INVENTÁRIO
DONATIVO CONFORME AOS USOS SOCIAIS
FRUTOS NATURAIS
Sumário

I - Embora os "donativos conforme os usos sociais" (art. 940.º, n.º 2, Código Civil) devam ser avaliados em função da condição social e económica dos intervenientes, e não obstante o inquestionável contexto socioeconómico abastado da família dos inventariados, aceite nos autos, uma disposição pecuniária no montante de €100.000,00, à data de 1995, a favor de uma descendente, ainda que por ocasião do seu casamento, excede o que razoavelmente se considera um mero donativo conforme aos usos sociais.
II - O usufrutuário tem direito aos frutos naturais percebidos até ao momento da extinção do seu direito, ou seja, até à sua morte.
III - O proprietário pleno tem direito aos frutos naturais percebidos a partir do momento em que a plena propriedade se consolida na sua esfera jurídica, isto é, a partir da morte do usufrutuário.
IV - A distinção reside no momento da separação dos frutos naturais em relação à coisa, pois que acompanham a coisa que os produz até ao momento da sua colheita, só então se autonomizando. Se à data da morte do usufrutuário os frutos já estavam separados (colhidos) da coisa usufruída, eles integram o património do usufrutuário. Se, contudo, àquela data ainda estavam pendentes (não colhidos ou não separados da coisa usufruída), pertencem ao proprietário pleno e integram o seu património, incluindo o produto da respetiva venda.
V - Os frutos naturais pendentes à data da morte do usufrutuário/inventariado e percebidos após a consolidação da plena propriedade na interessada/apelante não integram o património hereditário do inventariado/usufrutuário e, como tal, não devem ser incluídos na relação de bens da herança aberta por óbito daquele.

Texto Integral

Processo nº 8742/22.3T8PRT-A.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível do Porto - ...

Recorrente: AA
Recorrida: BB

Relatora: Des. Teresa Pinto da Silva
1º Adjunto: Des. Carlos Gil
2º Adjunto: Des. José Eusébio Almeida






Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da 5ª Secção, Cível, do Tribunal da Relação do Porto:





I – Relatório

Os presentes autos de inventários cumulados para partilha das heranças abertas por óbito de CC, ocorrido em 24 de junho de 2004, e do seu cônjuge DD, falecido em ../../2015, foram intentados em 24 de junho de 2016, por requerimento apresentado em Cartório Notarial pela interessada AA, invocando a qualidade de descendente em 1º grau.
A inventariada deixou, como únicos e universais herdeiros, os seus filhos: a Requerente, EE e FF; e o inventariado, os seus três filhos já indicados e a filha BB.
Por despacho de 26/05/2017, foi nomeada a Requerente AA como cabeça de casal.
Em 03/07/2017, a cabeça de casal prestou compromisso de honra e declarações e em 19/09/2017 apresentou a relação de bens.
Os restantes interessados foram citados por cartas de 21/09/2017, tendo, em 16/10/2017, os interessados FF e EE apresentado reclamação contra a relação de bens.
Em 20/10/2017, a interessada BB veio impugnar a nomeação da cabeça de casal.
Após o exercício do contraditório e a produção de prova no âmbito do incidente de impugnação da nomeação da cabeça de casal, em 27/06/2018, foi proferida decisão pelo Sr. Notário concedendo provimento ao incidente de impugnação da competência do cabeça de casal deduzido pela interessada BB, na sequência do que continuou a interessada, AA no exercício do cabecelato da inventariada, CC; e, no tocante ao inventariado, DD, foi revogado o despacho de 26.05.2017, tendo sido substituída aquela no exercício das referidas funções pela interessada BB.
A cabeça de casal BB prestou compromisso de honra e declarações em 15/10/2018, tendo, em 21/01/2019, apresentado a relação de bens, a qual foi notificada aos demais interessados, que apresentaram reclamações contra a mesma.
Em 27/05/2019, a cabeça de casal BB apresentou aditamento/modificação da relação de bens, tendo os interessados FF e EE apresentado, em 17 de junho de 2019, reclamação contra tal aditamento /modificação da relação de bens.
Em 11/06/2019, AA veio requerer a sua substituição do cargo de cabeça de casal, tendo, por despacho de 21/06/2019, sido aceite o pedido de escusa da interessada AA no exercício do cabecelato da inventariada CC e designado, por acordo, em substituição o interessado FF nas funções de cabeça de casal da inventariada, CC.
Em 11/07/2019, FF prestou compromisso de honra e declarações como cabeça de casal, e, em 02/12/2020, apresentou nova relação de bens, tendo a cabeça de casal BB, em 11/01/2021, apresentado reclamação contra essa nova relação de bens por morte da inventariada, CC e o interessado DD, de igual modo, em 12/01/2021 reclamado contra essa nova relação de bens.
Em 04/02/2021, o cabeça de casal FF apresentou relação de bens corrigida.
Em 07/09/2021, foi proferida pelo Sr. Notário decisão quanto às reclamações contra a relação de bens dos inventariados.
Em 23/09/2021, os interessados acordaram em atribuir a FF o exercício do cargo de cabeça de casal quanto à herança do inventariado.
Em 18/10/2021, FF prestou compromisso de honra e declarações para o exercício do cargo de cabeça de casal da herança do inventariado, tendo, em 02/11/2021, apresentado a relação de bens próprios do inventariado DD e a relação de bens dos bens comuns dos inventariados.
Em 15/11/2021, na sequência da decisão proferida em 07/09/2021, o cabeça de casal FF apresentou a relação de bens próprios corrigida do inventariado DD e a relação de bens dos bens comuns corrigida dos inventariados CC e DD;
Em 22/11/2021, foi designado o dia 13 de Janeiro de 2022, pelas 16:00 horas, para a realização da conferência preparatória da conferência de interessados, bem como proferido despacho a corrigir o valor das verbas 62, 63 e 22 a 26 e o valor dos autos de inventário para €3.420.659,83.
Em 13/01/2022, foi a conferência preparatória adiada para o dia 22 de fevereiro de 2022.
Em 21/02/2022, veio o cabeça de casal FF e as interessadas AA e BB requerer a remessa do presente inventário para o tribunal competente, na sequência do que foi dada sem efeito a conferência preparatória agendada para o dia 22/02/2022.
Em 8 de abril de 2022, a interessada BB veio, ao abrigo do disposto no artigo 13º, nº2, da Lei nº 117/2019, de 13 de setembro, impugnar a decisão incidental proferida em 7 de setembro de 2021 pelo Sr. Notário quanto às reclamações contra a relação de bens.
Após algumas vicissitudes processuais, pelo Sr. Notário veio a ser determinada a remessa do presente processo de inventário ao Tribunal competente em 30/10/2023.
Por despacho datado de 23/11/2023, o Tribunal a quo designou o dia 21/12/2023 para a realização de uma audiência prévia, que veio entretanto a ser transferida para o dia 18/01/2024, no decurso da qual pelos interessados foi requerido que o Tribunal se pronunciasse sobre as seguintes “irregularidades” que, no seu entendimento, se verificavam no processo:
“- Ainda não foi decidida a reclamação contra a relação de bens relativamente à verba n.º 13, conforme resulta da decisão do Sr. Notário de 07/09/2021.
2ª - Foi pela Interessada BB deduzida impugnação nos termos do artigo 13º, n.º 2 da Lei 117/2019, na data de 08/04/2022 e tal impugnação ainda não se mostra decidida.
3ª - Os interessados não foram notificados pelo Cartório Notarial do despacho proferido em 30/10/2023, no qual se decide a remessa dos presentes autos ao Tribunal, sendo certo que os Interessados FF e EE aguardavam tal notificação para usar da faculdade prevista no artigo 13º, n.º 2 da citada Lei 117/2019.”
Em 21/02/2024, o Tribunal a quo determinou a notificação de todos os interessados do despacho proferido em 30/10/2023 pelo Sr. Notário para, querendo, usarem da faculdade prevista no artigo 13º, n.º 2 da citada Lei 117/2019, na sequência do que os interessados FF e EE vieram, em 15/03/2024, deduzir impugnação contra a decisão proferida pelo sr. Notário em 7 de setembro de 2021.
Em 31 de outubro de 2024, o Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão:
“Como apontado pelos interessados, importa ainda decidir:
- a impugnação deduzida na data de 08/04/2022 pela Interessada BB, nos termos do artigo 13.º, n.º 2 da Lei 117/2019, da decisão incidental das reclamações contra a relação de bens proferida pelo Sr. Notário em 07/09/2021;
- a impugnação deduzida na data de 15/03/2024 por FF e EE, cabeça-de-casal e interessado, nos termos do artigo 13.º, n.º 2 da Lei 117/2019 da decisão incidental das reclamações contra a relação de bens proferida pelo Sr. Notário em 07/09/2021;
- a reclamação contra a relação de bens relativamente à verba n.º 13 (cfr. decisão do Sr. Notário de 07/09/2021).

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I. Impugnação deduzida em 08/04/2022 pela Interessada BB, nos termos do artigo 13.º, n.º 2 da Lei 117/2019
Por preceder logicamente as restantes questões a decidir, iremos começar pela análise da impugnação deduzida em 08/04/2022 pela Interessada BB, ao abrigo do disposto no artigo 13º, n.º 2 da Lei 117/2019.
A interessada impugna a decisão incidental das reclamações contra a relação de bens proferida pelo Sr. Notário de 07/09/2021 com os seguintes fundamentos:
- nulidade da decisão por não ter sido decidida a reclamação contra a relação de bens relativamente à verba 13 (que corresponde ao dinheiro despendido pelo inventariado na aquisição de uma fracção autónoma a favor do interessado EE), invocando o disposto no artigo 57.º/2 e /3 do RJPI); por não se ter pronunciado sobre os bens relacionados sob as verbas 20 e 21; e por ter exposto, a espaços, fundamentação sem referência a um elenco especificado de questões suscitadas pelas partes e sem referência aos bens especificamente em causa, as quais são por isso incompreensíveis;
- revogação da decisão relativamente às verbas 15 e 16 da relação de bens, por violação do disposto no artigo 1685.º do Código Civil, e às verbas 7 a 9 e 10 a 12 da relação de bens, por violação do disposto nos artigos 2104.º e 2110.º do Código Civil, as quais, contrariamente ao decidido, devem ser relacionadas.
Vejamos se tem razão.
1. nulidade da decisão das reclamações contra a relação de bens
a)- Falta de decisão relativamente à verba 13.
Alegou a interessada, para fundamentar esta causa da suscitada nulidade, que a lei configura três hipóteses de decisão sobre o incidente da reclamação contra a relação de bens, a saber: i) a decisão definitiva acerca da existência e da pertinência dos bens relacionados (artigo 35.º/3 do RJPI); ii) a remissão dos interessados para os meios judiciais comuns, quando a complexidade das questões o justifique (artigo 36.º/1 do RJPI); iii) a decisão provisória das reclamações, com ressalva do direito às ações competentes (artigo 36.º/3 do RJPI). Não pode, portanto, configurar-se uma decisão do incidente de reclamação contra a relação de bens que não resolva todas as questões que são objeto de reclamação – da mesma forma que não pode admitir-se que uma acção judicial termine com uma decisão final da causa que abranja apenas parte do objeto da ação, deixando outra parte por resolver.
Vejamos se tem razão.
O incidente contra a relação de bens é estruturado no Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI) da seguinte forma: apresentação da relação de bens; reclamação contra a relação de bens; notificação do cabeça-de-casal para relacionar os bens em falta ou dizer o que lhe oferecer sobre a matéria da reclamação; havendo aditamento à relação de bens, notificação dos restantes interessados com legitimidade para se pronunciarem; decisão da reclamação pelo notário (cfr. art.ºs 32.º e 45.º RJPI).
O art.º 57.º, n.ºs 2 e 3, do RJPI, prevê, contudo, a possibilidade de o Notário, na altura de proferir o despacho determinativo do modo como deve ser organizada a partilha, resolva todas as questões que ainda o não tenham sido e que seja necessário decidir para a organização do mapa da partilha (podendo o notário mandar proceder à produção da prova que julgue necessária).
Face ao exposto, entendemos que o Sr. Notário podia ter relegado, como relegou, a decisão relativa à verba 13 para a fase processual a que alude o art.º 57.º do RJPI.
Mas ainda que assim não fosse, o despacho que decidiu a reclamação contra a relação de bens nunca seria nulo. Na verdade, de acordo com o art.º 195.º, n.º 1, do Código Processo Civil (aplicável por força do art.º 82.º do RJPI), fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
No caso concreto, quer o Código Processo Civil, quer o RJPI não preveem qualquer nulidade para o acto praticado pelo Sr. Notário, nem tal acto é susceptível de influir na decisão da causa.
Improcede por isso o primeiro fundamento aduzido pela Interessada BB para sustentar a alegada nulidade.
b)- falta de pronúncia sobre os bens relacionados nas verbas 20 e 21
Verifica-se que, efectivamente, o Sr. Notário não se pronunciou quanto às verbas 20 e 21.
Todavia, essa falta de pronúncia e decisão pode ser colmatada pelo tribunal, sem que se verifique a nulidade da decisão do Sr. Notário. Valem aqui as considerações tecidas na alínea anterior quanto à arguida nulidade da decisão por não ter sido decidida a reclamação contra a relação de bens, as quais se dão aqui por reproduzidas.
Tendo o processo sido remetido ao tribunal, terá de ser este a decidir esta parte da reclamação contra a relação de bens, o que exigirá a produção/repetição da prova quanto a esta matéria, tal como sucederá relativamente à verba 13, como adiante melhor se explicará.
c)- incompreensibilidade da decisão por ter exposto, a espaços, fundamentação sem referência a um elenco especificado de questões suscitadas pelas partes e sem referência aos bens
Salvo o devido respeito, afigura-se-nos que não assiste razão à interessada.
No referido despacho, como se pode constatar, a análise das questões é precedida de um título que contém uma indicação genérica dos bens a que se reporta, que abrange mais do que uma verba da relação de bens, mas depois, na fundamentação, são concretizadas as verbas a que se reporta tal indicação, o que permite compreender a decisão.
A decisão proferida em 07/09/2021 não é assim nula.
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2. revogação da decisão relativamente às verbas 15 e 16 e às verbas 7 a 9 e 10 a 12 da relação de bens
Analisemos agora se a mesma decisão deve ser revogada nos termos propugnados pela interessada.
No que concerne à verba 15, consta da decisão o seguinte:
JOIAS DE USO PESSOAL DA MÃE DO INVENTARIADO
Na verba 15, a cabeça-de-casal requer à interessada, AA a relacionação das joias de uso pessoal da mãe do autor da herança, objecto de disposição que classifica de inválida e ineficaz nos termos do art.º 1685º, n.º 2, do Código Civil, por testamento de 16/04/1981.
A disposição testamentária à interessada, AA foi feita pelo seu avô paterno, GG (fls. 260v/261), no estado de viúvo (foi casado no regime da comunhão geral com HH e do seu casamento resultou um único filho ora inventariado, DD) pelo qual “legou à sua neta, AA todas as joias que eram de uso pessoal da sua referida esposa, as quais lhe deverão ser entregues após o seu falecimento”.
O art.º 1685º nº 1 CC permite que cada um dos cônjuges tenha a liberalidade de dispor por morte dos bens próprios e da sua meação nos bens comuns, ressalvando apenas as restrições previstas na lei, em favor dos herdeiros legitimários. Isto significa que tais restrições (à faculdade de dispor mortis-causa) não atingem os herdeiros legitimários. A legatária, AA, neta do testador não tem o estatuto de herdeiro legitimário do disponente.
Sem prejuízo, de que o art.º 2251º/3 CC permite que o legado possa produzir efeitos em espécie (o inventariado por morte da sua ascendente ocorrida em 18.09.1976 foi o seu único sucessor legítimo), se a coisa legada se tiver tornado sua (do testador) por qualquer título, mas alínea a) do nº 3 do art. 1685º CC limita temporalmente a possibilidade de ser exigido o legado in natura: ter a coisa se tornado propriedade do disponente à data da sua morte, impedindo que a questão viesse a ser discutida na partilha subsequente.
Não estando provado nos autos se a coisa legada se tinha tornado sua (testador) e que após o seu decesso seguramente pelo seu único filho (ora inventariado e ascendente da legatária) lhe foi entregue sem a exigibilidade de qualquer contrapartida pecuniária (o crédito não incide sobre a coisa entregue, mas apenas sobre o valor em dinheiro que ela traduz), sempre temos de aceitar de que o legado, muito embora possa valer em relação à quota que pertencia ao testador (meação) a entrega, em substância, da coisa legada pelo único descendente/inventariado à legatária, em obediência à pretensão e vontade do (avô) testador deva configurar uma “doação” de que o doador é o único sucessor dos seus pais (avós da legatária) excluída que está essa disposição das regras da inoficiosidade (sublinhe-se na herança dos avós), afastando-se assim da aplicabilidade exigida pela cabeça-de-casal ao regime previsto no art. 1685º/2 CC, a disposição das joias de uso pessoal da mãe do autor da herança.
Quanto à verba 16, consta da decisão o seguinte:
PRATAS QUE INTEGRAVAM O RECHEIO DA Quinta 1...
À semelhança da verba antecedente a cabeça-de-casal na verba 16 requer aos interessados, AA, EE e FF a relacionação das pratas que integravam o recheio da Quinta 1..., também objecto de disposição testamentária que qualifica de inválida e ineficaz no âmbito do citado preceito legal pelo referido testamento de 16.04.1981
Assim e no que se refere ao legado das pratas prevalece in totum a apreciação formulada no contexto jurídico-sucessório explanado na rubrica anterior, nomeadamente no que concerne, à validade da disposição do avô, muito embora, in casu, deva ser abordado o carácter anómalo desta vocação traduzido numa dupla vocação sucessiva imposta pelo testador.
O impulso que impôs ao filho para guardar as pratas para serem distribuídas em partes iguais por aqueles três netos, EE, FF e AA, após o falecimento daquele filho perspectiva a natureza jurídica de uma vocação fideicomissária. Há uma primeira vocação que é do filho (fiduciário – pai dos interessados/netos) e por morte deste há a vocação dos fideicomissários, que se produz depois da morte do seu ascendente.
A vocação feita ao filho está onerada, sobre ele recai o encargo de conservar (guardar) as pratas legadas para que elas sejam distribuídas em partes iguais para os netos (fideicomissários), após falecimento do filho DD.
Tendo os interessados dissentido no tocante aos objectos em prata e joias nos termos vindos de expender, tudo visto e analisado urge finalizar com a seguinte decisão:
Não reputamos como inválida e ineficaz as deixas testamentárias a título de legado feitas pelo avô dos interessados na herança do dissolvido casal comum por morte do cônjuge, pelo qual, aquele dispôs, em testamento (da sua parte na comunhão) de bens certos e determinados e de que o inventariado, único sucessor, entregou (fls. 439v) e guardou para ser distribuído (após o seu decesso), em substância, os bens legados aos netos contemplados, cumprindo e exteriorizando a vontade do testador em bens que pertenciam, reitera-se, ao acervo hereditário por morte dos avós, de que os legatários são netos e de que não lograram esses bens, em momento algum, integrar o património e caudal hereditário do inventariado.
Termos em que as verbas 15 e 16 da relação de bens devem ser eliminadas da relação de bens.
Por seu turno, a interessada defende a revogação da decisão, nesta parte, com os seguintes fundamentos:
22. Fundamentou-se a relacionação dos bens daquelas verbas na circunstância de não existir título jurídico válido e eficaz com base no qual eles pudessem ter sido transmitidos do pai do inventariado para os interessados AA, EE e FF.
23. Assim, nos termos do disposto no artigo 1685.º/2 do CC, a disposição por morte de um dos cônjuges que tenha por objeto coisa certa e determinada do património comum, apenas dá ao contemplado o direito de exigir o respetivo montante, excetuados os casos excecionais previstos no artigo 1685.º/3 do CC.
24. No caso, o pai do inventariado dispôs por morte, ainda em vida de ambos os cônjuges, de bens certos e determinados de bens do património comum.
25. À morte de sua mulher, não realizadas partilhas com o inventariado, os bens em causa permaneceram na indivisão.
26. De onde à sua morte, por força das disposições conjugadas do artigo 1685.º/2 e /3 do CC, os legatários, interessados no presente inventário, AA, EE e FF, não tinham o direito de receber, por força do testamento, os bens em causa, mas apenas o valor correspondente.
27. Por outro lado, os bens em causa passaram a integrar o património do inventariado, único e universal herdeiro de seus pais.
28. Se, como no despacho sob impugnação, parece sugerir-se, ainda que sem qualquer sustento em alegação dos interessados, se considera que tais bens foram objeto de doação do inventariado aos interessados - “a entrega, em substância, da coisa legada pelo único descendente/inventariado à legatária, em obediência à pretensão e vontade do (avô) testador deva configurar uma “doação” de que o doador é o único sucessor dos seus pais” – então o valor de tal doação está sujeito a colação e deve, como tal, integrar a relação de bens.
29. Se, como a outro passo, parece conclui-se, no despacho se considera válida e eficaz a disposição em espécie – “não reputamos como inválida e ineficaz as deixas testamentárias a título de legado feitas pelo avô dos interessados” – então a decisão viola o disposto no artigo 1685.º do CC.
Vejamos de que lado está a razão.
Por testamento de 16/04/1981, GG, avó paternos dos interessados AA, FF e EE, legou à sua neta, AA todas as joias que eram de uso pessoal da sua referida esposa, as quais lhe deverão ser entregues após o seu falecimento”.
No mesmo testamento, GG legou as pratas da Quinta 1..., que devem ser guardados pelo filho, ora inventariado, para serem distribuídas em partes iguais pelos três netos EE, FF e AA após o falecimento do filho DD.
Na data daquele testamento GG era viúvo (foi casado no regime da comunhão geral com HH, falecida em ../../1976, sem testamento ou outra disposição de última vontade), e do seu casamento resultou um único filho ora inventariado, DD.
À morte da mulher de GG não foram realizadas partilhas com o inventariado.
Com relevo para decisão da causa, estatui o art.º 1685.º do Código Civil
1. Cada um dos cônjuges tem a faculdade de dispor, para depois da morte, dos bens próprios e da sua meação nos bens comuns, sem prejuízo das restrições impostas por lei em favor dos herdeiros legitimários.
2. A disposição que tenha por objecto coisa certa e determinada do património comum apenas dá ao contemplado o direito de exigir o respectivo valor em dinheiro.
3. Pode, porém, ser exigida a coisa em espécie:
a) Se esta, por qualquer título, se tiver tornado propriedade exclusiva do disponente à data da sua morte;
b) Se a disposição tiver sido previamente autorizada pelo outro cônjuge por forma autêntica ou no próprio testamento;
c) Se a disposição tiver sido feita por um dos cônjuges em benefício do outro.
Considerando a factualidade, acima descrita, que dimana dos documentos juntos aos autos, afigura-se-nos que é aplicável ao caso o disposto no n.º 2 do art.º 1685.º, já que os referidos bens legados eram bens que faziam parte do património comum (por serem casados no regime geral de bens) do avós paternos dos interessados EE, AA e FF e não se terem tornado propriedade exclusiva do avô paterno (porquanto não foram realizadas partilhas por morte da avó paterna).
Assim, como defende a interessada BB, os interessados EE, AA e FF apenas têm o direito de exigir o respectivo valor em dinheiro dos bens que constituem as verbas 15 e 16, devendo os mesmos ser relacionados.
Quanto às verbas 7 a 9 e 10 a 12 da relação de bens foi decidido eliminação das verbas nºs 7, 8 e 9 da relação de bens e a supressão das verbas nºs 10 a 12, pelos fundamentos constantes do despacho prolatado a 23.11.2020 (fls. 503): apurar a pertinência da sua inclusão, ao invés, na herança da inventariada, CC, no momento da concretização dos respectivos bens.
A interessada BB defende que a decisão proferida quanto a estas verbas viola o disposto nos artigos 2104.º e 2110.º do Código Civil, pelo que os bens devem ser relacionados.
Os bens que compõem as indicadas verbas são os seguintes:
Verba 7: Dinheiro objecto de disposição, em 1995, do autor da herança a favor da interessada AA, no montante de €100.000,00 Escudos 22.053.003$41, que deve ser objecto de colação;
Verba 8: Dinheiro objecto de disposição, em 2003, do autor da herança a favor do interessado EE, no montante de €113.000,00 que deve ser objecto de colação;
Verba 9: Dinheiro objeto de disposição, em 2007, do autor da herança a favor do interessado FF, no montante de €113.000,00 que deve ser objecto de colação;
Verba 10: Dinheiro que corresponde ao valor da disposição, em 2013, pelo autor da herança, da sua quota na herança de CC, a favor da interessada AA, no montante de €25.000,00 que deve ser objecto de colação;
Verba 11: Dinheiro que corresponde ao valor da disposição, em 2013, pelo autor da herança, da sua quota na herança de CC, a favor do interessado EE, no montante de € 25.000,00 que deve ser objecto de colação;
Verba 12: Dinheiro que corresponde ao valor da disposição, em 2013, pelo autor da herança, da sua quota na herança de CC, a favor do interessado FF, no montante de € 25.000, que deve ser objecto de colação.
Preceitua o art.º 2104.º do Código Civil o seguinte:
1. Os descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança, para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este: esta restituição tem o nome de colação.
2. São havidas como doação, para efeitos de colação, as despesas referidas no artigo 2110.º
Por seu turno, o art.º 2110.º estatui que:
1. Está sujeito a colação tudo quanto o falecido tiver despendido gratuitamente em proveito dos descendentes.
2. Exceptuam-se as despesas com o casamento, alimentos, estabelecimento e colocação dos descendentes, na medida em que se harmonizem com os usos e com a condição social e económica do falecido.
Considerando o disposto nas referidas normas legais, afigura-se-nos que as verbas 7 a 9, mesmo que se considerem "prendas de casamento", não são despesas com o casamento, são doações (contudo, quanto às verbas 7 e 8, terá de ser apurado se a doação foi dos dois inventariados ou de apenas um deles, como adiante se referirá quando se analisar a impugnação dos interessados FF e EE).
As verbas 10 a 12 devem permanecer relacionadas porque, ainda que se desconheça o valor da quota do inventariado na herança da falecida mulher, é possível apurar tal valor no presente processo de inventário, onde se partilha também esta herança.
Face ao exposto, por ora, devem permanecer relacionadas as verbas 9, e 10 a 12.
Pelo exposto, julgo:
1- improcedente a nulidade da decisão proferida em 07/09/2021 suscitada pela interessada BB;
2- procedente a impugnação deduzida pela mesma interessada, revogando a mesma decisão no que tange às verbas 15, 16, 9 e 10 a 12 e consequentemente decido que tais verbas devem permanecer relacionadas.
As custas serão suportadas pelos interessados na proporção 1/4 para cada um, fixando-se a taxa de justiça 3 UC.
Notifique.
*

II. impugnação deduzida em 15/03/2024 por FF e EE, cabeça-de-casal e interessado, nos termos do artigo 13.º, n.º 2 da Lei 117/2019
USUCAPIÃO DA Quinta 2...
Defendem estes interessados que na escritura de justificação notarial datada de 07 de junho de 2011 (documento nº 2 da reclamação) o inventariado DD, à data já viúvo, invocou a figura da usucapião para adquirir aquele imóvel.
Da referida escritura resulta que o inventariado invocou “… a posse do referido prédio no pleno gozo das potencialidades por ele proporcionadas, cultivando a parte rústica, fazendo as necessárias obras de conservação na parte urbana, considerando-se e sendo considerado como seu único dono, na convicção que não lesavam quaisquer direitos de outrem, tendo a sua actuação e posse, sido de boa fé, sem violência e sem oposição, ostensivamente e com o conhecimento das pessoas que vivem na freguesia onde se situa o prédio e tudo isto por lapso de tempo superior a vinte anos” referindo, também, que tal posse ocorreu, pelo menos “… desde mil novecentos e oitenta e dois.”.
Em 1982 o inventariado era casado com CC, também inventariada nos presentes autos. À data da produção dos efeitos da aquisição do imóvel, por usucapião, por parte do inventariado – 1982 - este era casado sob o regime da separação de bens com comunhão de adquiridos a título oneroso com a inventariada CC.
Este imóvel deverá assim ser considerado um bem comum do casal constituído pelo inventariado e pela inventariada, mãe dos interessados AA, EE e FF.
Não assiste, porém, razão aos interessados.
Com efeito, como se refere na decisão impugnada, com a qual concordamos nesta parte e por isso damos aqui por reproduzidos os seus fundamentos de facto e de direito, é o inicio da posse que marca o momento da aquisição da propriedade por usucapião, a ele se reportando a titularidade sobre o bem;- art. 1317º-c) Código Civil. Decorre do expendido, sufragado nos preceitos legais vindos de referir a consagração do principio ipso jure dos efeitos jurídicos da posse dos iniciais possidentes, avós paternos dos interessados no inventariado com as mesmas características e identidade de que existia na esfera jurídica daqueles, ou seja, a posse recebida pelo único sucessor e ora inventariado é a mesma posse dos seus antecessores. Daí que, não sendo o “cônjuge pré-falecido ao de cujus, sucessor dos ascendentes do inventariado, a posse que àqueles pertencia foi adquirida pelo único sucessor; tratando-se pois, da continuação de uma e só mesma posse. In casu, o casamento não operou a transmissão da posse, não configura um justo acto para aquisição da posse, como não ficou demonstrado qualquer acto capaz de inverter o título de posse do sucessor único.
Assim, tal como ficou decidido, a Quinta 2..., usucapida pelo inventariado não reveste a natureza de bem comum do casal, mas um bem próprio do inventariado.
Improcede por isso a impugnação dos interessados nesta parte.
II- VIATURA CITRÖEN, MODELO ..., MATRÍCULA CS-..-..
Alegam os interessados que a decisão do notário de 07 de Setembro de 2021 reconheceu a viatura Citroën, MODELO ..., com a MATRÍCULA CS-..-.. como sendo um bem comum dos inventariados (fls. 20 da decisão datada de 07 de Setembro de 2021).
Contudo, não se pronunciou quanto a parte do reclamado e peticionado pelo inventariado, ou seja, a devolução à herança da quantia que a interessada BB recebeu a mais, aquando da venda do veículo, e que ascende a €3.125,00.
De facto, por se tratar de um bem comum dos inventariados, e tendo em consideração a disposição testamentária efectuada pela Senhora CC a favor dos seus três filhos, a interessada BB deveria ter recebido, apenas e só, o montante de €4.375,00 e não €7.500.
Por esse facto, impõe-se a devolução pela interessada BB, da quantia de €3.125,00 à massa hereditária da herança da inventariada a fim de a mesma ser dividida, exclusivamente, pelos interessados filhos da inventariada.
Assiste razão aos interessados. Sendo aquele automóvel um bem comum dos inventariados, metade do produto da sua venda é dividido pelos interessados EE, AA e FF e a outra metade pelos interessados EE, AA, FF e BB.
Deve assim proceder, nesta parte, a impugnação.
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III –PRODUTO DA ...” DO ANO DE 2015
Resulta dos documentos juntos aos autos o seguinte:
- a interessada AA era proprietária da nua propriedade da parte rústica e proprietária plena da Quinta 1...;
- o inventariado era usufrutuário da parte rústica da “Quinta 1...";
- o inventariado faleceu em Agosto de 2015 e já não pôde proceder à vindima – e respectiva venda nos terrenos de que era usufrutuário na “Quinta 1...”;
- a vindima do ano de 2015 foi realizada ou levada a cabo pela interessada AA, a qual ficou com benefícios provenientes da sua venda.
Atento o que resultou do depoimento de parte de 10 de Março de 2020 da interessada AA, constante de auto, no qual confessou que as despesas do granjeio da vindima de 2015 foram todas suportadas pelo falecido pai.
Assim sendo, deve ser relacionado o produto integral da vindima e da sua venda do ano de 2015.
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IV – OFERTAS DO INVENTARIADO
Como decorre do acima exposto, o tribunal já decidiu que as verbas 9 e 10 a 12 devem permanecer relacionadas.
No que concerne à verba 9, verifica-se que o dinheiro que à mesma corresponde foi objecto de disposição em 2007, altura em que a mãe dos inventariados EE e FF já havia falecido; daí que se tenha decidido que esta verba devia manter-se relacionada.
Quanto às verbas 7 e 8, cumpre apurar se o dinheiro que às mesmas corresponde foi objecto de disposição pelos dois inventariados ou apenas do inventariado.
Importa por isso produzir/repetir a prova indicada pelas partes, relegando-se o conhecimento desta questão para momento ulterior.
Face ao exposto, julgo parcialmente procedente a impugnação dos interessados EE e FF e em consequência decido:
1- que se adite à relação de bens a quantia de € 3.125,00 proveniente da venda do veículo Citroen que a interessada BB recebeu a mais;
2- que se adite à relação de bens o produto integral da vindima e da sua venda do ano de 2015 da Quinta 1....
As custas serão suportadas pelos interessados na proporção 1/4 para cada um, fixando-se a taxa de justiça 3 UC.
Notifique.
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III. reclamação contra a relação de bens relativamente à verba n.º 13
Como se deixou dito, não foi decidida ainda a reclamação contra a relação de bens relativamente à verba n.º 13.
A cabeça-de-casal BB relacionou como verba n.º 13 na relação de bens em 12/03/2019 o dinheiro que corresponde ao preço da aquisição pelo autor da herança, em 1994, a favor do interessado EE, da fracção autónoma designada pela letra “C” sita na Rua..., Matosinhos, descrita sob o n....28 e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...45, no montante de €39.405,03 - 7.900.000$00 (cfr. documentos que se juntam sob DOC.7, 7.1, 7.2 e 7.3 e aqui se dão por reproduzidos) que deve ser objecto de colação, com o valor de € 63.747,20 (actualização nos termos do disposto no art.º 2109. do Código Civil).
Na reclamação de bens que apresentou em 18/02/2019, o interessado EE defendeu que a verba n.º 13 devia ser excluída da relação de bens, alegando que a aludida fracção foi adquirida, pelo ora reclamante, por compra à firma “A...”, em 17 de Junho de 1994 – documento nº 8; como resulta deste documento, a fracção foi adquirida com recurso ao crédito bancário, tendo o reclamante, para o efeito, contraído um contrato de mútuo junto do Banco 1..., ficando o imóvel hipotecado àquele banco como garantia do integral e tempestivo pagamento do empréstimo contraído; todas as prestações mensais referentes ao cumprimento e amortização do empréstimo contraído foram pagas pelo reclamante; portanto, é falso ter sido o inventariado quem tenha pago o preço da aquisição da fracção; a aludida fracção é um bem próprio do reclamante, adquirida com recurso ao crédito bancário, cujas amortizações foram liquidadas com património próprio do mesmo;
Na resposta à reclamação contra a relação de bens apresentada em 12/03/2019, a cabeça-de-casal não obstante aceitar que a referida fracção autónoma se encontra registada a favor do interessado EE, alegou que a mesma foi paga pelo inventariado.
Acrescentou que resulta do doc. 7 junto com a relação de bens que o contrato promessa de compra e venda foi celebrado entre o inventariado e a sociedade comercial “A...” em 04/03/1994, tendo o inventariado nessa data procedido ao pagamento de 1.585.000$00, correspondente à 1ª prestação e ao pagamento em 26/04/1994 do montante de 1.585.000$00, correspondente à segunda prestação (cfr. documento 2); que foi o inventariado quem suportou todas as despesas relacionadas com a aquisição do referido imóvel, designadamente com registos provisórios, escritura de compra e venda, avaliação do imóvel para efeitos de obtenção de financiamento bancário, registos definitivos – cfr. documento 3; que foi o inventariado quem pagou todas as prestações com a amortização do empréstimo contraído para aquisição do referido imóvel e seguros obrigatórios – cfr. documento 4; que sempre foi o inventariado quem pagou as despesas com fornecimento de água e electricidade – veja-se a título exemplificativo os documentos que ora se juntam como doc. 5; e que é falso que o imóvel em causa tenha sido adquirido pelo interessado com recurso a dinheiro próprio;
Em 05/04/2019, em resposta à resposta da cabeça-de-casal à reclamação contra a relação de bens, o interessado EE reconheceu que os pagamentos iniciais relativos à aquisição do imóvel foram realizados pelo inventariado; acrescentou, contudo, que todos os montantes que o inventariado pagou antes da escritura de compra e venda foram integralmente liquidados por ele, interessado, ao inventariado, após ter contraído um empréstimo bancário para aquisição do imóvel e que o interessado FF é testemunha de que tal sucedeu; após a realização da escritura de compra e venda do imóvel, o interessado liquidou junto do inventariado todos os valores que este lhe tinha emprestado; as prestações relativas à amortização do mútuo contraído para aquisição do imóvel foram sempre integralmente liquidadas com dinheiro do interessado, retirado da conta afecta ao seu pagamento; o inventariado pagou seguros, celebrou contratos com empresas de distribuição de serviços, nomeadamente de fornecimento de serviços de electricidade e água, bem como liquidou valores correspondentes ao fornecimento de tais bens bem assim do condomínio da fracção e fê-lo de comum acordo com o interessado; o interessado, a pedido do inventariado, emprestou o imóvel ao inventariado para que este ali pudesse residir com a pessoa com quem, à época, vivia uma relação extra conjugal; uma vez que a inventariada, cônjuge do inventariado, ficou a residir na casa da Rua ... no Porto, o inventariado optou por ir residir, com a pessoa com quem mantinha uma relação amorosa, para a fracção da Rua ...; se o inventariado foi para lá residir é óbvio que era ele quem tinha de liquidar as despesas relativas aos fornecimentos de bens ou de serviços; o inventariado não pagou ao interessado qualquer montante, seja a título de renda seja a qualquer outro título; estes contratos foram efectuados pelo inventariado também pelo facto de, à época, o mesmo ser procurador do interessado, tendo este concedido àquele plenos poderes para praticar tais actos; após o regresso do inventariado à casa do Porto não sentiram, inventariado e interessado, necessidade de alterar os procedimentos ou os contratos realizados;
Relativamente a esta questão foi produzida a seguinte prova:
1) Em 23/11/2020, o interessado EE juntou aos autos a seguinte declaração do Banco 2...:


2) Em 13/07/2021, o interessado EE juntou aos autos um documento emitido pelo Banco 2... com o seguinte teor:



3) Em 20/01/2022, foi junta aos autos uma informação do Banco 2... com o seguinte teor:

Como resulta do exposto, a prova documental produzida é insuficiente para permitir ao tribunal formar uma convicção segura de que, como refere a cabeça-de-casal, o preço da fracção autónoma designada pela letra “C” sita na Rua..., Matosinhos, descrita sob o n....28 e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...45 foi pago pelo autor da herança, em 1994. Mas também não permite concluir, como alega o interessado EE, que o preço daquela fracção autónoma foi pago por este, que liquidou todos os montantes que o inventariado havia adiantado quando lhe foi concedido o empréstimo bancário.
Importa, assim, proceder à produção da prova pessoal já indicada pelo interessado EE e pela cabeça-de-casal nas respectivas reclamação e resposta apresentadas no incidente da reclamação contra a relação de bens.
Como se disse, estão por resolver as questões acima indicadas quanto às verbas 7 e 8, 20 e 21 e 13, que exigem a produção da prova testemunhal, declarações e depoimentos de parte indicados pelos interessados (que terá de ser repetida porquanto foi produzida perante notário).
Para a produção da referida prova, designo o dia 26/11/2024, pelas 14,00 horas.
Notifique.”
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Inconformada com esta decisão, veio a interessada AA dela interpor recurso, apresentando, em 10 de dezembro de 2024, alegações com o seguinte acervo conclusivo:
1º O presente recurso vem interposto do douto despacho com a refª 459330022, de 31.10.2024, que decidiu as impugnações deduzidas pelos interessados BB, FF e EE contra a decisão incidental das reclamações contra a relação de bens proferida pelo Sr. Notário em 07.09.2021, por se considerar que o mesmo incorreu em erro de interpretação e de aplicação da lei e do direito.
2ª A apelação, que é de subida imediata e em separado, é restringida aos itens decisórios I) 2 e II) III do douto despacho recorrido, nos quais a recorrente ficou vencida e se decidiu, respectivamente, que as verbas 6 e 7 da relação de bens devem ser relacionadas, assim determinando os bens a partilhar – artºs 1.123º, nºs 1, 2, al. b) e 4, 631º, 635º, nº 2, 638º, nº 1, 1ª parte, e 644º, nº 1, al. a) CPC.
3ª Porque as questões a apreciar no presente recurso podem afectar a utilidade prática das diligências que devem ser realizadas na Conferência de Interessados, delas dependendo o cálculo da legítima dos interessados e a operação da colação, ao mesmo deverá ser atribuído efeito suspensivo do processo – artº 1.129º, nº 3 CPC.
4ª A recorrente atribui ao recurso, por excesso, o valor de 275.000,00 €, correspondente ao montante de 100.000,00 € da verba 7 e no demais ao valor da verba 6, ainda não apurado, mas que sempre será de valor muito inferior ao indicado.
5ª Assim se não entendendo, requer, desde já, ao abrigo do preceituado no artº 6º, nº 7, in fine, do Regulamento das Custas Processuais, que seja dispensada do pagamento, a final, do eventual remanescente da taxa de justiça, atentas a restrição do objecto do recurso, a reduzida complexidade das questões nele levantadas e o princípio da proporcionalidade e do direito de acesso ao Direito e aos Tribunais constitucionalmente consagrados.
6ª A primeira questão objecto do recurso é a decisão da Mma Juiz a quo que, revogando a decisão incidental que sobre ela havia sido proferida pelo Sr. Notário, ordenou a relacionação da verba 7 (Dinheiro objecto de disposição, em 1995, do autor da herança a favor da interessada AA, no montante de € 100.000,00 – Escudos 22.053.003$41, que deve ser objecto de colação).
7ª Na verdade, o Sr. Notário havia decidido pela eliminação desta verba, por entender que a disposição a que ela se refere se enquadra no conceito de despesas com o casamento e, por isso, não está sujeita à colação, mas o douto Tribunal recorrido considerou que, mesmo que se considere “prenda de casamento”, não é despesa com o casamento, é doação, como tal devendo ser relacionada para efeitos de colação, relegando para decisão posterior a produção de prova a questão de saber se foi doação dos dois inventariados ou apenas do inventariado.
8ª A propósito desta verba, a Mma Juiz a quo não colocou em crise os fundamentos fácticos adquiridos na instrução do processo, pelo que está assente, designadamente, que a verba 7 constituiu a prenda de casamento da recorrente e que os inventariados integravam uma das famílias mais conhecidas e abastadas de ..., com um vasto património gerador de profícuos rendimentos, e de elevado estatuto social.
9ª O instituto da colação, previsto no artº 2.104º, nº 1 CC, pressupõe a verificação, necessária e cumulativa, de determinados requisitos, entre os quais, como seu pressuposto primeiro, que se trate juridicamente de uma doação.
10ª Nos termos do artº 940º, nº 1 CC, a doação tem como móbil primário o espírito de liberalidade, o animus donandi, sem o qual não há doação.
11ª Daí que não haja doação, por falta dessa intenção de liberalidade, nos donativos conformes aos usos sociais – artº 940, nº 2, in fine, CC.
12ª Nos donativos conforme aos usos sociais, a intenção do seu autor não é fazer uma liberalidade mas antes cumprir uma obrigação resultante das regras do trato e da convivência social, em que está presente o denominado animus solvendi.
13ª A nossa mais ilustre doutrina vem considerando como donativos conforme aos usos sociais as prendas de casamento ou oferecidas por ocasião do casamento – Mário Júlio de Almeida Costa, Pires de Lima e Antunes Varela, Ana Prata, Baptista Lopes e Pereira Coelho, nas obras atrás citadas na motivação do recurso.
14ª In casu, os inventariados integravam uma das famílias mais conhecidas e abastadas da região duriense, de elevado património e rendimentos, e com elevado estatuto social, e as ofertas consubstanciadas nas verbas 7, 8 e 9, que consistiram nas prendas de casamento, ou equiparadas, feitas aos seus filhos, não representaram um gasto patrimonial elevado nem diminuíram significativamente o respectivo património.
15ª No circunstancialismo concreto que envolveu estas prendas, as mesmas devem ser consideradas como donativos efectuados de acordo com os usos sociais – que, nos termos do artº 3º, nº 1 CC, são juridicamente atendíveis quando a lei o determine e não sejam contrários aos princípios da boa fé – e enquadraram-se no contexto social e económico dos inventariados e nos usos da família.
16ª Deste modo, na disposição a que se refere a verba 7 não houve doação, mas donativo conforme aos usos sociais, pelo que a mesma não tem que ser relacionada, sequer para efeitos do artº 2.104º, nº 1 CC.
17ª Ainda que assim se não entenda, sempre a mesma deverá ser considerada como “despesa com o casamento” e, por isso, dispensada de colação – artº 2.110º, nº 2 CC.
18ª Na verdade, tratou-se da prenda de casamento que os pais da recorrente lhe ofereceram, com a qual custeou todas as despesas inerentes ao seu matrimónio, e que esteve de acordo (se harmonizou) com os usos e com a condição económica e social dos inventariados.
19ª As despesas com o casamento incluem as prendas de casamento e as somas em dinheiro dadas a um filho por ocasião do seu matrimónio, tal como entendem, entre outros, Antunes Varela e Pires de Lima e Manuel Baptista Lopes, que são gastos típica e habitualmente socialmente aceites (usos), não devendo ser levados à colação se forem razoavelmente compatíveis, proporcionais e adequados aos recursos económicos e hábitos sociais dos falecidos.
20ª No caso sub judice, ainda que se entenda não ter constituído um donativo conforme aos usos sociais, a disposição da verba 7 a favor da recorrente sempre terá que subsumir-se ao conceito de “despesa com o casamento” dispensada de colação, por ter resultado de um dever social e de um uso familiar dos inventariados, que se harmonizou com a sua condição social e económica e foi adequado e proporcionado ao fim a que se destinou, que foi a prenda de casamento da recorrente e a participação daqueles nas despesas deste.
21ª A segunda questão objecto do recurso é a decisão da Mma Juiz a quo que, revogando a decisão incidental que sobre ela havia sido proferida pelo Sr. Notário, ordenou a relacionação da verba 6 (Produto da venda da vindima da Quinta 1... no ano de 2015).
23ª Na verdade, o Sr. Notário havia decidido pela eliminação desta verba, por se encontrar demonstrado nos autos que a ora recorrente é legítima e plena proprietária dos prédios que compõem a Quinta 1..., mas o douto Tribunal recorrido, considerando que foi o inventariado, enquanto usufrutuário da sua parte rústica, quem suportou as despesas do granjeio da vindima de 2015 mas faleceu antes da realização desta, e que foi a ora recorrente quem ficou com os benefícios provenientes da sua venda, decidiu que deve ser relacionado o produto integral da vindima e da sua venda nesse ano.
24ª Resulta dos autos, além do mais, que o inventariado era usufrutuário da parte rústica da Quinta 1..., cuja nua propriedade era da ora recorrente, que as despesas com o granjeio que culminou na vindima de 2015 foram integralmente suportadas pelo usufrutuário, e que foi a recorrente que realizou essa vindima, beneficiando do produto da respectiva venda, do que também decorre que foi ela quem suportou os custos dessa vindima.
25ª O referenciado usufruto extinguiu-se com a morte do inventariado – artº 1.476º, nº 1, al. a), 1ª parte, CC, -, ocorrida em 26.08.2015, data em que se consolidou na esfera jurídica da recorrente a plena propriedade da parte rústica da Quinta 1..., com o seu conteúdo de jus utendi, ius fruendi e ius abutendi.
26ª O direito de usufruto do inventariado não se transmitiu aos seus herdeiros.
27ª O bem, ou coisa, sobre o qual incidia o direito do inventariado é constituído por vinha, com a inerente produção de uvas que, nos termos do artº 212º, nºs 1 e 2 CC, se consubstancia em frutos naturais.
28ª De acordo com o preceituado no artº 213º, nº 1 CC, o inventariado, que era o usufrutuário daquela vinha, teve direito a fazer seus todos os respectivos frutos naturais percebidos até ao momento determinado da extinção do seu direito, que ocorreu com a sua morte, isto é, teve direito a fazer seus os frutos naturais percebidos durante e até à vigência do seu direito.
29ª Por sua vez, a recorrente tem o direito de fazer seus os correspondentes frutos naturais percebidos a partir do momento em que a propriedade plena daquela vinha se consolidou na sua esfera jurídica, que foi a morte do usufrutuário, isto é, é ela que tem direito a fazer seus os frutos naturais percebidos a partir e durante a vigência do seu direito que, a partir daquele momento da morte do usufrutuário, passou a abranger o ius utendi e o ius fruendi.
30ª A colheita agrícola correspondente à vindima de 2015, que não foi realizada pelo usufrutuário porque faleceu e que já foi realizada pela recorrente, traduz-se em frutos naturais não percebidos durante a vigência do usufruto e em frutos naturais já percebidos durante a vigência do direito de propriedade pleno da recorrente, que passaram a ficar integrados no património desta, pertencendo-lhe, como lhe pertence o produto da respectiva venda.
31ª A distinção encontra-se no momento da separação dos frutos naturais em relação à coisa: se à data da morte do usufrutuário já estavam separados ou colhidos, eles integram o património do usufrutuário; se àquela data ainda estavam pendentes, porque não colhidos ou não separados da coisa, eles integram o património do proprietário, tal como o produto da respectiva venda – vide, também, o artº 215º, nº 2, 1ª parte, CC.
32ª No caso sub judice, os herdeiros do inventariado/usufrutuário não têm direito aos frutos naturais colhidos depois da sua morte, que nessa data ainda eram pendentes, nem direito ao produto da sua venda, que uns e outro pertencem à recorrente, não devendo ser objecto da relação de bens.
33ª Com efeito, quanto muito, a recorrente apenas teria que repor à herança do inventariado o montante das despesas por ele realizadas com o granjeio da vindima de 2015, que se ignora, até ao limite do valor da sua venda – arts 215º, nº 2, in fine, e 1.447º, nº 2, 2ª parte, CC -, o que, porém, não foi reclamado por nenhum dos interessados e agora já não pode ser decidido.
34ª Sem prescindir, caso se entenda que a verba 6 tem que permanecer relacionada, sempre deverá ressalvar-se ou esclarecer-se que ao “produto da venda” da vindima de 2015 terá que ser deduzido o montante das despesas suportadas pela recorrente com a realização dessa vindima, de valor não apurado, mas sempre elevado.
35ª O douto despacho recorrido incorreu em erro de interpretação e de aplicação da lei e do direito, designadamente das normas jurídicas ínsitas nos arts 3º, nº 3, 212º, nºs 1 e 2, 213º, nº1, 215º, nº 2, 940º, nºs 1 e 2, 1.439º, 1.446º, 1.447º, nº 2, 2º parte, 1.476º, nº 1, al. a), 1ª parte, 2.104º, nºs 1 e 2 e 2.110º, nºs 1 e 2, todos do CC.
36ª Atento o exposto, fixando-se ao recurso efeito suspensivo do processo, deve julgar-se o mesmo procedente e, em consequência, revogar-se o despacho recorrido nos seus itens decisórios I) 2, (verba 7), e II) III, (verba 6), com a prolacção de douto acórdão que ordene a eliminação da verba 7 da relação de bens ou, assim se não entendendo, que decida que a mesma não está sujeita a colação, e que ordene a eliminação da verba 6 da relação de bens ou, assim se não entendendo, que determine ou esclareça que ao produto da venda da vindima de 2015 deverá ser deduzido o montante das despesas suportadas pela recorrente com essa vindima, assim se cumprindo a Lei e se fazendo Justiça.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foi proferido despacho no qual se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata e com efeito devolutivo.
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Recebido o processo nesta Relação, emitiu-se despacho que teve o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões vertidas pela Recorrente nas suas alegações (arts. 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do Código de Processo Civil).
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais prévias, destinando-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não à prolação de decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo Tribunal recorrido.
Mercê do exposto, da análise das conclusões apresentadas pela Recorrente nas suas alegações decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:
1ª Do relacionamento da verba 7, relativa ao dinheiro objeto de disposição, em 1995, do (s) autor (es) da herança a favor da interessada AA, no montante de €100.000,00.
2ª Do relacionamento da verba 6, relativa ao produto da venda da vindima da Quinta 1... do ano de 2015.
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II – Fundamentação

A) Fundamentação de Facto

Os factos provados com relevância para a decisão constam já do relatório que antecede, resultando a sua prova dos autos, não se procedendo à reprodução dos mesmos, por tal se revelar desnecessário.
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B) Fundamentação de Direito

1ª Do relacionamento da verba 7, relativa ao dinheiro objeto de disposição, em 1995, do (s) autor (es) da herança a favor da interessada AA, no montante de €100.000,00
O Tribunal a quo revogou a decisão do Sr. Notário, que havia determinado a eliminação da verba 7), e ordenou a sua relacionação, por entender que, ainda que se considere uma "prenda de casamento", configura uma doação e não uma mera despesa com o casamento, relegando o conhecimento da questão de saber se a doação proveio de um ou de ambos os inventariados para ulterior decisão, após produção de prova.
Diferentemente, a Recorrente sustenta a não relacionação desta verba, argumentando, para tanto, em primeiro lugar, que a disposição em causa constitui um "donativo conforme aos usos sociais" nos termos do artigo 940.º, n.º 2, do Código Civil, não configurando uma doação.
Subsidiariamente, alega que se trata de uma "despesa com o casamento", excluída da colação por força do artigo 2110.º, n.º 2, do Código Civil, por se harmonizar com os usos e a condição social e económica dos inventariados.
A questão central a dirimir prende-se, por conseguinte, com a natureza jurídica da disposição de €100.000,00 feita pelo (s) inventariado (s) em 1995, a favor da interessada AA (Verba 7), por ocasião do casamento desta.
Apreciemos, pois, os argumentos da Recorrente face aos preceitos legais pertinentes.
O artigo 940.º, n.º 1, do Código Civil, define doação como o contrato pelo qual uma pessoa, "por espírito de liberalidade e à custa do seu património", dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação em benefício de outrem. O elemento essencial da doação é, portanto, o "animus donandi", a intenção de praticar uma liberalidade.
Contudo, o artigo 940.º, n.º 2, do Código Civil, ressalva que "Não há doação na renúncia a direitos e no repúdio de herança ou legado, nem tão pouco nos donativos conformes aos usos sociais".
Estes donativos, embora gerem um enriquecimento para o beneficiário, são motivados por um "animus solvendi", ou seja, pela consciência e intenção de cumprir uma obrigação ditada pelas regras do trato e da convivência social, de cortesia ou decoro, e não por um espírito de pura liberalidade. Exemplos comuns incluem prendas de aniversário, de casamento ou batizados, desde que não diminuam em "quantia avultada" o património do ofertante.
No caso em apreço, a Recorrente argumenta que a verba 7, no valor correspondente a €100.000,00 (cem mil euros), oferecida como prenda de casamento, se enquadra nesta exceção, dada a elevada condição social e económica do (s) inventariado (s), com um vasto património e profícuos rendimentos, o que faria com que tal oferta não representasse um gasto patrimonial elevado nem diminuísse significativamente o património daquele (s).
Todavia, este Tribunal entende que, não obstante o inquestionável contexto socioeconómico abastado da família do (s) inventariado (s), aceite nos autos, uma disposição pecuniária no montante de €100.000,00, à data de 1995, a favor de uma descendente, ainda que por ocasião do seu casamento, excede o que razoavelmente se considera um mero donativo conforme aos usos sociais.
Embora os "donativos conforme os usos sociais" devam ser avaliados em função da condição social e económica dos intervenientes, a verdade é que uma quantia deste montante, mesmo para um património considerável, reveste uma significância que revela, preponderantemente, um "espírito de liberalidade" (animus donandi), e não o mero cumprimento de uma obrigação social.
Como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de junho de 2023, proferido no âmbito do processo nº 3794/21.6T8VNG.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt, «Não é a avultada fortuna do ofertante, ainda que de contornos praticamente inimagináveis para o comum dos cidadãos, que define por si só a natureza do acto; ao invés, o elemento que se apresenta como decisivo para essa qualificação é o espírito que motiva o sujeito que age na convicção de estar a cumprir uma obrigação de carácter social, levado pela expectativa de outros quanto à adopção dessa sua conduta, impregnada da simpatia, reconhecimento e gentileza, que os padrões da educação e vida em sociedade recomendam, a qual está por isso mesmo em conformidade com os usos, sendo esta a circunstância essencial que distingue a figura do donativo previsto no artigo 940º, nº 2, do Código Civil, apartando-o do regime comum das doações que seria em princípio aplicável a este tipo de atribuições patrimoniais sem contrapartida.»
No caso concreto, entendemos que uma oferta da natureza da que está em causa na verba 7, a significância do valor, mesmo para um património vasto, não permite afastar o "espírito de liberalidade" (animus donandi) inerente à disposição. Não se descortina, dos elementos disponíveis nos autos, com segurança mínima, que o (os) inventariado (s), ao dispor (em) daquela verba correspondente a cem mil euros, tivesse (m) atuado com a consciência de estar (em) a fazê-lo por causa e em cumprimento de regras respeitantes ao trato e convivência social, de forma puramente atenciosa, através de um comum ato de cortesia ou decoro e não por pura liberalidade.
O que o (s) mesmo (s) pretenderam terá sido, a propósito e a pretexto de uma determinada ocasião festiva (a data do casamento da Recorrente), praticar (em) um ato através do qual lhe quis (eram) provocar agrado mas, simultaneamente – e também por isso mesmo –, aumentar muito significativamente o património daquela, sem receber desta contrapartida alguma.
Aliás, no caso concreto, há até indícios de que não foi intenção do (s) inventariado (s) conceder uma vantagem à Recorrente em detrimento dos demais herdeiros legitimários, pois que teve (tiveram) a preocupação de, em 2003, efetuar uma disposição de €113.000,00 a favor do interessado EE e em 2007 uma disposição de igual montante (€113.000,00) a favor do interessado FF, sendo certo que, conforme resulta dos autos, quanto a este último tal disposição ocorreu sem que tenha contraído casamento.
Por conseguinte, a verba 7 não pode ser qualificada como um "donativo conforme aos usos sociais", constituindo, para todos os efeitos, uma doação.
A Recorrente invoca, subsidiariamente, o disposto no artigo 2110.º, n.º 2, do Código Civil, que excetua da colação "as despesas com o casamento, alimentos, estabelecimento e colocação dos descendentes, na medida em que se harmonizem com os usos e com a condição social e económica do falecido".
Argumenta que a quantia de €100.000,00 foi utilizada para custear as despesas do seu matrimónio e que se harmoniza com a condição social e económica dos seus pais.
Quanto a tal argumentação, diremos que as "despesas com o casamento", a que se refere o artigo 2110.º, n.º 2, do Código Civil, devem ser interpretadas como custos diretamente suportados na organização ou para a realização do evento matrimonial, como, por exemplo, o pagamento do copo de água, do enxoval ou de outros serviços diretamente relacionados com a cerimónia.
No entanto, não resultou demonstrado nos autos que a verba em causa tenha correspondido, efetivamente, a uma despesa com o casamento no sentido restrito do artigo 2110.º, n.º 2, do Código Civil, acima apontado, pelo que também nesta parte, improcede o recurso.
Em face do exposto, bem decidiu o Tribunal a quo ao determinar que a verba 7 deve ser relacionada.
Diga-se, ainda, quanto à questão da colação, suscitada pela Recorrente no recurso interposto, que o Tribunal de 1ª instância ainda não se pronunciou sobre a mesma, e, nessa medida, não cabe a este Tribunal da Relação antecipar qualquer decisão relativamente a tal questão, sendo certo que, havendo ou não dispensa de colação, sempre a verba 7 terá de ser relacionada, a fim de permitir verificar a eventual inoficiosidade da doação ou doações e prevenir a ofensa do (s) interessado (s) não beneficiado (s) – cf. artºs 2162º nº1 e 2168ºss. Código Civil.
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2ª Do relacionamento da verba 6, relativa ao produto da venda da vindima da Quinta 1... do ano de 2015
No que respeita à questão do relacionamento do produto da venda da vindima da Quinta 1... do ano de 2015, o Tribunal a quo decidiu nos seguintes termos:
«Resulta dos documentos juntos aos autos o seguinte:
- a interessada AA era proprietária da nua propriedade da parte rústica e proprietária plena da Quinta 1...;
- o inventariado era usufrutuário da parte rústica da “Quinta 1...";
- o inventariado faleceu em Agosto de 2015 e já não pôde proceder à vindima – e respetiva venda nos terrenos de que era usufrutuário na “Quinta 1...”;
- a vindima do ano de 2015 foi realizada ou levada a cabo pela interessada AA, a qual ficou com benefícios provenientes da sua venda.
Atento o que resultou do depoimento de parte de 10 de Março de 2020 da interessada AA, constante de auto, no qual confessou que as despesas do granjeio da vindima de 2015 foram todas suportadas pelo falecido pai.
Assim sendo, deve ser relacionado o produto integral da vindima e da sua venda do ano de 2015
A recorrente, por sua vez, embora aceite que as despesas de granjeio da parte rústica da Quinta 1..., que culminaram na vindima de 2015, foram integralmente custeadas pelo inventariado /usufrutuário, (com exceção das despesas inerentes à operação da própria vindima, que já foi realizada pela ora recorrente depois do óbito daquele, tendo sido ela, por isso, quem suportou integralmente as correspondentes despesas), insurge-se contra tal decisão, argumentando que tem o direito de fazer seus os correspondentes frutos naturais percebidos a partir do momento certo em que a propriedade plena daquela vinha se consolidou na sua esfera jurídica, que foi a partir da morte do usufrutuário. Deste modo, sustenta que a colheita agrícola correspondente à vindima de 2015, que não foi realizada pelo inventariado/usufrutuário, que entretanto faleceu, e já foi efetuada pela ora recorrente, traduz-se em frutos naturais não percebidos durante a vigência do direito de usufruto e em frutos naturais já percebidos durante a vigência do direito de propriedade pleno desta, que ficaram integrados na sua plena propriedade, pois ela adquiriu a coisa em conjunto com os seus frutos naturais colhidos, ou percebidos, após a extinção do usufruto, que passaram a pertencer-lhe, assim como o produto da respetiva venda, que, por conseguinte, não deve ser objeto da relação de bens.
Quanto a esta questão, entendemos que assiste razão à recorrente, devendo o recurso proceder nesta parte.
Com efeito, é inquestionável que o inventariado era usufrutuário da parte rústica da Quinta 1... e a Recorrente a correspondente nu-proprietária. Nos termos do artigo 1476.º, n.º 1, alínea a), 1.ª parte, do Código Civil, o direito de usufruto do inventariado extinguiu-se automaticamente com a sua morte, ocorrida em ../../2015. Com a extinção do usufruto, a plena propriedade do bem consolidou-se na esfera jurídica da Recorrente.
O usufruto é um direito pessoal e, por conseguinte, não é transmissível aos herdeiros do usufrutuário após a sua morte, não se integrando no respetivo acervo hereditário, em conformidade com os artigos 1443.º, 1.ª parte, e 1476.º, n.º 1, alínea a), 1.ª parte, do Código Civil.
O produto da vindima de 2015 consubstancia-se em frutos naturais, uma vez que provém diretamente da vinha, sem prejuízo da sua substância, nos termos do artigo 212.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil. A questão crucial é determinar a quem pertencem estes frutos. O artigo 213.º, n.º 1, do Código Civil é claro ao estabelecer que “os que têm direito aos frutos naturais até um momento determinado, ou a partir de certo momento, fazem seus todos os frutos percebidos durante a vigência do seu direito.”
Desta disposição legal decorre que o usufrutuário terá direito aos frutos naturais percebidos até ao momento da extinção do seu direito, ou seja, até à sua morte.
Porém, a Recorrente, como proprietária plena, tem direito aos frutos naturais percebidos a partir do momento em que a plena propriedade se consolidou na sua esfera jurídica, isto é, a partir da morte do usufrutuário.
A vindima de 2015 não foi realizada pelo inventariado/usufrutuário, que faleceu antes da sua realização, mas sim pela Recorrente.
Assim, os frutos da vindima de 2015 são considerados frutos naturais não percebidos durante a vigência do direito de usufruto, mas sim percebidos durante a vigência do direito de propriedade plena da Recorrente.
A distinção reside no momento da separação dos frutos naturais em relação à coisa, pois que acompanham a coisa que os produz até ao momento da sua colheita, só então se autonomizando. Se à data da morte do usufrutuário os frutos já estavam separados (colhidos) da coisa usufruída, eles integram o património do usufrutuário. Se, contudo, àquela data ainda estavam pendentes (não colhidos ou não separados da coisa usufruída), pertencem ao proprietário pleno e integram o seu património, incluindo o produto da respetiva venda.
Esta regra é reforçada pelo artigo 215.º, n.º 2, 1.ª parte, do Código Civil, que preceitua que, tratando-se de frutos pendentes, quem é obrigado à restituição não tem direito a qualquer indemnização. Mesmo que o usufrutuário tivesse alienado os frutos antes da colheita e o usufruto se extinguisse antes que fossem colhidos, o produto dessa alienação pertenceria ao proprietário (artigo 1448.º, 1.ª parte, Código Civil).
Por outro lado, é certo que a Recorrente confessou que as despesas do granjeio da vindima de 2015 foram suportadas pelo falecido pai e o artigo 1447.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código Civil prevê que, findo o usufruto, o proprietário é obrigado a indemnizar o usufrutuário pelas despesas de cultura feitas, até ao valor dos frutos colhidos. Contudo, tal indemnização não está em, discussão nos presentes autos, sendo certo que nenhum dos interessados a reclamou.
Pelo exposto, e em conformidade com as disposições legais citadas, entende-se que o produto da vindima de 2015, por se traduzir nos frutos naturais pendentes à data da morte do usufrutuário e percebidos após a consolidação da plena propriedade na Recorrente, não integra o património hereditário do inventariado e, como tal, não deve ser relacionado, procedendo nesta parte a apelação.
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527º do Código de Processo Civil, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que lhes tiver dado causa, presumindo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção.
Como a apelação foi julgada parcialmente procedente, mercê do princípio da causalidade, as custas serão da responsabilidade da Recorrente e da Recorrida BB em partes iguais.
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Síntese conclusiva (da exclusiva responsabilidade da Relatora – artigo 663º, nº7, do Código de Processo Civil):
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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes subscritores deste acórdão da 5ª Secção, Cível, do Tribunal da Relação do Porto em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando-se a decisão recorrida na parte em que determinou o relacionamento do produto integral da vindima da Quinta 1... e da sua venda no ano de 2015 (verba 7).

Custas a meias pela Apelante/Recorrente e pela Apelada /Recorrida BB.





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Porto, 15 de setembro de 2025

Os Juízes Desembargadores
Teresa Pinto da Silva
Carlos Gil
José Eusébio Almeida