RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
VIOLAÇÃO
ABUSO SEXUAL
CRIANÇA
DUPLA CONFORME
REJEIÇÃO PARCIAL
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I. Resulta da lei, da jurisprudência e da doutrina que os poderes de cognição do STJ se reconduzem exclusivamente ao reexame da matéria de direito – vide artº 434 do C.P.Penal, sendo que apenas excepcionalmente pode haver lugar a um alargamento de tal competência, nos termos constantes no disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º do mesmo diploma legal, designadamente quando estamos perante o chamado recurso per saltum; isto é, em casos de recursos de primeiro grau para o STJ.
II. No presente, estamos perante recurso interposto de acórdão proferido pela Relação, que se pronunciou sobre decisões proferidas em 1ª instância e em que houve dupla conforme.
III. Entende-se como dupla conforme a situação em que duas decisões judiciais, de diferentes tribunais, concordam sobre a mesma questão; isto é, quando uma decisão judicial de segunda instância confirma a decisão de primeira instância, sem que haja divergências significativas na fundamentação de ambas as decisões.
IV. A dupla conforme consiste num pressuposto negativo de admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo sido introduzido pelo legislador, com o propósito de filtrar o acesso a esta instância máxima, nos casos em que, tendo as matérias alvo de crítica sido já decididas por um tribunal de recurso, tendo o mesmo confirmado a decisão da 1ª instância, se ter de entender que ocorreu já uma análise completa e consistente do caso, por duas instâncias judiciais, não se mostrando necessária uma terceira apreciação, agilizando-se, deste modo, a resolução de casos e evitando-se a sobrecarga do Supremo Tribunal de Justiça (vide acórdão proferido por este STJ, datado de 15.02.2023, no processo nº 7528/13.0TDLSB.L3.S1, consultável em www.dgsi.pt).
V. No caso vertente, a ilicitude da actuação do arguido mostra-se elevada, pois em causa está uma vítima muito jovem, que o arguido não se coibiu de iniciar sexualmente, circunstância que determinou que aquela menor tivesse de ser confrontada com uma área das relações humanas de foro extremamente íntimo, de uma forma desadequada e prematura, deixando-lhe lesões físicas e psicológicas.
VI. Aproveitou-se o arguido da incapacidade de defesa da menor, resultante não só da sua idade, mas ainda do facto de se encontrar, nos momentos da prática dos factos, sob o seu poder, sendo certo que tinha um especial dever de protecção, resultante da relação familiar estreita que os unia – a vítima era sua sobrinha.
VII. A integração social substancial, corresponde a uma verdadeira integração e acatamento voluntário das regras impostas pelo viver societário, que o agente do crime demonstra ao longo da sua vida, de tal forma que, apreciando-se os factos que consubstanciam o ilícito, se pode concluir estarmos perante um desvio único ao padrão geral dos seus valores, que sucedeu por uma conjugação de factores irrepetível. No caso dos autos, não é possível chegar-se a esse juízo, quer face à persistência actuativa, quer à natureza dos actos em si mesmos, quer ainda atenta a forma como o próprio arguido se mostrou incapaz de demonstrar qualquer interiorização – mínima que seja – do acentuado desvalor da sua conduta.
VIII. Por seu turno, a integração social formal – a que muitas vezes corresponde até a consideração social daqueles que o rodeiam – facilita a prática do próprio crime, pela confiança que os outros em si depositam, face a tal aparência, pois se assim não fosse, não lhe teria sido permitido ter contactos com a menor e, muito menos, o próprio arguido ter permanecido na casa dos pais da vítima.

Texto Integral

Acordam em conferência na 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I – relatório

1. Por acórdão do Tribunal de Penafiel, foi proferida a seguinte decisão:

A- Na parte crime:

Julgar a acusação pública parcialmente procedente e, em consequência:

a) Absolver o arguido AA da prática de 82 (oitenta e dois) crimes de violação agravada, p. e p. pelos art.ºs 164.º, n.º 2, al. a) e 177.º, n.ºs 1, als. b) e c) e 7 do C. Penal, de que vinha acusado;

b) Condenar o arguido AA pela prática, como autor material, de 278 (duzentos e setenta e oito) crimes de violação agravada, p. e p. pelos art.ºs 164.º, n.º 2, al. a) e 177.º, n.ºs 1, als. b) e c) e 8 do C. Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão por cada um desses crimes;

c) Condenar o arguido AA pela prática, como autor material, de 2 (dois) crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos art.ºs 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, als. b) e c) do C. Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão por cada um desses crimes;

d) Em cúmulo jurídico das penas aplicadas em b) e c), condenar o arguido AA na pena única de 15 (quinze) anos e 6 (seis) meses de prisão;

2. Inconformado, interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação do Porto, tendo sido as seguintes as questões abordadas no acórdão, no seguimento do requerimento apresentado:

- se a decisão recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação, nos termos dos arts. 374º, nº 2, 379º, nº 1, alíneas a), b) e c) do Código de Processo Penal;

- se a decisão recorrida se encontra ferida de erro de julgamento relativamente à matéria de facto provada vertida nos pontos nºs 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22 e 23 que deveriam ter sido dados como não provados;

- se a decisão recorrida viola o princípio do “in dubio pro reu”;

- se o arguido deveria ter sido condenado apenas por um crime continuado de violação e não por 278 crimes e apenas um crime continuado de abuso sexual de criança agravado e não de 2 crimes;

- se as penas parcelares aplicadas ao arguido pecam por exageradas, devendo ser reduzidas ao mínimo legal, devendo, em cúmulo jurídico ser fixada uma pena próxima dos 6 anos de prisão.

3. Por acórdão de 19 de Março de 2025, o Tribunal da Relação do Porto prolatou acórdão, tendo negado provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos

4. Inconformado, veio o arguido interpor recurso para este STJ.

5. O recorrente invoca:

Violação do princípio constitucional “in dubio pro reo”;

Errado enquadramento jurídico, por se dever entender que o arguido praticou um único crime;

Errada dosimetria da pena única imposta, sendo que a adequada não deve exceder os 6 anos de prisão.

6. O MºPº junto do tribunal “a quo” pronunciou-se no sentido de que o recurso não merece provimento.

7. Neste tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto apresentou parecer em idêntico sentido.

II – questões a decidir.

A. Violação do princípio constitucional in dubio pro reo e errado enquadramento jurídico, por se dever entender que o arguido praticou um único crime.

B. Errada dosimetria da pena única imposta, sendo que a adequada não deve exceder os 6 anos de prisão.

iii- fundamentação.

A. Violação do princípio constitucional in dubio pro reo e errado enquadramento jurídico, por se dever entender que o arguido praticou um único crime.

1. O tribunal “a quo” deu como assente a seguinte matéria fáctica:

1.O arguido é filho de BB e de CC;

2. DD, nascida a D de M de 2010, é filha de EE e de FF;

3. O progenitor da vítima é filho de BB e de CC, sendo o arguido irmão daquele e tio paterno desta;

4. O arguido vivia em união de facto com GG desde data anterior a agosto de 2018;

5. No dia 09 de agosto de 2018, na CPCJ de ..., foi celebrado Acordo de Promoção e Proteção a favor da menor DD, ficando esta aos cuidados do arguido e da companheira GG, residentes na Rua 1;

6. Ao abrigo do estipulado no Acordo de Promoção e Proteção, DD residiu ininterruptamente com o arguido naquela morada no período compreendido entre o dia 09 de agosto de 2018 e o dia 23 de agosto de 2019;

7. No período compreendido entre março e abril de 2020, pelo menos duas semanas, não obstante se encontrar aos cuidados da progenitora, a menor DD passava os períodos compreendidos entre o domingo à noite e a sexta-feira à noite em casa do arguido, onde pernoitava;

8. No dia 13 de agosto de 2018, o arguido despiu a menor DD e tocou com a sua mão na zona genital da menor;

9. No dia 14 de agosto de 2018, o arguido despiu a menor DD, tirou as suas calças e tocou com a mão e com o pénis na zona genital da menor;

10. A partir do dia 15 de agosto de 2018 até 23 de agosto de 2019 e no período descrito em 7, com uma frequência de segunda-feira a sexta-feira, a hora não apurada da madrugada, antes de o arguido sair para trabalhar e enquanto ainda todos os habitantes da casa dormiam, o arguido dirigia-se ao quarto onde dormia DD, tocava-lhe no corpo e tirava-lhe a roupa;

11. Após, e consoante os seus desejos sexuais, valendo-se da sua superioridade física, mediante o uso da força física, introduzia o pénis ereto na vagina ou no ânus de DD, fazendo movimentos de vai e vem, o que não era da vontade desta e lhe provocava dores na zona vaginal e anal, o que a menor lhe verbalizava;

12. Em número de vezes não apurado, o arguido também exigiu à menor que pegasse no seu pénis com a mão e que fizesse movimentos, chegando a introduzi-lo na boca daquela, provocando-lhe nojo e vómitos;

13. No final do primeiro ato, o arguido disse à menor para não contar nada do que se tinha passado a ninguém e, em datas posteriores, repetiu esta ordem, acrescentando que se contasse a alguém iria sofrer as consequências;

14. A conduta do arguido provocou na menor DD uma lesão (solução de continuidade) na região genital;

15. O arguido sabia que, quando iniciou esta conduta, DD tinha sete anos de idade e que em maio de 2020 apenas tinha nove anos de idade, que era sua sobrinha e que estava aos seus cuidados com coabitação;

16. O arguido agiu da descrita forma com a menor DD para satisfazer os seus instintos sexuais, sendo sua intenção manter relações sexuais de cópula, coito anal e oral com a menor, o que logrou conseguir;

17. Agindo como agiu, o arguido conseguiu colocar a menor DD na impossibilidade de lhe oferecer resistência, tendo agido sempre contra a vontade desta;

18. Ao introduzir o pénis ereto na vagina, no ânus e na boca de DD contra a vontade desta, o arguido agiu com o propósito conseguido de satisfazer os seus impulsos sexuais, contra a sua vontade, à custa da sua superioridade física e da ameaça que concretizou, conhecendo a idade da menor e a vulnerabilidade física e emocional associada a esta idade;

19. O arguido atuou com o propósito conseguido de, com recurso à sua superioridade física e à ameaça, constranger a DD a sofrer, contra a sua vontade, a introdução vaginal, anal e oral do pénis do arguido, bem sabendo que punha em causa a liberdade sexual da menor, o que previu e quis;

20. Também sabia que punha em causa o sentimento de vergonha e pudor sexual da menor DD, bem como a sua autodeterminação sexual, ofendendo os seus sentimentos de criança, modéstia e inocência, prejudicando o livre e harmonioso desenvolvimento da sua personalidade, nomeadamente na esfera sexual;

21. O arguido atuou sempre de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei penal;

22. Como consequência direta da conduta do arguido, DD teve lesões, que lhe provocaram dores e mau estar;

23. A conduta do arguido causou na menor DD sofrimento, nervosismo, medo, ansiedade e depressão;

24. A menor DD tem medo do arguido e receio que este faça mal à sua mãe;

25. A menor DD vive em constante desassossego e receia que o arguido possa aparecer na sua presença;

26. A menor DD sentiu e sente vergonha, desgosto e humilhação;

27. No período de tempo correspondente aos factos, o arguido residia com a companheira, GG, de 38 anos de idade – com quem estabeleceu união de facto em 2009 - e a descendente em comum do casal, de atualmente 12 anos de idade;

28. Após a instauração dos presentes autos e da consequente intervenção/avaliação do agregado por parte da EMAT, foi instaurado Processo de Promoção e Proteção em nome da filha do casal, tendo, em julho de 2024, a mesma sido entregue aos cuidados da avó materna, residente em ..., onde passou também a residir a companheira do arguido;

29. O arguido tem o 6.º ano de escolaridade e iniciou o seu percurso profissional aos 14 anos de idade, como ..., tendo mantido a atividade de forma regular, na área da construção civil, exercendo também funções de .... Em 2017, na sequência de um período de desemprego, integrou um programa do IEFP, tendo passado a exercer funções nas Piscinas Municipais de .... No final de agosto de 2017, regressou ao setor da construção civil – setor onde se mantém no presente;

30. À data dos factos, o arguido auferia cerca de € 600,00 e a companheira auferia um valor indefinido, pela costura de sapatos, na habitação. O agregado beneficiava de prestação familiar a crianças e jovens atribuída à descendente, no valor de € 30,00. Como despesas, o agregado comportava € 160,00 de arrendamento da habitação, cerca de € 100,00 em água, eletricidade e gás e cerca de € 130,00 em medicação, para tratamento de asma, de que padeciam o arguido e a descendente. O agregado beneficiava de cabaz alimentar e, por vezes, contribuições por parte dos vizinhos, no suporte de despesas básicas;

31. Atualmente, AA aufere € 820,00 mensais, comportando € 190,00 em despesas de arrendamento e € 125,00 a título de pensão de alimentos devida à filha;

32. Na rede vicinal, o arguido é referenciado como trabalhador, sendo a dinâmica familiar descrita como funcional. O presente processo não é do conhecimento do meio social;

33. Contava o arguido 29 anos de idade quando cumpriu pena de prisão efetiva, de abril de 2009 a agosto de 2010, pela prática de crimes de condução de veículo sem habilitação legal;

34. Em 2019, o arguido beneficiou do Instituto da Suspensão Provisória do Processo com a duração de 5 anos, à ordem do Proc. n.º 357/17.4T9FLG, indicado da prática de um crime de importunação sexual e um crime de abuso sexual de crianças. A Suspensão Provisória do Processo foi revogada, tendo o processo seguido para julgamento. Foi condenado em pena de prisão suspensa na sua execução com regras de conduta, com a duração de 1 ano e 6 meses, encontrando-se o processo extinto desde 17.10.2024;

35. Na sequência da instauração dos presentes autos e da retirada da sua descendente da habitação, o arguido reside sozinho;

36. O arguido visita a descendente ao sábado, pernoitando com a companheira, em ... durante o fim de semana, companheira de quem beneficia de apoio;

37. O arguido foi condenado:

a) No Processo sumário n.º 308/08.7GEVNG, que correu termos pelo Tribunal Judicial de V. N. Gaia, 3.º Juízo Criminal, por sentença de 06.08.2008, transitada em julgado a 26.08.2008, pela prática em 05.08.2008, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 5,00, já declarada extinta;

b) No Processo comum singular n.º 324/08.9GEVNG, que correu termos pelo Tribunal Judicial de V. N. Gaia, 3.º Juízo Criminal, por sentença de 26.03.2009, transitada em julgado a 05.05.2009, pela prática em 20.06.2008, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 200 dias de multa à taxa diária de € 6,00, já declarada extinta;

c) No Processo sumário n.º 802/09.2PAVNG, que correu termos pelo Tribunal Judicial de V. N. Gaia, 4.º Juízo Criminal, por sentença de 14.05.2009, transitada em julgado a 03.06.2009, pela prática em 27.04.2009, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 4 meses de prisão, substituída por 120 dias de multa à taxa diária de € 6,00, tendo sido repristinada a pena de prisão inicial, que o arguido cumprir;

d) No Processo sumário n.º 971/09.1PAVNG, que correu termos pelo Tribunal Judicial de V. N. Gaia, 2.º Juízo Criminal, por sentença de 26.05.2009, transitada em julgado a 15.06.2009, pela prática em 19.05.2009, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 7,00, já declarada extinta;

e) No Processo comum singular n.º 688/08.4PCMTS, que correu termos pelo Tribunal Judicial de Matosinhos, 4.º Juízo Criminal, por sentença de 10.11.2009, transitada em julgado a 15.12.2009, pela prática em 01.08.2008, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 6,00, já declarada extinta;

f) No Processo comum singular n.º 75/09.7PTVNG, que correu termos pelo Tribunal Judicial de V. N. Gaia, 2.º Juízo Criminal, por sentença de 08.03.2010, transitada em julgado a 06.04.2010, pela prática em 31.03.2009, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 5 meses de prisão suspensa na sua execução por 1 ano, com a obrigação de pagar a quantia de € 250,00 à APPACDM, já declarada extinta;

g) No Processo comum singular n.º 357/17.4T9FLG, que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – JL Criminal de Felgueiras, por sentença de 07.04.2022, transitada em julgado a 16.05.2022, pela prática em 19.08.2019 e em 19.08.2017, respetivamente, de um crime de abuso sexual de crianças e de um crime de ato sexual com adolescente, na pena única de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regras de conduta;

h) No Processo sumário n.º 10/23.0GBFLG, que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – JL Criminal de Felgueiras, por sentença de 24.01.2023, transitada em julgado a 24.02.2023, pela prática em 06.01.2023, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano, com regras de conduta.

2. O Tribunal da Relação do Porto debruçou-se sobre as questões ora novamente enunciadas pelos recorrentes, nos seguintes termos:

II.4.3 – Da violação do princípio “in dubio pro reu”

Mais alega o arguido recorrente que a decisão recorrida viola o princípio “in dubio pro reo, argumentando que o Estado não pode prescindir, em processo penal, de uma averiguação da verdade material, coisa que, no caso concreto não se verificou.

Aduz o recorrente que não sendo um fim legítimo a condenação baseada em mera probabilidade, a incerteza dos factos não consente a sua divisão, para distribuição do ónus de prova, consoante a parte a que lhe aproveita, muito menos quando essa incerteza se verifica nos elementos que podem conduzir à conclusão da não existência de autoria material do arguido, situação que se verifica no caso concreto.

Em resposta, o Ministério Público junto da 1ª instância [acompanhado pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, junto deste Tribunal da Relação], alegou, também aqui não assistir razão ao recorrente, pois que o Tribunal a quo não manifestou qualquer dúvida que requeresse a aplicação do princípio in dubio pro reo, ou seja, para o Tribunal não existiu qualquer dúvida razoável e insanável sobre o cometimento dos factos ilícitos típicos praticados pelo recorrente e que justificasse o recurso a este princípio.

Em resposta, a assistente alegou que, no caso concreto, não resultou minimamente da decisão recorrida que o Tribunal a quo tenha ficado com dúvidas sobre os factos que declarou provados ou que as devesse ter tido face às provas recolhidas nos autos, até porque quando lhe suscitaram dúvidas, o Tribunal consagrou os factos como não provados. Considera, assim, que não se verifica qualquer violação do princípio in dubio pro reo nem do art 32º da CRP.

Cumpre apreciar.

Revisitando a decisão recorrida, concretamente no que toca à fundamentação da matéria de facto, acima transcrita, logo se conclui, de forma clara, que o Tribunal a quo, imbuído da imediação, explicitou, de forma lógica e ponderada, as razões da sua convicção, explicou a formulação do juízo que formou sobre a falta de credibilidade ou de credibilidade das declarações/depoimentos apreciados e, da respectiva fundamentação não decorre que tenha ficado com quaisquer dúvidas quanto à matéria de facto que veio a considerar provada, pelo que não lhe cumpria fazer qualquer uso do invocado princípio in dubio pro reo.

O Tribunal a quo, conjugada toda a prova que foi produzida em audiência, nos moldes que se descreveram na respectiva motivação da decisão recorrida, convenceu-se, quanto a nós de forma lógica e justificada, que tal factualismo resultou provado, ou seja, portanto, sem subsistência de quaisquer dúvidas que implicassem o recurso a tal instituto.

Como se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 15 “«a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador - juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável (...). Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» (ibidem).”

Portanto, in casu, como vimos, nenhuma dúvida subsistiu no espírito do julgador, depois da tarefa de avaliação, ponderação e análise da prova produzida em audiência, não havendo, assim, que lançar mão do invocado princípio do “in dubio pro reo”.

Por sua vez, o Tribunal a quo, ao descrever, em sede de fundamentação de facto, a valoração que a prova produzida em audiência lhe mereceu, fê-lo em respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, decorrente do art. 127º do Código de Processo Penal.

Como se escreveu no acórdão do TRC de 19.02.2009, disponível in www.dgsi.pt “Na tarefa de valoração da prova e de reconstituição dos factos, tendo em vista alcançar a verdade – não a verdade absoluta e ontológica, mas uma verdade histórico-prática e processualmente válida –, o julgador não está sujeito a uma “contabilidade das provas”. (...). A função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os depoimentos prestados, não lhe é imposto ter de aceitar ou recusar cada um deles na globalidade, cumprindo-lhe antes a missão de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece ou não crédito e em que termos”, devendo, com vista a valorar, ou não, um dado meio de prova, designadamente um depoimento, o julgador aferir da credibilidade dos factos relatados pela testemunha/depoente, para o que deverá socorrer-se de raciocínios lógicos e dedutivos, pautados nas regras decorrentes da experiência comum.

15 Datado de 10-01-2008, Proc. n.º 07P4198, in www.dgsi.pt

In casu, decorre da motivação da matéria de facto a razão pela qual o Tribunal a quo entendeu dar como provados os factos aqui controvertidos, explicando, de forma razoável, lógica, racional e plausível, fazendo bom uso do princípio da livre valoração da prova – art. 127º do CPP - porque assim o fez.

Acresce que o recorrente não logrou demonstrar, em recurso, que a decisão do Tribunal a quo se mostra desajustada ou incoerente face à prova produzida no julgamento e, neste sentido, não demonstrou a existência de provas produzidas em audiência, que impusessem decisão diversa da que foi tomada pelo Tribunal recorrido.

Como já acima se expendeu, o que realmente resulta das conclusões do recurso, é a divergência entre a convicção da recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal firmou, e que no entendimento do recorrente não deveria ter firmado, sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, do qual decorre que, salvo no caso de prova vinculada, o tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção.

Relembre-se que rege, em processo penal, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminados de valor a atribuir à prova [salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial] e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre convicção da prova e na sua convicção pessoal. Sempre sem esquecer que a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, o que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.

A apreciação da prova não pode deixar de ser “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - , mas em todo o caso , também ela (deve ser) uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros.”16

A convicção do Tribunal a quo é formada da conjugação dialética de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.17

Se o Tribunal a quo, que beneficiou plenamente da imediação e da oralidade da prova, explicou racionalmente a opção tomada, e o Tribunal da Relação entender que da reapreciação da prova não se impõe decisão diversa, nos termos do art.127.º do Código de Processo Penal, deve manter a decisão recorrida.

Ou seja, como é jurisprudência corrente dos nossos Tribunais Superiores, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum.

Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção”18

“Dos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência, podemos concluir que a valoração das provas, reportada à credibilidade dos depoimentos que é eminentemente subjetiva, depende, essencial e substancialmente, da imediação, princípio que, pressupondo a oralidade, domina a recolha das provas de índole testemunhal, permite, num quadro de emissão e receção de sinais de comunicação - que não apenas de palavras, mas também de gestos ou outras formas de ação/reação, como o próprio silêncio - potenciar a adequada apreciação dos depoimentos”19, sendo as declarações indissociáveis da atitude e postura de quem as presta, dos seus olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reações comportamentais às diversas perguntas e questões abordadas, isoladas ou entre si combinadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade dos comportamentos humanos.

16 Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, 1º volume, Coimbra, ed. 1974, pág. 203 a 205.

17 Cfr. Acórdão do TRC, de 16-09.2015, in www.dgsi.pt.

18 Cfr. Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa, de 02.11.2021, Processo nº 477/20.8PDAMD.L1-5, disponível em www.dgsi.pt.

19 Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-02-2008, Processo nº 07P4729, acessível em www.dgsi.pt.

Tal não significa que a apreciação, eminentemente subjectiva, conducente a conferir maior ou menor credibilidade de um depoimento, é insindicável, pois ao julgador é imposto o dever de explicitar as razões da sua convicção pessoal, na fundamentação da decisão, isto é, que revele não só os motivos por que certo depoimento mereceu maior credibilidade do que outro, mas também que explicite o raciocínio lógico que utilizou na apreciação global e lógica de toda a prova, e, no presente caso, o tribunal a quo fê-lo.

Improcede, pois, também neste segmento, o recurso.


*


II.4.4 Do número de crimes praticado

Alega, ainda, o arguido recorrente que deveria ter sido condenado apenas por um crime continuado de violação e não por 278 crimes e apenas um crime continuado de abuso sexual de criança agravado e não de 2 crimes.

Entende o arguido que “apesar da existência de mais que um ato ilícito típico do crime de violação e do crime de abuso sexual de menores, praticados com a mesma pessoa, se verifica no caso concreto, uma condição exterior ao arguido que facilitou a conduta e que existe uma unidade resolutiva com conexão temporal e especial sendo o mesmo o modo de atuação, pelo que ocorre um único crime continuado e não vários crimes.”

Em resposta, o Ministério Público junto da 1ª instância [acompanhado pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, junto deste Tribunal da Relação], alegou também aqui não assistir razão ao recorrente, considerando não existirem dúvidas de que o arguido praticou o número de crimes de violação agravada e de abuso sexual de criança agravado pelos quais foi condenado no acórdão recorrido e não estes ilícitos criminais na forma continuada.

Em resposta, a assistente considera que o arguido deve ser condenado pelos vários crimes que cometeu, em concurso de crimes em obediência ao disposto no art. 30º, nº 1 e 3 do CP e do Ac. do STJ DE 29/11/2009.

Cumpre apreciar.

Recordemos o que a propósito diz a decisão recorrida:

“(...)

Resta-nos apurar quantos crimes cometeu o arguido.

A acusação imputa-lhe, como vimos, 360 crimes de violação agravada (165 no ano de 2018, 170 no ano de 2019 e 25 no ano de 2020).

Nos termos do art.º 30.º, n.º 1 do C. Penal, o número de crimes determina-se pelo número de tipos efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

Segundo o n.º 2 “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.

Dir-se-á ainda que, nos termos do seu n.º 3, a figura do crime continuado não se aplica aos crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.

No caso dos crimes sexuais, além de assumirem natureza pessoal, não se vislumbra qualquer situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente entre cada investida. Não se pode aceitar que o sucesso de uma primeira investida no sentido de não ter sido denunciado possa determinar a diminuição da culpa do arguido. Pelo contrário, agindo determinado pela vontade de satisfazer os referidos instintos e, para tanto, aproveitando as situações mais favoráveis para esse efeito, a sua culpa é agravada em cada episódio, pelo que o aproveitamento calculado de situações em que a reiteração é mais propícia exclui o crime continuado.

Neste sentido, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2009, disponível in www.dgsi.pt.

Por fim, importa salientar que também não estaremos perante um crime prolongado ou de trato sucessivo, uma vez que concordamos com a corrente maioritária e atual da jurisprudência, mais concretamente do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de essa figura não ser aplicável aos crimes sexuais.

Neste sentido, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.05.2017, disponível em www.dgsi.pt.

De facto e considerando o vertente caso, cada um dos vários atos do arguido foi necessariamente comandado por uma diversa resolução, foi procurado e provocado pelo arguido, aproveitando o contexto relacional e fático em cada situação e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido.

Assim, há que determinar, por referência aos factos provados, o concreto número de crimes que o arguido cometeu:

- no ano de 2018, nos dias 13 e 14 de agosto, o arguido cometeu dois crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos art.ºs 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, als. b) e c) do C. Penal;

- no ano de 2018, entre 15 de agosto de 2018 e 31 de dezembro de 2018, de segunda a sexta feira, o arguido cometeu 99 crimes de violação agravada, p. e p. pelos art.ºs 164.º, n.º 2, al. a) e 177.º, n.ºs 1, als. b) e c) e 8, do C. Penal;

- no ano de 2019, entre 1 de janeiro de 2019 e 23 de agosto de 2019, de segunda a sexta feira, o arguido cometeu 169 crimes de violação agravada, p. e p. pelos art.ºs 164.º, n.º 2, al. a) e 177.º, n.ºs 1, als. b) e c) e 8, do C. Penal;

- no ano de 2020, entre março e abril, pelo menos duas semanas, de segunda a sexta feira, o arguido cometeu 10 crimes de violação agravada, p. e p. pelos art.ºs 164.º, n.º 2, al. a) e 177.º, n.ºs 1, als. b) e c) e 8, do C. Penal,

Assim, resultou provada a prática pelo arguido de 278 crimes de violação agravada, p. e p. pelos art.ºs 164.º, n.º 2, al. a) e 177.º, n.ºs 1, als. b) e c) e 7, do C. Penal e de 2 crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos art.ºs 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, als. b) e c) do C. Penal.

(...)”

Como vimos, o que está em causa, neste segmento do recurso, é tão só apreciar se o arguido, quer quanto aos crimes de violação, quer quanto aos de abuso sexual de criança, haveria que ser condenado unicamente por um crime continuado ou se pela pluralidade criminosa a que lançou mão a decisão recorrida.

Adiantamos já que não assiste qualquer razão ao recorrente.

Com efeito, a partir de 2020, a jurisprudência portuguesa tem consolidado o entendimento de que o conceito de crime continuado não se aplica aos crimes sexuais, devido à natureza eminentemente pessoal dos bens jurídicos protegidos. Esta posição decorre da alteração introduzida pela Lei n.º 40/2010, de 3 de Setembro, que modificou o n.º 3 do artigo 30.º do Código Penal, excluindo expressamente a aplicação do crime continuado a crimes contra bens eminentemente pessoais.

Nesta matéria, destacamos, pela sua clareza, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Março de 2022 (Processo n.º 500/21.9PKLSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt), onde se afirma que, embora anteriormente houvessem divergências jurisprudenciais quanto à aplicação do crime de trato sucessivo aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, actualmente a jurisprudência consolidou-se no sentido de considerar que a pluralidade de condutas nestes crimes configura um concurso efectivo de crimes, afastando a possibilidade de subsunção a outras figuras, como o crime de trato sucessivo.

Também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Novembro de 2022 (Processo n.º 754/20.8JABRG.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt) reforça esta posição, afirmando que é actualmente uniforme e consolidada a jurisprudência que afasta o recurso à figura do denominado crime de trato sucessivo em relação aos crimes contra a autodeterminação sexual.

Estes acórdãos reflectem a interpretação jurisprudencial de que cada acto ilícito em crimes sexuais deve ser punido individualmente, não se aplicando a figura do crime continuado ou de trato sucessivo.

Reza assim o acima referido art.30.º do Código Penal, sob a epígrafe «Concurso de Crimes e Crime Continuado», norma fundamental na matéria do concurso de crimes:

«1- O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

2- Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

3- O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.».

É pacífico, na doutrina e na jurisprudência, que o critério do concurso efectivo de crimes, a que alude o citado art.30.º, n.º1 do Código Penal, reside na pluralidade de tipos legais de crime violados pela conduta do agente e a ela concretamente aplicáveis, sem curar de saber se tal conduta se analisou em um único acto (concurso ideal) ou numa pluralidade de actos (concurso real).

A pluralidade de tipos legais de crime violados pela conduta do agente, tanto decorre da violação de uma pluralidade de tipos abstractos, como da violação plúrima do mesmo tipo abstracto.

Uma vez que uma pluralidade de actos pode violar um só tipo penal e um só acto pode violar diversas vezes o mesmo tipo penal abstracto, impõe-se saber quando poderá dizer-se que estamos perante a violação plúrima do mesmo tipo abstracto.

Por sua vez, o n.º 2 do mesmo normativo também regula situações que têm a ver com a pluralidade de crimes, mas que o legislador unificou em um só crime – crime continuado –, no pressuposto da existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.

Os pressupostos do crime continuado são a homogeneidade da forma de execução do crime; a lesão do mesmo bem jurídico; e a persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.

Ora, como bem salienta Paulo Pinto de Albuquerque 20, a este propósito, “A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição. Isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele activamente a provoca”.

Em virtude da nova redação dada ao n.º 3 do, art.30.º em análise, que lhe foi dada Lei n.º 40/2010, de 3 de Setembro - «O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais »-, que eliminou a referência «salvo tratando-se da mesma vítima», tornou-se claro que não é hoje admissível a existência de um crime continuado de abuso sexual de uma mesma criança.

É que, como “bens eminentemente pessoais” a que alude este n.º 3, que afastam a existência do crime continuado e apontam para o concurso efectivo, “...devem seguramente considerar-se aqueles que são protegidos pelos tipos legais de crime contidos no Título I da PE do CP: a vida, a vida intrauterina, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual, a honra, a reserva da vida privada, o direito à palavra e à imagem.”.21

20 Vd. Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Editora, página 139, nota 29.

Portanto, embora a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça se tenha mostrado dividida quanto à aplicação da figura do crime exaurido ou de trato sucessivo aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, actualmente e desde há alguns anos atrás, mormente desde a referida alteração legislativa, consolidou-se jurisprudência, cremos que unanimemente, no sentido da integração da pluralidade de condutas integradoras de crimes como de violação e de abuso sexual de crianças, na figura do concurso efectivo de crimes previsto no art. 30.º, n.º1 do Código Penal, afastando-se a possibilidade de subsunção a outras figuras, designadamente ao crime de trato sucessivo ou ao crime continuado.

Improcede, pois, também neste segmento, o recurso.

3. Alega o recorrente, em sede de conclusões, o seguinte:

1. Resulta da globalidade de ambos os acórdãos, que tanto o Juízo Central Criminal de Penafiel, como o Tribunal da Relação do Porto, apesar da hesitação sobre a prova de determinados factos, decidiu em sentido desfavorável ao arguido.

2. O arguido já havia suscitado tal violação de um princípio constitucional tão basilar no Direito, sendo crucial salientar que o Tribunal a quo dispôs de meras 4 páginas e meia para analisar e justificar a sua decisão quanto a tal complexa e delicada matéria.

3. Impõe-se sindicar a aplicação do princípio in dúbio pro reo, pois da decisão resulta que o tribunal 1.ª instância deveria ter dúvida em relação a factos – bastando para tal ler a motivação constante do D. Acórdão do Juízo Central Criminal de Penafiel - e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido impondo-se ainda essa sindicância, caso não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar evidente do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, ou seja, naqueles casos em que se possa constatar que a dúvida só não foi reconhecida em virtude da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art.º 410.º, n.º 2, alínea a) do CPP.

4. A ausência de precisão e concretização dos dias em que a ofendida pernoitava na residência do arguido ou na residência da avó, no período compreendido entre 09 de agosto de 2018 e 23 de agosto de 2019, lança uma dúvida inultrapassável, porquanto se a ofendida pernoitava, no período compreendido entre o dia 13 de agosto de 2018 e 23 de agosto de 2019, entre segunda-feira a sexta-feira, em casa da avó, não poderia o arguido, de madrugada, antes do trabalho, praticar os factos pelos quais veio condenado, pois não se encontrava, sequer, na mesma habitação.

5. Se existe dúvida quanto à localização temporal e geográfica da ofendida na data dos factos, têm de existir dúvidas ainda maiores quanto à prática dos crimes pelos quais o arguido foi condenado, nunca podendo o Juízo Central Criminal de Penafiel – posteriormente, confirmado pelo Tribunal da Relação do Porto - perante estas dúvidas, condenar o arguido.

6. O Tribunal a quo confirmou que o arguido praticava os factos pelos quais vem acusado de madrugada, nos dias úteis da semana, antes de ir trabalhar, sem ter a certeza ou sequer ter mencionado o facto de haver dúvida quanto ao local da pernoita da ofendida - tal não faz, do ponto de vista, das regras de processo penal, qualquer sentido, pois o tribunal só pode condenar uma pessoa quando tiver certezas da sua culpabilidade

7. Considerando a globalidade da prova produzida cremos, sempre com o devido respeito por opinião contrária, que não é segura a convicção de que a ofendida pernoitasse, nos dias úteis da semana, no período compreendido entre 13 de agosto de 2018 e 23 de agosto de 2019, em casa do arguido – o que, ao não acontecer, impossibilitava a prática dos factos, por parte do mesmo, da forma descrita pela Douta Acusação.

8. Face às incertezas que decorrem do próprio texto do Douto Acórdão proferido pelo Juízo Central Criminal de Penafiel, posteriormente confirmado pelo Tribunal da Relação do Porto, verificando-se a dúvida deverá a mesma ser apreciada segundo o princípio do in dúbio pro reu – não o tendo feito, fazendo antes uma interpretação da prova violada da Constituição da República Portuguesa.

9. Parece-nos incompreensível que o tribunal a quo possa concluir, através da regra da experiência, uma certeza possível que ultrapasse a dúvida razoável de que o arguido abusou sexualmente e violou a ofendida

10. O que no Acórdão de que ora se recorre confirmou que, porque não tem certeza quanto à prática dos factos por parte do arguido, se eliminam todas as provas que constituiriam a «contraprova» - designadamente os depoimentos das testemunhas FF, HH e II – relembre-se, incapazes de precisar onde a ofendida pernoitava no período compreendido entre 13 de agosto de 2018 e 23 de agosto de 2019 –- o que do ponto de vista do CPP não é admissível por violação do princípio in dubio pro reo.

11. Resultam, assim, dúvidas flagrantes sobre a prática de 278 crimes de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.°, n.° 2, al. a) e 177.°, n.°s 1, als. b) e c) e 7 e 2 crimes de abuso sexual de menores agravado, p. e p. pelos artigos 171.°, n.° 1 e 177, n.° 1, als. b) e c) do Código Penal.

12. Violou, assim, o D. Acórdão aqui posto em crise, o princípio in dubio pro reo, violando extensivamente o art.° 32.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa

13. Arguindo-se, ainda, a inconstitucionalidade da interpretação do art.° 71.°, conjugado com o art.° 129.°, ambos do CPP e a inconstitucionalidade dos art.° 374°, n.° 2 e art.° 379, n.° 1 n.° 1 a), do C.P.P, quando interpretados no sentido de não ser necessário fundamentar de facto e de direito o Douto Acórdão, bastando apenas fazer referências aos elementos de prova e uma referência ao exame crítico efetuado, bem como da interpretação em como é possível ao juiz, em sede de recurso, não explicar o raciocínio lógico para chegar a determinada decisão, designadamente não indicando os motivos que determinaram que o tribunal formasse a convicção probatória num determinado sentido aceitando um e afastando outro, não explicando o porque é que certas provas são mais credíveis do que outras, servindo de substrato lógico-racional da decisão, por violação dos art°s 97.°, n.°4, 374° n° 2, 379°, n.° 1, alínea a), b) e c) do CPP bem como artigo 202.°, 204° e 205°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa.

14. Entende o arguido que apesar da existência de mais que um ato ilícito típico do crime de violação e do crime de abuso sexual de menores, praticados com a mesma pessoa, se verifica no caso concreto, uma condição exterior ao arguido que facilitou a conduta e que existe uma unidade resolutiva com conexão temporal e especial sendo o mesmo o modo de atuação, pelo que ocorre um único crime continuado e não vários crimes.

15. Salvo o devido respeito, da materialidade dada como provada, não resulta demonstrada mais que uma resolução criminosa - não é pelo facto de haver várias ações sobre a vítima, que se pode integrar a conduta do arguido no mesmo tipo legal, por várias vezes.

16. Cada uma das condutas do arguido – cada ato sexual – não é autónoma em relação às outras, sujeita a um juízo de censura único, a uma unidade de resolução, constituindo, assim, um único crime, previsto e punível pelos artigos 164.°, n.° 2, al. a) e 177.°, n.°s 1, als. b) e c) e 7, devendo o arguido ser condenado por um único crime e não por 278 crimes, como ocorreu – o mesmo se pode dizer quanto à prática de apenas um crime de abuso sexual de menores agravado, p. e p. pelos artigos 171.°, n.° 1 e 177, n.° 1, als. b) e c) do Código Penal e não de dois, como foi condenado.

17. Os factos dados como provados, são demonstrativos que o arguido terá tomado uma resolução criminosa.

18. Não há, pois, dúvidas, no que à conduta do arguido respeita, constitui uma unidade de desígnio e pluralidade de resolução criminosa, pelo que, se verifica, relativamente aos crimes pelos quais se encontra condenado uma situação de crime continuado.

(…)

DISPOSIÇÕES LEGAIS VIOLADAS

· Artigos 374°, n.° 2 e art.° 379, n.° 1 n.° 1 a) do CPP;

· Artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa;

· Artigos 97.º, n.º4, 374° n° 2, 379º, n.º 1, alínea a), b) e c) do CPP, bem como artigo 202.º e 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa;

· Artigo 410.°, n.° 2, al. a) do Código de Processo Penal;

· Artigos 71.º, nº 2, al. e) e 72.º, nº 2, al. c) do C. Penal;

4. Apreciando.

Resulta cristalinamente da lei, da jurisprudência e da doutrina que os poderes de cognição do STJ se reconduzem exclusivamente ao reexame da matéria de direito – vide artº 434 do C.P.Penal.

Apenas excepcionalmente pode haver lugar a um alargamento de tal competência, nos termos constantes no disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º do mesmo diploma legal, designadamente quando estamos perante o chamado recurso per saltum; isto é, em casos de recursos de primeiro grau para o STJ.

No presente, estamos perante recurso interposto de acórdão proferido pela Relação, que se pronunciou sobre decisões proferidas em 1ª instância e em que houve dupla conforme.

5. Entende-se como dupla conforme a situação em que duas decisões judiciais, de diferentes tribunais, concordam sobre a mesma questão; isto é, quando uma decisão judicial de segunda instância confirma a decisão de primeira instância, sem que haja divergências significativas na fundamentação de ambas as decisões.

E, nesses casos, como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo 91/18.8JALRA.E1.S1, de 17-06-2020 (consultável em www.dgsi.pt), tem sido jurisprudência constante deste STJ, que a inadmissibilidade de recurso decorrente da dupla conforme impede este tribunal de conhecer de todas as questões conexas com os respectivos crimes, tais como os vícios da decisão sobre a matéria de facto, a violação dos princípios do in dubio pro reo e da livre apreciação da prova, da qualificação jurídica dos factos, da medida concreta da pena singular aplicada ou a violação do princípio do ne bis in idem ou de quaisquer nulidades, como as do artigo 379.° do CPP. (vide, em idêntico sentido, acórdão do STJ de 11.04.2024,consultável em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1a9ea527bcf4aca280258afd0029eef8?OpenDocument&Highlight=0,inadmissivel,dupla,conforme).

6. A dupla conforme consiste num pressuposto negativo de admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo sido introduzido pelo legislador, com o propósito de filtrar o acesso a esta instância máxima, nos casos em que, tendo as matérias alvo de crítica sido já decididas por um tribunal de recurso, tendo o mesmo confirmado a decisão da 1ª instância, se ter de entender que ocorreu já uma análise completa e consistente do caso, por duas instâncias judiciais, não se mostrando necessária uma terceira apreciação, agilizando-se, deste modo, a resolução de casos e evitando-se a sobrecarga do Supremo Tribunal de Justiça (vide acórdão proferido por este STJ, datado de 15.02.2023, no processo nº 7528/13.0TDLSB.L3.S1, consultável em www.dgsi.pt).

7. Efectivamente, o princípio in dubio pro reo apenas poderá ser apreciado, neste tipo de recursos, no âmbito dos vícios consignados no artº 410 nº2 do C.P.Penal – já que o mesmo tem o seu campo de aplicação restringido à apreciação e valoração probatória, que se reflecte no apuramento da matéria de facto provada - de modo oficioso.

Não se mostra assim legalmente admissível que o recorrente suscite tal vício, mas o STJ está obrigado a declarar o mesmo, se o detectar, face ao texto do acórdão recorrido. Trata-se, todavia, como se afirma no acórdão acima citado, de uma decisão de fundamentação positiva, pois é a detecção (afirmativa) do vício que tem de ser fundamentada e declarada, não a ausência dela. Nesta derradeira hipótese, no âmbito da fiscalização oficiosa dos vícios da decisão bastará a constatação e a consignação dessa ausência.

8. O princípio in dubio pro reo actua em situações em que, face à prova produzida, o julgador chega a uma situação de dúvida insuperável quanto à ocorrência de um determinado facto. E, para tal, não basta que a prova seja divergente. É necessário que a mesma, apreciada no seu conjunto e à luz das regras de experiência comum, não permita dar credibilidade a um relato sobre outro.

Assim, haverá lugar à aplicação de tal princípio quando o julgador se encontrar perante uma dúvida insanável, razoável e objectivável.

Insanável, porque pese embora se tenham esgotado todas as diligências possíveis para apurar a verdade material, não foi possível ultrapassar o estado de incerteza.

Razoável, porque séria e racional, uma verdadeira dúvida e não uma qualquer dúvida.

E objectivável, por se mostrar demonstrável perante os demais intervenientes processuais.

A dúvida relevante para efeitos de aplicação de tal princípio, terá de se reconduzir a uma dúvida que qualquer homem médio, na situação do julgador, também teria, quanto à prática daqueles factos, pelo arguido, factos estes cuja prova se lhe mostra desfavorável.

No caso, não se vislumbra, face ao texto da decisão recorrida, que tenha ocorrido a violação de tal princípio.

9. De igual modo e no que toca à questão do enquadramento jurídico da conduta do recorrente, cabe apenas referir que, tendo tal questão sido oportunamente suscitada perante o Tribunal da Relação, que confirmou o enquadramento realizado em 1ª instância e negou provimento à pretensão do recorrente, estamos igualmente perante uma situação de dupla conforme e, como tal, não pode este tribunal, por expresso impedimento legal, proceder a qualquer alteração a respeito de tal tema.

Dir-se-á todavia, para paz e sossego das consciências, que ainda que assim não fosse (e é), e sem entrarmos em grandes considerações sobre este instituto – porque absolutamente desnecessárias face ao manifesto infundado do peticionado pelo arguido – diremos que, face à tipologia dos crimes de violação e de abuso sexual de criança (que protegem a liberdade sexual e a autodeterminação sexual, bens jurídicos constitucionalmente protegidos), o nº3 do mencionado artigo afastaria desde logo a possibilidade de entendimento da actuação do arguido como reconduzível ao vertido nesse artº 30 do C. Penal.

Na verdade, a tutela do direito à liberdade sexual reconduz-se à protecção de um bem de carácter eminentemente pessoal, o que desde logo determinaria o não preenchimento de um dos requisitos previstos na lei, para o enquadramento da conduta criminosa em sede de crime continuado.

10. Mas, para além desta circunstância, caberá referir que o elemento definidor, por excelência, deste tipo de crime – que acaba por lhe circunscrever os seus limites e determinar a sua benevolência a nível sancionatório, se comparado com o tratamento dado pela lei ao concurso real – reside no entendimento de a acção criminosa se desenrolar no quadro de uma situação que é exterior ao agente, isto é, que lhe é exógena, porque não foi por si criada, mostrando-se possível concluir que, dessa parametrização circunstancial, era cada vez menos exigível que aquele se comportasse de acordo com o direito.

Salvo o devido respeito, no caso dos autos, este circunstancialismo não se verifica, de todo, como aliás se mostra muito bem explicado no acórdão recorrido.

11. Em síntese final e no que toca às questões neste segmento acima enunciadas, não podem as mesmas ser conhecidas por este Tribunal, pelo que não serão objecto de apreciação neste acórdão, sendo o recurso, nessa parte rejeitado, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 399.º, 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), todos do C.P.Penal

A única matéria relativamente à qual tem este STJ poderes de cognição, é a que se reporta à questão enunciada em B., atento o constante no artº 400 nº1 al. f), a contrario, do C.P.Penal, designadamente a relativa à pena única imposta a ao arguido, uma vez que a mesma se situa num patamar superior a 8 anos de prisão (vide, em idêntico sentido, Acórdão deste STJ de 14.03.2018, no processo 22/08.3JALRA.E1.S1, consultável na mesma base de jurisprudência).

Trataremos, pois, infra tal questão.

B. Errada dosimetria da pena única imposta, sendo que a adequada não deve exceder os 6 anos de prisão.

1. O acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto pronunciou-se, a este propósito, nos seguintes termos:

Desçamos, ora, ao caso revidendo, à luz dos considerandos acabados de expor.

O arguido recorrente foi condenado nos autos pela prática, como autor material, de 278 (duzentos e setenta e oito) crimes de violação agravada, p. e p. pelos art.ºs 164.º, n.º 2, al. a) e 177.º, n.ºs 1, als. b) e c) e 8 do C. Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão por cada um desses crimes; e pela prática, como autor material, de 2 (dois) crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos art.ºs 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, als. b) e c) do C. Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão por cada um desses crimes.

Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 15 (quinze) anos e 6 (seis) meses de prisão.

O crime de violação agravada, nos termos dos art.ºs 164.º, n.º 2, al. a) e 177.º, n.º 8 do C. Penal, tem uma moldura abstrata de 4 anos e 6 meses a 15 anos de prisão.

O crime de abuso sexual de criança agravado, nos termos dos art.ºs 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, als. b) e c) do C. Penal, tem uma moldura abstrata de 1 ano e 4 meses (e não de 1 ano e 3 meses como referido na decisão recorrida, manifestamente por lapso de cálculo aritmético) a 10 anos e 8 meses de prisão.

Revisitemos a decisão recorrida, relembrando o que ali se diz a propósito da determinação da medida concreta da pena aplicada ao arguido recorrente:

“(...)

Medida concreta da pena

Feito o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, importa determinar a medida da pena a aplicar.

Segundo Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, Parte Geral II, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 215, “A exigência legal de que a medida da pena seja encontrada pelo juiz em função da culpa e da prevenção é absolutamente compreensível e justificável. Através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências da prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção”.

Assim, a pena há de ser encontrada dentro dos limites da moldura penal prevista para o crime pelo qual o arguido vem acusado, tendo em consideração que não pode ultrapassar a medida da culpa e que serve exclusivamente as finalidades de prevenção, geral e especial.

Para determinação da medida da pena atender-se-á à medida da culpa do agente, que desempenha uma dupla função de fundamento da aplicação da pena e de limite da sua medida, às exigências da prevenção de futuros crimes, sem esquecer que a finalidade última da intervenção penal reside na reinserção social do delinquente e a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra o arguido (art.ºs 40.º, n.ºs 1 e 2, e 71.º, n.ºs 1 e 2, ambos do C. Penal).

De facto, dispõe o primeiro dos indicados preceitos, com a epígrafe “Finalidades das penas e das medidas de segurança”, que: “1- A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. 2- Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (...)”.

Já o art.º 71.º do C. Penal dispõe que na determinação da medida concreta da pena deve o julgador ter em atenção que: “1- A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. 2- Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. 3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”.

Como tal, a determinação da medida concreta da pena faz-se, nos termos do art.º 71.º do C. Penal, em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes e atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (estas já foram tomadas em consideração ao estabelecer-se a moldura penal do facto), deponham a favor do agente ou contra ele.

O crime de violação agravada, nos termos dos art.ºs 164.º, n.º 2, al. a) e 177.º, n.º 8 do C. Penal, tem uma moldura abstrata de 4 anos e 6 meses a 15 anos de prisão.

O crime de abuso sexual de criança agravado, nos termos dos art.ºs 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, als. b) e c) do C. Penal, tem uma moldura abstrata de 1 ano e 3 meses a 10 anos e 8 meses de prisão.

No vertente caso, são elevadíssimas as exigências de prevenção geral, sendo que os crimes sexuais praticados assumem proporções alarmantes na nossa sociedade e no mundo em geral, sendo que o sentimento de reprovação social relativamente ao bem jurídico em causa é intenso e extensivo à comunidade em geral.

As necessidades de prevenção especial são significativas, uma vez que o arguido possui antecedentes criminais, ainda que de natureza diversa, tendo já cumprido pena de prisão efetiva (a condenação por crimes de natureza sexual é posterior aos factos em causa nestes autos e, como tal, não pode ser considerada).

Importa também considerar:

- a intensidade do dolo, que é direto;

- o grau de ilicitude dos factos, que é elevadíssimo, considerando o modo de atuação do arguido, em que pratica os primeiros factos tendo como vítima uma menor com apenas 7 anos de idade e prolonga-os até aos 9 anos de idade. De facto, embora a idade seja elemento do tipo, no crime de abuso sexual de criança (art.º 171.º do C. Penal) e da agravação, no crime de violação (n.º 8 do art.º 177.º do C. Penal), a idade considerada nesses normativos é “menor de 14 anos”, sendo que a idade da menor DD, à data dos factos, se situava entre os 7 e 9 anos, portanto existe uma maior vulnerabilidade física e emocional associada, que agrava a ilicitude dos factos e a culpa do arguido e deverá ser considerada na medida concreta da pena.

- a conduta do arguido preenche mais que uma agravante, em todos os crimes, o que elevada a sua culpa (sendo só uma considerada na moldura abstrata);

- os atos sexuais assumem-se de gravidade elevada, por serem diversificados, com cópula, coito anal e oral, sendo que apenas um dos atos o faria incorrer na prática do crime de violação. Foram praticados no interior da residência que a menor habitava, no ambiente que deveria ser por eleição o de proteção e segurança, ainda mais por ter sido retirada de um ambiente considerado de risco, o que acentua a vulnerabilidade em que a menor se encontrava, violando o seu sentimento de segurança. Acresce que o arguido é tio da menor;

- as consequências físicas e psíquicas que teve na vítima, afetando o livre desenvolvimento da personalidade da menor DD na esfera sexual, que teve lesões, com dores e mau estar, causando-lhe sofrimento, nervosismo, medo, ansiedade e depressão, humilhação, desgosto e vergonha.

- o passado criminal do arguido, com diversas condenações, ainda que por crime de natureza diversa, mas com cumprimento de prisão efetiva.

Sopesando todos os fatores enunciados, considera-se adequado aplicar ao arguido a pena de 6 anos de prisão por cada um dos 278 crimes de violação agravada e a pena de 2 anos e 6 meses de prisão, por cada um dos 2 crimes de abuso sexual de criança agravado.


*


Tendo em consideração que estamos perante uma situação de concurso de crimes, importa aplicar uma pena única, na qual se ponderem os factos e a personalidade do arguido vertida nesses factos.

No caso concreto, teremos como moldura penal o limite mínimo de 6 anos de prisão e limite máximo de 25 anos de prisão (nos termos do art.º 77.º, n.º 2 do C. Penal, uma vez que a soma das penas concretamente aplicadas ascenderia a 1673 anos de prisão).

Assim, em cúmulo jurídico, nos termos do disposto nos art.ºs 30.º e 77.º do C. Penal, tendo em consideração a gravidade dos factos e a personalidade do arguido revelada nos mesmos, nos termos já analisados quanto à escolha da pena e medida concreta da mesma, decide-se aplicar-lhe a pena única de 15 anos e 6 meses de prisão.

(...)”

Isto posto.

Atenta a factualidade apurada, desde já se adianta que acompanha este Tribunal de recurso a avaliação operada pelo Tribunal a quo, ao nível da apreciação dos parâmetros avaliativos com vista à determinação da medida concreta da pena.

Da análise do manancial fáctico apurado, conclui-se, ao nível da culpa, que o arguido recorrente agiu com dolo (estando preenchidos os seus elementos intelectual e volitivo) e na forma mais intensa, de dolo directo, nos termos do disposto no artigo 14º, nº 1, do Código Penal.

Mais se considera a elevada gravidade das consequências das condutas do arguido que, no caso concreto, se verificaram, atentas não só as sequelas físicas – lesão genital, dores e mau estar (vd. pontos 14 e 22 dos factos provados), mas também as de natureza psicológica, salientando-se o facto de tais condutas terem causado na menor sofrimento, nervosismo, medo, ansiedade e depressão (vd. ponto 23 dos factos provados).

Tendo a tenra idade da vítima menor sido já considerada, pelo Tribunal a quo, para a agravação dos crimes, considera-se, em sede de determinação da medida concreta da pena, as demais circunstâncias que espelham a muito elevada gravidade da ilicitude dos factos: o período de tempo em que os factos ocorreram, de quase 2 anos; a concreta natureza dos actos sexuais de relevo perpetrados pelo arguido que, de entre os previstos nos tipos, são dos mais gravosos – relações sexuais de cópula, coito anal e oral; a circunstância de os actos sexuais terem sido praticados no interior da residência que a menor habitava, no ambiente que deveria ser de proteção e segurança da mesma, ainda mais por ter sido retirada de um ambiente considerado de risco, o que acentua a vulnerabilidade em que a menor se encontrava; e a circunstância de o arguido ser tio da menor.

Mais se consideram significativas as exigências de prevenção especial, uma vez que o arguido possui antecedentes criminais, ainda que de natureza diversa, tendo já cumprido pena de prisão efectiva. Regista-se que a condenação do arguido por crimes de natureza sexual é posterior aos factos em causa nestes autos, o que não deixa de ter relevância, no que tal circunstância espelha em termos de avaliação da personalidade do arguido.

Resulta, por outro lado, da motivação dos factos, da decisão recorrida, que o arguido “no direito constitucionalmente consagrado que lhe assiste, se remeteu ao silêncio.” Ora, se é certo que este é um direito fundamental do arguido, que, por isso, não o pode prejudicar, certo é também que ao livremente optar pelo seu exercício, optou inerentemente o arguido por não manifestar, perante o Tribunal, qualquer arrependimento, juízo de censura ou auto-crítico, que, a ter acontecido, certamente consubstanciaria uma circunstância a atender a seu favor.

A favor do arguido depõe a circunstância de o mesmo se encontrar laboral e socialmente inserido, conforme descrito nos factos provados, sendo esta matéria decorrente do respectivo relatório social. As condições de vida do arguido foram devidamente consideradas e ponderadas pelo Tribunal recorrido, como resulta claro quer do elenco dos factos provados, quer da motivação da decisão de facto (ao contrário do alegado pelo recorrente).

Contra o arguido depõem as muito elevadas exigências de prevenção geral de reforço na validade da norma jurídica violada, decorrentes da grande danosidade dos factos para as crianças vítimas de abusos sexuais e da frequência com que vêm sendo praticados crimes desta natureza, nomeadamente no meio familiar, que apelam a respostas contrafácticas capazes de afastar outros potenciais delinquentes da prática de actos desta natureza e de gerar na generalidade dos cidadãos a convicção de que é efectiva a tutela penal dos bens jurídicos violados.

Portanto, atentando-se a todas as circunstâncias acima expendidas, ponderando em conjunto todos os factos, a personalidade do arguido recorrente e atentas as molduras penais aplicáveis, reconhece-se total adequação e proporcionalidade na fixação da medida concreta das penas parcelares, por parte do Tribunal a quo, afigurando-se as mesmas criteriosas, adequadas e ajustadas.

E o mesmo se diga quanto à medida da pena única, em cúmulo jurídico.

A medida da pena única é determinada, em conjunto, pelos factos e a personalidade do arguido, conforme estabelecido no art. 77º, nº 1, do Código Penal.

Como refere, por todos, Souto Moura 27, a propósito da pena conjunta aplicável ao concurso de crimes, “...ponderar em conjunto os factos é atender, fundamentalmente, à ilicitude global de toda a conduta do agente em análise (....) A conexão entre os factos, e a abordagem destes, independentemente de quem os praticou, releva sobretudo para efeitos de prevenção geral. A gravidade dos vários crimes cometidos, a frequência com que eles ocorrem na comunidade e o próprio impacto que têm nessa comunidade, terão, pois, que ser tidos em conta”.

27 Cfr Souto Moura, A jurisprudência do STJ sobre Fundamentação e Critérios de Escolha e Medida da Pena, comunicação proferida em ação de formação do CEJ que teve lugar na Faculdade de Direito do Porto em 4 de Março de 2011, acessível em www.stj.pt/ficheiros/estudos

Ora, o presente concurso de penas abrange 278 (duzentos e setenta e oito) crimes de violação agravada e 2 (dois) crimes de abuso sexual de criança agravado, sendo os actos perpetrados através de cópula, coito anal e oral, quando a menor tinha apenas 7 a 9 anos de idade, desenrolando-se os actos num período temporal de quase 2 anos, tanto quanto pode retirar-se da factualidade provada.

Assim, do ponto de vista da gravidade do ilícito global (vd F. Dias, Direito Penal Português, 1993, p. 291) estamos perante uma pluralidade de factos homogéneos, quer quanto aos tipos penais em causa, quer quanto à gravidade de cada um deles, aferida pela medida das penas, quer, ainda, quanto ao período de tempo durante o qual se desenrolou a actividade ilícita do arguido. É, pois, muito elevada a gravidade do ilícito global praticado pelo recorrente.

No que concerne à avaliação da personalidade do arguido, não pode deixar de considerar-se que todos os factos tiveram como motivação comum a satisfação do desejo sexual do arguido na pessoa da sua sobrinha e que, face à homogeneidade da conduta e a sua repetição, estamos perante uma tendência clara para a prática de crimes contra a autodeterminação sexual de criança, que remetem para um quadro degradante profundamente contrário às mais elementares regras e princípios consensuais na nossa sociedade.

É, pois, determinante o papel da personalidade do arguido na sua motivação para os crimes.

Perante a avaliação conjunta dos factos e da personalidade do arguido que deixamos feita, pouco relevam a favor do arguido a ausência de antecedentes criminais ou a aparência de integração social resultante da regular dedicação ao trabalho e da organização da sua vida pessoal com base na instituição familiar (que se revelou criminógena para si), nomeadamente do ponto de vista das necessidades de prevenção especial positiva, sendo certo que ao não ter assumido os factos e não mostrar arrependimento, o arguido deixou na opacidade quaisquer factores que, explicados, permitissem compreender algo da personalidade que se apresenta quase incompreensível para quem o julga, ao praticar contra a sua sobrinha actos de abuso tão graves e desprovidos de empatia humana.

Deste modo, concluímos que a avaliação conjunta da globalidade dos factos e da personalidade do arguido, e numa moldura abstracta que tem como limite mínimo 6 anos de prisão e como limite máximo 25 anos de prisão, justificam e mesmo impõem a aplicação da pena única de 15 (quinze) anos e 6 (seis) meses de prisão, fixada pelo Tribunal a quo, que, assim, acompanhamos.

Improcede, pois, também neste segmento, o recurso.

2. A este propósito, apresenta o recorrente as seguintes conclusões:

19. A pena aplicada, em cúmulo, ao arguido de 15 anos e 6 meses de prisão, encontrando-se o Recorrente social e familiarmente integrado, fechou as portas da reintegração ao arguido, esqueceu as finalidades preventivas especiais das penas que devem imperar.

20. Todos os factos acima descritos, determinam um juízo de prognose favorável do arguido, não esquecendo que o arguido continua a ter retaguarda familiar, que está disposta a apoiá-lo.

21. A pena aplicada ao arguido é manifestamente exagerada, desadequada e desproporcional aos factos praticados, impedindo a ressocialização do arguido.

22. A consideração conjunta dos factos nos termos supra expostos e da personalidade do agente dentro daqueles limites, aponta, nos termos constantes desta motivação, para uma pena conjunta de 6 (seis) anos.

23. Caso o Venerando Supremo Tribunal de Justiça considere que a tese apresentada neste Recurso não mereça provimento, a pena aplicada ao arguido deverá sempre ser reduzida no seu quantum, pois não se justifica em qualquer dos casos uma pena tão elevada - ao aplicar a pena unitária de 15 anos e 6 meses de prisão ao arguido, conforme exposto, impede a sua ressocialização e vai em sentido contrário dos fins das penas.

24. O ponto ótimo de realização das necessidades preventivas da comunidade – ou seja, a medida de pena que a comunidade entenderá necessária à tutela das suas expectativas na validade e no reforço da norma jurídica afetada pela conduta do arguido – situar-se-á cerca nos 6 anos de prisão.

25. O limite mínimo (da moldura de prevenção) poderá encontrar-se em 6 anos de prisão, o que aqui e agora se requer.

3. Apreciando.

Cabe começar por realçar que, a respeito da determinação da pena (seja esta a pena parcelar ou única), rege o princípio da pessoalidade. Tal princípio impõe que a pena seja aplicada de um modo individualizado, tendo em conta a situação pessoal, económica, social específica da pessoa visada, bem como a apreciação crítica de todo o seu circunstancialismo actuativo. Assim, a pessoalidade e individualização da pena são uma consequência do princípio da culpa e valem para qualquer sanção penal.

As penas devem ser impostas atendendo a três vértices fundamentais, designadamente:

- adequação - a pena deve ser apropriada para atingir os fins pretendidos pela lei, como prevenção, repressão ou ressocialização;

- necessidade - a opção punitiva deverá recair pela medida menos gravosa que ainda seja capaz de atingir o objectivo pretendido;

- e proporcionalidade - que constitui um limite ao poder punitivo do Estado, protegendo a dignidade humana e os direitos fundamentais do próprio arguido.

Assim, a pena deve ser proporcional ao mal causado pelo crime, mas não pode exceder a culpa do agente.

Importa igualmente atender às exigências de prevenção geral e especial, que regem igualmente os fins das penas.

Na prevenção geral utiliza-se a pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos - prevenção geral negativa – e para incentivar a convicção na sociedade, de que as normas penais são válidas, eficazes e devem ser cumpridas, – prevenção geral positiva.

Na prevenção especial, a pena é utilizada no intuito de dissuadir o próprio delinquente de praticar novos crimes e com o fim de auxiliar a sua reintegração na sociedade.

4. Na determinação da pena única haverá que atender-se ao conjunto dos factos dados como provados, pois estes fornecem o quadro que permite avaliar a gravidade do ilícito global cometido, mostrando-se especialmente valiosa para a sua apreciação a verificação de qual o tipo de conexão que ocorre entre os factos concorrentes.

No que se refere à avaliação da personalidade do agente, esta deve debruçar-se sobre se, face ao conjunto dos factos praticados, estaremos perante uma tendência criminosa ou tão-só, perante uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade. Esta distinção tem revelo porque, no primeiro caso, terá de se considerar que o cometimento de uma pluralidade de crimes constitui uma agravante em sede da moldura penal conjunta.

Como refere Souto Moura (A jurisprudência do STJ sobre Fundamentação e Critérios de Escolha e Medida da Pena, comunicação proferida em acção de formação do CEJ que teve lugar na Faculdade de Direito do Porto em 4 de Março de 2011, acessível em www.stj.pt/ficheiros/estudos), a propósito da pena conjunta aplicável ao concurso de crimes, ponderar em conjunto os factos é atender, fundamentalmente, à ilicitude global de toda a conduta do agente em análise (….) A conexão entre os factos, e a abordagem destes, independentemente de quem os praticou, releva sobretudo para efeitos de prevenção geral. A gravidade dos vários crimes cometidos, a frequência com que eles ocorrem na comunidade e o próprio impacto que têm nessa comunidade, terão, pois, que ser tidos em conta.

5. Temos pois, em breve síntese, que a pena a impor deverá, por um lado, atender à tutela dos bens jurídicos, na medida do possível à reinserção do agente na comunidade e o seu limite mostra-se tabelado pela culpa do agente (artº 40 do C.Penal), o que bem se entende, uma vez que qualquer pena corresponde a uma sanção, uma acção punitiva do Estado, que se tem de revelar adequada, necessária e proporcional.

E a baliza máxima da culpa, referida pelo legislador, não tendo por fim a imposição de um mal ou sofrimento equivalente ao mal cometido ou sofrimento causado (como refere o Prof. Cavaleiro de Ferreira, in Direito Penal Português, II, Lisboa, 1982, pgs. 309 e 310), é, todavia, a expressão de que a punição que o Estado pode impor a um seu cidadão, não pode exceder a própria culpa com que este actuou.

A entender-se de outro modo – isto é, que outros fins das penas, designadamente a nível de prevenção geral ou especial, se sobrepusessem a esse limite máximo de culpa própria – estar-se-ia a viabilizar que, por eventual pressão societária, se mostrasse possível cercear um direito fundamental do cidadão, o direito à liberdade, sem imposição de um limite constitucional e ético, dentro dos padrões que regem a nossa vida em sociedade; isto é, viabilizar-se-ia a imposição de uma sanção, que tem um efeito punitivo associado, já que restringe os direitos consagrados no nº1 do artº 27 da CRP, desproporcional à culpa com a qual o agente actuou.

6. De facto e em última análise, é a existência de culpa geradora de um comportamento violador de um bem juridicamente tutelado, em sede criminal – manifeste-se esta na forma de dolo ou de negligência – que viabiliza, que legitima, num estado de direito, que o Estado possa assumir um direito punitivo sobre um seu cidadão.

Esse direito punitivo assume a característica de uma sanção, de uma pena, cujo cumprimento forçado é imposto ao agente causador de um mal, que atentou contra bens jurídicos alvos de tutela legal.

E é precisamente dentro deste contexto, de uma actuação que provoca culposamente um mal ilegítimo, que se sustém e funda a legitimidade de o Estado poder, por seu turno, vir a sancionar o agente prevaricador, com a imposição de algo que, em última análise, é também ele um mal, já que a imposição de uma pena cerceia sempre, em alguma medida, algum dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente estabelecidos.

7. Acresce que, consubstanciando-se o instituto do recurso num remédio jurídico, no sentido de permitir a colmatação de eventuais erros de apreciação, imputáveis aos tribunais hierarquicamente inferiores, daqui decorre que a alteração das penas que se mostram já definidas só deverá ocorrer se, de facto, um erro assinalável, a reclamar reparação, se venha a constatar existir.

A este respeito veja-se, por todos, o acórdão do STJ, processo nº19/08.3PSPRT, 3ª secção, relator Raúl Borges, de 14-05-2009, disponível em www.dgsi.pt:

Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, págs. 196/7, § 255, após dar conta de que se revela uma tendência para alargar os limites em que a questão da determinação da pena é susceptível de revista, afirma estarem todos de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Defende ainda estar plenamente sujeita a revista a questão do limite ou da moldura da culpa, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e relativamente à determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, esta será controlável no caso de violação das regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.

A intervenção do Supremo Tribunal em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras de experiência, ou a sua desproporção da quantificação efectuada”- cfr. acórdãos de 09-11-2000, in Sumários, de 30-10-2003, CJSTJ 2003, 3, 208, de 11-12-2003, processo 3399/03-5ª, de 04-03-2004, processo 456/04-5ª, in CJSTJ 2004, tomo 1, 220, de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, 229 e 235, de 15-11-2006, 2555/06-3ª, de 14-02-2007, processo 249/07-3ª, de 08-03-2007, processo 4590/06-5ª, de 12-04-2007, processo 1228/07-5ª, de 19-04-2007, processo 445/07-5ª, de 10-05-2007, processo 1500/07-5ª.

E, mais recentemente, em idêntico sentido, o acórdão deste STJ, de 29.02.2024, no processo 122/20.1PAVPV.L1.S1:

Na operação de escrutínio sobre o processo de apreciação da escolha e da medida da pena, em sede de recurso, é pacífico que a intervenção do tribunal superior assume um carácter essencial de “remédio jurídico”, impondo-se, especialmente, identificar incorrecções ou erros manifestos atinentes ao processo hermenêutico-aplicativo das normas constitucionais, convencionais e legais mobilizáveis, por parte da instância recorrida. Só nessa medida é legítimo ao tribunal de recurso proceder à alteração do quantum da pena. Assim, não pode proceder-se como se não existisse decisão anteriormente proferida – designadamente, neste caso, a do tribunal de primeira instância –, a qual, tendo respeitado aqueles procedimentos hermenêuticos e aplicativos, não legitima a intervenção do tribunal de recurso em termos de modificar, para mais ou para menos, a medida concreta da(s) pena(s) aplicada(s).

8. Posto este intróito, cumpre apreciar.

Lidas as conclusões acima transcritas conclui-se, salvo o devido respeito, que alegar o que aí se mostra vertido ou dizer nada, redunda quase rigorosamente no mesmo.

De facto, para além da afirmação peremptória do exagero do quantum (adjectivação) e da declaração, igualmente categórica, de qual a dosimetria adequada, o recorrente não apresenta um alicerce, um argumento, uma construção lógica contraditória, face a toda a fundamentação constante, na decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto.

Ficamos na quase total ignorância quanto às circunstâncias, factos ou fins de penas, que podem ter sido desconsiderados pelas instâncias judiciais, que fundem a pretensão desagravadora que o recorrente pretende, sendo certo que tal lacuna nem sequer pode ser superada por recurso à motivação, uma vez que o que aí consta em nada acrescenta ao que foi consignado em sede de conclusões.

9. Na verdade, a enunciação de teses doutrinárias e jurisprudenciais, não substitui ou permite suprir os fundamentos da discórdia, que terão de se remeter às circunstâncias concretas do caso, designadamente a factos dados como assentes, através dos quais o recorrente demonstre a inobservância dos preceitos legais consignados nos artºs 40 e 77, ambos do C. Penal.

Em bom rigor e em termos de circunstâncias, o recorrente acaba por se restringir à afirmação da sua integração social e familiar e ao desrespeito do seu direito à reinserção social.

Salvo o devido respeito, não é isso que demonstra a apreciação global dos factos, nem a decisão proferida.

10. No caso vertente, a ilicitude da actuação do arguido mostra-se elevada, pois em causa está uma vítima muito jovem, que o arguido não se coibiu de iniciar sexualmente, circunstância que determinou que aquela menor tivesse de ser confrontada com uma área das relações humanas de foro extremamente íntimo, de uma forma desadequada e prematura, deixando-lhe lesões físicas e psicológicas.

Aproveitou-se o arguido da incapacidade de defesa da menor, resultante não só da sua idade, mas ainda do facto de se encontrar, nos momentos da prática dos factos, sob o seu poder, sendo certo que tinha um especial dever de protecção, resultante da relação familiar estreita que os unia – a vítima era sua sobrinha.

11. Invoca o arguido a sua inserção laboral e social.

A integração social substancial, corresponde a uma verdadeira integração e acatamento voluntário das regras impostas pelo viver societário, que o agente do crime demonstra ao longo da sua vida, de tal forma que, apreciando-se os factos que consubstanciam o ilícito, se pode concluir estarmos perante um desvio único ao padrão geral dos seus valores, que sucedeu por uma conjugação de factores irrepetível.

No caso dos autos, não é possível chegar-se a esse juízo, quer face à persistência actuativa, quer à natureza dos actos em si mesmos, quer ainda atenta a forma como o próprio arguido se mostrou incapaz de demonstrar qualquer interiorização – mínima que seja – do acentuado desvalor da sua conduta.

12. Por seu turno, a integração social formal – a que muitas vezes corresponde até a consideração social daqueles que o rodeiam – facilita a prática do próprio crime, pela confiança que os outros em si depositam, face a tal aparência, pois se assim não fosse, não lhe teria sido permitido ter contactos com a menor e, muito menos, o próprio arguido ter permanecido na casa dos pais da vítima.

Acresce que, não contente com abusar sexualmente da menor, o arguido não se coibiu de praticar, sobre a mesma vítima, um outro tipo de crime, também ele de natureza muito agressiva e fortemente censurado em termos comunitários – violação.

13. Assim, face à escassez de alegações do recorrente a este respeito, não tendo este tribunal dons divinatórios, nem vislumbrando, face à completude e ao acerto do que se mostra afirmado na decisão judicial recorrida, que já se debruçou sobre tal matéria – e cujo conteúdo subscrevemos - qualquer manifesto, óbvio ou evidente erro, na determinação da pena única alcançada, que imponha a intervenção correctiva deste STJ, resta-nos concluir pela improcedência do peticionado pelo recorrente.

iv – decisão.

Face ao exposto, acorda-se

a. Em rejeitar parcialmente o recurso interposto pelo arguido AA, por inadmissibilidade legal, ao abrigo do disposto nos artigos 400º, nº 1, alínea f), 414º, nºs 2 e 3, 420º, nº 1, alínea b), e 432º, nº 1, alínea b), e 434º, todos do C.P.Penal.

b. No restante, julga-se o recurso interposto pelo arguido AA improcedente e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a TJ em 5 UC.

Lisboa, 17 de Setembro de 2025

Maria Margarida Almeida (relatora)

Antero Luis

António Augusto Manso