FACTOS COMPLEMENTARES
ERRO SOBRE O OBJETO DO NEGÓCIO
DEVER DE DILIGÊNCIA DO COMPRADOR
ANULAÇÃO DO CONTRATO
Sumário

I - Nos termos do art. 5º nº 2 al. b) do CPC, o tribunal pode ter em consideração factos essenciais não alegados que sejam complementares dos factos essenciais nucleares alegados nos articulados, desde que os mesmos resultem da instrução da causa e as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar quanto a eles.
II - O negócio/contrato é anulável, nos termos dos arts. 251º e 247º do CCiv., se a vontade de contratar foi determinada por erro sobre características do objeto do negócio e a parte contrária conhecia a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre o qual recaiu o erro.
III - O regime previsto no nº 1 do art. 570º do CCiv., embora vigore plenamente no âmbito das responsabilidades contratual e extracontratual, também é aplicável a outros institutos jurídicos, designadamente à anulabilidade, incluindo em casos em que esta assente em erro-vício sobre o objeto do negócio.
IV - Durante a fase de negociação, até à conclusão do negócio, o comprador está obrigado a usar de toda a diligência para tomar conhecimento de factos que estão ao seu alcance conhecer, e também a analisar, de forma cuidada e criteriosa, a informação que lhe é disponibilizada pelo vendedor [neste caso em cumprimento do dever de informação a cargo deste último].
V - Não observa tal dever de diligência a compradora que, tendo-lhe sido anunciado pelo representante da vendedora que a máquina que pretendia adquirir tinha determinada característica/funcionalidade, mas resultando de outros elementos de informação que a vendedora lhe forneceu [o catálogo da máquina com as respetivas características técnicas e um vídeo com uma máquina igual em funcionamento] que não a possuía, não levou a cabo qualquer atividade com vista ao cabal esclarecimento dessa situação, só a suscitando depois de ter pago o preço e depois da máquina lhe ter sido entregue e posta a funcionar nas suas instalações. Havendo, neste caso, culpa da autora, determinante para a concretização do negócio, está excluída a possibilidade de, com base em erro sobre o objeto [o representante da vendedora também sabia desta essencialidade para aquela], obter a anulação do contrato, ‘ex vi’ do estabelecido no art. 570º nº 1 do CCiv..
VI - Esta exclusão não é afastada pelo facto de haver uma relação de confiança entre o representante da autora e o representante das rés, já que esta não dispensava a autora da observância do referido dever de diligência, tanto mais que quem pretendia adquirir a máquina era ela e não se tratava de uma máquina qualquer, quer pelo seu elevado preço, quer pela especial característica/funcionalidade que era, para si, fundamental; nem tal relação permitia que afrouxasse esse dever, para mais face ao que os ditos catálogo e vídeo permitiam que tivesse percecionado.

Texto Integral

Proc. 3841/22.4T8PRT.P1 – 2ª Secção (apelação)

Relator: Pinto dos Santos

Adjuntos: Raquel Lima

Lina Castro Baptista


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Acordam nesta secção cível do tribunal da Relação do Porto:


I. Relatório:


A..., Lda., com sede em Guimarães, instaurou a presente ação declarativa comum contra B..., Lda., com sede no Porto e C..., ..., com sede em ..., na Suíça, pedindo:
a) Que seja declarado anulado o negócio descrito na petição inicial, por existência de dolo e erro sobre o objeto do negócio, ordenando-se a restituição do preço no montante de 265.000,00 (duzentos e sessenta e cinco mil) francos Suíços, o equivalente a 254.218,11€ (duzentos e cinquenta e quatro mil duzentos e dezoito euros e onze cêntimos), e a devolução da máquina;
b) Que sejam as Rés condenadas, de forma solidária, no pagamento de uma compensação à autora, ressarcindo-a dos prejuízos sofridos, designadamente com o custo de oportunidade e despesas existentes com a concretização do negócio no montante de 13.091,17€ (treze mil e noventa e um euros e dezassete cêntimos).
c) Se assim não se entender, deve a segunda Ré ser condenada a indemnizar a autora pelos danos sofridos, acima descriminados, por aplicação do disposto no art. 500º do CCiv.;
d) Para o caso de se entender que a segunda Ré não teve qualquer responsabilidade, deve ser condenada a primeira Ré em sede de responsabilidade por factos ilícitos, nos termos do disposto no art. 483º do CCiv., no pagamento dos montantes acima indicados e a restituir o valor da máquina.
Para tal alegou que, no exercício da sua atividade, comprou à segunda ré, por intermediação a primeira ré, uma máquina necessária para a sua atividade industrial, a qual se revelou não ter as características que lhe tinham sido garantidas pela primeira ré, características que eram essenciais para a concretização do negócio.

As rés, citadas, contestaram a ação, por exceção e por impugnação.
Por exceção, invocaram:
- a incompetência internacional dos tribunais portugueses para dirimirem o pleito, contrapondo a competência dos tribunais da Suíça;
- a incompetência territorial do Juízo Central Cível do Porto [juízo recorrido], contrapondo que o juízo competente seria o do lugar da entrega do bem objeto do contrato em questão;
- a caducidade do direito da autora pedir a anulação do contrato em causa.
Por impugnação, não aceitaram parte da factualidade alegada na petição inicial, apresentando versão diversa.
E alegaram, ainda, a litigância de má-fé por parte da autora.
Pediram que se declare:
a) que o Tribunal Português é incompetente internacionalmente para dirimir o presente conflito, pela aplicação da Convenção de Lugano II ou das regras estatuídas nas alíneas a) e b) do artigo 62º do C. P. Civil, o que acarreta a absolvição das rés da instância – art. 99º nº 1 do CPC;
b) assim não acontecendo, que o Juízo Central Cível do Porto é incompetente em razão do território para julgar a presente ação;
c) procedente a exceção perentória de caducidade e, por via disso, sejam elas, rés, absolvidas dos pedidos formulados pela autora;
d) a ação improcedente e, em consequência disso, sejam absolvidas dos pedidos formulados na petição inicial, com as consequências legais;
e) a autora como litigante de má-fé e, por via disso, seja a mesma condenada em multa exemplar e indemnização a favor das rés.

A autora respondeu às exceções arguidas pelas rés, pugnando pela sua improcedência.

Dispensada a audiência prévia e fixado o valor da ação, foi proferido despacho saneador que julgou improcedentes as exceções dilatórias da incompetência internacional e da incompetência territorial invocadas pelas rés [tendo relegado para a sentença o conhecimento da exceção perentória da caducidade] e foram fixados o objeto do litígio e os temas de prova.

Realizou-se a audiência final, no termo da qual, após produção da prova, foi proferida sentença que:
- julgou improcedente a exceção perentória da caducidade, arguida pelas rés;
- e julgou improcedente a ação, com a consequente absolvição das rés dos pedidos;
tendo a autora sido condenada no pagamento das custas.

Inconformada com o sentenciado, interpôs a autora o presente recurso de apelação [admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo], cujas alegações culminou com as seguintes conclusões:
«I. Embora no essencial se entenda que o tribunal fez uma correta apreciação da prova produzida, sempre nos parece que existem concretos aspetos que o tribunal desconsiderou e não levou à matéria de facto provada e que, a final, deveriam ser essenciais à aplicação do direito;
II. Encontra-se incorretamente julgada, por incompleta face à prova produzida, a matéria constante do ponto 11 dos factos provados.
III. É que, de acordo com o referido pelas testemunhas, designadamente a testemunha AA e BB, esta relação de confiança incluía também uma relação de amizade e com cerca de 30 anos.
IV. Daqui resulta que há não só uma relação de confiança, mas também uma relação de amizade e já com cerca de 30 anos.
V. Sendo certo que foram anteriormente celebrados diversos negócios entre estas empresas, logo, a esta relação de confiança e de amizade, acrescia um historial de outras aquisições de máquinas, sem que tivesse existido qualquer problema anterior.
VI. Cremos, por isso, que este facto deveria ter sido levado à matéria de facto provada.
VII. Devendo, consequentemente, ser dado como provado em 11º que: Havendo já uma relação de elevada confiança e de amizade, com cerca de 30 anos, entre o representante da autora e o então legal representante da primeira ré, sendo certo que já havia já um histórico de vários negócios anteriores entre as partes.
VIII. Cremos pois, que esta resposta à matéria de facto seria mais consentânea com o declarado pelas testemunhas em tribunal e que, cremos, não merece qualquer tipo de reparo.
IX. Esta alteração à matéria de facto provada parece-nos, que será essencial para a resposta a dar à questão essencial de direito que foi colocada.
X. Na decisão recorrida foi reconhecido que a Recorrente adquiriu uma máquina industrial às Recorridas, tendo sido assegurado que a mesma possuía determinadas características essenciais para a sua decisão de compra.
XI. O Tribunal a quo reconheceu que tais características eram essenciais e que o representante da Recorrida tinha conhecimento dessa essencialidade.
XII. Contudo, a pretensão da Recorrente foi indeferida com fundamento na culpa do lesado, por omissão de diligências para verificação dos factos.
XIII. Contudo, a sentença recorrida desconsiderou a relação de confiança existente entre as partes, fazendo tabua rasa de um princípio essencial nos negócios jurídicos, o princípio da boa-fé contratual.
XIV. Nos termos do artigo 251.º do Código Civil, o erro sobre o objeto do negócio constitui fundamento de anulabilidade quando tenha sido determinante para a celebração do contrato.
XV. O Tribunal debruçou-se exclusivamente sobre a conduta da Recorrente, ignorando que o vendedor, através do seu representante, prestou informações inexatas ou mesmo falsas.
XVI. A sentença não valorou devidamente o princípio da boa-fé previsto no artigo 762.º do Código Civil e o dever de informação que impendia sobre o vendedor.
XVII. A relação de longa data e de confiança justificava uma expectativa legítima de veracidade nas declarações prestadas.
XVIII. O princípio da boa fé constitui um princípio normativo que exige que as partes se comportem de forma honesta, correta, leal.
XIX. Segundo o art.º 251.º CC, o erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira ao objeto do negócio, torna este anulável, nos termos do art. 247.º do mesmo código, o qual dispõe que «quando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.»
XX. O erro é essencial quando, sem ele, o declarante não teria sido celebrado aquele o negócio, ou não o teria celebrado com aquele conteúdo.
XXI. Apesar de necessária, a essencialidade não é, todavia, suficiente para fazer desencadear o efeito anulatório do negócio jurídico.
XXII. No caso do erro sobre o objeto do negócio, tal como resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 251º e 247º, para além da essencialidade é também necessário que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.
XXIII. Assim, nesta modalidade de erro, a anulabilidade do negócio, além do requisito da essencialidade, depende ainda da circunstância do declaratário conhecer ou não devesse ignorar a referida essencialidade; ou seja, está dependente do declaratário saber ou dever saber que sem o erro-vício o declarante não teria celebrado o negócio, ou teria concretizado negócio essencialmente diferente, importando salientar que este conhecimento ou cognoscibilidade respeita à essencialidade e não ao erro, pois é indiferente que o declaratário conheça ou não o erro, sendo certo que à luz do nosso ordenamento jurídico não é sequer exigível que o erro em que incorre o declarante seja desculpável.
XXIV. Ou seja, para que houvesse lugar à anulação do negócio em causa, necessária seria, a alegação e prova:
a) de que caso a autora/apelante tivessem conhecimento que a máquina não possuía as características indicadas não teria celebrado o negócio;
b) da essencialidade para a autora/apelante das ditas características;
c) de que, pelo menos a segunda ré, à data da celebração do negócio, conhecia ou devia conhecer tal essencialidade, ou seja, de que sabia ou devia saber que caso a autora/apelante tivesse conhecimento de que a máquina não possuía as indicadas características, não teria celebrado aquele negócio.
XXV. Vista a matéria de facto provada, logo se constata que a apelante logrou fazer toda essa prova, já que a mesma consta, designadamente, da matéria indicada em 8 a 10, 23 e 25 dos factos provados.
XXVI. No que respeita à omissão da ‘due diligencie’ ou culpa do lesado cremos, em primeiro lugar que o tribunal ignorou por completo as concretas circunstâncias deste negócio.
XXVII. Em primeiro lugar porque entre as partes existia já uma longa relação de confiança e mesmo amizade (cerca de 30 anos) entre os representantes das partes o que, num negócio, mesmo com estes valores, não pode ser ignorado.
XXVIII. Por outro lado, em todos os negócios anteriormente realizados, exatamente em circunstâncias semelhantes, nunca existiu qualquer problema.
XXIX. Do que no caso presente se trata, porém, é de saber se em face do especial relacionamento pessoal e comercial entre os representantes das partes e todo o histórico de relações comerciais entre autora e rés, a autora omitiu a diligência de uma pessoa razoável na gestão dos seus interesses patrimoniais, decorrendo dessa conduta omissiva uma contribuição causalmente decisiva para a produção do dano que sofreu.
XXX. Numa abordagem puramente objetiva, feita a posteriori, pode, de facto, concluir-se que se a autora tivesse instado diretamente a segunda Ré C... e questionado especificamente sobre estas características da máquina, porventura teria recebido as informações necessárias para confirmar que a máquina não possuía estas características e, consequentemente, não teria tomado a decisão de fazer este contrato.
XXXI. E não se diga que poderia ter visto as características da máquina na ficha técnica da mesma porquanto, tratando-se de elementos de elevada complexidade técnica, tal não seria fácil já que a simples referência a quatro fitas com tensores individualizados à entrada, seria suscetível de induzir a autora em erro na análise das ditas características.
XXXII. Contudo, a primeira ré era a agente e representante da segunda ré.
XXXIII. Os representantes das sociedades conheciam-se há cerca de 30 anos e mantinham uma relação de confiança e de amizade.
XXXIV. Havia um histórico de negócios bem-sucedidos entre as partes.
XXXV. Pelo que, cremos que não ocorreu negligencia do representante da autora na celebração do negócio.
XXXVI. Tomando como ponto de partida a afirmação de que o facto culposo do lesado deve ser um facto – ação ou omissão – desconforme ao ónus que impendia sobre o autor de atuar com a diligência com que atuaria uma pessoa normalmente cautelosa e razoável na gestão dos seus interesses patrimoniais colocada na posição em que o autor se encontrava, não pode deixar de relevar, e de modo muito particular, o reforço da confiança na informação prestada ao representante da autora pelo representante da agente da segunda ré com quem sempre negociou diretamente.
XXXVII. Cremos que, nessas concretas circunstâncias, o cidadão minimamente diligente na defesa dos seus interesses patrimoniais colocado na posição do representante da autora, teria razões de sobra para confiar – ou no mínimo não teria razões para duvidar – na realidade das informações que lhe foram prestadas pelo representante da primeira ré, na qualidade de agente da segunda ré.
XXXVIII. Dito de outro modo, a relação de confiança e de amizade estabelecida entre o representante da autora e o representante da primeira ré, longe de fazer incidir sobre aquele um especial dever de vigilância, contribuiu decisivamente para o reforço da confiança na veracidade das informações que lhe foram transmitidas, inclusivamente por escrito.
XXXIX. Pelo que vem de ser dito já se antevê que não se apura qualquer conduta da autora que tenha sido (con)causal do dano por si sofrido, carecendo de justificação a exclusão de responsabilidade das rés por efeito da aplicação do artigo 570.º n.º 1 do Código Civil.
Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida e declarando-se a anulabilidade do contrato com fundamento no erro sobre o objeto do negócio, com todas as consequências legais.
Assim se fará JUSTIÇA.».

As rés também recorreram, dizendo fazê-lo a título subordinado.
Contudo, não se trata de um verdadeiro recurso subordinado, previsto no art. 633º do CPC, mas sim de uma ampliação do âmbito do recurso a requerimento das recorridas. Isto porque o recurso subordinado «implica que a parte ficou vencida em relação ao resultado declarado na sentença», ao passo que a ampliação do objeto do recurso «pressupõe que não foi acolhido o fundamento (ou fundamentos) invocado pela parte ou a verificação de alguma nulidade da decisão» [Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª ed. atualiz., 2022, Almedina, pg. 116 e nota 197] e, no caso, o recurso das rés enquadra-se nesta segunda previsão e não na primeira.
Impõe-se, assim, a sua requalificação, passando a considerar-se o mesmo como ampliação do âmbito do recurso.
Formularam as seguintes conclusões:
«I – Recurso Subordinado [agora qualificado com ampliação do âmbito do recurso]:
1 - Salvo o devido respeito por opinião contrária, é inequívoco que a decisão enferma de erro de julgamento, fazendo incorreta valoração dos meios de prova, errada aplicação da lei e orientações jurisprudenciais;
2 - O Tribunal apelado deu como provada a matéria fáctica vertida nos pontos 9. e 11. da decisão sobre a matéria de facto, a qual não foi alegada nem discutida pelas partes.
3 - Com tal conduta, o Tribunal apelado violou frontalmente o princípio do dispositivo e o princípio do contraditório;
4 - bem como o disposto no nº 3 do artigo 3° do Código de Processo Civil, pelo que tal decisão, nessa parte, é NULA, nos termos e para os efeitos dos artigos 195° do Código de Processo Civil, o que aqui expressamente se invoca.
5 - Ao conjugar-se os documentos suprarreferidos, com os depoimentos das testemunhas AA, BB, com as explicações avançadas pela testemunha CC, com a matéria assente nos pontos 28., 29. e 31. e com as regras da experiência deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto no que respeita aos pontos 8., 25. e 27, os quais devem ser dados como não provados e, no caso disso ocorrer, como se espera, os pedidos formulados pela autora devem continuar a serem improcedentes, mas por razões diferentes das invocadas na douta sentença, conforme foi supra sugerido.
II – Das contra-alegações:
6 - Dá-se aqui integralmente por reproduzido o que se invocou no ponto C) das presentes alegações do recurso subordinado, uma vez que lendo e relendo o petitório e a réplica é manifesto que a autora não alega a factualidade que agora pretende ver ampliada e por isso está-lhe vedado legalmente que a mesma possa ser tida em consideração, o que expressamente aqui se invoca, sob pena de se desconsiderar o princípio do contraditório.
7 - No caso em apreço, resulta que a recorrente podia e devia ter verificado antecipadamente as caraterísticas da máquina, uma vez que lhe foram fornecidos catálogos, fichas técnicas, vídeo e nota de encomenda, nos quais constavam sem quaisquer dúvidas as caraterísticas que a máquina apresentava, não fazendo parte de tal elenco aquilo que afinal o AA pretendia, conforme decorre da matéria assente nos pontos 28., 29. e 31 da douta sentença e da confissão produzida pelo legal representante da autora, que referiu nem sequer ter prestado atenção às caraterísticas que constavam do contrato.
8 - Assim, como bem observou o Mmº Juiz, a recorrente nada fez para perceber se a máquina que lhe estava a ser vendida tinha as caraterísticas que desejava, sendo-lhe exigível, por lhe ter sido facultado todos os elementos necessários a tal apreciação e apesar de estar em inglês, a recorrente não precisava de interprete, uma vez que dispõe nos seus quadros técnicos capazes de traduzirem tais documentos, evidenciado um total desinteresse sobre as efetivas caraterística da máquina que estava a adquirir.
9 - Um negócio deste jaez não pode ser feito de animo leve e tratado como fosse a compra de uns meros consumíveis.
10 - Verificou-se, assim, circunstâncias que permite concluir pela existência de culpa da recorrente e, em consequência disso, ficar afastada a possibilidade de anulação do negócio.
11 - Em suma, não assiste qualquer razão jurídica ao entendimento defendido pela recorrente, devendo, por isso, manter-se integralmente a decisão vertida na douta sentença.
Nos termos supra expostos e nos melhores de direito, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas, deve ser dado provimento ao recurso subordinado, devendo ainda o presente recurso de apelação interposto pela autora ser julgado totalmente improcedente.
Assim decidindo, mais uma vez será feita, Venerandos Desembargadores, a costumada e verdadeira JUSTIÇA.».

Foram colhidos os vistos dos Exmos. Adjuntos.

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II. Questões a apreciar e decidir:

Em atenção às conclusões das alegações das partes, que, de acordo com o estabelecido nos arts. 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do CPC, fixam o thema decidendum deste recurso [salvo ocorrendo outras questões de conhecimento oficioso, nos termos previstos na parte final do nº 2 do art. 608º, ex vi do nº 2 do art. 663º, ambos do CPC], as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
1. Recurso da autora:
- Alteração da matéria de facto [conclusões I a IX];
- Anulabilidade do contrato por erro sobre o objeto do negócio e culpa excludente da autora [conclusões X a XXXIX].

2. Ampliação do âmbito do recurso requerida pelas rés:
- Nulidade da sentença [conclusões 1 a 4];
- Alteração da matéria de facto e efeitos sobre a decisão de mérito [conclusão 5].


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III. Factos provados e não provados:

i) A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
1. A Autora é uma sociedade de direito português, que exerce atividade no setor têxtil, fabricando, no essencial, fitas elásticas (para roupa interior, roupa de desporto e fatos de banho), mas também se dedica à produção de todo o tipo de elásticos e passamanarias.
2. 1ª Ré é uma sociedade de direito português, que tem como atividade principal, entre outras, agenciar transações comerciais no âmbito do setor têxtil.
3. A 2ª Ré é uma empresa Suíça, que tem como atividade principal, entre outras, a manufaturação de máquinas industriais para a indústria têxtil, de grande porte.
4. No exercício da sua atividade industrial, a A. necessita de máquinas industriais destinadas, entre outras, ao tingimento do tipo de materiais que produz.
5. Em meados de 2019, numa visita a uma feira de negócios do sector têxtil (ITMA), em Barcelona, onde a segunda Ré tinha uma exposição, um colaborador da Autora, AA, visitou o stand desta segunda Ré.
6. Com vista à aquisição da máquina industrial foi trocada diversa correspondência entre as partes de forma a chegar-se à versão final da máquina pretendida;
7. Posto isto, foi negociado o preço e, bem assim, a forma de pagamento.
8. A autora pretendia uma máquina que permitisse uma utilização de tingimento de 4 fitas de forma autónoma e independentes umas das outras, fator essencial que levou a A. a optar por este tipo de máquina.
9. O que era do conhecimento do legal representante da 1ª ré;
10. Que garantiu que a máquina em causa possuía essas características;
11. Havendo já uma relação de confiança entre o representante da autora e o então legal representante da primeira ré.
12. Tendo sido alcançado um valor de 265.000,00 francos Suíços, o equivalente, à data da propositura da ação, (a) 254.218,11€.
13. Cujo pagamento ficou acordado ser de 5% no momento da assinatura da ordem de confirmação, mais 25% até Março de 2021 e o restante, com a conclusão da maquina e imediatamente antes da expedição da mesma para as instalações da Autora;
14. Nesta medida, foi dada a ordem de execução da máquina a MFR 2C 100 (estufa de 100m combinada) e efetuado de uma só vez o pagamento de 30% da máquina, em 5 de Março de 2021.
15. Em 8 de Junho de 2021, o Sr. BB informa a Autora de que a máquina está pronta e que já foi testada, solicitando o pagamento do remanescente do preço.
16. Tal como estava acordado, o pagamento do valor remanescente, correspondente aos 70% do valor da máquina, foi efetuado e remetido o respetivo comprovativo;
17. Entretanto, no dia 19 de Julho de 2021, a máquina em causa chegou às instalações da autora, sendo ali descarregada.
18. No início de Setembro, o Sr. BB informou a autora de que na semana seguinte chegariam os técnicos para iniciar os trabalhos de montagem da máquina, tendo chegado os primeiros técnicos em 13/09/2021.
19. Após a montagem da máquina era necessário arrancar a mesma e colocá-la em funcionamento.
20. Em 21 de Setembro de 2021 ocorreu uma reunião nas instalações da Autora, com a presença do Sr. AA, o Sr. BB, em representação da primeira Ré e na qualidade do agente que tratou de todo o negócio e ainda um representante da 2ª R.
21. Em 11 de Outubro de 2021, um outro técnico de tinturaria da segunda Ré deslocou-se às instalações da Autora para, finalmente, testar a máquina em funcionamento e ministrar formação aos trabalhadores da autora para operarem com a mesma.
22. No dia 15 de Outubro, a máquina foi, finalmente, colocada a funcionar.
23. A máquina foi anunciada pelo legal representante da primeira ré como sendo de última geração e muito evoluída tecnicamente.
24. A máquina adquirida pela A. é semelhante a uma outra que já possuía desde 2014, por metade do preço;
25. Caso a A. soubesse das características da máquina não a tinha adquirido.
26. A A. quando teve conhecimento das características da máquina comunicou imediatamente a vontade em devolver a mesma.
27. Sendo que o legal representante da 1ª ré assumiu que estava convencido que a máquina tinha essas características, e referiu que iria pedir à ré que aceitasse a devolução da máquina;
28. Previamente ao pagamento do preço, foi fornecida pela segunda ré à Autora um catálogo no qual constavam as características técnicas da máquina e respetiva performance, resultando das mesmas que a máquina não permitia a utilização de tingimento de 4 fitas de forma autónoma e independentes umas das outras;
29. Tendo igualmente remetido um vídeo de uma máquina com a mesma tecnologia, a funcionar;
30. A autora nunca contactou diretamente com a ré quanto às características da máquina pretendidas pela autora;
31. A máquina objeto do contrato não tem as características pretendidas pela autora, nem nunca a segunda ré garantiu que tivesse essas características;
32. Com a colocação da máquina a autora teve despesas com a grua para colocação da máquina no piso superior; com a preparação do sistema elétrico; com a criação de estrutura de entrada e saída de águas; com horas de trabalho dos funcionários relacionadas com estes trabalhos; e horas de formação de funcionários para aprenderem a trabalhar com a máquina, no valor global de: 8.091,17€ (oito mil e noventa e um euros e dezassete cêntimos).

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ii) … E não provados os seguintes factos:
a) Que a autora teria utilizado o dinheiro para a compra e venda descrita nos factos assentes para a aquisição de uma outra máquina que verdadeiramente servisse os seus interesses;
b) Que o Sr. BB tivesse consciência que a máquina objeto do contrato não tivesse as características que o mesmo assumiu como certas, e que eram essenciais para a autora.

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IV. Apreciação do objeto do recurso:

1. Recurso da autora.

1.1. Alteração da matéria de facto.

A autora impugna o que consta do facto provado nº 11, pretendendo a sua alteração de modo a que passe a ter a seguinte redação: «Havendo já uma relação de elevada confiança e de amizade, com cerca de 30 anos, entre o representante da autora e o então legal representante da primeira ré, sendo certo que já havia já um histórico de vários negócios anteriores entre as partes.».
Invoca, em defesa de tal pretensão, os depoimentos prestados pelas testemunhas AA e BB, indicando as exatas passagens dos registos áudio que contêm os segmentos que considera relevantes, a cuja transcrição também procede.
Mostram-se, pois, cumpridos os ónus primários e secundários da impugnação da matéria de facto estabelecidos no art. 640º nºs 1 als. a) a c) [primários] e 2 al. a) [secundário] do CPC [diga-se que, contrariamente ao que acontece com os ónus primários, o não cumprimento do ónus secundário não implica, por regra, a rejeição do recurso da matéria de facto, nem obsta à reapreciação da prova, como vem defendendo a jurisprudência maioritária, de que são exemplo os Acórdãos do STJ de 14.03.2024, proc. 8176/21.7TSLSB.L1.S1, de 27.02.2024, proc. 2351/21.1T8PDL.L1.S1, de 25.01.2024, proc. 1007/17.4T8VCT.G1.S1, de 21.03.2023, proc. 296/19.4T8ESP.P1.S1, de 13.10.2022, proc. 1700/20.4T8LRS.L1.S1, de 03.10.2019, proc. 77/06.5TBGVA.C2.S2 e de 29.10.2015, proc. 233/09.4T8VNC.G1.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj].
As recorridas, nas contra-alegações, defendem, porém, que a alteração por aquela pretendida não pode ser atendida por versar sobre factualidade que a recorrente não alegou na petição inicial nem na réplica [conclusão 6, ponto II, das contra-alegações]. E acrescentam, ainda, que todo o facto provado nº 11 deve ser eliminado por, segundo alegam, nada do que dele consta ter sido alegado pelas partes nos articulados [conclusão 2, ponto I].
Vejamos.
Continua a vigorar no nosso ordenamento processual civil o princípio do dispositivo, por ser às partes que cabe alegar os factos essenciais nucleares que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas, como consagra o nº 1 do art. 5º do CPC, de tal modo que a sua falta/omissão determina, no primeiro caso, a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial – art. 186º nºs 1 e 2 al. a) do CPC – e, no segundo, a nulidade da exceção arguida.
No entanto, tal princípio vem sendo cada vez mais temperado com outros, designadamente com o princípio do inquisitório, com vista à obtenção de decisões que se aproximem o mais possível da verdade material, em detrimento do apuramento da verdade meramente processual, tendo o legislador do atual CPC sido sensível a esta tendência evolutiva. Por via disso, consagrou nas als. a) e b) do nº 2 do citado art. 5º [e noutras disposições do CPC que aqui não interessa mencionar] – a da al. c) não releva para aqui, além de que se trata de exceção que já vem do passado – duas exceções à pureza daquele primeiro princípio, permitindo que o juiz/tribunal, além dos factos articulados pelas partes, tome em consideração os factos instrumentais que resultem da instrução da causa [al. a)] e os factos [essenciais] que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar. [al. b)].
O atendimento dos factos instrumentais basta-se com a exigência de que resultem da instrução da causa. Quanto aos factos da al. b), além de tal exigência, é, ainda, necessário que se trate de factos complementares ou concretizadores de outros que as partes hajam alegado [não podendo tratar-se de factos essenciais nucleares] e que estas tenham tido a possibilidade de se pronunciarem quanto a eles.
Importa, por isso, começarmos por aferir se, no caso – quer quanto ao atual facto provado nº 11, quer relativamente ao aditamento que a autora recorrente pretende –, estamos perante facto(s) essencial(is) nuclear(es), se diante de facto(s) essencial(is) complementar(es) ou concretizador(es) ou se em face de facto(s) instrumental(is).
Segundo Paulo Pimenta [in Os Temas da Prova, pgs. 22-23, disponível no site www.cej.justica.gov.pt], os factos essenciais comportam duas vertentes/modalidades: os ‘essenciais nucleares’ e os ‘essenciais complementares’ ou ‘concretizadores’, explicando que «[o]s ‘nucleares’ constituem o núcleo primordial da causa de pedir ou da exceção, desempenhando uma função individualizadora ou identificadora, a ponto de a respetiva omissão implicar a ineptidão da petição inicial ou a nulidade da exceção», ao passo que «os ‘complementares’ e os ‘concretizadores’, embora também integrem a causa de pedir ou a exceção, não têm já uma função individualizadora», acrescentando que «os factos complementares são os completadores de uma causa de pedir (ou de uma exceção) complexa, ou seja, uma causa de pedir (ou uma exceção) aglutinadora de diversos elementos, uns constitutivos do seu núcleo primordial, outros complementando aquele», enquanto «os factos concretizadores têm por função pormenorizar a questão fáctica exposta sendo, exatamente, essa pormenorização dos factos anteriormente alegados que se torna fundamental para a procedência da ação (ou da exceção).». Por sua vez, os ‘factos instrumentais’ [que se contrapõem aos factos essenciais] definem-se, de acordo com Lopes do Rego [in Comentário ao CPC, pg. 201], «como sendo aqueles que nada têm a ver com substanciação da ação e da defesa (…), podendo ser livremente investigados pelo juiz no âmbito dos seus poderes inquisitórios de descoberta da verdade material», ou, nos dizeres de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa [in Código de Processo Civil Anotado, cit. vol. I, pgs. 32-33, anotação 16], são «aqueles que permitem a afirmação, por indução, de outros factos de que depende o reconhecimento do direito ou da exceção».
Assim definidos os factos essenciais nucleares, os factos essenciais complementares ou concretizadores e os factos instrumentais, vejamos então em que vertente se enquadra o facto em análise, quer nos termos que constam do facto provado nº 11, quer em função da alteração/aditamento que a recorrente autora pretende.
Uma primeira constatação é a seguinte: tal como as recorridas alegam, trata-se, em qualquer dos casos, de materialidade fáctica que a autora não alegou nos seus articulados – petição inicial e resposta às exceções –, nem tão pouco foi alegada pelas rés na contestação.
Mas daí, contrariamente ao que defendem as recorrentes, não resulta necessariamente que tal factualidade não pudesse ser tida em conta pelo tribunal a quo [na sentença], nem que a alteração pretendida não possa ser agora considerada nesta 2ª instância. Só assim não será [só não poderá ser atendida, num caso e no outro] se se tratar de factualidade essencial que integre o núcleo básico da causa de pedir em que a autora estribou o seu petitório, pois se a mesma for de qualificar como factualidade essencial mas complementar ou concretizadora da matéria de facto nuclear alegada na petição inicial ou, por maioria de razão, se se tratar de facto(s) instrumental(is), o seu atendimento, quer pelo tribunal a quo, na parte ali dada como provado, quer por este tribunal da Relação, no que diz respeito ao aditamento, está apenas dependente da verificação das exigências constantes, respetivamente, das als. b) e a) do nº 2 do art. 5º do CPC [remete-se para o que atrás referimos].
Do que decorre da petição inicial, foi declarado na sentença recorrida e agora [nesta fase recursória] não vem posto em causa por nenhuma das partes é que a autora assentou o seu pedido na celebração de um contrato de compra e venda que teve por objeto a máquina industrial que está em questão nos autos e na existência de erro-vício sobre o objeto do negócio [determinada característica de tal máquina] gerador da anulabilidade deste, que peticiona nos termos dos arts. 247º, 251º e 287º do CCiv..
Logo, os factos essenciais nucleares que a autora tinha obrigatoriamente que alegar, sob pena até da petição ser liminarmente indeferida por falta de causa de pedir geradora de nulidade de todo o processo – art. 186º nºs 1 e 2 al. a) do CPC –, eram os relativos à celebração do contrato e os demonstrativos daquele erro-vício, ou seja, que a máquina adquirida não possui a característica/funcionalidade que o então gerente da primeira ré e também representante da segunda ré, vendedora, anunciou à autora e que determinaram esta a comprá-la, que tal característica/funcionalidade foi determinante/essencial para a concretização do negócio por parte da autora e que a contraparte [o referido representante das rés] soubesse/conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade daquela característica para a demandante.
Ora, o que consta do facto provado nº 11 e o que a recorrente pretende ver-lhe aditado nada têm que ver com aquele núcleo primordial da matéria de facto cujo ónus alegatório a autora tinha obrigatoriamente que observar. Reportam-se, isso sim, a outra realidade coadjuvante/complementar, também essencial para procedência da pretensão da autora recorrente e que diz respeito, na alegação constante das conclusões X a XVIII e XXVI a XXXIX das suas alegações, à existência de uma relação de confiança e de amizade entre os então gerentes da demandante e da primeira demandada que, associada ao princípio da boa fé, consagrado nos arts. 227º nº 1 e 762º nº 2 do CCiv., e ao dever de informação que impendia sobre o representante da vendedora, permitiria/justificaria, na perspetiva da recorrente, o menor cuidado/diligência [ou a falta dele] que, de acordo com o declarado na sentença recorrida, terá colocado na análise do catálogo e do vídeo que a segunda ré lhe havia fornecido antes da concretização do negócio e dos quais resultava que a máquina em causa não possui a referida característica/funcionalidade [cfr. factos provados nºs 28 e 29].
Não dizendo respeito ao dito núcleo primordial, logo se vê que não se trata de factos essenciais nucleares da causa de pedir invocada pela autora e que a sua não alegação por esta, nos referidos articulados, seja, por si só, impeditiva de ser tida em consideração, quer a que o foi na sentença recorrida [não padecendo esta, por isso, da nulidade que as recorrentes subordinadas lhe apodam nas quatro primeiras conclusões das suas alegações, nem havendo, igualmente, lugar à eliminação do facto nº 11 do elenco da matéria fáctica provada, também ali defendida], quer a que agora a recorrente quer ver aditada ao mesmo facto provado nº 11. E constata-se também que tal matéria fáctica, sendo embora essencial para o preenchimento da causa de pedir complexa que está em questão – que, além dos elementos nucleares indicados, inclui, ainda, a factualidade atinente à boa fé negocial entre as partes [princípio inerente a toda a negociação conducente à celebração de qualquer contrato] e a eventual confiança e amizade entre elas –, assume apenas uma função complementar da que a autora efetivamente alegou na petição inicial.
Por se tratar de matéria de facto complementar, podia o tribunal a quo, quanto ao que deu como provado no facto nº 11, e pode agora esta Relação, no que diz respeito ao aditamento pretendido, ter em consideração tais factos, desde que os mesmos resultem da instrução da causa [particularmente da prova produzida em julgamento] e as partes [no caso, de modo particular, as rés, ora recorridas] tenham tido a possibilidade de se pronunciar quanto a eles. No caso, a recorrente sustenta que o aditamento que pretende ver acolhido nesta 2ª instância radica na prova produzida em julgamento [logo, resulta da instrução da causa]. E das atas das sessões da audiência final que tiveram lugar nos dias 16.10.2024, 08.11.2024 e 20.11.2024 resulta inequivocamente que ambas as partes aí estiveram representadas pelos seus ilustres mandatários. Não há, assim, dúvida que as rés, através dos seus mandatários, tiveram oportunidade de, ali, incluindo nas alegações orais finais, se pronunciarem sobre tal matéria, pelo que não se verifica qualquer impedimento a que a mesma possa ser tida em conta neste acórdão, desde que a mesma resulte da prova ali produzida.
É, pois, o que importa analisar.

Antes de avançarmos, importa recordar que o poder de reapreciação da prova pelos tribunais da Relação, quando assenta, no todo ou em parte, em depoimentos/declarações gravados [como acontece no caso em apreço], não tem hoje o alcance restrito, quase residual, que teve no passado, em que se sustentava que a 2ª Instância não podia procurar uma nova convicção e que devia limitar-se, apenas e só, a aferir se a do julgador a quo, vertida nos factos provados e não provados e na fundamentação desse seu juízo valorativo, tinha suporte razoável no que a gravação, em conjugação com os demais elementos probatórios dos autos, permitiam percecionar. Pelo contrário, atualmente impera uma conceção mais ampla de tal poder que, embora reconheça que a gravação áudio ou vídeo dos depoimentos e declarações [ainda assim, mais no primeiro caso do que no segundo] não consegue traduzir tudo quanto pôde ser percecionado pelo julgador da 1ª instância, designadamente, o modo como os depoimentos/declarações foram prestados, as hesitações que os acompanharam, as reações perante as objeções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, e que existem aspetos comportamentais ou reações dos depoentes que apenas são percecionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia, entende, ainda assim, que os tribunais da Relação têm a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância, devendo proceder à audição dos depoimentos e fazer apelo às regras da experiência, como efetiva garantia de um segundo grau de jurisdição.
Por isso, quando, ao reapreciar a prova e valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção a que também está sujeito, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, o tribunal da Relação deve proceder à modificação da decisão, fazendo jus ao reforço dos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um efetivo segundo grau de jurisdição [neste sentido, i. a., Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª ed. atualiz., 2022, Almedina, pgs. 333-334 e Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., reimpres, 2025, Almedina, pg. 858, anotação 5 (relativamente ao art. 712º nº 1 do CPC na versão anterior a 2013, mas válidos para o atual art. 662º nº 1 do CPC, ainda, Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., 2008, pgs. 213-218 e Remédio Marques, in A Ação Declarativa à Luz do Código Revisto, 3ª ed., 2011, pgs. 638-646); na jurisprudência, entre muitos outros, Acórdãos do STJ de 27.02.2024, proc. 7997/20.2T8SNT.L1.S2, de 17.10.2023, proc. 2154/07.6TBPVZ.P2.S1, de 28.11.2023, proc. 2898/17.4T8CSC.L1.S1, de 12.10.2023, proc. 1358/19.3T8PTM.E2.S1 e de 10.03.2022, proc. 6640/12.3TBMAI.P2.S2, todos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj].
A autora recorrente chama à colação os testemunhos prestados por AA [que era gerente da autora à data dos factos] e BB [que era gerente da 1ª ré também à data dos factos].
Procedemos à audição dos respetivos depoimentos gravados.
A testemunha AA referiu que a autora tem uma relação comercial com a segunda ré já há muitos anos, há mais de 30 anos [minutos 7,05 a 7,50 do registo do seu depoimento] e que já lhe comprou mais de 4/5/6/7/10 milhões de euros – presume-se que em máquinas, acrescenta-se agora – e que nunca houve problemas [minutos 42,29 a 42,40].
Por sua vez, a testemunha BB disse que sim à pergunta do ilustre mandatário da autora que a questionou se «já havia uma relação comercial entre a B... e a C... relativamente antiga com a A...»; perguntado pelo mesmo mandatário «se o questionar se existia até uma confiança e um tratamento privilegiado entre estas empresas», respondeu que ele e a testemunha AA eram amigos; e se «havia confiança entre ambos», respondeu, de modo algo reticente, que sim [minutos 2,50 a 3,10 do primeiro registo do seu depoimento]. Mais adiante, noutro segmento do registo do seu testemunho [logo na parte inicial do que se inicia às 12,08h], referiu que o AA quebrou a confiança da C... porque em pagamentos anteriores atrasou-se bastante e que a partir daí a C... pediu sempre pré-pagamento, inclusive de peças e que, por isso, no que diz respeito à máquina dos autos, ele [a autora] teve que pagar tudo antecipado.
Perante esta prova impõem-se as seguintes conclusões, no que concerne ao que a recorrente pretende:
Em primeiro lugar, que a mesma não consente que se considere que, à data do negócio em causa nos autos, existisse uma relação de «elevada» confiança, como aquela pretende, bastando atentar no que disse a testemunha BB no segmento do seu depoimento que teve início às 12,08h, atrás transcrito. Pelo que disse esta testemunha, o ex-gerente da autora, o referido AA, havia quebrado a confiança da segunda ré com atrasos em pagamentos relativos a anteriores negócios, o que determinou que a autora tivesse passado a pagar tudo antecipadamente.
Em segundo lugar, que a simples e conclusiva menção, por parte da testemunha BB, de que ele e o AA eram amigos [este último, nos segmentos do seu depoimento indicados no corpo das alegações, não referiu que fosse amigo daquele], sem que tal afirmação tivesse sido minimamente concretizada com a indicação de atos que a demonstrassem [por ex., se conviviam um com o outro regularmente, se eram visitas das casa de habitação de um e de outro, se tinham passatempos ou atividades em comum ou em que ambos participassem, etc.], não é suficiente para que possamos dar como provada a pretendida relação de amizade entre ambos à data das negociações que culminaram com a celebração do contrato relativo à máquina em questão nos autos, tanto mais que aquela afirmação do BB não permite sequer aferir se a expressão que utilizou - «éramos amigos» -, ante os termos em que a pergunta lhe foi feita, se reportou ao momento das negociações atinentes à aquisição da dita máquina, se a período anterior, sendo certo que, num passado relativamente recente, mas anterior ao negócio dos autos, houve a tal quebra de confiança da segunda ré relativamente à autora e ao seu então gerente a que atrás se fez alusão.
Em terceiro lugar, quanto ao tempo de duração da relação de confiança que a recorrente pretende superior a 30 anos [e com um histórico de vários negócios entre as partes], entendemos que a fugaz referência, por parte da testemunha AA, a tal período de duração, também não permite que se tenha tal afirmação como certa e inequívoca, na medida em que nada disse acerca de quando se concretizou a primeira transação entre as partes dos autos [nem o que abrangeu], nem se houve transações regulares entre elas ou se estas foram esporádicas, sendo, pelo menos, certo que, há alguns anos [em 2014, mais concretamente], a autora adquiriu uma máquina industrial a uma empresa chinesa, como alegou/confessou nos arts. 65 e 66 da petição inicial. É verdade que aquela testemunha também disse que a autora já comprou à segunda ré materiais que importaram em vários milhões de euros [aludiu a mais de 10 milhões], mas, mais uma vez, estamos perante afirmação desgarrada e não confirmada por outros elementos que a sustentem, designadamente a documentação de algumas dessas alegadas compras ou, no mínimo, que outras testemunhas se tivessem pronunciado sobre o assunto, o que parece não ter acontecido [pelo menos a recorrente não as indicou na motivação nem nas conclusões do seu recurso].
Perante tudo isto e à falta de outros meios de prova [que a recorrente não indicou], entendemos que nada há que aditar ao facto provado nº 11, o qual, por isso, se mantém nos precisos termos fixados na sentença recorrida e descritos no ponto III deste acórdão.
Nesta parte, o recurso interposto pela autora improcede.

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1.2. Anulabilidade do contrato por erro sobre o objeto do negócio e culpa excludente da autora.

A autora recorrente insurge-se também contra a solução jurídica declarada na sentença recorrida, defendendo que a ação devia/deve ser julgada procedente e o contrato em apreço anulado por erro-vício sobre o objeto do negócio, por não haver culpa da sua parte que exclua tal efeito.
Comecemos por uma breve súmula do que consta da fundamentação da sentença recorrida.
Começou a mesma por qualificar o contrato celebrado entre a autora e a segunda ré como de compra e venda comercial, nos termos dos arts. 2º, 13º e 463º nº 1 do CCom., não sujeito a forma especial [arts. 219º e 875º, este a contrario, do CCiv.], especificando os efeitos dele decorrentes com reporte ao que dispõe o art. 879º do CCiv.: a transmissão da propriedade da máquina para a autora; a obrigação de aquela ré proceder à entrega da máquina à autora; e a obrigação desta pagar àquela o preço acordado.
Mais classificou a relação entre as rés, descrita nos factos provados, como integradora de um contrato de mandato comercial, nos termos definidos no art. 231º do CCom. e que, por via dele, a segunda ré estava vinculada pelos atos praticados pela primeira ré, enquanto sua representante.
Quanto a estes pontos não há dissenso da recorrente relativamente ao decidido pelo tribunal a quo, nada havendo, por isso, também aqui a dizer ou a acrescentar.
Depois, a sentença abordou a questão nuclear da existência [ou não] de erro-vício sobre o objeto do negócio como causa de anulação deste, nos termos pretendidos pela autora na p. i.. Exarou-se a propósito que: «Ficou assente que a primeira ré assumiu, perante a autora, que a máquina objeto (do) contrato de compra e venda entre esta e a segunda ré, tinha determinadas características, que foram essenciais para a decisão de aquisição da mesma, o que era do conhecimento da primeira ré. Não tendo tal máquina essas mesmas características, estamos perante uma situação de vício de vontade, no caso concreto, o erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objeto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247.º (artigo 251º do C. Civil, uma vez que não ficou assente que tivesse havido dolo da primeira ré).».
De acordo com Manuel de Andrade [in Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 7ª reimp., 1987, Almedina, pg. 233], «[o] erro-vício consiste na ignorância (falta de representação exata) ou numa falsa ideia (representação inexata), por parte do declarante, acerca de qualquer circunstância de facto ou de direito que foi decisiva na formação da sua vontade, por tal maneira que se ele conhecesse o verdadeiro estado das coisas não teria querido o negócio, ou pelo menos não o teria querido nos precisos termos em que o concluiu», acrescentando que se trata «de um erro que se insinua na motivação da vontade negocial do declarante, que recai sempre nos motivos determinantes dessa vontade», podendo chamar-se-lhe «erro-motivo». Idêntica definição é dada por Mota Pinto [in Teoria Geral do Direito Civil, ed. de 1976, Coimbra Editora, pg. 386] que escreve que «[o] erro vício traduz-se numa representação inexata ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efetuar o negócio. Se estivesse esclarecido acerca dessa circunstância – se tivesse exato conhecimento da realidade – o declarante não teria realizado qualquer negócio ou não teria realizado o negócio nos termos em que o celebrou. Trata-se, pois, de um erro nos motivos determinantes da vontade (…)» [cfr ainda, no mesmo sentido, i. a., Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., 2000, Almedina, pgs. 613-616 e Carvalho Fernandes, in Teoria Geral do Direito Civil, II, 5ª ed. rev. e atualiz., 2010, Universidade Católica Editora, pgs. 368-370].
Em plena consonância com esta noção, os arts. 247º e 251º do CCiv., dispõem, respetivamente, que:
- art. 247º (Erro na declaração): “Quando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.”.
- art. 251º (Erro sobre a pessoa ou sobre o objeto do negócio): “O erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objeto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247.º.”.
Como elementos integradores da causa de pedir em que a autora estribou a sua pretensão, cabia-lhe a ela, ao abrigo do que prescreve o nº 1 do art. 342º do CCiv., a prova dos respetivos factos constitutivos, ou seja [além da celebração do contrato de compra e venda em apreço e que a primeira ré era a representante da segunda ré]:
- que a máquina que adquiriu não possui a característica/funcionalidade que o então gerente da primeira ré e também representante da segunda ré lhe havia anunciado;
- que essa concreta característica/funcionalidade era, para si, essencial/determinante para a concretização do contrato de compra e venda da máquina industrial em questão;
- e que a contraparte [no caso, o representante das rés] sabia/conhecia ou não devia ignorar que aquela característica/funcionalidade era essencial para a autora.
Nesta parte, a sentença recorrida considerou verificada a existência de uma situação de erro sobre o objeto do negócio, da previsão dos ditos arts. 251º e 247º, na medida em que se mostra provado, além do mais, que a concreta característica da máquina, indicada na petição inicial e dada como provada no nº 8 dos factos provados, era essencial para a autora e para a concretização do negócio e que o representante das rés tinha conhecimento dessa essencialidade para aquela e para a vontade da mesma em celebrar o contrato de compra e venda.
Contudo, não decretou a anulação do contrato, chamando à colação o que dispõe o art. 570º do CCiv. e o decidido em dois arestos deste Tribunal da Relação do Porto (e desta Secção) – os acórdãos de 08.02.2022 e de 22.06.2021 [proferidos, respetivamente, nos procs. 20/20.9T8ILH.P1 e 4738/15.0T8MAI-A.P1, disponíveis in www.dgsi.pt/jtrp, sendo relatores, pela mesma ordem, Rui Moreira e Lina Castro Batista (esta aqui 2ª adjunta)], tendo o primeiro destes versado sobre contrato de compra e venda em que a adquirente peticionou a anulação do mesmo por erro sobre o objeto do negócio.
Com efeito, depois de transcrever a parte relevante do primeiro destes acórdãos, exarou-se na sentença o seguinte:
«No caso dos autos, importa recordar que, apesar das características comunicadas verbalmente pelo legal representante da primeira ré, quer pela ficha técnica, quer pelo vídeo enviado pela segunda ré, e aos quais a autora teve acesso antes de decidir comprar a máquina, era percetível que a máquina não tinha a capacidade de proceder ao tingimento de 4 fitas de forma independente umas das outras. Apesar de estarem em inglês, e tendo em conta o valor do contrato - mais de 250.000,00 € - era exigível à autora que assegurasse que a máquina tinhas as características pretendidas, o que era possível através, por exemplo, de recurso a um intérprete, o que não foi feito. A autora limitou-se a aceitar o que lhe fora transmitido verbalmente, quando, repita-se, tinha condições para perceber quais as reais características do objeto a adquirir. Assim sendo, e nos termos do artigo 570º do C. Civil, fica afastada a possibilidade de anulação do contrato e, em consequência, de devolução, pela rés, do preço pago, bem como do ressarcimento das despesas tidas com a colocação da máquina nas instalações da ré.».
Ou seja, considerou o tribunal a quo que a autora não agiu com o cuidado e a diligência que lhe eram exigíveis, pois, não obstante a errada informação que lhe havia sido prestada pelo representante das rés acerca da dita característica essencial da máquina que a autora pretendia adquirir [e que acabou por comprar], mais concretamente que permitiria uma utilização de tingimento de quatro fitas de forma autónoma e independentes umas das outras, devia a mesma, ainda assim, ter prestado atenção ao que constava do catálogo e do vídeo que a segunda ré [a vendedora] lhe forneceu antes da conclusão do negócio, dos quais resultava que a máquina, afinal, não possuía a aludida característica/funcionalidade. E concluiu que a autora agiu, assim, com culpa que, pela sua gravidade, exclui o efeito que seria a consequência legal da existência de erro sobre o objeto do negócio: a anulação do contrato.
Dispõe o nº 1 do art. 570º do CCiv. que “Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.”. Embora incluído na secção relativa à obrigação de indemnizar [Secção VIII do Capítulo III, Título I, Livro II do CCiv.] e vigorando de pleno no âmbito das responsabilidades contratual e extracontratual, vem-se entendendo que o estabelecido neste art. 570º é aplicável a outros institutos jurídicos, designadamente à anulabilidade, incluindo os casos em que esta assente em erro-vício sobre o objeto do negócio, como acontece in casu.
Pronunciou-se neste sentido o acórdão desta Relação de 08.02.2022 atrás citado [transcrevendo, em parte, fundamentação do acórdão de 22.06.2021], referindo que:
«Em qualquer caso, a conclusão pela verificação do erro exige também, na parte do declarante que por ele tenha tido a sua vontade viciada, a observação de um razoável nível de rigor e cuidado, tendentes à prevenção desse mesmo erro. Rigor e cuidado tão mais elevados quanto maior for a complexidade do negócio. É o que, no âmbito do direito empresarial anglo-saxónico se designa por ‘due dilligence’. Como se explica no Ac. deste TRP de 22/6/2021 (…) “Trata-se de um ónus do adquirente de proceder a uma apreciação, a uma auditoria à sociedade que pretende comprar, ou, nas palavras do direito anglo-saxónico, um ónus de ‘due diligence’.
Explica, a este propósito, Pinto Monteiro que “este dever de auto-obrigação obriga o potencial comprador a usar de toda a diligência para tomar conhecimento de factos que estão ao seu alcance conhecer, e também a analisar, de forma cuidada e criteriosa, a informação que lhe é disponibilizada pelo vendedor em cumprimento do dever de informação deste último.”
Sempre que o comprador não tenha usado da diligência devida ou exigível é potencialmente aplicável a estatuição do art.º 570.º do Código Civil, por se tratar de uma situação de culpa do lesado.”».
E a propósito do art. 570º do CCiv. escreveu-se no acórdão do STJ de 10.03.2022 [proc. 4738/15.0T8MAI-A.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj] que:
«Para se aplicar o regime ínsito naquele artº 570º CC é necessário que a atuação do lesado seja subjetivamente censurável em termos de culpa, não bastando assim a mera causalidade da sua conduta em relação aos danos. A atuação culposa do lesado que contribui para os danos não corresponde, porém, a um ato ilícito, mas apenas ao desrespeito de um ónus jurídico, pois que não existe um dever jurídico de evitar a ocorrência de danos para si próprio. Ónus jurídico esse que se traduz na necessidade, imposta pela ordem jurídica a uma pessoa, de proceder de certo modo para conseguir ou manter uma vantagem - podendo, portanto, cifrar-se em evitar a perda de um benefício antes adquirido.
Assim, portanto, para que o tribunal goze da faculdade conferida no nº 1 do artº 570º do CC, necessário se torna que o ato do lesado tenha sido uma das causas do dano, consoante os mesmos princípios da causalidade adequada aplicáveis ao agente (ver artº 563º) e que o lesado tenha contribuído com a sua culpa para o dano.».
Ora, no caso sub judice não há dúvida que a autora [através do seu legal representante] não agiu, durante as negociações relativas à aquisição da mencionada máquina industrial, com o cuidado e a diligência a que estava obrigada e que eram exigíveis a qualquer outro comprador, para mais tendo em conta que estava em causa uma máquina no valor de 265.000,00 francos suíços [que equivaliam, à data da propositura da ação, a 254.218,11€ - cfr. facto provado nº 12] e uma específica característica/funcionalidade da mesma que, para ela, era essencial. Isto porque antes da concretização do negócio, a segunda ré forneceu-lhe um catálogo com as características técnicas da máquina e respetiva performance, do qual resultava que esta não permitia a utilização de tingimento de quatro fitas de forma autónoma e independentes umas das outras, e enviou-lhe um vídeo de uma máquina com a mesma tecnologia, a funcionar [factos provados nºs 28 e 29].
Perante a entrega destes catálogo e vídeo impunha-se que a autora lesse o primeiro e visse o segundo, cuidadosamente, a fim de aferir se a máquina que pretendia adquirir possuía efetivamente a referida característica/funcionalidade que, para si, era essencial. Mas a autora ou não os leu/viu ou, se o fez, não lhes prestou a devida atenção, pois caso contrário ter-se-ia, necessariamente, apercebido que a mesma não possuía a dita característica/funcionalidade [e não colhe o argumento de aqueles catálogo e vídeo estarem em língua inglesa, pois, como se diz na sentença, «tendo em conta o valor do contrato (…) era exigível à autora que assegurasse que a máquina tinha as características pretendidas, o que era possível através, por exemplo, de recurso a um intérprete, o que não foi feito»]. E depois de os ler/ver, caso ficasse com dúvidas, pela divergência entre o que o representante das rés lhe tinha anunciado e o que resultava daqueles catálogo e vídeo, o que se lhe exigia, devido ao dever de diligência a que estava obrigada, era que contactasse a ré vendedora com vista à dissipação de tais dúvidas, de modo a que ficasse esclarecida se a máquina possuía ou não a aludida característica/funcionalidade. Mas não o fez, como resulta do facto provado nº 30. Nem sequer contactou então o gerente da primeira ré, BB, também mandatário/representante da segunda demandada, para o confrontar com aquela divergência [entre o que este lhe tida anunciado acerca da dita característica da máquina e a efetiva ausência dela no que o catálogo e o vídeo permitiam percecionar]; só o confrontou com tal divergência depois da máquina ter sido paga, montada, testada e posta a funcionar, ou seja, já depois de concluído o negócio [cfr. factos provados nºs 15 a 22, 26 e 27].
A autora, devido à sua inércia, agiu, pois, com culpa [culpa do lesado], tendo a sua conduta omissiva contribuído decisivamente para a aquisição de uma máquina que, afinal, não possuía a característica/funcionalidade que era para si essencial.
Nas conclusões das suas alegações, a autora recorrente contrapõe que o tribunal a quo ignorou as concretas circunstâncias do negócio, mais exatamente que entre as partes existia uma longa relação de confiança e até de amizade e que em todos os negócios anteriormente realizados entre elas nunca existiu qualquer problema, daí resultando, na sua ótica, que não agiu com falta de cuidado ou com insuficiente diligência e que o contrato devia/deve ser anulado por erro sobre o objeto do negócio.
Não tem razão.
Mesmo que existisse a alegada longa relação de confiança e de amizade entre as partes [o que não ficou provado], a autora não estava dispensada da observância do dever de diligência que impende sobre todos os contraentes, tanto mais que quem pretendia adquirir a máquina era ela e não se tratava de uma máquina qualquer, quer pelo seu elevado preço, quer pela especial característica/funcionalidade que era, para si, fundamental. Nem tal relação permitia que afrouxasse esse dever, para mais face ao que os ditos catálogo e vídeo permitiam que tivesse percecionado.
É verdade que o representante das rés sabia da essencialidade da referenciada característica/ funcionalidade para a autora e verdade é também que lhe garantiu que a máquina em questão a possuía, por disso estar então convencido [cfr. factos provados nºs 8 a 10 e 27], o que significa que não houve da parte dele uma atuação dolosa, no sentido de ter tido intenção de induzir ou manter a autora em erro acerca dessa característica [ou até que tivesse previsto estes resultados e se tivesse conformado com a sua verificação]. E sendo inequívoco que, no âmbito da boa fé, prevista nos arts. 227º nº 1 do CCiv., que deve nortear as partes durante as negociações com vista à celebração de qualquer contrato, estava aquele representante das demandadas obrigado a prestar à autora [mais concretamente ao representante desta] informações corretas sobre a dita máquina [dever de informação este compreendido nos deveres acessórios que lhe competiam], também se apresenta inquestionável que a autora, ao abrigo do mesmo princípio da boa fé, estava obrigada a levar a cabo as adequadas diligências para aferir da correção das informações prestadas por aquele e se a máquina tinha ou não a anunciada característica. Não podia era, pura e simplesmente, cruzar os braços, acreditar cegamente naquelas informações e omitir toda e qualquer diligência da sua parte com vista à comprovação das mesmas, tanto mais que estava em causa uma especificidade técnica da máquina de que aquele representante podia não ter o devido conhecimento [e que, tudo leva a concluir, não tinha mesmo] e, além disso, dispunha de elementos [os referidos catálogo e vídeo que a 2ª ré lhe forneceu] que permitiam que se inteirasse devidamente de todas as características da máquina. Por isso, se tivesse prestado a devida atenção a esses elementos informativos, ter-se-ia apercebido, por si ou mediante recurso a terceiros [nos termos atrás apontados], que aquela não tinha a característica/funcionalidade que pretendia.
Como diz João F. R. Borges Coelho na sua dissertação de mestrado [Compra e Venda de Participações Sociais: Problemas e Litígios – O Direito de Informação nas Due Diligences e a Compra e Venda de Bens Onerados e Defeituosos, in https://repositorio.ucp.pt›bitstream, pgs. 27-28], «o dever de informação não comporta apenas à verificação do requisito positivo de certos pressupostos da pessoa do vendedor, mas igualmente à verificação da ausência de requisitos negativos na pessoa do comprador. Tal aspeto deve-se ao facto de, por vezes, na dependência de cada caso em concreto, poder existir um ónus de autoinformação, devendo o comprador atuar com a diligência de que é capaz», logo acrescentando que «[t]em sido realçado um dever de diligência por parte do comprador, dever esse que deve ser proativo na busca, procura, e respetiva análise de informação relativamente ao objeto do negócio. Se é verdade que, por um lado, o comprador deve ser crítico na análise que faz da informação que lhe é facultada pelo vendedor, por outro lado, deve igualmente atuar no sentido de obter toda a informação que ache relevante no caso em concreto, e que esteja ao seu alcance» [idem, Jorge Sinde Monteiro, in Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, 1989, pgs. 356-358, que defende que perante a natural contraposição de visões e interesses entre o vendedor e o comprador, deve cada parte acautelar a sua posição, informando-se sobre os aspetos que são importantes para a formação da sua decisão de contratar].
A relação de confiança que existia entre os representantes da autora e das rés [que, ao que parece, face ao que disse a testemunha BB, até nem seria por aí além, por ter havido (alguma) quebra da mesma devido a atrasos da autora em pagamentos à segunda ré] não afastava nem atenuava o dever de diligência que continuava a cargo da autora. Esta, face ao que o catálogo e o vídeo lhe permitiam constatar, devia ter sido proativa e ter efetuado diligências com vista à obtenção de mais e melhor informação de modo a que ficasse esclarecida de vez sobre a existência ou não da indicada característica/funcionalidade.
Temos, por isso, como certo que, tal como decidido na sentença, a autora teve uma atuação culposa, por não ter agido com a diligência que o caso impunha, e que foi, principalmente, por causa da sua inação que acabou por adquirir uma máquina que não possuía a característica/funcionalidade que pretendia.
Por conseguinte, nos termos do art. 570º nº 1 do CCiv., mostra-se afastada a possibilidade de anulação do contrato e a produção dos efeitos daí decorrentes, peticionados pela autora.
Improcede, assim, in totum o recurso interposto pela autora.

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2. Recurso das rés.

Improcedendo, como improcede, o recurso interposto pela autora, fica prejudicado o conhecimento da ampliação do âmbito [ou do objeto] do recurso requerida pela rés, já que a sua apreciação só teria utilidade caso aquele tivesse procedido no todo ou em parte.

As custas deste recurso ficam a cargo da autora recorrente, pelo total decaimento - arts. 527º nºs 1 e 2, 607º nº 6 e 663º nº 2 do CPC.



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Síntese conclusiva:

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V. Decisão:

Nesta conformidade, os Juízes desta secção cível do tribunal da Relação do Porto acordam em:

1º) Julgar improcedente o recurso da autora, com a consequente confirmação da sentença recorrida.

2º) Julgar prejudicado o conhecimento da ampliação do âmbito do recurso requerida pelas rés.

3º) Condenar a autora nas custas deste recurso, pelo total decaimento.


Porto, 16 de setembro de 2025

Pinto dos Santos

Raquel Correia Lima

Lina Baptista