pontos 13 a 17 dos factos provados).
Não existe dano estético, nem limitação das actividades de lazer, pois as sequelas das lesões causadas pelo acidente não são impeditivas de a Autora continuar a fazer as caminhadas que fazia antes do atropelamento (cfr. ponto 23).
Também na ponderação da compensação a arbitrar a este título, deverá o tribunal levar em conta o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, devendo, dentro do possível atender a decisões jurisprudenciais relativas a casos similares ou aproximados, como supra foi referido.
A título exemplificativo, referiremos alguns valores que têm vindo a ser fixados nos Acórdãos do STJ que se enunciarão de seguida (todos disponíveis em www.dgsi.pt):
- de 8/2/2018, proc. 245/12, em que foi julgada adequada e proporcional a fixação da indemnização por danos não patrimoniais em € 65.000,00 quando o quadro factual evidencia uma vida arruinada, com a lesada a suportar uma verdadeira “via crucis” em consequência de lesões múltiplas e gravíssimas em vários órgãos que vão perdurar e que têm tradução na atribuição de uma incapacidade permanente geral de 77,9 pontos, com um período de internamento de 10 meses, intervenções cirúrgicas várias, bem como tratamentos, sofrimento físico e psicológico intensos e constantes, este acentuado pela incapacidade de fazer vida autónoma e de estar incapacitada para o trabalho, tudo contribuindo para um desgosto e uma penosidade muito acrescidos no suportar do normal quotidiano, decorrente da manifesta perda de qualidade de vida, e inevitavelmente das relações interpessoais. Isto numa pessoa que tinha ainda uma esperança de vida prolongada pois completara 60 anos à data do acidente;
- de 17/6/2018, proc. 418/13, onde resultou provado que o autor, homem de 30 anos à data do acidente de viação, era uma pessoa saudável e cheio de vida e que, em consequência do acidente, sofreu várias fracturas, esteve internado durante 14 dias, tendo sido submetido a diversas intervenções e tratamentos médicos durante cerca de 4 meses; teve um período global de cerca de 2 anos e 2 meses de gravidade decrescente de incapacidade, 9 meses dos quais com incapacidade absoluta e a necessitar de ajuda de terceira pessoa; ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 5%; teve dores quantificáveis em 4 numa escala de gravidade crescente até 7; ficou com dificuldades de erecção no relacionamento sexual; deixou de poder praticar actividades desportivas e de lazer, perdeu um ano escolar e continua a necessitar, pontualmente, de tomar medicação antiálgica, tendo sido considerada justa e adequada a fixação da compensação de € 50 000,00;
- de 19/04/2018, proc. 196/11, no qual se defendeu que “ponderando este quadro factual, em especial, as circunstâncias em que ocorreu o acidente (sem qualquer culpa da Autora), a extrema gravidade das lesões sofridas por esta, os dolorosos tratamentos a que foi sujeita, com destaque para as duas intervenções cirúrgicas, com anestesia geral, o longo período de clausura hospitalar e de tratamentos, as deslocações que teve que realizar para curativos e consultas, quer ao Porto quer a Vizela, a enorme incomodidade daí resultante, as graves e extensas sequelas anátomo-funcionais decorrentes do acidente, que se traduzem num deficit funcional permanente de elevado grau (26 pontos), correspondente a uma IPP de 49,2495% e a um dano estético de grau 4, numa escala de 1 a 7, as intensas dores sofridas (de grau 5, numa escala de 1 a 7), o desgosto e amargura de, com 43 anos de idade, se ver fisicamente limitada e sem perspectivas futuras, em termos laborais, consideramos que, não obstante a apontada limitação deste Tribunal, no que concerne à sindicância de indemnização com recurso à equidade, a indemnização de €45.000,00, a título de dano não patrimonial, foi fixada prudencialmente pelas instâncias e apresenta-se como razoável, ajustada, equilibrada e adequada às circunstâncias concretas do caso vertente”;
- de 12/07/2018, proc. 1842/15, no qual é fixada a indemnização no valor de € 60.000,00 num quadro de lesões e sequelas traduzido em repercussão nas actividades desportivas e de lazer fixável no grau 3/7, repercussão na actividade sexual fixável em grau 3/7, num quantum doloris fixável no grau 6/7, em que o lesado ficou portador de perturbação persistente do humor, sequelas a nível da ráquis, abdómen, membro superior direito e membro inferior esquerdo, tendo ainda sido sujeito a intervenção cirúrgica para encerramento da colostomia e reconstituição do trânsito intestinal;
- de 4/6/2020, proc. 2732/17, onde se considerou que “perante um quadro de circunstâncias, integrado pelo tipo de lesões sofridas, internamentos sucessivos e intervenções cirúrgicas várias, tratamentos diversos, período de convalescença, um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 31 pontos, com sequelas compatíveis com a atividade profissional habitual, acarretando esforços acrescidos, quantum doloris e dano estética de nível 4, numa escala de 1 a 7, é de concluir que a A. teve um sofrimento físico e psíquico, com afetação da sua vivência pessoal, social e de desempenho, acima do nível médio, mostrando-se adequada, à luz dos parâmetros seguidos pela jurisprudência no tipo de dano em referência, a compensação de € 50.000,00”.
Tudo ponderado, temos por muito ajustada a quantia fixada pelo tribunal recorrido como compensação dos danos não patrimoniais sofridos, motivo pelo qual, também nesta parte, improcede o recurso da recorrente.
*
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso e, em consequência, mantêm a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 25/9/2025
(O presente acórdão não segue na sua redacção as regras do novo acordo ortográfico, com excepção das “citações” efectuadas que o sigam)
Carla Figueiredo
Amélia Puna Loupo
Rui Poças