I – O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência envergando a dimensão de anulação do caso julgado é um recurso excecional, com tramitação especial e autónoma, tendo como objetivo primordial a estabilização e a uniformização da jurisprudência, eliminando o conflito / contraponto, originado por duas decisões em oposição respeitantes à mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação.
II – Assim, a uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito.
III - Não se mostram plenamente preenchidos os pressupostos materiais exigidos para a afirmação de oposição de julgados quando, no Acórdão recorrido e no Acórdão fundamento, não há identidade de situações de facto que os suportam.
IV – Face a quadros factuais com colorações completamente distintas – num há uma família constituída e com expectativa de assim se manter de futuro (Acórdão fundamento), noutro perante um pai que não vive com os filhos, nem com a mãe deles, mas com uma companheira (Acórdão recorrido) – que determinaram leituras diferentes do quadro legal, não é possível concluir que as decisões tiradas assentam em quadro material similar.
1. AA, na qualidade de assistente, BB e CC, demandantes civis (doravante Recorrentes), não se conformando com o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 23 de abril de 2025, transitado em julgado a 9 de maio de 20251, Acórdão recorrido, do mesmo vieram interpor recurso extraordinário para FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 437º e seguintes do CPPenal, invocando como Acórdão fundamento o prolatado pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Processo nº 1090/12.9GBAMT, em 11 de outubro de 2017, transitado em julgado em 24 de novembro de 2017.
2. Em suporte desta pretensão os Recorrentes apresentam as seguintes conclusões: (transcrição)
I Os recorrentes são parte legitima, e têm interesse em agir, porquanto são os demandantes no enxerto cível deduzido no processo à margem referenciado na qualidade de filhos e universais herdeiros de DD que faleceu vitimado por grave acidente de viação relatado e julgado nos autos.
II O presente recurso é tempestivo, porquanto é ora interposto no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado (10 dias) do acórdão recorrido ou mais recente, neste processo proferido em 23 de abril de 2025, tudo nos termos do artigo 105 CPC e art. 75 Lei 28/82.
III Em 11.10.2017este STJ proferiu Acórdão já transitado em julgado no processo 1090/12.9GBAMT.P1.S1, (cfr www.dgsi.pt) considerando ser de indemnizar, e indemnizando mesmo, a requerente civil pelos danos patrimoniais (para além dos alimentos) por si sofridos em função da perda de rendimentos futuros que o progenitor auferiria se não tivesse acorrido a sua morte.
IV Sendo este, pois e aqui, o Acórdão fundamento de que se junta certidão com menção do trânsito em julgado para além da menção supra da sua publicação.
V Já no Acórdão mais recente (4/21.0T1FLG.PI.S1, o dos presentes autos) foi decidido denegar tal pretensão de indemnizar os sucessores do falecido por tais danos patrimoniais (por perda de rendimentos) para além dos alimentos.
VI Ou seja, sobre a mesma questão essencial decidiu de forma diferente este Venerando Supremo Tribunal, pelo que os Acórdãos estão em clara oposição
VII Tais decisões (Acórdãos foram respetivamente proferidos em 11.10.2017(data do Acórdão fundamento) e em 24 de Abril de 2025 (data do acórdão recorrido ou mais recente) e
VIII Sucedendo que ambos foram proferidos no âmbito da mesma legislação, a qual não sofreu qualquer alteração, nomeadamente nos seus artigos 494, 495-3, 496, 562, 566 do Código Civil Português.
IX É flagrante a similitude dos factos em ambos os processos, tidos em conta para se tomar a decisão num caso e noutro e que, repete-se, é oposta, pois que, em ambos os casos se trata de acidente de viação, de que resultou a morte de homens com trabalho e rendimentos efetivos e que deixaram sucessores, no caso filhos, todos eles em situação de lhes ser atribuído o direito a alimentos, como efetivamente foi atribuído em ambos os processos.
X No Acórdão fundamento trata-se da morte de homem, de 41 anos em união de facto, falecido ao fim de 2 horas sendo que no presente Acórdão (mais recente) trata-se de morte de homem divorciado, de 40 anos, falecido ao fim de três dias.
XI No Acórdão fundamento sucedera ao falecido uma filha menor de 2 anos e no Acórdão recente sucederam ao falecido três filhos de 22, 16 e 6 anos, todos em idade escolar.
XII Em ambos os casos se tratava de pessoas com ocupação laboral efetiva, sendo um empresário de construção civil e o outro engenheiro ambiental em empresa de fundição de dimensão internacional, remunerados, ainda que de forma diversa, pelos montantes e pela forma constantes de ambos os acórdãos e que aqui se dão reproduzidos para todos os efeitos legais, montantes esses que, sendo diversos, apenas podem interferir no quantum indemnizatório mas que não mexem com a identidade ou similitude dos casos.
XIII Da mesma forma, não influi na questão central o facto de ter um ou três sucessores, de estar numa união de facto ou de estar divorciado à data da morte, como é respetivamente o caso dos acórdãos em confronto, porquanto, apesar disso, a questão é sempre a mesma: saber do direito a danos patrimoniais futuros por perda de rendimentos em virtude do decesso do pai.
XIV Em ambas os processos se entendia haver, por força da morte, num caso e noutro, uma perda ou privação de rendimentos que se traduzia num dano patrimonial futuro dos sucessores, naquele caso a filha menor EE e neste dos três filhos ora demandantes, rendimento esse ou parte a que, para além dos alimentos, teriam direito por via sucessória, o que no caso do acórdão recente (recorrido) a primeira instância sufragou.
XV Ora, determinada a questão essencial -atribuição ou não de indemnização aos sucessores por dano patrimonial futuro por morte do progenitor decidiu em síntese, assim o acórdão fundamento:
«Aqui chegados, e definidos os alimentos devidos à menor, importa estabelecer um importante destrinça entre dois tipos de danos futuros aos quais se refere o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça e 3ªSecção de 08-03-2012 no qual se refere que Face à alegação/convocação do direito aplicável assim engendrada, teríamos supostamente à partida, a invocação de dois créditos de indemnização, estando-se perante a dedução de pedido de indemnização por danos patrimoniais, futuros, previsíveis, com fundamento em dois direitos de indemnização de danos patrimoniais, que embora com zonas de sobreposição, se não confundem, sendo autónomos, com fontes de obrigação, titularidade e extensão ressarcitória diversa.
No caso de indemnização por perda de alimentos, estamos em presença de indemnização pelo dano resultante da frustração do percebimento de alimentos, pelos prejuízos advenientes da privação de alimentos, da cessação da prestação alimentar a que o falecido, por força de obrigação legal, ou no cumprimento de uma obrigação natural, estava vinculado, tratando-se de um direito de que são titulares por direito próprio as pessoas destacadas no artigo 495.º, n.º 3.
No outro caso, está-se perante um direito a indemnização por danos patrimoniais futuros, a título de lucros cessantes, próprio da vítima, a que podem aceder os respetivos herdeiros, traduzido na compensação da perda absoluta/definitiva da capacidade aquisitiva de ganho da vítima, da privação total de rendimentos de trabalho, resultantes da morte do lesado imediato.
A indemnização em causa assenta no próprio facto da perda absoluta e definitiva de rendimentos de trabalho, que seriam realizados pelo prestador falecido, não fosse o seu decesso.
Esta diferença é assinalada por Antunes Varela[17], ao referir que, para além do direito próprio a alimentos, “Os sucessores do lesado terão direito ainda à indemnização correspondente aos danos patrimoniais que o próprio lesado teria sofrido a qual se transmite com a herança”.
Ainda segundo Dario Martins de Almeida, [18]“Há um direito próprio conferido a certas pessoas, o qual se rege pelos princípios gerais da responsabilidade civil extracontratual; mas no caso de morte de lesado, funcionam as regras da sucessão: a indemnização pelo dano patrimonial de que o de cujus era titular transmite-se com a herança.
Afirmando esta perspetiva de que no caso de indemnização por lucros cessantes estamos perante um direito de indemnização adquirido por via sucessória, podem ver-se os acórdãos de 18-12-2003, Revista n.º 4120/03 - 7.ª Secção (Os sucessores da vítima de lesão mortal têm direito, por via sucessória, nos termos do artigo 2024.º do CC, à indemnização por danos patrimoniais futuros por ela sofridos relativos à perda de rendimento de trabalho); de 02-03-2004, Revista n.º 24/04-6.ª Secção; de 05-05-2005, Revista n.º 521/05-7.ª Secção (a própria vítima, falecida posteriormente à lesão que a vitimou, integrou na sua esfera jurídica o direito a indemnização por danos futuros derivados da perda de rendimentos de trabalho que, por direito sucessório, se transmitiu aos respetivos sucessores, designadamente os pais - artigo 2024.º do Código Civil); de 06-05-2008, revista n.º 851/08-6.ª Secção.
Consequentemente é forçosa a conclusão de que a indemnização patrimonial pela perda do rendimento futuro cabe à filha menor como herdeira do falecido»,
XVI Concedendo, por isso, o direito a tal indemnização.
XVII Já o acórdão recente supra identificado, decidiu em oposição (ainda que tenha concedido tal montante em sede de 1ª instância).
«Cremos bem, contudo que, no que se refere a este alegado dano patrimonial da própria vítima, estamos perante uma dimensão indemnizatória que não tem fundamento legal, nem sustentação fáctica, desde logo. Outra coisa seria dizer-se que o património dos que viviam em economia comum com a vítima ficou privado do acréscimo periódico que representava o salário desta, enquanto fonte de receitas dessa economia familiar global. Todavia, tratar-se-ia, nesta dimensão, de um dano próprio dos que viviam com a vítima, ainda abrangido no artigo 495º, nº 3 do CC, e não de um dano patrimonial da vítima transmitido mortis causa aos herdeiros, como pretendem os demandantes. Esta dimensão do dano patrimonial dos filhos decorrente da morte do pai (o fim da contribuição deste para a ampliação do património dos filhos) já ficou, correta ou incorretamente quantificada, coberta pela indemnização respeitante a alimentos deixados de receber. Em suma, nenhuma censura merece a decisão recorrida – quando fixada a indemnização nos termos do artigo 495.º/3 C. Civil, a título de direito próprio dos demandantes - decidiu não reconhecer o direito dos demandantes cíveis a indemnização, iure hereditate, relativamente aos lucros cessantes pela perda de salários do pai»,
XVIII Denegando, assim, o direito a tal indemnização.
XIX Donde se constata a clara oposição de decisões, no âmbito da mesma legislação e perante factos similares.
3. O Digno Mº Pº, junto deste Alto Tribunal, notificado para tomar posição, em resposta veio referir Não dá Resposta ao Recurso de Fixação de Jurisprudência interposto, sem prejuízo do ulterior Parecer.
4. Por sua vez, a Demandada Zurich Insurance Europe Ag – Sucursal em Portugal respondendo, sem apresentar quaisquer conclusões, veio defender que (…) deve ser indeferida a admissão de recurso extraordinário en cause, dado que não se encontram preenchidos os respetivos requisitos de admissão, quer em termos formais, quer em termos materiais.
5. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Senhor Procurador-Geral Adjunto no seu douto Parecer, pronunciando-se a respeito da verificação dos pressupostos formais e substanciais definidos nos artigos 437º e 438º do CPPenal para prosseguimento da pretensão em causa, enuncia:
(…)
Questão-controvertida:
Direito a indeminização, iure hereditate, dos filhos a título de danos patrimoniais futuros por perda de capacidade aquisitiva do falecido pai.
Não foi ainda formulado.
Ao pedido de fixação de jurisprudência deduziu resposta a recorrida, “ZURICH INSURANCE EUROPE AG” - SUCURSAL EM PORTUGAL, junto do Tribunal da Relação de Lisboa, com alegações de que se extrai, em síntese, que não há qualquer oposição de julgado, por divergência das questões fáctico-normativas, motivo por que o recurso deve ser rejeitado.
I
Questões-prévias.
A decisão é recorrível;
O recurso é o próprio e tempestivo;
Recorreu quem tem legitimidade e interesse em agir;
Foi regularmente fixado o momento, o modo e o efeito da sua subida;
Nada obstando ao seu conhecimento.
(…)
Dir-se-ia, dos termos do próprio recurso interposto, que resulta incisiva e manifestamente a oposição de julgados entre os Acórdão recorrido e Fundamento, assente numa pretensa interpretação divergente – mesmo antagónica – das disposições conjugadas dos arts. 562º, 566º/2 e 495º/3 do Código Civil, que suportam o direito à reparação, dos lesados indirectos, pelos danos patrimoniais futuros decorrentes da morte de terceiro.
(…)
Crê, porém, o Ministério Público, com todo o respeito, que não ocorre a pressuposta relação lógico-dialéctica de contraditoriedade – afirmação, a um tempo, do Ser e do Não Ser – relevante, como expressão de uma antinomia ou incompatibilidade entre duas ideias, proposições ou princípios lógico-racionais obtidos no seio da discussão e valoração da mesma situação de facto, nos seus contornos essenciais, juridicamente relevantes.
(…)
Efectivamente, no respeito do modelo etiológico e processual-penal do recurso de fixação de jurisprudência – que pressupõe, pois, naturalmente, a oposição de julgados – não é viável afirmar que num mesmo silogismo judiciário (sempre na dialéctica do Facto/Direito), foram seguidas duas vias divergentes de raciocínio, viabilizando que de duas séries de premissas iguais se tivessem alcançado conclusões (decisões) diversas.
(…)
É certo que a motivação da questão-de-direito que induziu as duas decisões em conflito é tratada em ambos os acórdãos no seio de uma aparentemente divergente discursividade lógico-dialéctica:
No Acórdão-Fundamento é motivado que a reparação do dano da perda de alimentos pode coexistir, logico-juridicamente, a indemnização patrimonial pela perda do rendimento futuro aos herdeiros do falecido;
No Acórdão-Recorrido foi fundamentado que não era de reconhecer aos demandantes, em simultâneo, o direito a indemnização respeitante à privação futura dos alimentos que o falecido pai lhes prestava, e, iure hereditate, o direito a serem indemnizados pelos lucros cessantes, traduzidos na parte dos rendimentos que aquele iria, previsivelmente, obter durante a vida activa e durante o período da reforma, até ao seu falecimento.
(…)
Mas, sendo o Direito por excelência a Ciência do facto, qualquer valoração jurídico-normativa há-de ter como referente um dado enquadramento do real-social, motivo por que o sentido da ponderação na aplicação de uma norma ou princípio será inelutavelmente conformado pelos factos que lhe estão subjacentes.
(…)
Factualidades, essas, que – como lastros do empírico que hão-de justificar uma oposição de julgados –, se não absolutamente idênticas em ambos os acórdãos em cotejo, terão de pautar-se por uma relação de relevante mesmidade entre as hipóteses fáctico-normativas que não se baste apenas pela mera similitude ou semelhança, mas, diversamente, pela identidade nos seus contornos essenciais.
(…)
Ou seja:
No caso seria puramente secundário, mesmo irrelevante, por exemplo, que o falecido fosse viúvo, ou que, em vez de três filhos lhe sucedessem quatro, ou dois e um neto, ou fosse já casado em segundas núpcias...
(…)
Mas já não é irrelevante, porque marcará, no caso, a diferença, pela dissemelhança das hipóteses fáctico-normativas tidas por relevantes:
Que no caso do Acórdão-Fundamento se tratava da morte de um homem – a vítima mortal do acidente – que vivia em união de facto com uma companheira e a filha de ambos (única daquele);
Que no caso do Acórdão-Recorrido se tratava da morte de um homem – a vítima mortal do acidente – que (com 40 anos de idade) era divorciado, era pai de três filhos do respectivo casamento e que vivia já em união de facto com uma companheira, ainda sem filhos daquele.
(…)
E, na verdade – como se extrai da fundamentação dos Acórdãos em confronto –, estas circunstâncias de facto particulares (postas no devido realce, no essencial, na motivação aduzida pela demandada-civil) tiveram expressão nas diversas valorações jurídico-normativas que, na sua dialéctica, co-induziram as respostas também diversas à questão da cumulação, em concreto, dos direitos à indemnização pela privação futura dos alimentos e pelos lucros cessantes.
(…)
Nomeadamente.
(…)
No Acórdão-Fundamento:
… …
Porque a previsão assenta sobre danos verificáveis no futuro, relevam sobremaneira os critérios de verosimilhança ou de probabilidade, de acordo com o que, no concreto, poderá vir a acontecer segundo o curso normal das coisas.
… …
(…)
No Acórdão-Recorrido:
… …
No caso sub judice, além do mais, estamos perante os filhos de pai divorciado, que mantinha um relacionamento amoroso à data da morte…
E sem necessidade de entrar em jogos de palavras ou em exercício de mera e gratuita especulação, podemos sem grande margem de erro afirmar que 30 anos é muito tempo.
Donde, a expectativa de os filhos se afirmarem, daqui a 30 anos, como os únicos e universais herdeiros do pai, constitui isso mesmo uma expectativa. E da mesma forma, constitui uma mera miragem, tentar agora, prever o património que o pai teria, daqui a 30 anos.
… …
Isto é:
(…)
No Acórdão-Fundamento, para além da posição de princípio de que tais direitos são cumuláveis, foi também determinante da ponderação jurídico-civil firmada:
Uma previsão, de acordo com critérios de “verosimilhança ou de probabilidade” – assentes nos concretos factos-provados e nas regras da experiência comum –, do que viria a acontecer segundo o curso normal das coisas, antecipando-se uma dada situação de facto que justificaria o reconhecimento do direito à indemnização pelos lucros cessantes (perda de rendimentos do falecido).
(…)
No Acórdão-Recorrido, para além da contrária posição de princípio de que tais direitos não são cumuláveis, foi ainda determinante da ponderação jurídico-civil firmada:
Uma previsão, de acordo com os mesmos critérios, com a antecipação de uma diversa situação de facto que não justificaria no caso o reconhecimento do direito à indemnização pelos lucros cessantes.
(…)
Donde:
Embora, na sua essencialidade, a questão-de-direito tratada seja idêntica;
Conquanto sejam opostas, divergentes, as soluções jurídico-normativas encontradas em ambos os Acórdãos;
O certo é que também não são as mesmas as hipóteses fáctico-normativas.
(…)
Essa falta de mesmidade do facto induziu, precisamente, como já resulta do exposto, que na divergente interpretação, sempre casuística, das disposições jurídico-civis em causa conseguida nos Acórdãos postos em confronto se tivesse, por via da diversa discursividade lógico-dialéctica e normativa, estabelecido um cotejo analítico de juridicidades também diferentes na sua substância – porque assentes em premissas não equivalentes –, sem que possa, por isso, afirmar-se que unicamente por divergência das posições jurídico-valorativas – sobre a cumulação ou não dos direitos em causa – foram induzidas soluções opostas (conflituantes nas suas proposições) relativamente à aplicação do Direito.
(…)
Aliás, a pressuposta “oposição de julgados” – pela via das questões-de-facto e/ou de direito presentes – há-de ser tal que não imponha ao julgador a necessidade de realização de uma ponderação abrangente, elaborada, sobre se duas questões juridicamente diversas se equivalem normativamente, pois que tal oposição há-de também manifestar-se de forma imediata, autónoma e explícita, e não apenas depois de formulado um juízo em concorrência de concausas jurídicas da decisões.
(…)
Cremos, com todo o respeito por opinião em contrário, que o argumento da cumulação dos direitos deveria ter sido, per se, nos dois Acórdãos, o motivo (a causa jurídica) da decisão tomada, e não apenas um dos seus fundamentos, que nos processos lógico-intelectuais dos julgamento atinentes a ambos os Acórdãos, diluindo-se, teve de concorrer com a valia jurídico-dialéctica de outros, susceptíveis de afectarem o sentido da decisão.
(…)
Podendo, pois, afirmar-se que os Acórdãos sindicaram juízos sobre o reconhecimento do direito em causa assentes em factos relevantemente diversos.
(…)
Aliás, para o caso (da verificação da oposição de julgados) é supérfluo, quase puramente doutrinal, com todo o respeito:
Ponderar se o direito à reparação pela perda de rendimento futuro do progenitor se constitui no património dos herdeiros ou se lhe advém iure hereditate;
Discutir sobre se a tese da transmissão mortis causa assenta numa pura ficção – entre tantas que o Direito constrói ou reconhece.
(…)
Vejam-se, nesta matéria, os Acórdãos do STJ:
-De 24-11-2022, P-1641/16.0T9AVR-A.P1-A.S1:
I - Nos termos do arts. 437.º, n.os 1 e 2, do CPP, a oposição de julgados justificativa dos recursos para fixação de jurisprudência pressupõe que os acórdãos em confronto hajam decidido a mesma questão jurídica fundamental em sentidos reciprocamente contrários ou contraditórios – pois a contrariedade e a contradição são as únicas espécies possíveis de oposição entre proposições de um qualquer tipo;
… …
IV - Se, no plano das soluções jurídicas possíveis, entre as situações factuais subjacentes aos 2 acórdãos ocorrem diferenças susceptíveis de afectar os termos da resposta à mesma questão jurídica, tanto basta para impedir que se possa concluir pela necessária oposição de julgados.
-De 08.07.2020, P- 490/19.8GAVNF.G1-A.S1:
… …
X – Sendo basicamente necessário o confronto de dois acórdãos que relativamente à mesma questão de direito assentem em soluções opostas, o artigo 437.º do Código de Processo Penal faz depender a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência da existência de determinados pressupostos e o artigo 438.º identifica o tempo, o modo e o efeito da interposição do recurso.
XI – Como se extrai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Outubro de 1989, in AJ, n.º 2, «É indispensável para se verificar a oposição de julgados:
a) – que as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes (e não apenas contraposição de fundamentos ou de afirmações) para a mesma questão fundamental de direito;
b) – que as decisões em oposição sejam expressas (e não implícitas);
c) – que as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticos.
XII – A expressão “soluções opostas” pressupõe que nos dois acórdãos é idêntica a situação de facto, em ambos havendo expressa resolução de direito e que a oposição respeita às decisões e não aos fundamentos.
… …
23
Do que se afirma que não há oposição de julgados, como pressuposto essencial (material) da previsão do recurso de fixação de jurisprudência, o que implicará também a sua rejeição (cfr, os arts. 437º/1 e 441º do Código de Processo Penal).
III
Em síntese:
Não é viável extrair qualquer relação de oposição de julgados nas duas decisões identificadas nos autos, reportando-se:
O Acórdão-Fundamento, a julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela ali demandada seguradora, e, em consequência, a reduzir a indemnização ali arbitrada à demandante, menor, a título de danos patrimoniais futuros por perda de capacidade aquisitiva do falecido pai, que cumulou com a relativa à perda do direito a alimentos;
No pressuposto de facto de que se tratava da morte de um homem – a vítima mortal do acidente – que vivia em união de facto com uma companheira e a filha de ambos (única dele).
O Acórdão-Recorrido, a julgar improcedente o recurso do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto que, julgando procedente o recurso da demandada-civil, a absolveu do pedido de indeminização dos demandantes a título de danos patrimoniais futuros por perda de capacidade aquisitiva do falecido pai;
No pressuposto de facto de que se tratava da morte de um homem – a vítima mortal do acidente – que (com 40 anos de idade) era divorciado, era pai de três filhos do respectivo casamento e que vivia já em união de facto com uma companheira, ainda sem filhos daquele.
Formulando ambos os Acórdãos previsões diversas, de acordo com critérios de verosimilhança ou de probabilidade – assentes nos também diversos factos-provados e nas regras da experiência comum –, do que viria a acontecer segundo o curso normal das coisas, antecipando cada um deles uma dada situação de facto que justificou, ou não, respectivamente, o reconhecimento do direito à indemnização pelos lucros cessantes (perda de rendimentos do falecido).
O presente recurso de fixação de jurisprudência deve ser rejeitado (cfr, arts. 414º/2, 420º/1-b), 437º/1, 441º/1 e 228º do Código de Processo Penal).
6. Os Recorrentes vieram responder, mantendo a linha de entendimento vertida no seu articulado recursório.
7. Efetuado o exame preliminar, o processo foi aos vistos e remetido à conferência, nos termos dos nºs 3 e 4 do artigo 440º do Código de Processo Penal, cumprindo agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, ao que se pensa, assume-se como uma espécie de recurso normativo, por contraposição com o denominado recurso hierárquico, onde se visa a determinação do sentido de uma norma, com força quase obrigatória, geral e abstrata, em benefício dos valores da certeza e da segurança jurídica, unificando, por essa forma, a interpretação e o sentido de um preceito legal ou dimensão normativa que os tribunais de recurso consideravam de modo divergente.
Nesse desiderato, este meio reativo, envergando a dimensão de anulação do caso julgado, contrariamente aos recursos ordinários que se destinam a impedir a formação do trânsito das decisões2, é um recurso excecional, com tramitação especial e autónoma, tendo como objetivo primordial a estabilização e a uniformização da jurisprudência, eliminando o conflito / contraponto, originado por duas decisões em oposição respeitantes à mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação3.
Com efeito, (…) (a) uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito4.
A sua disciplina decorre da normação inserta nos artigos 437º e seguintes do CPPenal, sendo que num primeiro momento se impõe a verificação das exigências expressas nos artigos 437º5 e 438º6 do referido compêndio legal.
E, seguindo os ditos normativos, tem sido entendimento deste STJ que a interposição do recurso para fixação de jurisprudência, depende da verificação de pressupostos formais e materiais.
No que concerne aos primeiros, vislumbram-se: i. a legitimidade do recorrente (sendo esta restrita ao Ministério Público, ao arguido, ao assistente e às partes civis) e interesse em agir, no caso de recurso interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (já que tal recurso é obrigatório para o Ministério Público); ii. a identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação, com justificação da oposição entre os acórdãos que motiva o conflito; iii. o trânsito em julgado de ambas as decisões e iv. a tempestividade (a interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito da decisão proferida em último lugar).
Por seu turno, emergem como exigências de ordem material / substancial: i. a existência de oposição entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ou entre dois acórdãos das Relações, ou entre um acórdão da Relação e um do Supremo Tribunal de Justiça; ii. a verificação de identidade de legislação a coberto da qual foram proferidas as decisões; iii. A oposição referente à própria decisão e não aos fundamentos; iv. as decisões em oposição serem expressas e v. a identidade de situações de facto.
Cotejando estas premissas, olhe-se, então, ao caso dos autos.
Os Recorrentes têm legitimidade e interesse em agir – por força do Acórdão recorrido, confirmatório de decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, não lhes foi arbitrada indemnização por danos patrimoniais futuros, em consequência da morte de seu pai - tal como transparece do disposto no artigo 437º, nº 5 do CPPenal, estando assim verificada esta exigência de forma.
Nos termos do fixado no artigo 438º, nº 1, do diploma que se vem citando, este recurso deve ser interposto no prazo de 30 dias contados do trânsito em julgado do Acórdão recorrido, sendo que o aresto em sindicância foi proferido em 23 de abril de 2025, transitou em julgado a 9 de maio de 2025, tendo sido o presente recurso interposto em 13 de maio de 2025, estando assim clara a sua tempestividade.
De seu lado, e no que tange ao Acórdão fundamento foi o mesmo proferido em 11 de outubro de 2017, pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do Processo nº 1090/12.9GBAMT, tendo transitado em julgado em 24 de novembro de 2017.
Face ao que é trazido preenchida está a exigência de invocação de um único acórdão fundamento.
Está em causa, no entender dos Recorrentes, a contraditoriedade / oposição de dois Acórdãos, ambos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça - decisão recorrida e decisão fundamento - e, nessa medida, considerando a contextualização apresentada no articulado recursório opera a condição do trânsito em julgado de dois Acórdãos contraditórios.
Os Recorrentes enunciando que há oposição entre o decidido nos dois pronunciamentos, na concretização do que invocam como idênticas situações de facto e na comparação das opostas decisões de direito, enunciam que o Acórdão recorrido decidiu, em matéria de indemnização por danos patrimoniais futuros, em consequência da morte do seu pai, (…) denegar tal pretensão de indemnizar os sucessores do falecido por tais danos patrimoniais (por perda de rendimentos) para além dos alimentos (…), ao passo que no Acórdão fundamento se considerou (…) ser de indemnizar, e indemnizando mesmo, a requerente civil pelos danos patrimoniais (para além dos alimentos) por si sofridos em função da perda de rendimentos futuros que o progenitor auferiria se não tivesse acorrido a sua morte.
Ante este invocativo entende-se que se verifica, in casu, do pressuposto da justificação da oposição, sendo que não se conhece jurisprudência fixada pelo STJ quanto ao mote que vem trazido pelos Recorrentes.
Por força desta enunciação, ao que se crê, é de concluir que estão preenchidas todas as premissas formais de que depende a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.
Da verificação dos pressupostos materiais / substanciais no caso sub judice
Desde logo, reclama-se, como primeira exigência, o retrato de oposição entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ou entre um acórdão da Relação que não admite recurso ordinário e que não tenha decidido contra jurisprudência fixada e outro anterior de tribunal da mesma hierarquia ou do Supremo Tribunal de Justiça.
Olhando à situação que se apresenta, parece cristalino que se está ante dois Acórdãos tirados por Tribunais Superiores – ambos do Supremo Tribunal de Justiça – o primeiro (recorrido) em 2025 e o segundo (fundamento) em 2017, sendo que os Recorrentes, no seu articulado recursivo, descreveram o que se considera como a oposição existente entre os dois decididos e delimitando a visada uniformização.
Como segundo aspeto, impõe-se a verificação de identidade de legislação a coberto da qual foram proferidas as decisões em confronto.
Visitando todo o quadro existente, parece seguro que os Acórdãos em dissídio foram proferidos no âmbito da mesma legislação, ou seja, durante o intervalo de tempo da sua prolação, cerca de oito anos, não sobreveio qualquer modificação / alteração legislativa que interferisse, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida.
Na verdade, e no que concerne aos normativos em que os Recorrentes se posicionam – artigo 495º, nº 3 do CCivil – não surgiu qualquer alteração legislativa de substância que influenciasse, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida e aqui em discussão.
Importa, então, prosseguir e verificar a existência dos pressupostos oposição referente à própria decisão, as decisões em confronto serem expressas e identidade de situações de facto, ou seja, se ante todos os elementos fornecidos pelos autos, transluz o desenho de asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos, consagrando soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito, as quais ditaram soluções opostas na interpretação e aplicação das mesmas normas perante factos de contornos idênticos7.
Ou seja, nesta dimensão importa sopesar sobre se as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos fixaram ou consagraram soluções diferentes (e não apenas contraposição de fundamentos ou de afirmações) para a mesma questão fundamental de direito, se as decisões em oposição são expressas e não implícitas, devendo ainda ponderar-se se o quadro factual e o respetivo enquadramento jurídico são, em ambas as decisões, idênticos.
Como se adiantou, os Recorrentes circunscrevem a essência do presente dissidio, afirmando que o Acórdão recorrido proferido nos autos de que este recurso é apenso e o Acórdão fundamento - aresto prolatado em 11 de outubro de 2017 por este Alto Tribunal, no Processo nº 1090/12.9GBAMT.P1.S1 -, se reportam à mesma questão de direito, que é a de saber se há ou não lugar à atribuição de indemnização aos sucessores por dano patrimonial futuro por morte do progenitor.
Diga-se, ainda, que é entendimento dos Recorrentes que do confronto do Acórdão recorrido e do Acórdão fundamento se retira que há identidade de factos entre ambas as decisões, que foram objeto de recurso, sendo cristalino que se consagram soluções opostas.
Um debruce, então sobre ambas as realidades retratadas em cada uma das decisões em enfrentamento.
No Acórdão recorrido, pode ler-se (…) O cerne da questão centra-se aqui, na questão de saber se os filhos da vítima mortal podem pedir e ver reconhecido, em simultâneo, o direito a indemnização, respeitante à privação futura dos alimentos que o pai lhes prestava, fundada no artigo 495.º/3 CCivil e, via sucessória, o direito a serem indemnizados pelos lucros cessantes, traduzidos na parte da remuneração que o pai ia previsivelmente auferir durante a vida activa e durante o período da reforma até ao seu falecimento.
Como resulta do citado artigo 483.º CCivil, em matéria de responsabilidade civil extra-contratual, por factos ilícitos, delitual, ou aquiliana a regra geral é a de que a indemnização pelos danos causados cabe apenas ao titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado com a violação de disposição legal destinada a protegê-lo – não, o terceiro, que só reflexamente ou indirectamente, seja prejudicado.
Em princípio, titular do direito a indemnização é apenas o sujeito directa ou imediatamente lesado pelos danos resultantes da violação, o titular dos bens imediatamente afectados pelo facto danoso.
O terceiro, que só reflexa, ou indirectamente, seja prejudicado com a violação do direito do lesado directo, está, em princípio, fora do círculo dos titulares do direito à indemnização.
Excepcionalmente (…) o artigo 495.º/3 CCivil, sob a epígrafe de “indemnização a terceiros em caso de morte ou lesão corporal” regula a indemnização do dano da perda a alimentos, dispondo que o direito a indemnização, jure proprio, no que se reporta aos danos patrimoniais, pode, em caso de lesão corporal, ou no caso de morte da vítima, caber a terceiros “têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado”.
O lesante fica constituído na obrigação de indemnizar a pessoa carecida de alimentos do prejuízo que para ela advém da falta de contribuição por parte da pessoa lesada.
(…)
Estamos aqui, no caso concreto, no confronto entre a já reconhecida cessação da prestação de natureza alimentícia aos demandantes e a aqui controvertida cessação da remuneração laboral do pai.
Esta última a traduzir uma projecção futura de tal cessação como um dano, como a supressão de uma vantagem tutelada pelo Direito.
Que foi infligida à vítima e que seria, via sucessória, transmitida aos herdeiros, nos termos do artigo 2024.º CCivil.
(…)
Duas realidades absolutamente diversas. E dois institutos jurídicos distintos.
Os demandantes invocam ambas as normas, mas esta sua precisa e concreta pretensão não cabe, seguramente, no âmbito de previsão do artigo 495.º/3.
Aqui cabe o direito que já lhes foi reconhecido.
Com efeito, esta norma consagra uma excepção ao princípio geral de que só ao titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado assiste direito a indemnização, aqui se abrangendo terceiros só reflexamente prejudicados com o evento danoso.
(…)
Através desta norma não é concedido, às pessoas, que podem exigir alimentos ao lesado, o direito de indemnização de todos e quaisquer danos patrimoniais que lhes hajam sido causados.
No caso de lesão de que proveio a morte, como é o caso destes autos, têm direito a indemnização pela perda do rendimento do trabalho da vítima todos aqueles que podiam exigir alimentos ao lesado ou todos aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.
Em primeiro lugar, dir-se-á que a situação deverá ser enquadrada, como de resto fez a decisão recorrida, a nível de indemnização por perda de alimentos por parte de sobrevivente de união de facto.
A morte do pai dos demandantes motivado por conduta ilícita do lesante foi determinante da sua frustração absoluta de ganhos, de perda absoluta da capacidade produtiva daquele pelo tempo de vida que previsivelmente lhe restaria, com reflexos na esfera patrimonial dos filhos, atenta a sua dependência económica em relação, também, àquele.
(…)
Para sustentarem a sua pretensão os demandantes invocam, agora o disposto no artigo 2024.º CCivil, seja a via sucessória, como fonte do seu direito à indemnização.
Poderemos ter como inusitada a chegada desta precisa questão aos Tribunais, porventura dada a uniformemente consolidada e reiterada interpretação que destas normas se vem fazendo e, mormente reportadas a este aqui invocado desdobramento, duplicação ou justaposição de indemnizações (…).
Não existe fundamento legal para a fixação, num quadro de responsabilidade civil extra-contratual e no caso de morte da vítima, de uma indemnização respeitante a danos patrimoniais futuros (lucros cessantes) da própria vítima, traduzida na projecção do que esta auferiria a título de salários pelo seu trabalho, não fora a ocorrência do evento morte (…) a hipotética consideração dos futuros rendimentos laborais do morto, enquanto dano patrimonial deste transmitido aos herdeiros, teria de ter em conta, nos termos do artigo 566.º/2 CCivil, também os seus futuros gastos, subtraídos aos salários, sendo que só as futuras “poupanças” da vítima poderiam ser tidas em conta em sede indemnizatória, com toda a dificuldade e incerteza associada à prova desse elemento”.
No caso estão em causa os alegados “lucros cessantes” da própria vítima decorrentes do não percebimento das remunerações mensais que receberia, não fora a circunstância … de ter morrido.
O que é certo é que os demandantes procederam à qualificação jurídica, de ambas as situações, autonomizando-as, estruturando a sua pretensão de serem ressarcidos – a ambos os títulos - na alegação, mais que de factos, de considerações substancialmente diversas.
Cremos bem, contudo que, no que se refere a este alegado dano patrimonial da própria vítima, estamos perante uma dimensão indemnizatória que não tem fundamento legal, nem sustentação fáctica, desde logo.
Outra coisa seria dizer-se que o património dos que viviam em economia comum com a vítima ficou privado do acréscimo periódico que representava o salário desta, enquanto fonte de receitas dessa economia familiar global. Todavia, tratar-se-ia, nesta dimensão, de um dano próprio dos que viviam com a vítima, ainda abrangido no artigo 495º, nº 3 do CC, e não de um dano patrimonial da vítima transmitido mortis causa aos herdeiros, como pretendem os demandantes8.
Esta dimensão do dano patrimonial dos filhos decorrente da morte do pai (o fim da contribuição deste para a ampliação do património dos filhos) já ficou, correcta ou incorrectamente quantificada, coberta pela indemnização respeitante a alimentos deixados de receber.
(…)
Na tese dos demandantes estamos perante uma ficção. Que se traduz em que no momento da morte, se integra imediatamente no património da vítima o resultado da poupança que iria fazer ao longo da vida activa, resultante dos salários da sua actividade profissional.
Com efeito, resulta da configuração feita pelos demandantes, que não se trata de danos patrimoniais infligidos ao património do pai, sendo certo que nunca chegaram a constituir-se e, por isso, nunca chegaram a entrar nesse universo patrimonial (…) ficcionam, a par dessa (impossível) integração imediata no património de quem morre no momento da respectiva morte, a transmissão aos herdeiros, esquecendo que a sucessão, enquanto chamamento de determinadas pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida (…) só opera relativamente a créditos efectivamente constituídos e integrados no património do de cuius ao tempo do seu decesso.
O que afinal pretendem os demandantes - e lhes foi concedido por via da sentença da 1.ª instância – é a par da indenização por perda de alimentos, nos termos do artigo 495.º/3 CCivil, ainda, a atribuição do que denominam de lucros cessantes da vítima, reportados ao não percebimento, por ela própria em função da sua morte, das remunerações que eventualmente venceria no futuro (…) O que das contas e do raciocínio que lhes subjaz pretendem os demandantes cíveis é, afinal, a putativa futura “poupança” do pai, que constituiria a herança dos filhos se viesse a morrer daqui por 30 anos9.
(…)
Diga-se, desde já, que. nenhuma das situações de facto subjacentes aos acórdãos citados pelos demandantes cíveis é comparável à aqui delineada, dado que, no essencial, se referem casos onde existe cônjuge e filhos, onde todos continuavam a viver juntos, fazendo parte do mesmo agregado familiar, e com, natural, expectativa de vida em comum, no futuro (…) No caso sub judice, além do mais, estamos perante os filhos de pai divorciado, que mantinha um relacionamento amoroso à data da morte com FF (…) sem necessidade de entrar em jogos de palavras ou em exercício de mera e gratuita especulação, podemos sem grande margem de erro afirmar que 30 anos é muito tempo10.
Donde, a expectativa de os filhos se afirmarem, daqui a 30 anos, como os únicos e universais herdeiros do pai, constitui isso mesmo uma expectativa11 (…) a questão da via hereditária, expediente que mesmo que fosse viável e possível configurar, apenas a, muito longo, prazo o poderia vir a ser.
Como realidade factual, e para o que aqui releva, tem-se um quadro onde desponta (…) DD faleceu no estado de divorciado e sem testamento12, deixando como seus únicos e universais herdeiros os seus filhos AA, nascido a D/M/1999, BB, nascido a D/M/2005, e CC, nascida a D/M/2015 (…) O falecido tinha a guarda partilhada dos filhos, com os quais mantinha relações de afeto, providenciando juntamente com a progenitora, na proporção de metade, com alimentação, vestuário, calçado, medicação, despesas escolares e atividades lúdicas (…) Mantinha um relacionamento amoroso à data da morte com FF13 (…).
De seu lado, o Acórdão fundamento aponta (…) quanto aos danos patrimoniais futuros relativos à filha menor da vítima (…) a questão em apreço nos presentes autos circunscreve um tema fundamental em sede de responsabilidade civil extracontratual (…) da determinação dos danos patrimoniais futuros (…) definidos os alimentos devidos à menor, importa estabelecer uma importante destrinça entre dois tipos de danos futuros (…) indemnização por perda de alimentos (…) indemnização por danos patrimoniais futuros, a título de lucros cessantes, próprio da vítima, a que podem aceder os respetivos herdeiros (…) no caso de indemnização por lucros cessantes, estamos perante um direito de indemnização adquirido por via sucessória (…) a demandante (…) não teria qualquer legitimidade para peticionar indemnização por lucros cessantes, por não ser herdeira do falecido companheiro (…) o mesmo não se dirá em relação à filha menor (…).
Em termos de suporte fáctico, o que aqui se tem (…) a GG nasceu a D de M de 1980 (…) com o HH vivia desde os 19/20 anos de idade ( …) A inesperada morte do HH (…) Causou à GG grande revolta (…) sabe-se privada para sempre (…) da companhia, apoio, carinho e amor que o HH lhe devotava (…) tendo que criar sozinha a filha de ambos (…) HH trabalhava como empresário da construção civil (…) era com os rendimentos provenientes desse trabalho que o HH acorria ao seu próprio sustento e bem assim ao sustento da GG e da EE (…) bem assim ao sustento da GG e da EE (…) a todas as despesas havidas do agregado familiar: comer, vestir, calçar, cuidados de higiene, de saúde, transportes, telefones, de lazer (…) Após a morte do HH, a GG e a EE Passaram a viver dificuldades económicas.
Cotejando a contextualização levada a cabo, atentando nas realidades factuais que nortearam as decisões em enfrentamento, tal como o pugnado pelo Digno Mº Pº no seu douto Parecer e secundado pela entidade recorrida – demandada -, ao que se pensa, concluir / afirmar / retirar que nos palcos em confronto há identidade de factos – vista esta não como uma identidade absoluta entre dois acontecimentos históricos mas que eles se equivalham para efeitos de subsunção jurídica a ponto de se poder dizer que, pese embora a solução jurídica encontrada num dos processos assente numa factualidade que não coincide exactamente com a do outro processo, esta solução jurídica continuaria a impor-se para o subscritor mesmo que a factualidade fosse a do outro processo14 - entre ambas as decisões, que foram objeto de recurso, sendo evidente que se consagram soluções opostas, não se mostra possível.
Na verdade, no Acórdão recorrido, ponderando sobre a questão relativa aos lucros cessantes, afirma-se categoricamente (…) estamos perante os filhos de pai divorciado, que mantinha um relacionamento amoroso à data da morte com FF (…) e que o caso dos autos não se trata de realidade, como outras, (…) onde existe cônjuge e filhos, onde todos continuavam a viver juntos, fazendo parte do mesmo agregado familiar, e com, natural, expectativa de vida em comum, no futuro (…).
De outra banda, o Acórdão fundamento15, apelando a materialidade que claramente aponta para um quadro de vivência em comum e de partilha de economia entre o falecido, a companheira e a filha de ambos, socorre-se claramente de tal modelação para atribuir montante indemnizatório, a esta última, a título de lucros cessantes.
Com efeito, as situações de facto existentes anotam colorações completamente distintas – numa há uma família constituída e com expectativa de assim se manter de futuro (Acórdão fundamento), na outra estamos perante um pai que não vive com os filhos, nem com a mãe deles, mas com uma companheira (Acórdão recorrido) – que determinaram leituras diferentes do quadro legal.
Nesta senda, admitindo que as decisões possam delucidar uma oposição expressa, a verdade é que o que as sustenta, são situações de facto diversas e, por isso, não se pode afirmar que as decisões tiradas assentam em quadro factual similar.
Faceando todo este contexto, falhando este mote em ponderação, resta concluir que não se mostram verificados / clarificados os necessários requisitos para declarar a oposição de julgados, o que conduz à rejeição do presente recurso, nos termos do que plasma o artigo 441º, nº1 do CPPenal.
III – Dispositivo
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 3ª Secção (criminal) do Supremo Tribunal de Justiça, 3.ª Secção, em rejeitar o recurso interposto por AA, na qualidade de assistente, BB e CC, demandantes civis, ao abrigo do estatuído no artigo 441º, nº 1 do CPPenal.
Custas a cargo dos Recorrentes, fixando-se a Taxa de Justiça, por cada um, devida - artigos 448º, 513º, nº 1 e 8º, por referência à Tabela III Anexa, do RCP -, em 4 (quatro) UC.
D.N.
Carlos de Campos Lobo (Relator)
António Augusto Manso (1º Adjunto)
Maria Margarida Ramos de Almeida (2ª Adjunta)
________
1. Referência Citius …10.
2. Neste sentido, LEAL-HENRIQUES, Manuel, Anotação e Comentário ao Código de Processo Penal de Macau, Volume III (Artigos 362º a 499º), 2014, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, p. 368 – (…) os recursos ordinários intentam impedir a formação do caso julgado, enquanto que os recursos extraordinários projetam anular o caso julgado.
3. Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ, de 16/03/2022, proferido no Processo nº 5784/18.7T9LSB.L1-A.S1- (…) O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem carácter normativo, visando uniformizar critérios interpretativos que garantam a unidade do ordenamento jurídico penal ou processual penal e, com isso, os princípios de segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade dos cidadãos perante a lei -, de 30/06/2021, proferido no Processo nº 698/11.4TAFAR.E1-A.S1 - (…) O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, de carácter normativo, destina-se a fixar critérios interpretativos uniformes com a finalidade de garantir a unidade do ordenamento penal e, com isso, os princípios de segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade dos cidadãos perante a lei. -, de 30/10/2019, proferido no Processo nº 2701/11.9T3SNT.L1-A.S1 – (…) O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência constitui uma espécie de recurso classificado como «recurso normativo», por contraposição com o denominado «recurso hierárquico»; no recurso normativo, o objecto é constituído pela determinação do sentido de uma «norma», com força quase obrigatória e, de qualquer modo, geral e abstracta, a benefício directo dos valores da certeza e da segurança jurídica, unificando a interpretação e o sentido de uma norma ou dimensão normativa que os tribunais de recurso consideravam de modo divergente (…) é um recurso excepcional, com tramitação especial e autónoma, tendo como objectivo primordial a estabilização e a uniformização da jurisprudência, eliminando o conflito originado por duas decisões contrapostas a propósito da mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação (…), todos disponíveis em www.-dgsi.pt.
Ainda, GAMA, António, LATAS, António, CORREIA, João Conde, LOPES, José Mouraz, TRIUNFANTE, Luís Lemos, SILVA DIAS; Maria do Carmo, MESQUITA, Paulo Dá, ALBERGARIA, Pedro Soares de e MILHEIRO, Tiago Caiado, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V – artigos 399º a 524º, 2024, Almedina, p. 410 – (…) criou-se um mecanismo para superar divergência interpretativas dos Tribunais Superiores reveladas em acórdãos proferidos, relativamente a questão de direito idêntica, no domínio da mesma legislação (…) no caso de soluções opostas, que seja uniformizada a jurisprudência, fixando-se um sentido interpretativo geral e abstrato (…) assim conferindo previsibilidade futura (…).
4. Acórdão do STJ nº 5/2006 do STJ, de 20/04/2006, publicado no DR nº 109, I-A Série, de 6/06/2006.
5. Artigo 437.º
Fundamento do recurso
1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.
2 - É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
3 - Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4 - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.
5 - O recurso previsto nos n.os 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.
6. Artigo 438.º
Interposição e efeito
1 - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.
2 - No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.
3 - O recurso para fixação de jurisprudência não tem efeito suspensivo.
7. Sublinhado nosso.
8. Sublinhado nosso.
9. Sublinhado nosso.
10. Sublinhado nosso.
11. Sublinhado nosso.
12. Sublinhado nosso.
13. Sublinhado nosso.
14. Acórdão do STJ, de 28/11/2024, proferido no Processo nº 976/23.0Y2MTS.P1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt.
No mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos de 15/02/2024, proferido no Processo nº 149/22.9YUSTR.L1-B.S1, de 09/02/2022, proferido no Processo nº 2004/19.0PAVNG.P1-A.S1 - (…) Efetivamente, salienta a jurisprudência, não pode haver oposição ou contradição entre dois acórdãos, relativamente à mesma questão fundamental de direito, quando são diversos os pressupostos de facto em que assentaram as respetivas decisões.
15. O qual exibe um voto de vencido, onde se entende que apesar do quadro factual em presença, (…) não assiste à (…) filha menor do falecido (…9, o direito a ser indemnizada pelos danos resultantes da privação de rendimentos da vítima em tudo o que exceda os afetos à satisfação de “alimentos”.