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REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
CONVENÇÃO DE HAIA
BRASIL
UNIÃO ESTÁVEL
INAPLICABILIDADE DO AUJ N.º 10/2022 DE 24.11
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
AQUISIÇÃO DE NACIONALIDADE PORTUGUESA
Sumário
Sumário: (Da responsabilidade da Relatora, nos termos do artº 663º, nº 7 do NCPC) I. Do art. 980.º do CPC resulta que o objecto da acção de revisão e confirmação de sentença estrangeira consiste na apreciação da verificação de certos pressupostos de natureza essencialmente formal, segundo o sistema da delibação e não na apreciação dos fundamentos de facto e de direito da mesma sentença. II. Analisada a sentença estrangeira proferida nuns autos de Acção Declarativa de União Estável pelo Juízo da 11ª Vara de Família da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro e transitada em julgado, que declarou a união estável entre os Requerentes havida nos autos em função dos requisitos enunciados nas als. a), b), d) e e) do art. 980.º do CPC entende-se que não existe qualquer obstáculo que, do ponto de vista formal, impeça a respectiva confirmação. III. Considera-se que a sentença em causa, ao reconhecer a existência de uma “união estável” (conceito que não se mostra absolutamente transponível para a situação de “união de facto” reconhecida pela lei portuguesa (cfr. art. 3.º, n.º 3, da LN - Lei n.º 37/81, de 03/10, na redacção introduzida pela LO n.º 2/2006, de 17/04)) entre os requerentes, uma mulher, solteira, maior e um homem, divorciado, não atinge ou contraria os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, sendo certo que seria ainda necessário que os atingisse manifestamente. IV. Não é aplicável à revisão e confirmação de sentença proferida por um tribunal brasileiro, transitada em julgado, a orientação fixada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nº 10/2022 de 24.11.2022. V. Para efeitos da aquisição de nacionalidade portuguesa, com fundamento na união de facto, mesmo com a procedência da acção de revisão e confirmação de sentença estrangeira, continuam a ter de instaurar, em Portugal, uma acção judicial que tenha por objecto essa pretensão, dado que se prevê no art.º 3.º, n.º 3, da Lei 37/81, de 03.10.
Texto Integral
Acordam na 8ª Secção (cível) do Tribunal da Relação de Lisboa [1],
I - Relatório[2]:
“A”, de nacionalidade brasileira e portuguesa, solteira, maior, convivente em união estável com “B”, e, “B”, de nacionalidade brasileira, divorciado, ambos com residência habitual na Rua …, Rio de Janeiro – RJ – CEP:… Brasil, vieram intentar a presente acção especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira, pedindo que seja revista e confirmada a sentença proferida na Acção Declarativa de União Estável pelo Juízo da 11ª Vara de Família da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro - Brasil, processo nº (…)19.0001 datada de 03.04.2025 e transitada em julgado em 21.05.2025.
Alegam que:
“I – DA ELEIÇÃO DO FORO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA PARA O JULGAMENTO DA CAUSA Nos termos do art. 978º e seguintes do Código de Processo Civil, fica eleito o Tribunal da Relação de Lisboa como competente para confirmar a sentença estrangeira. II – DO PAGAMENTO DA TAXA DE JUSTIÇA (DISPENSA DA SEGUNDA PARCELA) Foi paga a primeira prestação da taxa de justiça devida no valor de 306€, (doc. n.º 01), em anexo, em consonância com o art. 6.º, n. 1, e 13.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais, DL n.º 34/2008; A presente Acção Consensual Especial de Revisão e Confirmação de Sentença Estrangeira, conforme expresso na nomenclatura utilizada, é consensual, ambas as partes figuram no polo activo. Trata-se de um processo em que ambas as partes estão em litisconsórcio voluntário a tratar da mesma matéria, conforme depreende-se do presente articulado e da procuração outorgada por ambos (doc. nº 2) juntada a este; Logo, a presente acção faz jus à dispensa do pagamento da segunda prestação da taxa de justiça, nos termos do art. 14.º-A, al. b) e c), do Regulamento das Custas Processuais, DL n.º 34/2008, pois tal causa não comporta citação ou oposição do réu, já que não há réu neste caso, tampouco audiência de instrução probatória, e as provas documentais apresentadas, a princípio, mostram-se suficientes. III – DO MÉRITO DA REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DA SENTENÇA ESTRANGEIRA DECLARATIVA DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO DE FACTO / UNIÃO ESTÁVEL Os Requerentes vivem em união estável desde 26 de Junho de 2010 e, aos 12 de Abril de 2011, por meio de Escritura Pública lavrada perante o 15º Ofício de Notas da cidade do Rio de Janeiro - Brasil, no Livro …, Fls. …, Ato …, celebraram Escritura Declaratória de União Estável, fundamentado na convivência duradoura, pública e contínua, partilhando suas vidas e contribuindo ambos para subsistência do lar mediante mútuo auxílio, ou seja, um relacionamento tipicamente de marido e mulher. Os ora Requerentes elegeram o regime da separação de bens e dessa relação, até o presente momento, não tiveram filhos. Em Março de 2025, após passados mais de dez anos do início da União de Facto, foi da vontade dos Requerentes ver declarada judicialmente a referida união para pleno gozo dos direitos dela decorrentes, uma vez que em alguns países, inclusive em Portugal, a simples Escritura Pública Declarativa de União de Facto/União Estável, não lhes permite usufruir todos os direitos inerentes estado de conviventes. Assim os Requerentes propuseram consensualmente a Ação Declarativa de União Estável, processo nº (…)19.0001 (doc. nº 6), com sentença proferida pelo Juízo da 11ª Vara de Família da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro - Brasil, em 03/04/2025 (doc. nº 6), Carta de Sentença (doc. nº 7) expedida em 08/04/2025, transitou em Julgado em 21/05/2025 (doc. nº 8) e a Acção Judicial foi extinta; Todas as cópias em anexo encontram-se devidamente autenticadas e apostiladas conforme a Convenção de Haia, não restando dúvidas acerca de sua autenticidade; Provém de Tribunal competente, não versando sobre matéria da exclusiva competência dos Tribunais portugueses; A acção foi julgada de acordo com a legislação nacional do Brasil, ali vigente; e não contém decisão contrária aos princípios de ordem pública internacional do Estado Português.”
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Foram juntos aos autos, além do comprovativo do pagamento da taxa de justiça, a procuração forense outorgada pelos Requerentes, o assento de nascimento português da primeira Requerente, cópia do Cartão de Cidadão da primeira Requerente, cópia autenticada e com Apostilhamento de Haia do documento de identificação (passaporte) do segundo Requerente, certidão da petição inicial, certidão da sentença declarativa de reconhecimento de união estável, e respectivo trânsito em julgado, devidamente certificados e com Apostilhamento de Haia.
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Foi dado cumprimento ao disposto no artº 982º do NCPC.
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A Digníssima Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido da improcedência da acção, com os seguintes argumentos: “A legitimidade de intervenção do Ministério Público no processado da revisão de sentenças estrangeiras, está expressamente limitada pelo n.º 2 do art. 985.º do CPC. No que respeita questão da escritura pública declaratória de união estável celebrada no Brasil constituir ou não uma decisão para de efeitos de ser reconhecida já anteriormente sufragávamos o entendimento quase unânime que o STJ tinha sobre a matéria, ou seja de que nenhuma decisão estrangeira pode ser reconhecida se tiver efeitos na atribuição de nacionalidade portuguesa a estrangeiros. Como bem se decidiu no acórdão do STJ, de 20.01.2022 (Proc. 151/21.8YRPRT.S1), com o qual concordamos e a cuja orientação se adere, “a declaração exarada numa “Escritura Pública de Declaração de União Estável”, perante uma autoridade administrativa estrangeira (tabelião), limita-se a confirmar as declarações prestadas pelos outorgantes, sem que o Tabelião tenha sobre elas feito incidir qualquer juízo vinculativo, com força de caso julgado, e que, enquanto tal, tivesse competência para emitir, daí que não se poderá reconhecer que aquele documento, conquanto apelidado de “escritura pública” esteja compreendida, enquanto “decisão”, pelo normativo adjectivo civil decorrente do citado art. 978.º n.º1, do Código de Processo Civil, devendo apenas ser valorado como meio probatório, sujeito à livre apreciação do julgador, não possuindo, por, isso, força de caso julgado, não tendo virtualidade para poder ser confirmada / revista pelos Tribunais portugueses”. Nas matérias relacionadas com o disposto nas alíneas c), e) e f) do art. 980.º do CPC, independentemente do entendimento que haja sobre o que deve constar como elementos de prova, certificação documental ou possibilidade, ou não, de certificação de actos notariais ou dos seus fins não estarem conformes à Lei nacional (vg aquisição de nacionalidade), sufragamos a posição assumida pelo STJ que entende que tal documento não se trata de uma decisão judicial, como é patente do Acórdão do STJ de 19 de Outubro de 2022 de fixação de jurisprudência, publicado no Diário da República n.º 227/2022, Série I de 2022.11.24 sobre esta matéria que se passa a transcrever: Face ao exposto, acorda-se no Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça em uniformizar a jurisprudência nos seguintes termos: A escritura pública declaratória de união estável celebrada no Brasil não constitui uma decisão revestida de força de caso julgado que recaia sobre direitos privados; daí que não seja susceptível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, nos termos dos arts. 978.° e ss. do Código de Processo Civil.”. * II – Saneamento
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
Não existem vícios que invalidem todo o processo.
Inexistem outras nulidades, excepções dilatórias ou questões prévias de que cumpra conhecer, sendo a questão suscitada pelo Ministério Público abordada infra.
* III - Questões a Decidir
A questão a decidir reside apenas em saber se se encontram reunidos os requisitos legais para que seja revista e confirmada a sentença proferida na Acção Declarativa de União Estável pelo Juízo da 11ª Vara de Família da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro - Brasil, processo nº (…)19.0001 datada de 03.04.2025 e transitada em julgado em 21.05.2025, que declarou a união estável havida entre “B” e “A” no período de 26.06.2010 até 03.04.2025.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
* IV - Fundamentação: A – Fundamentação de Facto:
Encontram-se assentes nos autos, os seguintes factos, atentos os documentos juntos:
1 – Em 12.04.2011, na cidade do Rio de Janeiro, perante F (…), Tabelião substituto do 15º Ofício de Notas, situado na Rua do Ouvidor, nº 89, sendo Tabeliã F(…), por escritura pública de contrato de união estável de convivência duradoura, pública e contínua, e com fundamento na Constituição Federal, artº 226, Lei nº 9.278/96 e Lei nº 10.406/2002 Código Civil, compareceram “A”, brasileira, solteira, maior, nascida em (…).1973 e “B”, brasileiro, divorciado, nascido em (…).1954, ambos residentes na Rua (…), Rio de Janeiro, e ficou justo e contratado que: 1. Os conviventes vivem sob o mesmo tecto desde 26.06.2010, como marido e mulher, comprometendo-se ambos, durante a convivência, ao respeito, à consideração, à assistência moral, a uma dedicação mútua e esforço em comum no sentido de atingir a harmonia necessária ao bem-estar que o aconchego do lar lhes poderá oferecer; 2. Que o tempo de duração do presente contrato é indeterminado, sendo que durante a vigência da convivência ambos os Conviventes deverão observar respeito e dignidade, um para com o outro, bem como a observância de todos os afazeres e cuidados exigidos para uma sólida e perfeita convivência; 3. Que no tempo de duração deste contrato o regime adoptado é o da separação absoluta de bens, ou seja, todos e quaisquer bens móveis ou imóveis, direitos e rendimentos, adquiridos por qualquer dos conviventes antes ou durante a vigência do presente contrato pertencerão a quem os adquiriu, não se comunicando com os bens da outra parte; 4. Que os Conviventes, naquele acto, renunciaram de forma irretractável e irrevogável, a qualquer ajuda material, a título de alimentos, em caso de extinção do presente contrato, por quaisquer de suas formas, resguardado o direito dos filhos comuns porventura existentes; 5. Que as causas de extinção do presente contrato podem ser: por resolução involuntária (força maior ou caso fortuito), por resolução unilateral ou bilateral (por simples declaração de uma ou de ambas as partes), por rescisão unilateral ou bilateral (quando há lesão às cláusulas de convivência expressas na cláusula primeira);, e, finalmente, pela cessação (no caso de morte de uma das partes ou de ambas); 6. Que o termo inicial do presente contrato é a partir do momento em que os Conviventes iniciaram a viver sob o mesmo tecto (cláusula primeira).
2 – A certidão da escritura foi apostilhada em 09.04.2024 constando do documento a menção “apostille” e a referência “Convention de La Haye le 5 Octobre 1961”, a identidade do signatário do documento apostilado como sendo “G(…)”, a qualidade em que emitiu o documento, “Escrevente”, a numeração do selo aposto “(…)16732-SXO”, o local e a data da aposição de apostila “Rio de Janeiro no dia 09.04.2024”, a identidade do certificador, “M(…)”.
3 – Dessa relação, até ao presente momento, os Requerentes não tiveram filhos.
4 – Em Março de 2025, foi da vontade dos Requerentes ver declarada judicialmente a referida união para pleno gozo dos direitos dela decorrentes, uma vez que em alguns países, inclusive em Portugal, a simples Escritura Pública Declarativa de União de Facto/União Estável, não lhes permite usufruir todos os direitos inerentes estado de conviventes e propuseram consensualmente a Acção Declarativa de União Estável, que correu termos sob o processo nº (…).19.0001, com sentença proferida pelo Juízo da 11ª Vara de Família da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro - Brasil, em 03.04.2025, a qual transitou em julgado em 21.05.2025.
5 – Consta dessa sentença o seguinte: “Trata-se de acção de declaração de união estável ajuizada por “B” e “A”. Alegam as partes, em inicial de índex (…)608, que vivem em união estável desde Junho de 2010, tendo sido celebrada escritura pública de união estável em Abril de 2011. Sustentam que, do relacionamento, não advieram filhos. Mencionam, ainda, que elegeram o regime da separação de bens. É o relatório. Passo a decidir. Da análise detida dos documentos que instruem a petição inicial, reputo que há provas cabais da existência de união estável entre as partes, considerando a declaração de índex 181287618. Ante o exposto, resolvo o mérito, nos termos do artº 487, I, do CPC, e julgo procedente o pedido autoral, para declarar a união estável havida entre “B” e “A” no períodode 26.06.2010 até à presente data. Após o trânsito em julgado, nada mais havendo, dê-se baixa e arquivem-se os autos, com as cautelas da praxe. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Rio de Janeiro, 3 de Abril de 2025, D(…) N(…), Juiz Substituto”.
6 – A certidão da sentença foi apostilhada em 09.07.2025 constando do documento a menção “apostille” e a referência “Convention de La Haye le 5 Octobre 1961”, a identidade do signatário do documento apostilado como sendo “G (…)”, a qualidade em que emitiu o documento, “Escrevente”, a numeração do selo aposto “(…)961-DPU/17º Ofício de Motas - RJ”, o local e a data da aposição de apostila “Rio de Janeiro no dia 09.07.2025”, a identidade do certificador, “R (…)”.
7 – Com data de 21 de Maio de 2025, foi emitida certidão do trânsito em julgado da sentença, certificando o trânsito em julgado da sentença de índex (…)7247, no processo de reconhecimento e extinção de união estável entre “B” e “A”.
8 – A certidão do trânsito em julgado da sentença foi apostilhada em 09.07.2025 constando do documento a menção “apostille” e a referência “Convention de La Haye le 5 Octobre 1961”, a identidade do signatário do documento apostilado como sendo “G (…)”, a qualidade em que emitiu o documento, “Escrevente”, a numeração do selo aposto “(…)969-DVX/17º Ofício de Motas - RJ”, o local e a data da aposição de apostila “Rio de Janeiro no dia 09.07.2025”, a identidade do certificador, “R (…)”.
* B - Fundamentação de Direito:
Os requisitos necessários à confirmação de sentença estrangeira encontram-se elencados nas diversas alíneas do artº 980º do NCPC e são os seguintes:
- Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
- Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
- Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
- Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
- Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade de partes;
- Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
O Réu na acção de revisão de sentença estrangeira “é a pessoa contra a qual se pretende fazer valer a sentença a rever e confirmar, e que é, naturalmente, a parte contra quem foi proferida a sentença (ou a pessoa que lhe sucedeu).” [3].
Mas, se nem sempre a sentença é proferida contra alguém – assim, por exemplo, num processo sem réus, como o processo de divórcio por mútuo consentimento (em Portugal, artigos 994º a 999º do CPC) - não tem de haver sempre um réu num processo de revisão de sentença estrangeira.
É esta, de há muito, a posição consensual da jurisprudência das Relações [4]. Isto porque, como se diz numa decisão singular de 2011 [5], “nem sempre a atribuição de eficácia à sentença estrangeira visa a possibilidade de a fazer impor a outrem; de a fazer valer contra outrem. Com efeito, situações há em que com atribuição de eficácia à sentença estrangeira apenas se pretende tornar efectivas no território nacional as situações definidas na sentença estrangeira em favor do próprio peticionante, sem que haja qualquer confronto com terceiro. Ora, nesses casos, a acção de revisão não se estabelece numa relação processual antagónica, em termos de autor/réu, requerente/requerido, mas numa simples demanda ao Estado de atribuição de eficácia à sentença estrangeira; ao reconhecimento da situação por ela definida. Pelo que a mesma não terá qualquer sujeito a ocupar o lado passivo da relação processual (abstraindo aqui do papel do Ministério Público enquanto defensor da legalidade e dos princípios de ordem pública)”.
Isto é assim apesar da posição de Alberto dos Reis que diz que naqueles casos, apesar de não haver propriamente um vencido nem um vencedor, continuaria a haver um réu, que é a pessoa contra quem a revisão é pedida [6]. Ou seja, este Professor pressupõe que tem de haver sempre um réu, e por isso força a qualificação do réu, que, afinal, deixa de ser aquele contra quem se pretende fazer valer a sentença, para passar a ser aquele contra quem é requerida a revisão, mesmo que a sentença não tenha sido proferida contra ele, mas não demonstra a necessidade de assim ser e, por isso, como se disse, a posição em causa não tem sido considerada obstáculo à tese da desnecessidade de réu (de qualquer modo, a posição deste autor teria sentido para outras situações, pois que na maior parte dos casos de divórcio por mútuo consentimento, para mais no tempo em que a obra em causa foi escrita – 1955 -, a sentença não decreta só o divórcio, decidindo outras questões, em relação às quais se pode facilmente dizer que haverá normalmente interesse em fazer valer tal sentença contra com o outro ex-cônjuge).
E visto que há processos sem réus, como por exemplo, já se viu, o processo de divórcio por mútuo consentimento, não pode ser uma posição de princípio a impor a tese de que tem de haver sempre réus, esquecendo-se a realidade de que o processo de revisão de sentença estrangeira pode dizer respeito a sentenças proferidas sem réus ou seja, sentenças que não são proferidas contra ninguém. Ou dito de outro modo, não há razão para que não se aceite que um processo de revisão de sentença diga respeito a sentenças obtidas em processos de jurisdição voluntária, caso em que se impõem as devidas adaptações, no caso, a desnecessidade da existência de réu, se for o caso.
Se nem sempre tem de haver um réu, porque a sentença pode ser obtida num processo sem parte contrária e, portanto, nem sempre se pretende fazer valer essa sentença contra alguém, a obrigatoriedade de impor a presença de alguém como autor/requerente da revisão, só pode decorrer da existência de uma norma, um negócio ou a natureza da relação a impor essa intervenção (artº. 33º do NCPC).
Tem-se entendido (é a posição do Ministério Público com apoio na jurisprudência das Relações) que quem quer que tenha sido parte no processo que deu origem à sentença a rever é necessariamente parte na relação que está em causa no processo que tenha por objecto a revisão dessa sentença e que, por isso, tem de ser parte nesta acção, como requerente, isto certamente com base no raciocínio, de que, se assim não for, a sentença de revisão não produz o seu efeito útil normal, ou seja não regula definitivamente a situação daquele que pediu a revisão, porque não vincula os outros interessados nessa relação (ou seja, haveria um litisconsórcio activo necessário natural).
Atentos os factos assentes, supra referenciados, alicerçados em prova documental pacífica e credível, certificando, quer a existência da celebração da escritura de união estável, quer a acção declarativa de União Estável, que correu termos sob o processo nº (…).19.0001, com sentença proferida pelo Juízo da 11ª Vara de Família da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro - Brasil, em 03.04.2025, a qual transitou em julgado em 21.05.2025, actos realizados com relevância legal no país onde foi proferida a sentença, vejamos se, se suscitam dúvidas ou se colocam questões sobre a revisibilidade da decisão.
Podemos constatar, através da documentação que o Requerente fez juntar aos autos, que efectivamente da sentença não foi interposto recurso, encontrando-se transitada em julgado segundo a lei do país em que foi proferida, não havendo, assim, nesta vertente, óbice à sua revisão e confirmação.
Como se salienta no Acórdão do TRL de 24.01.2012 [7], “nos termos do art. 980º, alínea f), para que a sentença seja confirmada é necessário “que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português”, preceito que surge em consonância com o art. 22º do Cód. Civil, que obsta à aplicação da lei estrangeira “quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português”.
Como vem sendo sistematicamente afirmado, a restrição é imposta em função de princípios de ordem pública internacional, e não de ordem pública interna [8].
“O conteúdo da noção de ordem pública internacional é forçosamente impreciso e vago. Ordem pública internacional é um conceito indeterminado, um conceito que não pode ser definido pelo seu conteúdo, mas só pela sua função: como expediente que permite evitar que situações jurídicas dependentes de um direito estrangeiro e incompatíveis com os postulados basilares de um direito nacional venham inserir-se na ordem sociojurídica do Estado do foro e fiquem a poluí-la” [9].
Quanto ao que define as normas de ordem pública internacional, a doutrina tem distinguido vários caracteres. Para uns, o traço essencial destas leis é o de salvaguardarem interesses fundamentais do Estado ou da comunidade local, outros consideram que são de ordem pública as disposições imperativas da lei nacional, avançando, no entanto, que nenhum critério serve, em absoluto, para distinguir este tipo de normas.
Na mesma linha de orientação refere-se no Acórdão do TRC de 03.03.2009 [10], que “A lei (arts. 22º do CC e 980º, al. f) do CPC) não define o conceito de “ordem pública internacional”, tratando-se de um conceito indeterminado, carecido de preenchimento valorativo na análise casuística. O que releva, para o efeito, não são os princípios consagrados na lei estrangeira que servem de base à decisão, mas o resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto, ou seja, a reserva de ordem pública internacional visa impedir que a aplicação de uma norma estrangeira, pela via indirecta da execução de sentença estrangeira, implique, na situação concreta, um resultado intolerável. Por conseguinte, o juízo de compatibilidade com a ordem pública internacional do Estado Português terá que ser necessariamente aferido, não pelo conteúdo da decisão e o direito nela aplicado, mas pelo resultado do reconhecimento, o que implica um “exame global”.
Não basta, por isso, que a solução dada ao caso pelo direito estrangeiro seja divergente da do direito interno português, exigindo-se que o resultado seja “manifestamente incompatível” com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português [11].”
O artigo 440.º, n.º 1, do Código de Processo Civil estatui que sem prejuízo do que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os documentos autênticos passados em país estrangeiro, na conformidade da lei desse país, consideram-se legalizados desde que a assinatura do funcionário público esteja reconhecida por agente diplomático ou consular português no Estado respectivo e a assinatura deste agente esteja autenticada com o selo branco consular respectivo.
Em razão da complexidade do sistema diplomático de certificação de documentos estrangeiros, foi celebrada, em 5 de Outubro de 1961, a Convenção Relativa à Supressão da Exigência da Legalização dos Actos Públicos Estrangeiros (doravante, Convenção), no contexto da Conferência de Direito Internacional Privado de Haia.
Esta Convenção facilita a certificação da autenticidade de documentos para que os mesmos possam circular entre ordens jurídicas, estabelecendo uma tramitação uniforme dessa certificação.
No que ao caso interessa, Portugal assinou a Convenção da Apostilha de Haia em 1965, tendo o regime da Convenção entrado em vigor em 4 de Fevereiro de 1969, e o Brasil assinou a Convenção em 02.12.2015, tendo o respectivo regime entrado em vigor em 14.08.2016 [12].
Não é controversa e não oferece dúvidas a aplicação da Convenção no caso dos autos.
Inexiste na Convenção de Haia qualquer exigência quanto ao prazo de validade da apostilha, limitando-se a mesma a estabelecer as condições da sua validade.
A legalização de documentos nos termos da Convenção apenas abrange a formalidade pela qual os agentes diplomáticos ou consulares do país sobre cujo território o acto deve produzir os seus efeitos reconhecem a assinatura, a qualidade em que o signatário do acto actuou e, sendo caso disso, a autenticidade do selo ou do carimbo que constam do acto – artigo 2.º da Convenção.
Por seu turno, dispõe o artigo 3.º, I.ª parte, do mesmo diploma, que a única formalidade que pode ser exigida para atestar a veracidade da assinatura, a qualidade em que o signatário do acto actuou e, sendo caso disso, a autenticidade do selo ou do carimbo que constam do acto consiste na aposição da apostilha definida no Artigo 4.º, passada pela autoridade competente do Estado donde o documento é originário.
A apostilha prevista no artigo 3.º, alínea primeira, será aposta sobre o próprio acto ou numa folha ligada a ele e deve ser conforme ao modelo anexo a esta Convenção. A apostilha pode, todavia, ser redigida na língua oficial da autoridade que a passa. As menções que figuram na mesma podem também ser redigidas num segundo idioma. O título «Apostila (Convenção da Haia de 5 de Outubro de 1961)» deverá ser escrito em língua francesa artigo 4.º da Convenção.
O teor dos documentos apresentados, referidos no pontos 5., 6. 7. e 8. dos Factos Provados satisfaz aos requisitos enunciados nas normas transcritas, como resulta do cotejo entre um e outras.
A apostille nada mais é de que um atestado de autenticidade da assinatura e da função pública exercida pelo signatário do documento e, portanto, aplica-se aos documentos públicos, exarados por uma autoridade com fé pública, delegada ou não (cargo ou função) [13].
Assim, entende-se que se encontra atestada a veracidade da assinatura do emitente da certidão de inteiro teor dos autos em que foi proferida a sentença revidenda, a qualidade de funcionária do cartório judicial em que a passou e a autenticidade do selo, nos termos e para os efeitos do artigo 5.º da Convenção.
Em suma, refere-se a questão ao requisito de autenticidade exigido pela alínea a) do artigo 980.º, do Código de Processo Civil, quanto à certificação do acto revidendo, considerando-se que essa autenticidade se encontra atestada nos termos aplicáveis pelo Direito Internacional que vincula o Estado Português.
Encontra-se igualmente atestado o trânsito em julgado da decisão, com o que temos por verificados os requisitos a que alude o artigo 980.º alíneas a) e b), do Código de Processo Civil.
Quanto à verificação do requisito exigido pelo artigo 980.º, alínea c), do Código de Processo Civil.
Dispõe a norma ser requisito da decisão que a sentença revidenda provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses, o que não foi colocado em causa.
Sempre se diga que nada consta que possa integrar a I.ª parte da norma e que a questão não é de competência exclusiva dos tribunais portugueses ou da União, nem nos termos do Regulamento Bruxelas II bis (que se refere por aplicável em determinadas situações mesmo perante Estados terceiros) nem nos do artigo 63.º do Código de Processo Civil.
Também inexiste notícia de acção em Portugal que possa ser considerada para os efeitos da alínea d) da norma.
Com o que se verificam os requisitos das alíneas c) e d).
O artigo 984.º do Código de Processo Civil, estatui que o tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 980.º; e também nega oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.
Anote-se que face a esta norma o tribunal da Relação deve recusar a revisão quando do exame do processo ou de conhecimento oficioso apure estar em falta o requisito da citação.
Ora, do exame do processo nada resulta que permita concluir que se encontra em falta a citação. Pelo contrário, o que resulta do exame do processo é que a acção onde foi proferida a sentença revidenda foi instaurada em comum acordo por ambos os Conviventes, pelo que entendemos verificado o requisito da alínea e).
Ocorrerá ofensa dos princípios ético-jurídicos das normas aplicáveis à dissolução do casamento e aos valores fundamentais que enformam a ordem jurídica Portuguesa?
Estabelece a alínea f) do artigo 980.º que para que a sentença seja confirmada é necessário: (…) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
A questão colocada nesta norma constitui excepção ao regime formal a que obedece o regime da revisão de sentenças estrangeiras, introduzindo uma apreciação de mérito, não da sentença, mas do efeito do reconhecimento.
É o reconhecimento, e não a própria decisão, que deve ser compatível com a ordem pública internacional. Por isso, o momento relevante para a concretização da ordem pública internacional é o do reconhecimento, e não o momento em que a decisão é proferida.
Em suma, o tribunal de reconhecimento tem de limitar-se a averiguar se, à luz dos factos dados como provados pelo tribunal de origem, e da determinação, interpretação e aplicação do Direito aplicável a que procedeu, o reconhecimento implica uma violação manifesta e inaceitável de uma regra essencial vigente na ordem jurídica do foro, ou de um direito reconhecido como fundamental nesta ordem jurídica, no momento do reconhecimento [14].
A norma anterior à do artigo 980.º, alínea f), do Novo Código de Processo Civil, a do artigo 1096.º, alínea f), do Código de Processo Civil na redacção do Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro, tinha idêntica redacção. Não assim quanto à primitiva redacção do artigo 1096.º, alínea f) do Código de Processo Civil na redacção anterior à reforma de 95/96 que dispunha como segue:
Para que a sentença seja confirmada é necessário:
(…)
f) Que não contenha decisões contrárias aos princípios de ordem pública portuguesa; (…).
Não é sem consequências a alteração. Trata-se de avaliar os princípios e valores da ordem pública internacional do Estado Português, não os princípios consagrados no sistema jurídico português interno [15].
O regime actual, mesmo quanto a esta cláusula excepcional que em alguma medida aflora o mérito, é assim mais consentâneo com o sistema vigente em Portugal de recusa de apreciação intrínseca da decisão a rever, remetendo a apreciação face ao acquis do direito comum dos países ocidentais fundado na defesa dos direitos fundamentais da pessoa; mesmo aí, como já referido, a apreciação cinge-se às consequências do reconhecimento, não atingindo o mérito da decisão.
A excepção é ainda integrada pelos princípios fundamentais do Estado Português que decorram desta ordem pública internacional na sua concretização no momento histórico da revisão, os quais se encontram sobretudo nas normas de nível constitucional ou que respeitem a direitos fundamentais.
A actuação da cláusula de ordem pública internacional é justificada, em especial, quando estejam em causa direitos fundamentais. Com efeito, o conteúdo da ordem pública internacional tende hoje a ser determinado à luz dos direitos fundamentais protegidos pela Constituição, pelas Convenções Internacionais e pelo Direito da União Europeia.
Excepcionalmente, poderão existir proposições jurídicas fundamentais estruturantes da ordem jurídica portuguesa que não tenham dignidade constitucional, internacional ou europeia, mas terão de resultar de uma sedimentação e consolidação em sectores importantes da ordem jurídica, mediante uma consagração legislativa ou consuetudinária, facultada pela vontade colectiva manifestada pelos órgãos do poder politico com competência legislativa ou pelo consenso social. Meras soluções particulares, que resultam de opções conjunturais ou pontuais do legislador em matéria de Direito Privado, não se revestem destas características [16].
Por tudo, entende-se que o facto de a decisão dar provimento a um pedido de reconhecimento de união estável entre uma mulher, solteira, maior e um homem, divorciado, não atinge ou contraria os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, sendo certo que seria ainda necessário que os atingisse manifestamente [17].
Conclui-se inexistir violação manifesta dos princípios de ordem pública internacional do Estado Português.
De acordo com o disposto no art. 983.º, n.º 1, do NCPC, “o pedido só pode ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no artigo 980.º ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g) do artigo 696.º.”
E se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de nacionalidade portuguesa, a impugnação pode ainda fundar-se em que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa (n.º 2 do mesmo preceito legal). Este n.º 2 consagra, assim, o denominado privilégio da nacionalidade e estabelece um fundamento autónomo de dedução de impugnação. “Este regime implica um controlo de mérito, cabendo ao Tribunal da Relação apreciar os factos dados como provados na sentença revidenda e o direito aplicável, sem que isso signifique proceder a um novo julgamento”[18].
A propósito da aplicação do preceito previsto neste n.º 2 do art. 983.º do NCPC tem-se entendido que a mesma pressupõe que existe uma parte vencida. É isso que decorre da posição de Lima Pinheiro, quando escreve que nos casos de divórcio por mútuo consentimento, a decisão não é proferida “contra” nenhuma das partes e, por conseguinte, não é aplicável o referido normativo legal [19].
Por sua vez, de acordo com o disposto no art. 984.º do CPC, “o tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 980.º; e também nega oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.”.
A jurisprudência do STJ tem considerado de forma consistente que a lei presume a verificação dos requisitos previstos nas alíneas b) a e) do referido art. 980.º (correspondente ao anterior art. 1096.º do anterior Código), dispensando o requerente de fazer a respectiva prova, cabendo ao requerido o ónus da prova de que tais requisitos não se verificam, a menos que o tribunal, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nessas alíneas, caso em que, nos termos previstos no art. 984.º acima citado, deve negar oficiosamente a confirmação[20].
O nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras inspira-se basicamente no chamado sistema de delibação, isto é, de revisão meramente formal. O que significa que o tribunal, em princípio, se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo, pois, do fundo ou mérito da causa. Ou seja, desde que o tribunal nacional se certifique de que tem perante si uma verdadeira sentença estrangeira, deve reconhecer-lhe os efeitos típicos das decisões judiciais, não fazendo sentido que proceda a um novo julgamento da causa” [21].
Nos presentes autos, a acção não foi contestada e os Requerentes fizeram junção aos autos de toda a documentação necessária e exigida por lei, encontrando-se reunidos os requisitos exigidos pelo artº 980º do NCPC.
Todavia, tendo vista do processo, a Digníssima Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido de ser indeferida a pretensão.
Porém, estribaram-se as alegações do Ministério Público no teor do Acórdão do STJ de 20.01.2022 onde se refere que: “a declaração exarada numa “Escritura Pública de Declaração de União Estável”, perante uma autoridade administrativa estrangeira (tabelião), limita-se a confirmar as declarações prestadas pelos outorgantes, sem que o Tabelião tenha sobre elas feito incidir qualquer juízo vinculativo, com força de caso julgado, e que, enquanto tal, tivesse competência para emitir, daí que não se poderá reconhecer que aquele documento, conquanto apelidado de “escritura pública” esteja compreendida, enquanto “decisão”, pelo normativo adjectivo civil decorrente do citado art. 978.º n.º1, do Código de Processo Civil, devendo apenas ser valorado como meio probatório, sujeito à livre apreciação do julgador, não possuindo, por, isso, força de caso julgado, não tendo virtualidade para poder ser confirmada / revista pelos Tribunais portugueses”[22].
Não desconhecemos o teor do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do nosso Supremo Tribunal de Justiça, nº 10/2022 de 24.11.2022 [23].
Consta, efectivamente, do sumário do referido Acórdão que ““A escritura pública declaratória de união estável celebrada no Brasil não constitui uma decisão revestida de força de caso julgado que recaia sobre direitos privados; daí que não seja susceptível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, nos termos dos arts. 978.º e ss. do Código de Processo Civil”.
Contudo, salvo o devido respeito, não é aplicável ao caso dos autos [24].
É que na presente acção não é pedida a revisão e confirmação de uma escritura de união estável outorgada no Brasil, independentemente de essa escritura ter sido realizada e junta aos autos devidamente apostilhada.
O que se pede nesta acção é a revisão e confirmação da sentença proferida em 03.04.2025, na Acção Declarativa de União Estável, que correu termos sob o processo (…).19.0001, pelo Juízo da 11ª Vara de Família da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro - Brasil, a qual transitou em julgado em 21.05.2025.
E isso, a nosso ver, torna completamente inaplicável ao caso dos autos a tese defendida na uniformização de jurisprudência referida, uma vez que o objecto da decisão naqueles autos incidia sobre uma escritura pública de união estável.
Com efeito, estipula o artigo 978.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que: “Sem prejuízo do que se acha estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos provados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.”.
A sentença estrangeira que disponha sobre direitos privados para ter eficácia em Portugal e produzir os efeitos que lhe competem segundo a lei do país de origem (ou seja, para lhe ser conferido exequatur), tem de sujeitar-se a um processo especial de revisão e confirmação regulado nos artigos 978.º e seguintes do CPC.
Existem vários sistemas de revisão e reconhecimento, reconduzindo-se, essencialmente, a três:
1. Reconhecimento de pleno direito (ipso iure) da sentença no Estado onde se pretende que produza os seus efeitos, independentemente de qualquer intervenção dos tribunais nacionais ou de qualquer processo de exequatur;
2. Reconhecimento meramente formal ou de delibação por via do qual o tribunal se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e certas condições de regularidade formal;
3. Revisão de mérito, situação em que o tribunal conhece do fundo ou do mérito da causa e procede a um novo julgamento tanto da questão de facto como da questão de direito.
Em alguns países, como Portugal, embora a regra seja a revisão formal a que corresponde o sistema indicado em segundo lugar, há concessões ao sistema de revisão de mérito, adoptando-se, assim, um sistema misto de revisão formal e de revisão de mérito.
Essa vertente mista ocorre apenas em determinadas situações que, por razões de segurança jurídica e de protecção dos cidadãos nacionais, a lei não prescindiu de reservar para os tribunais nacionais o poder de revisão de mérito, embora não se tenha adoptado um puro sistema de revisão de mérito, uma vez que, mesmo na situação em que é invocado o privilégio da nacionalidade (artigo 983.º, n.º 2, do CPC), porventura o exemplo mais acabado de revisão de mérito, ou mesmo o requisito previsto na alínea f) do artigo 980.º do CPC referente à aferição dos princípios de ordem pública internacional, a revisão de mérito ainda que abranja a decisão em si mesma e os respectivos fundamentos, não são permitidas indagações e/ou alterações sobre a matéria de facto, tendo o tribunal de revisão de aceitar os factos que a sentença estrangeira deu como provados, cabendo-lhe apenas conhecer do tratamento jurídico que a esses factos deveria ter sido dado segundo o direito privado português, apreciando, no fundo, se a qualificação jurídica dos factos feita pelo tribunal estrangeiro é aceitável perante a ordem jurídica portuguesa [25].
Assim, os requisitos necessários para a confirmação, nos termos do artº 980º do Código de Processo Civil, são, como já referimos, os seguintes: a) que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão; b) que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida; c) que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses; d) que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição; e) que o réu tenha sido regularmente citado para acção nos termos da lei do país do tribunal de origem e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes; f) que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português.
Dispõe o artº 983º, nº 1, do Código de Processo Civil: “O pedido só poder ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no artigo 980º, ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g), do artigo 696º.”
O art.º 984.º do Código de Processo Civil estipula que o tribunal deve verificar oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) supra citadas; quanto às restantes condições, o tribunal deve negar a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum ou alguns desses requisitos.
Ora, no caso vertente está em causa uma sentença de reconhecimento da união estável entre os requerentes, intentada por ambos os requerentes, decidida com trânsito em julgado.
Assim, entendemos que da análise da sentença se mostram preenchidos os requisitos indicados sob as alíneas a) a e), pois dos autos e documentos juntos, ou seja, da sentença resultam preenchidas tais exigências.
Quanto à alínea f), ou seja, a exigência de que a sentença revidenda não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, conforme expende Ferrer Correia [26], cada Estado tem os seus valores jurídicos fundamentais, de que entende não dever abdicar, e interesses de toda a ordem, que reputa essenciais e que em qualquer caso lhe incumbe proteger. Tal implica que a aplicação da lei estrangeira será recusada “na medida em que essa aplicação venha lesar algum princípio ou valor básico do ordenamento nacional, tido por inderrogável, ou algum interesse de precípua grandeza da comunidade local”.
A actual redacção da alínea f) do artigo 980.º do CPC corresponde à que foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12.12 no art.º 1096.º do anterior CPC. A redacção anterior exigia que a sentença revidenda não contivesse “decisões contrárias aos princípios de ordem pública portuguesa”, ao passo que no texto actual exige-se que a sentença “não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português”.
Reatando a citação de Ferrer Correia [27], “não é, portanto, a decisão propriamente que conta, mas o resultado a que conduziria o seu reconhecimento. A decisão pode apoiar-se numa norma que, considerada em abstracto, se diria contrária à ordem pública internacional do Estado português, mas cuja aplicação concreta o não seja.”
Acresce que a introdução do advérbio “manifestamente” pretende frisar o carácter excepcional da intervenção da ordem pública.
No dizer do Supremo Tribunal de Justiça, “a excepção de ordem pública internacional ou reserva de ordem pública prevista na al. f) do art. 1096º só tem cabimento quando da aplicação do direito estrangeiro cogente resulte contradição flagrante com e atropelo grosseiro ou ofensa intolerável dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica nacional e, assim, a concepção de justiça do direito material, tal como o Estado a entende. Só há que negar a confirmação das sentenças estrangeiras quando contiverem em si mesmas, e não nos seus fundamentos, decisões contrárias à ordem pública internacional do Estado Português - núcleo mais limitado que o correspondente à chamada ordem pública interna, por aquele historicamente definido em função das valorações económicas, sociais e políticas de que a sociedade não pode prescindir, mas operando em cada caso concreto para afastar os resultados chocantes eventualmente advenientes da aplicação da lei estrangeira. O cabimento daquela reserva só, por conseguinte, se verifica quando o resultado da aplicação do direito estrangeiro contrarie ou abale os princípios fundamentais da ordem jurídica interna, pondo em causa interesses da maior dignidade e transcendência, sendo, por isso, "de molde a chocar a consciência e a provocar uma exclamação"” [28].
Com efeito, e como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.11.2019 [29], o documento que se apresenta para ser revisto e confirmado não se refere à “união de facto”, mas sim a uma “união estável”. E a união estável tem características que a situam entre a união de facto portuguesa e a parceria registada prevista no Regulamento (UE) 2016/1104 do Conselho, de 24 de Junho de 2016).
Como se decidiu no recente Acórdão da Relação de Lisboa de 14.12.2023 [30], “Também nada obsta ao seu reconhecimento dado que ainda que inicialmente estabelecida em instrumento negocial dos requerentes figura agora com a chancela judicial, ou seja, em sentença. Logo, não haverá que considerar a doutrina do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 10/2022, publicado na 1ª série do DR de 24/11/2022, nos termos do qual “A escritura pública declaratória de união estável celebrada no Brasil não constitui uma decisão revestida de força de caso julgado que recaia sobre direitos privados; daí que não seja susceptível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, nos termos dos arts. 978.º e ss. do Código de Processo Civil”.
No âmbito do ordenamento jurídico brasileiro a união estável é erigida à qualidade de entidade familiar. Define Álvaro Villaça de Azevedo [31] a união estável do seguinte modo: “A convivência não adulterina nem incestuosa, duradoura, pública e continuam de um homem e de uma mulher, sem vínculo matrimonial, convivendo como se casados fossem, sob o mesmo tecto ou não, constituindo, assim, a sua família de facto”.
Francisco Eduardo Orciole Pires e Albuquerque Pizzolante [32] caracterizam a figura da união estável, da seguinte forma: “meio legítimo de constituição de entidade familiar, havida, nos termos estudados, por aqueles que não tenham impedimentos referentes à sua união, com efeito de constituição de família”.
Ou seja, e basicamente, o que está em causa é o reconhecimento jurídico de determinada situação de facto duradoura que constitui um verdadeiro e singular modelo de família, existindo entre os conviventes uma relação contínua, pública e análoga ao relacionamento entre os cônjuges (no fundo a expressão da convivência marital entre eles), com reflexos no plano do regime de bens vigente entre eles (com a aplicação do regime de comunhão parcial de bens) e a atribuição de outros benefícios no domínio da saúde e da protecção social.
A propósito, como bem decidido pelo STJ no Acórdão de 23.09.2021 [33], “se existe norma de conflitos para a “forma do casamento” e para as “relações entre os cônjuges” – artºs 50º e 52º CCiv, mas não existe norma semelhante para aunião de facto, seria necessário que existisse tal norma, face à crescente desformalização das relações afectivas, de convívio e de comunhão material entre os seres humanos e à crescente internacionalização de tais referidas relações. VI - Tal lacuna deve ser preenchida pelas normas aplicáveis ao caso análogo das relações entre os cônjuges, que, não tendo eles a mesma nacionalidade, são reguladas pela lei da sua residência habitual comum e, na falta desta, a lei do país com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa (artº 52º nº 2 CCiv)”.
E refere-se ainda, na fundamentação do referido Acórdão que “Como se observa do direito brasileiro (consulta efectuada na internet ao Acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, acórdão nº ….137), “a Constituição Federal, no seu artigo 226, § 3º, assegura a protecção do Estado à união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar. De outro lado, o artigo 1.723, do Código Civil, dispõe que é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objectivo de constituição de família”. “O principal e inafastável elemento para o reconhecimento da união estável, sem sombra de dúvidas, é o teleológico ou finalístico: o objectivo de constituição de família. Este, seguramente, não poderá faltar. Isto porque o casal que vive em uma relação de companheirismo – diferentemente da instabilidade do simples namoro – realiza a imediata finalidade de constituir uma família, como se casados fossem. Essa aparência de casamento, essa finalidade de constituição de um núcleo estável familiar é que deverá ser investigada em primeiro lugar, pelo intérprete, ao analisar uma relação apontada como de união estável. Trata-se da essência do instituto no novo sistema constitucionalizado, diferenciando uma união estável de uma relação meramente obrigacional.” “Vida em comum, mútua assistência entre os companheiros e objectivos comuns, isto é, um projeto de vida compartilhado, caracterizam a união estável, diferenciando-a de uma simples relação de namoro, ainda que qualificado e prolongado no tempo.” Da mesma forma, o Acórdão do Superior Tribunal de Justiça, de 19/5/2011, no sentido de que “os princípios da igualdade e da dignidade humana, que têm como função principal a promoção da autodeterminação e impõem tratamento igualitário entre as diferentes estruturas de convívio sob o âmbito do direito de família, justificam o reconhecimento das parcerias afetivas entre homossexuais como mais uma das várias modalidades de entidade familiar”. “O art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil permite a equidade na busca da Justiça. O manejo da analogia frente à lacuna da lei é perfeitamente aceitável para alavancar, como entidades familiares, as uniões de afecto entre pessoas do mesmo sexo. Para ensejar o reconhecimento, como entidades familiares, de referidas uniões patenteadas pela vida social entre parceiros homossexuais, é de rigor a demonstração inequívoca da presença dos elementos essenciais à caracterização de entidade familiar diversa e que serve, na hipótese, como parâmetro diante do vazio legal - a de união estável - com a evidente excepção da diversidade de sexos.” “Demonstrada a convivência, entre duas pessoas do mesmo sexo, pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objectivo de constituição de família, sem a ocorrência dos impedimentos do art. 1521 do Código Civil, na redacção de 2002, com a excepção do inc. VI quanto à pessoa casada separada de fato ou judicialmente, haverá, por consequência, o reconhecimento dessa parceria como entidade familiar, com a respectiva atribuição de efeitos jurídicos dela advindos.” Assim procedeu, de facto, a decisão revidenda. Em Portugal, desde a vigência da Lei nº 7/2001 de 11 de Maio, que as uniões de facto entre pessoas do mesmo sexo estão legalmente reconhecidas, atribuindo a lei à união de facto, independentemente do sexo dos parceiros, direitos no que respeita à casa de morada comum, relações laborais, fiscalidade e segurança social. Define-se a união de facto como “a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos” (artº 1º nº 2 Lei nº 7/2001). É patente a similitude da união estável do direito brasileiro com a união de facto do direito português – embora ali se destaque a “convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objectivo de constituição de família” e no direito português a necessária comunhão de leito, mesa e habitação, como marido e mulher (cf. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, I, 4ª ed., pg. 62), consagração da definição de casamento como “o contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida”, nos termos das disposições do Código Civil (artº 1577º CCiv), reciprocamente vinculadas por deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência (artº 1672º CCiv). O que importa porém salientar, neste ponto, é que a decisão proferida em nada bole com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, antes estes mesmos princípios confirmam a possibilidade de ser proferida decisão como a revidenda, na ordem jurídica portuguesa. E ainda que se deva reconhecer que a coabitação é um requisito indispensável à verificação de uma união de facto no direito português, a sua não verificação não atingiria qualquer resultado intolerável na nossa ordem jurídica, posto que verificada a vinculação recíproca pelos demais deveres de respeito, fidelidade, cooperação e assistência, tal como referidos no artº 1672º CCiv.”.
Hoje, em Portugal, já praticamente não se discute que a união de facto não pode deixar de ser reconhecida como uma relação jurídica familiar, face à actual redacção do art. 36º, nº 1 da CRP e face aos efeitos que são e vão sendo reconhecidos à própria união de facto. A união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges, há mais de dois anos (art. 1º, nº2 da Lei nº 7/2001, de 11.05).
Como se escreve no referido Acórdão da Relação de Lisboa de 14.12.2023 que seguimos de perto: “Constitui a mesma uma realidade social cada vez mais frequente e que, por isso, o Direito passou a assimilar, moldando, em conformidade, as instituições e a correspondente legislação. Vivem, com efeito, em união de facto aquelas pessoas não unidas entre si através do casamento, mas que têm comunhão de leito, mesa e habitação, correspondendo o instituto à situação que ocorre entre duas pessoas que não são casadas, mas vivem uma com a outra como se o fossem. Assim, é exigida a unidade ou exclusividade da união de facto, não sendo tuteladas as relações passageiras ou fortuitas porque as mesmas são destituídas duma duração que possa criar a aparência no mundo exterior, para os outros, da vivência de duas pessoas como se casadas fossem. Ora, como exemplos de decisões lesivas da ordem pública internacional analisadas pela jurisprudência e doutrina portuguesa são as constantes a título exemplificativo por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, in ob. Cit. Pág. 430, como sendo a decisão que considerou o unido de facto como herdeiro universal, em detrimento dos herdeiros legítimos deste, a decisão que estabelece como prerrogativa masculina o repúdio como forma de dissolução do matrimónio, sem invocação de motivo, a renúncia às responsabilidades parentais, inclusive de alimentos. A sentença cuja revisão se pretende apenas declarou reconhecida judicialmente a condição de União Estável entre os requerentes, pelo que manifestamente não viola a ordem pública tal reconhecimento. Perante a situação de facto atrás descrita entendemos que estão reunidos os pressupostos para o deferimento da pretensão formulada, qual seja a de ser confirmada pelos tribunais portugueses, para que possa produzir efeitos em Portugal, a “decisão revidenda”.”
O Código Civil Brasileiro, no seu artº. 1.723, estabelece que: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objectivo de constituição de família.” [34]
Extrai-se da previsão legal que o reconhecimento da união estável depende da presença, no relacionamento, de elementos objectivos e subjectivos. Como elementos objectivos, pontuam-se a publicidade, a continuidade e a durabilidade, restando o objectivo de constituição de família como o elemento subjectivo da caracterização. A publicidade da convivência é consubstanciada no reconhecimento pelos vizinhos e moradores do local onde vivem, nos meios sociais e na comunidade em geral daquele casal como companheiros, visto que a união estável é um fato social tão exposto como o casamento. [35]
A continuidade e a durabilidade da união são questões mais complexas, considerando que a legislação brasileira constitucional e infraconstitucional não define o lapso temporal para a caracterização da união estável. Para Paulo Lôbo [36],“a estabilidade decorre da conduta fática e das relações pessoais dos companheiros” e Sílvio de Salvo Venosa observa que “apesar da importância do fator tempo para a constatação da união estável, esse fator não é absoluto, pois existem casos em que, independentemente do tempo da união, a entidade familiar fica caracterizada” [37].
A união estável é considerada como “um contrato não solene, elaborado por escrito, ou verbal” [38] e “uma das características principais da união estável é a ausência de formalismos para a sua constituição, pois não depende de qualquer formalidade para tal, bastando apenas o início da vida em comum”.
E nem se defenda o argumento de que falta o interesse em agir dos requerentes por pretenderem o presente reconhecimento apenas visando a possibilidade de aquisição da nacionalidade portuguesa por parte do Requerente.
Ora, não obstante os requerentes estarem adstritos ao dever de indicar a finalidade próxima ou a última da pretendida revisão, a verdade é que os requerentes visam “ver declarada judicialmente a referida união para pleno gozo dos direitos dela decorrentes, uma vez que em alguns países, inclusive em Portugal, a simples Escritura Pública Declarativa de União de Facto/União Estável, não lhes permite usufruir todos os direitos inerentes estado de conviventes” [39].
Assim sendo, temos de concluir que possuem razões diversas para demandar a presente acção judicial, inclusive, o interesse que tal sentença estrangeira tenha eficácia entre os mesmos, principalmente porque a decisão brasileira também regula matéria sobre o regime de bens do casal [40].
Entendemos que lhes assiste razão. Pois é certo que a sentença que se apresenta para ser revista e confirmada não se refere à “união de facto”, mas sim a uma “união estável”, com características semelhantes à união de facto portuguesa.
No entanto, para efeitos da aquisição de nacionalidade portuguesa, com fundamento na união de facto, continuam a ter de instaurar uma acção judicial que tenha por objecto essa pretensão, dado que se prevê no art.º 3.º, n.º 3, da Lei 37/81, de 03.10 que “O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.”
Logo, com a sentença apresentada, os requerentes podem requerer apenas e só o reconhecimento da sentença que “declarar a união estável havida entre “B” e “A” no períodode 26.06.2010 até à presente data [03.04.2025]”, o que é juridicamente diferente da acção judicial a pedir o reconhecimento de que vivem em união de facto, há mais de três anos, nos termos e para os efeitos exactamente previstos na Lei nº 7/2001, de 11/05, e do artigo 3º, nº 3, da Lei nº 37/81, de 03/10.
Como todos os requisitos necessários para confirmar a sentença revidenda foram cumpridos, a pretensão dos requerentes deve ser acolhida sem mais demoras ou análises adicionais.
* V –DECISÃO
Nos termos expostos, acordam, em Conferência, as Juízas Desembargadoras desta Relação, em julgar procedente a presente acção e, consequentemente decide-se conceder a revisão para o efeito de confirmação, da sentença proferida na Acção Declarativa de União Estável pelo Juízo da 11ª Vara de Família da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro - Brasil, processo nº (…).19.0001 datada de 03.04.2025 e transitada em julgado em 21.05.2025, que determinou o reconhecimento da a união estável havida entre “B” e “A” no período de 26.06.2010 até 03.04.2025, nos precisos termos constantes da sentença revidenda.
Fixa-se à acção o valor de € 30.000,01 – artigos 303.º, n.º 1, e 306.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Custas da acção pelos requerentes.
Porém, tendo em conta o disposto no art. 14-A, nº 1, al. c) do RCP, não há lugar ao pagamento da 2ª prestação da taxa de justiça. Isto é, tudo o que havia a pagar por este processo são os 306€, já pagos.
Registe e Notifique.
Lisboa, 25-09-2025
Margarida de Menezes Leitão
Maria Teresa Lopes Catrola
Carla Figueiredo
_______________________________________________________ [1] Relatora: Des. Margarida de Menezes Leitão
1ª Adjunta: Des. Maria Teresa Lopes Catrola
2ª Adjunta: Des. Carla Figueiredo [2] Por opção da Relatora, a Decisão utilizará a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1945.
A jurisprudência citada no presente Acórdão, salvo indicação expressa noutro sentido, está acessível em http://www.dgsi.pt/ e/ou em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ [3] Cfr. Alberto dos Reis, Processos especiais, vol. II, Coimbra Editora, 1982, pág. 197. [4] Veja-se por exemplo, o ac. do TRL de 24/10/2024, proc. 2202/24.5YRLSB-2, com um voto de vencido mas não sobre esta questão; a decisão sumária do TRC de 06/10/2020, proc. 136/20.1YRCBR, o ac. do TRC de 03/10/2006, proc. 11/06.2YRCBR; os acs. do TRE de 13/03/2025, proc. 3/25.2YREVR, e de 07/11/2024, proc. 198/24.2YREVR. [5] Decisão sumária do TRC de 06/10/2020, proc. 136/20.1YRCBR. [6] Obra e local citados. [7] Proferido no processo 389/11.6YRLSB.L1-1 . [8] “A ordem pública distingue-se em interna ou internacional conforme a função que desempenha. A primeira determina a nulidade do negócio jurídico que a contrarie (...). A segunda determina a inaplicabilidade do preceito ou preceitos da lei estrangeira que a ofendam, constituindo um limite à competência dessa lei para que remete a norma de conflitos” (Galvão Telles, Introdução ao Estudo do Direito, vol. I, 11ª edição (Reimpressão) Coimbra Editora, 2001, p.310). [9] Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2000, pág. 410. [10] Proferido no processo 237/07.1YRCBB. [11] Cfr. Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, vol. I, 584 e segs., vol. III, pág. 368 e segs. e Marques dos Santos, Aspectos do Novo Código de Processo Civil, “Revisão e confirmação de sentenças estrangeiras”, pág. 140. [12] Dados recolhidos em https://www.hcch.net/pt/instruments/conventions/status-table/?cid=41 [13] Cfr. Gabriel da Silva Barros, Clarissa Moreira dos Santos Schmidt e Natália Bolfarini Tognoli in APOSTILA DE HAIA E A FORMA DOCUMENTAL: uma análise a partir da Diplomática e de seu método, obtido em https://www.researchgate.net/publication/331023927_Apostila_de_Haia_e_a_forma_documental_uma_analise_a_partir_da_Diplomatica_e_de_seu_metodo . [14] Cfr. Luís de Lima Pinheiro in Direito Internacional Privado – Reconhecimento de decisões estrangeiras, vol. III, tomo II, págs.119-120. [15] Veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Dezembro de 2020, proferido no processo 210/19.7YRGMR.S1 (Pedro de Lima Gonçalves): “Os princípios de ordem pública referem-se à ordem pública internacional e não à ordem pública interna sendo que tais princípios decorrem de um complexo de normas inspiradas por razões políticas, morais e económicas que são aceites por um determinado número de nações como expressão de uma civilização e cultura idênticas. Os princípios de ordem pública internacional do Estado Português hão-de estar plasmados a nível internacional na ordem jurídica de um certo número de Estados com os quais Portugal tem afinidades jurídicas e por outro lado hão-de estar em consonância com a Constituição da República Portuguesa não podendo ser contrários aos defendidos na nossa Lei Fundamental”. [16] Cfr. Luís de Lima Pinheiro, ob. Cit. pág. 118. [17] Neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Abril de 2018, proferido no processo 137/17.7YRPRT.S1 (José Rainho) em caso similar, embora ainda mais impressivo por se tratar de efectivas consequências do divórcio decretado com declaração de culpa e o da Relação de Lisboa, de 6 de Maio de 2021, proferido no processo 2247/20.4YRLSB-6 (Gabriela de Fátima Marques). [18] Cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil anotado, Vol. II, 2020, pág. 432. [19] Ob. Cit., pág. 233. [20] Cfr. Acórdão do STJ de 29.02.2024, proferido no processo nº 2985/22.7YRLSB.S1. [21] Acórdão do STJ de 12 de Julho de 2011, processo 987/10.5YRLSB.S1. [22] Processo nº 151/21.8YRPRT.S1, Relator Nuno Pinto Oliveira. [23] Publicado no Diário da República nº 227/2022, Série I, de 24.11.2022, págs. 42-59. [24] Cfr. neste sentido, o Ac. do STJ de 15.09.2022, proferido no processo nº 924/22.4YRLSB.S1. [25] Cfr. Alberto dos Reis, “Processos Especiais”, vol. II – Reimp., Coimbra, 1982, págs. 139-204, e pág. 141-143 e 189. [26] Lições de Direito Internacional Privado I, Almedina, 2000, pág. 406. [27] Ob. Cit., pág. 483. [28] Acórdão de 21.02.2006, proferido no processo nº 05B4168. [29] Proferido no processo nº 1899/19.2YRLSB-6. [30] Proferido no processo nº 2215/23.4YRLLSB-6. [31] In artigo publicado na Revista Advogado nº 58, AASP, São Paulo, Março/2000. [32] “União Estável no sistema jurídico brasileiro”, São Paulo, Atlas, 1999, página 150. [33]Proferido no Proc. n.º 2247/20.4YRLSB.S1. [34] BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de Janeiro 2002. Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm . Acesso em 10 de Setembro de 2025. [35] Álvaro Villaça Azevedo, Curso de direito civil: direito de família. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, pág. 240. [36] Paulo Lobo, Direito civil: volume 5: famílias. 8. ed. São Paulo, Saraiva Educação, 2018, pág. 120. [37] Direito civil: direito de família, 13ª. ed. São Paulo, Atlas, 2013, pág. 41. [38] Carlos Alberto Dabus Maluf, “União estável no direito brasileiro” in Tratado da união de fato: Tratado de la uníon de hecho, Coord. Regina Beatriz Tavares da Silva, Atalá Correia, Alicia García de Solavagione, São Paulo, Almedina, 2021, pág. 291. [39] Cfr. artº 7º da petição inicial. [40] Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa proferido no processo n.º 1274/21.9YRLSB-7, de 28/09/2021, e ainda do Supremo Tribunal de Justiça em casos semelhantes, proferidos nos Processo n.º 3425/22.7YRLSB.S1, Processo n.º 585/22.0YRLSB.S1, Processo n.º 987/10.5YRLSB.S1, Processo n.º 1884/19.4YRLSB.S1, também neste sentido, os acórdãos da Relação de Lisboa, proferidos nos Processo n.º 1274/21.9YRLSB-7, Processo n.º 2490/19.9YRLSB-7.