APRESENTAÇÃO A NOVO PER
MORA DO DEVEDOR
ABUSO DO DIREITO
Sumário

I - A apresentação da empresa devedora a um segundo PER, alegando [e demonstrando] que até então cumpriu o que havia sido fixado no plano do PER anterior e que o recurso a novo PER se devia a fatores alheios ao próprio plano e a alteração superveniente das circunstâncias alheias à empresa, não traduz nem é geradora do imediato incumprimento do plano do PER anterior, não determinando, por isso, a cessação da moratória e/ou do perdão constantes daquele plano, nem a consequente repristinação das dívidas originárias.
II - A al. b) do nº 1 do art. 218º, aplicável ao PER «ex vi» do nº 13 do art. 17º-F, ambos do CIRE, não pode ser interpretada no sentido de a apresentação da empresa devedora a um novo PER determinar a cessação da moratória e/ou do perdão fixados no plano do PER anterior; só a declaração de insolvência aí prevista é que leva à produção de tais efeitos.
III - A simples mora [atraso] no pagamento de uma prestação estabelecida no plano do PER não equivale a incumprimento definitivo de tal plano, não sendo suficiente para que a moratória e/ou o perdão nele fixados fiquem sem efeito e ocorra a repristinação da dívida originária; para que tal aconteça e de acordo com o que dispõe a al. a) do nº 1 do art. 218º do CIRE [aplicável «ex vi» do nº 13 do art. 17º-F], a mora tem de ser convertida em incumprimento mediante interpelação escrita, por parte do credor à devedora, para que esta cumpra, em 15 dias, aquela prestação [acrescida dos juros moratórios].
IV - O pedido de novo PER não impede, em caso de mora da devedora [ocorrida antes ou depois da entrada do requerimento inicial em tribunal], que os credores [os titulares dos créditos vencidos e não pagos], mesmo depois de proferido o despacho previsto no nº 5 do art. 17º-C, lancem mão do que estabelece a al. a) do nº 1 do citado art. 218º para converterem a mora em incumprimento, já que a tal não obsta o prescrito no nº 1 do art. 17º-E, todos do CIRE.
V - Caso tal conversão da mora em incumprimento seja feita a tempo de os respetivos efeitos poderem ser atendidos no novo PER, ou seja, em princípio, até à conversão da lista provisória do AJP em lista definitiva [nºs 5 e 6 do art. 17º-D], haverá então lugar à repristinação da(s) dívida(s) originais [quanto aos credores que tiverem procedido à conversão em incumprimento], sem as limitações decorrentes da moratória e/ou do perdão estabelecidos no plano homologado no PER anterior.
VI - Limitando-se a empresa devedora a exercer um direito que o CIRE lhe concede [apresentação a um segundo PER ao abrigo do que permite a parte final do nº 14 do art. 17º-F daquele diploma], apresenta-se evidente que a mesma não formulou um pedido desleal com o propósito de prejudicar os credores [ou, dentre estes, a recorrente], não se mostrando, igualmente, evidenciada qualquer desproporção grave entre o benefício pretendido por ela [a concessão de um novo plano de revitalização] e o sacrifício a suportar pelos credores [no caso, pela recorrente: não repristinação da dívida originária], não havendo, por isso, na sua atuação, abuso de direito na modalidade de desequilíbrio no exercício das posições jurídicas.

Texto Integral

Proc. 4730/24.3T8OAZ.P1 – 2ª Secção



Relator: Pinto dos Santos
Adjuntos: Alexandra Pelayo
Rui Moreira




* * *




Acordam nesta secção cível do tribunal da Relação do Porto:


1. Relatório:

A..., SA, com sede em ..., Santa Maria da Feira, requereu, em 12.12.2024, o presente processo especial de revitalização [abreviadamente, PER], alegando, no essencial, que:
- Em 2022, recorreu a um Processo Especial de Revitalização que correu termos sob o nº 3811/22.2T8OAZ;
- O Plano aí aprovado e homologado tem sido pontualmente cumprido, incluindo as obrigações perante a Autoridade Tributária, a Segurança Social, trabalhadores e fornecedores;
- O referido processo de revitalização foi acompanhado de uma estratégia de redução de custos, que passou pela subcontratação da fase de fundição, o que permite a diminuição do custo de produção de banheiras, uma gestão mais flexível de stocks e uma poupança significativa ao nível do investimento de manutenção dos equipamentos;
- Apesar de fazer tudo ao seu alcance para garantir a sua solvabilidade, enfrenta, atualmente, dificuldades para cumprir as suas obrigações perante os credores, essencialmente bancários, situação que resulta, principalmente, do ciclo de subida das taxas de juro, que provocaram alterações significativas no montante a ser pago à Banca, bastante superiores à capacidade de geração de cash flow da requerente;
- Nos últimos dois anos, a empresa tem enfrentado um aumento significativo dos seus encargos financeiros, por via da subida da taxa Euribor a 12 meses, acrescida de um aumento do spread, face ao que era praticado até ao início de março de 2022;
- Estas razões foram responsáveis por resultados positivos com fraca expressão e obrigaram a que os meios libertos tivessem, quase integralmente, como destino o pagamento a credores, em especial à banca e fornecedores;
- Pretende manter os postos de trabalho atuais e a atualização anual dos salários, bem como continuar o investimento na melhoria da qualidade dos produtos finais e dos serviços oferecidos, o que não será possível sem um plano que lhe permita não só consolidar e fasear o pagamento da dívida negociada, mas também reforçar as suas condições de competitividade;
- Apesar de se encontrar, comprovadamente, em situação económica difícil, possui ativos e meios que permitem afirmar, com segurança, que é suscetível de recuperação, mantém o normal exercício da sua atividade, tem uma estrutura empresarial com meios humanos e técnicos que lhe permitem continuar a atividade, reunindo as condições necessárias para a sua recuperação;
- No ramo de negócio em que está inserida, tem um profundo conhecimento do mercado, com mais de 60 anos de experiência, pelo que está convicta que conseguirá cimentar a liderança no mercado;
- A sua recuperação não só é viável, como será certamente bem conseguida, através do processo de recuperação que, por esta via, pretende iniciar, sendo imprescindível que se obtenha um acordo de credores que permita não só consolidar e fasear o pagamento da dívida negociada, mas também reforçar as suas condições de competitividade;
- Só através da implementação de uma medida de reestruturação e consolidação financeira da sociedade, que passe pelo acordo de pagamento das suas dívidas, será possível a sua recuperação financeira, a manutenção da sua atividade e dos seus postos de trabalho;
- Pretende evitar a situação de insolvência, tanto mais que esta seria de incomparável maior onerosidade para os credores do que a aplicação das medidas previstas no Plano de Recuperação que apresenta.

Em 13.01.2025, o Sr. Administrador Judicial Provisório [abreviadamente, AJP] nomeado apresentou a lista provisória de credores prevista nos nºs 3 e 4 do art. 17º-D do CIRE, da qual constavam, além de outros, dois créditos da Banco 1..., SA [abreviadamente, Banco 1...] titulados pelos contratos nºs ...72....6....36-6, livrança n.º ...24 – crédito garantido por hipoteca –, no montante de 453.275,69€, sendo 408.696,83€ de capital e 44.578,86€ de juros e ...72....6....61-8, livrança n.º ...40 – crédito comum –, no montante de 47.184,70€, sendo 44.717,60€ de capital e 2.467,10€ de juros.

Esta lista e estes créditos foram impugnados pela requerente devedora que requereu que:
- o crédito relativo ao contrato n.º ...72....6....61-8, livrança n.º ...40, deve ser corrigido para 43.624,83€ a título de capital, acrescido de juros de mora calculados desde a data de entrada da presente ação;
- o crédito relativo ao contrato n.º ...72....6....36-6, livrança n.º ...24 deve ser corrigido para 383.172,53€ a título de capital, acrescido de juros de mora calculados desde a data de entrada da presente ação.
Invocou que os créditos da Banco 1... já havia sido reconhecidos no plano de recuperação homologado em 16.03.2023, no âmbito de um PER que a requerente havia requerido em 04.11.2022, que tal plano estava a ser pontualmente cumprido à data em que deu entrada do presente PER e que os valores de tais créditos então em dívida [à data do requerimento que está na origem deste segundo PER] totalizavam os valores indicados na impugnação. Mais acrescentou que quanto às livranças em questão não houve incumprimento nem qualquer interpelação para pagamento.

A credora Banco 1... respondeu, alegando, basicamente, que a apresentação a segundo PER terá de ditar o imediato incumprimento do primeiro plano, com todas as legais consequências, sob pena de os credores ficarem prejudicados, quer por, em virtude dos deveres que decorrem da nomeação de AJP no segundo PER, não poderem interpelar a devedora nos termos dos arts. 260º e 218º do CIRE, quanto ao incumprimento do primeiro PER, quer por não ser concebível a existência de dois planos de recuperação em execução simultânea. Mais referiu que a apresentação a segundo PER dias antes de se verificar a primeira prestação vencida e não paga traduz-se em violação do princípio da segurança jurídica e manifesto abuso de direito.
Pugnou, por isso, pela improcedência da impugnação da devedora e consequente manutenção do crédito da Banco 1... nos exatos termos reconhecidos.

Por despacho de 08.02.2025, o tribunal a quo decidiu assim a referida impugnação:
«Veio a insolvente impugnar o crédito reconhecido à Banco 1..., S.A., referindo que não se poderá ter como incumprido o primeiro PER.
Pugnou a Banco 1..., S.A. pelo indeferimento da impugnação.
A questão a decidir prende-se com saber se se deve ou não ter como incumprido o primeiro PER.
Prevê o art. 218º do CIRE, além do mais, que a moratória ou o perdão previstos no plano ficam sem efeito quanto a crédito relativamente ao qual o devedor se constitua em mora, se a prestação, acrescida dos juros moratórios, não for cumprida no prazo de 15 dias após interpelação escrita pelo credor.
Ao contrário do referido pela Banco 1..., S.A., a decisão a que se refere o n.º 5 do art. 17º-C do CIRE apenas obsta à instauração de quaisquer ações executivas para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as ações executivas em curso com idêntica finalidade – cfr. art. 17º-E n.º 1 do CIRE.
Daqui decorre que os credores não ficam inibidos de instaurar e/ou fazer prosseguir ações declarativas contra o devedor, e, por maioria de razão, nada os impede de lançar mão de notificação judicial avulsa para converter uma situação de mora em incumprimento definitivo.
In casu, não se mostra demonstrada a realização de qualquer interpelação capaz de converter a situação de mora em que se encontra a devedora em incumprimento.
E, nessa medida, não se poderá considerar que a moratória e/ou perdão previsto no primeiro PER ficaram sem efeito.
Por outro lado, conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24-10-2019, Proc. 923/19.3T8AVR-A.P1, citado pela devedora, disponível in www.dgsi.pt: “I - O facto de a devedora se apresentar a requer um novo PER não significa a aceitação que se encontra impossibilitada de cumprir as obrigações assumidas nomeadamente nos termos que foram aprovadas no PER anterior. II - O legislador não faz corresponder ao facto de se requerer um segundo PER qualquer consequência em termos da cessação dos efeitos do plano de recuperação aprovado em PER anterior, e que se encontrem ainda em vigor. III - Não pode, com fundamento no disposto no artº 218º, nº 1-b) do CIRE aplicável ao processo de revitalização por força do disposto no nº 12 do artº 17º-F, do CIRE, considerar-se que as moratórias ou perdões aprovadas e homologadas no âmbito de um primeiro PER ficam sem efeito pelo facto de a devedora se apresentar a requer um novo PER. IV - Mantendo-se em vigor os efeitos do plano de recuperação anteriormente aprovado e homologado, os créditos reclamados no segundo PER deverão considerar as eventuais reduções ali aprovadas.”
Atento o suprarreferido, não se poderá, de igual modo, considerar que a devedora age em abuso de direito, considerando, ademais, que a apresentação a novo PER não significa que será aprovado e/ou homologado novo plano.
Pelo exposto, é de julgar parcialmente procedente a reclamação apresentada, devendo o crédito da Banco 1..., S.A. ser calculado em conformidade com o previsto no PER aprovado no âmbito do Proc. 3811/22.2T8OAZ, ascendendo o capital em dívida - por referência à livrança ...40 - a € 43.624,83 e o capital em dívida - por referência à livrança ...24 - a € 383.172,48, a que acrescerão os juros calculados nos termos aí previstos, descontando o valor entretanto pago pela devedora.
Notifique, sendo a Banco 1..., S.A. para indicar o valor em dívida em conformidade com o ora decidido.».

Notificada, a credora Banco 1... interpôs recurso de tal despacho, o qual, contudo, não foi admitido pelo tribunal a quo [por despacho de 03.03.2025], que considerou que o referido despacho só é impugnável com o recurso da decisão final.

Os autos prosseguiram e, em 31.03.2025, foi apresentado o plano de revitalização [versão final] que foi depois objeto de votação pelos credores, tendo sido obtido o seguinte resultado [cfr. requerimento apresentado pelo AJP]:
− Valor dos Créditos da Lista Definitiva de Créditos (nº 4, Art.º 17º-F): 3.428.476,55 €
Direitos de votos atribuídos: 3.428.476,55 €
− Valores de créditos expressos: 3.428.312,57€
− Quórum/Percentagem votos expressos (por referência aos créditos reclamados): 99,995 %
Categoria de Credores garantidos
− Percentagem de Votos a favor 85,40%
− Percentagem de Votos contra 14,60%
Categoria de Credores não garantidos
− Percentagem de Votos a favor 65,01%
− Percentagem de Votos contra 34,99%
Categoria de Fornecedores e outros credores
− Percentagem de Votos a favor 0,00 %
− Percentagem de Votos contra 0,00 %.

Depois de junto pelo AJP o parecer a que alude o nº 6 do art. 17º-F do CIRE, foi, em 12.05.2025, proferida sentença que homologou o plano especial de revitalização.

Por requerimento de 15.05.2025, veio a Banco 1... dar conta que «na sequência do entendimento consignado no despacho proferido a 08-02-2025, bem como do despacho de não admissão do recurso proferido a 03-03-2025, a Caixa Económica Montepio Geral procedeu à interpelação da Devedora nos termos e para os efeitos dos artigos 260.º e 218.º ambos do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, quanto ao primeiro PER (…)» e que «[d]ecorrido o prazo de 15 dias concedido na referida carta, a Devedora não procedeu ao pagamento do valor em dívida, pelo que dúvidas não restam de que o primeiro PER se encontra definitivamente incumprido, com a consequente repristinação da dívida».

Depois, a mesma credora Banco 1... interpôs o presente recurso de apelação, cujas alegações culminou com as seguintes conclusões:
«1. Vem o presente recurso interposto do despacho de homologação do plano, bem como do despacho interlocutório proferido a 08/02/2025.
2. A 28 de Fevereiro de 2025 o Banco 1... recorreu do despacho proferido a 08 de Fevereiro de 2025.
3. Por despacho proferido a 03 de Março de 2025, o referido recurso não foi admitido.
4. O Tribunal a quo fez consignar: “De igual modo, conclui o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 08-09-2016, Proc. 39/16.4T8EVR-B.E1, in www.dgsi.pt, que “o despacho, proferido no processo especial de revitalização, que decide a impugnação da lista provisória de créditos apenas é impugnável com o recurso da decisão final (a referida no art.º 17.º-F. n.º 5, CIRE).” - sublinhado nosso. Pelo exposto, não sendo legalmente admissível recurso de apelação autónomo da decisão proferida sob a refª 137128186, nos termos previstos nos arts. 641º n.º 2 al. a) e 644º do CPC, não se admite o recurso interposto sob a refª 51542091.”
5. Por conseguinte, e (i) porque o Banco 1... considera que a questão suscitada no referido recurso ainda carece de apreciação e (ii) o Tribunal a quo entendeu que o despacho que decidiu a impugnação da lista provisória de créditos apenas é impugnável com o recurso da decisão final interpõe o presente recurso de apelação.
A. DO RECURSO DE APELAÇÃO (DEFERIDA) DO DESPACHO INTERLOCUTÓRIO QUE JULGOU PROCEDENTE A IMPUGNAÇÃO DA LISTA PROVISÓRIA APRESENTADA PELA DEVEDORA
6. Vem o presente recurso interposto do despacho interlocutório proferido a 08 de Fevereiro de 2025, o qual, consignou: “(…)” [por desnecessidade, não se transcreve o despacho que constava desta conclusão 6, uma vez que o mesmo já está atrás transcrito]
7. Salvo o devido respeito, não poderá o Recorrente conformar-se com a decisão consignada no despacho recorrido.
Porquanto,
8. A Devedora impugnou o crédito reconhecido à Banco 1... alegando: (i) Que o primeiro PER estaria a ser cumprido aquando da apresentação a segundo PER, pelo que não poderia ter ocorrido a repristinação da dívida; (ii) Que a Banco 1... reclamou com base em livranças, sem que se tivesse verificado qualquer incumprimento.
9. O que carece de fundamento fático e jurídico, conforme se demonstrará.
10. A fixação do crédito na lista provisória não faz caso julgado fora do processo, podendo os credores lançar mão de ação de declarativa com vista à discussão da existência do respetivo crédito, mas o certo é que a Devedora não pretende aplicar o presente plano à dívida repristinada, mas sim aos montantes que resultam da implementação do primeiro plano incumprido, o que não se pode aceitar.
11. A Devedora alegou que o primeiro PER se encontrava a ser cumprido aquando da apresentação a segundo PER e que, por isso, os créditos teriam de ser reclamados com base na dívida que resultou do primeiro plano aprovado e homologado.
12. Ora, a Banco 1... não pode concordar com o referido entendimento, ainda que o mesmo encontre o suporte jurisprudencial indicado pela Devedora na impugnação, o qual, não sendo de fixação de jurisprudência, não é de aplicação obrigatória.
13. A primeira prestação vencida e não paga relativa ao primeiro plano é de 15/12/2024.
14. Seguia-se a interpelação da Devedora, para regularizar o incumprimento, nos termos conjugados dos artigos 260.º e 218.º n.º 1, b), ambos do CIRE, sob pena de, não o fazendo, e sem qualquer outro aviso, ser considerado incumprido definitivamente o acordo, com as legais consequências.
15. Sucede que a 12/12/2024, e após ter cumprido pouco mais que o período de carência de 12 meses de capital, a Devedora apresentou-se a segundo PER.
16. Conforme resulta da petição inicial, bem como da impugnação à lista provisória apresentada, nomeadamente do artigo 7.º, a Devedora confessa que se encontra impossibilitada de cumprir o primeiro plano aprovado e homologado, confissão essa que se aceita para não mais ser retirada.
17. Ora, a apresentação a segundo PER, com a confissão por parte da Devedora que se encontra impossibilitada de cumprir o plano aprovado e homologado, terá de ditar o imediato incumprimento do primeiro plano, sem necessidade de interpelação nos termos e para os efeitos, dos artigos 260.º e 218.º ambos do CIRE.
18. A admitir-se que os credores terão de lançar mão da referida interpelação, tal como o despacho recorrido determina, passaríamos a ter uma Devedora com dois PER’s em simultâneo.
19. O que também não é concebível dados os constrangimentos e confusões factuais e legais que tal prática iria determinar, tais como: O que acontece se o Credor interpelar nos referidos termos e a empresa não proceder à liquidação dos valores em dívida? Damos o primeiro plano como incumprido, no entanto, já está em curso um segundo plano e o crédito do Credor já foi reconhecido sem a repristinação da dívida, o que não se admite. E se a Devedora liquidar os montantes em mora? O primeiro PER continua a ser cumprido, não obstante se encontrar em curso um segundo PER? É inaceitável!
20. O PER pressupõe colaboração dos credores com os devedores no sentido de se encontrar uma solução viável para os devedores.
21. Contudo, como qualquer outro acordo, implica um compromisso – o cumprimento dos planos elaborados pelos Devedores.
22. Quando incumpridos, os Devedores procedem à interpelação dos Devedores para procederem à sua regularização, sob pena dos termos do plano ficarem sem efeito, com a consequente repristinação da dívida. Esta é a “garantia” dos credores.
23. Ora, a referida consequência de incumprimento dos planos não pode ser contornada com a apresentação a segundo PER dias antes de se verificar a primeira prestação vencida e não paga, sob pena de violação do princípio da segurança jurídica e manifesto abuso de direito!
24. No caso em concreto estamos perante abuso de direito na modalidade de desequilíbrio no exercício de posições jurídicas - o exercício de um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objetiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício.
25. Tal seria altamente penalizador para os credores - que já tiveram de implementar um perdão de dívida resultante da homologação do primeiro plano e seguiriam para negociações para implementar perdão sob perdão.
26. O Tribunal “a quo” entendeu a este propósito que “não se poderá, de igual modo, considerar que a devedora age em abuso de direito, considerando, ademais, que a apresentação a novo PER não significa que será aprovado e/ou homologado novo plano.
27. É verdade que naquele momento não sabíamos qual o desfecho do PER, tal como não sabemos agora, pois a decisão de homologação ainda não transitou em julgado!
28. Não sendo aprovado ou sendo aprovado e não homologado, a consolidação neste segundo PER da dívida resultante da implementação do primeiro plano seria inócua.
29. Mas e se for aprovado e homologado? Tal como veio a acontecer, não obstante a decisão de homologação ainda não se encontrar aprovado e homologado. Neste caso o Credor fica de pés e mãos atados!
30. A admitir-se tal prática, deixaríamos de ter planos incumpridos, pois as empresas, perante o incumprimento iminente, e até antes do decurso dos 2 anos da homologação do PER anterior, apresentar-se-iam a segundo PER, alegando de forma vaga e sem fazer prova, tal como se verificou nos presentes autos, fatores alheios ao próprio plano e alteração superveniente é alheia à empresa, nos termos do n.º 13, do art. 17º-F, do CIRE.
31. Mais, a referida estratégia permitiria consolidar as dívidas que resultaram da implementação do primeiro plano, afastando a consequência do incumprimento legalmente prevista – a repristinação das dívidas.
32. Perante as dificuldades sentidas, a Devedora ou assume a sua situação de insolvência ou apresenta uma solução financeiramente viável, assumindo, contudo, as consequências do incumprimento do primeiro plano aprovado e homologado.
33. Não pode cumprir períodos de carência e após os mesmos apresentar-se a novo PER, com o anterior ainda a ser cumprido, e com isto ir consolidando dívidas, passando as mesmas a ser cada vez menores.
34. Tal prática violaria o princípio da segurança jurídica e constituiria manifesto abuso de direito, conforme supra alegado.
35. Para além de que a viabilidade da empresa resultaria de perdões consecutivos de dívida suportados pelos credores, nomeadamente instituições bancárias, ao invés de resultar de estratégias financeiras capazes de gerar rendimento e lucro, como uma empresa viável deve gerar!
36. Acresce que, conforme resulta da petição inicial, bem como da impugnação apresentada, cujo artigo 7.º, a Devedora confessa que se encontra impossibilitada de cumprir o plano aprovado e homologado, confissão essa que se aceita para não mais ser retirada.
37. Face ao exposto, a Banco 1... procedeu à repristinação da dívida, tendo considerado o valor facial das livranças, com cálculo de juros 4% e imposto de selo sobre juros vencidos, imputando valores pagos no âmbito do primeiro PER, conforme notas de débito juntas com a resposta à impugnação apresentada.
38. Acresce que, ao contrário do que a Devedora alegou em sede de impugnação, a Banco 1... procedeu à interpelação da Devedora e resolução dos contratos no âmbito dos quais foram entregues as livranças reclamadas.
39. De igual modo, procedeu ao envio de cartas de novação, tudo conforme documentos juntos com a resposta à impugnação apresentada a 03/02/2025 e 04/02/2025.
40. Acresce que, e ao contrário do que a Devedora quer fazer crer, tais livranças foram já reclamadas no primeiro PER, a Devedora não as impugnou e consequentemente a dívida foi reconhecida.
41. O perdão contemplado no primeiro plano partiu dos valores contemplados nas referidas livranças, pelo que não se compreende o recurso a este argumento nesta fase.
42. Face ao exposto impõe-se concluir que os créditos da Banco 1... foram bem reclamados e reconhecidos, pelo que se requer a revogação do despacho recorrido, na parte relativa ao crédito da Recorrente, e a sua substituição por outro que julgue improcedente a impugnação de créditos apresentada pela Devedora, mantendo-se o crédito da Recorrente nos termos reclamados e reconhecidos pelo Sr. Administrador Judicial Provisório.
Caso assim não se entenda e sem prescindir,
43. A admitir-se, tal como o Tribunal “a quo” defende que “os credores não ficam inibidos de instaurar e/ou fazer prosseguir ações declarativas contra o devedor, e, por maioria de razão, nada os impede de lançar mão de notificação judicial avulsa para converter uma situação de mora em incumprimento definitivo. In casu, não se mostra demonstrada a realização de qualquer interpelação capaz de converter a situação de mora em que se encontra a devedora em incumprimento. E, nessa medida, não se poderá considerar que a moratória e/ou perdão previsto no primeiro PER ficaram sem efeito.” estamos a admitir que a Devedora está já em mora quanto ao primeiro plano e que o Credor terá de lançar mão da interpelação nos termos e para os efeitos dos art. 260.º e 218.º do CIRE.
44. A ser assim, e porque a empresa poderá não regularizar a mora no prazo legal de que dispõe, sempre teriam de ser reconhecidos: (i)Os valores atualmente em dívida resultantes da implementação do primeiro plano como créditos comuns; (ii) A diferença entre a dívida resultante da implementação do primeiro plano e aquela que resultar da repristinação da dívida, como créditos comuns sob condição (da não regularização da mora após interpelação nos termos e para os efeitos dos art. 260.º e 218.º, do CIRE).
45. A entender-se que o primeiro plano não pode ser considerado imediatamente incumprido com a apresentação a segundo PER e confissão da incapacidade de cumprir o primeiro, o que só por mera cautela de patrocínio se admite, e porque este segundo plano pode ser homologado, esta seria a única solução que salvaguardaria os interesses dos credores! Pois já não estariam em tempo de apresentar reclamação de créditos com a repristinação da dívida ou impugnar a lista provisória!
Caso assim não se entenda e ainda sem prescindir,
46. Conforme se retira de decisão recorrida, a Banco 1... não podia repristinar a dívida porquanto não havia procedido à interpelação da Devedora nos termos e para os efeitos do disposto no art. 218.º e 260.º, do CIRE.
47. Apesar de se discordar da decisão recorrida, considerando o referido entendimento, a Banco 1... procedeu à interpelação da Devedora nos termos e para os referidos efeitos.
48. Conforme resulta provado dos documentos juntos aos autos por requerimento apresentado a 15 de Março de 2025, a Banco 1..., por carta registada enviada a 25 de Março de 2025, procedeu à interpelação da Devedora, nos termos e para os efeitos do art. 218.º e 260.º, do CIRE, quanto ao primeiro PER – Proc. n.º 3811/22.2T8OAZ.
49. Sucede que, a Devedora não procedeu à regularização da mora no prazo que dispunha para o efeito, nem posteriormente.
50. Pelo que dúvidas não restam que o primeiro PER foi definitivamente incumprido.
51. Por conseguinte, e também por esta razão, impõe-se concluir pela repristinação da dívida, pelo que se requer a revogação do despacho recorrido, na parte relativa ao crédito da Recorrente, e a sua substituição por outro que julgue improcedente a impugnação de créditos apresentada pela Devedora, mantendo-se o crédito da Recorrente nos termos reclamados e reconhecidos pelo Sr. Administrador Judicial Provisório, a saber:
(i) 453 275,69€ de natureza garantida, relativos ao Contrato n.º ...72....6....36-6 - Livrança n.º ...24;
(ii) 47 184,70€ de natureza comum, relativos ao Contrato n.º ...72....6....61-8 - Livrança n.º ...40.
B – DO RECURSO DE APELAÇÃO DO DESPACHO DE HOMOLOGAÇÃO
52. Vem o presente recurso interposto da sentença de homologação do plano proferido pelo douto Tribunal a quo, a fls. do processo, na parte em que consignou:
“Veio o Sr. Administrador Judicial Provisório juntar aos autos o mapa de votação do plano, daí resultando que:
− Valor dos Créditos da Lista Definitiva de Créditos (nº 4, Art.º 17º-F): 3.428.476,55 €
− Direitos de votos atribuídos: 3.428.476,55 €
− Valores de créditos expressos: 3.428.312,57€
− Quórum/Percentagem votos expressos (por referência aos créditos reclamados): 99,995 %
− Categoria de Credores garantidos
− Percentagem de Votos a favor 85,40%
− Percentagem de Votos contra 14,60%
− Categoria de Credores não garantidos
− Percentagem de Votos a favor 65,01%
− Percentagem de Votos contra 34,99%
− Categoria de Fornecedores e outros credores
− Percentagem de Votos a favor 0,00 %
− Percentagem de Votos contra 0,00 %”
(…)
“Tendo em consideração o disposto no artigo 17º-F, n.º 5 do CIRE e o resultado da votação suprarreferido, concluímos pela aprovação do plano de revitalização”.
53. Salvo o devido respeito, não poderá o Recorrente conformar-se com as percentagens consignadas na sentença de homologação do plano.
54. É indiscutível que a lista provisória de credores apresentada no âmbito do PER tem como objeto a fixação de percentagens a atribuir aos créditos reclamados para efeitos de constituição de quórum deliberativo.
55. A fixação dos créditos reclamados através da apresentação da referida lista tem implicação na determinação da base de cálculo das maiorias de aprovação dos planos apresentados.
56. Ora, a Banco 1... recorreu da decisão interlocutória que decidiu julgar procedente a impugnação à lista provisória apresentada pela Devedora porquanto, a decisão que recaísse sobre a mesma iria ter interferência na fixação da percentagem a atribuir à Banco 1... na constituição de quórum deliberativo para efeitos de votação do plano apresentado, podendo tal percentagem ser determinante para a aprovação ou não aprovação do plano apresentado.
57. Tal recurso, como sabemos, não foi admitido, sendo entendimento do tribunal “a quo” que a referida decisão apenas poderia ser impugnada juntamente com a decisão final, o que se faz na presente sede.
58. O que vale por dizer que a decisão interlocutória que decidiu pela procedência da impugnação à lista provisória apresentada pela Devedora, não transitou ainda em julgado, procedendo a Banco 1... à impugnação da mesma pela presente via, juntamente com a decisão final.
59. Por conseguinte, as percentagens de voto atribuídas aos créditos da Banco 1... (e consequentemente aos restantes credores) e consequente contabilização dos votos, poderão ser alvo de alteração face ao desfecho do recurso da decisão interlocutória ora apresentado.
60. Consequentemente, as percentagens de votos a favor e contra, das categorias de créditos garantidos e comuns, consignados na sentença de homologação do plano poderão sofrer alterações, pelo que não poderá o Recorrente deixar transitar em julgado a sentença de homologação do plano, pelo que apresenta o presente recurso de apelação da decisão final que põe termo ao processo.
Termos em que deve o recurso da decisão interlocutória ser julgado procedente com a consequente revogação do despacho recorrido, na parte relativa ao crédito da Recorrente, e a sua substituição por outro que julgue improcedente a impugnação de créditos apresentada pela Devedora, mantendo-se o crédito da Recorrente nos termos reclamados e reconhecidos pelo Sr. Administrador Judicial Provisório, a saber 453 275,69€ de natureza garantida, relativos ao Contrato n.º ...72....6....36-6 - Livrança n.º ...24; 47 184,70€ de natureza comum, relativos ao Contrato n.º ...72....6....61-8 - Livrança n.º ...40.
De igual modo deverá ser julgado procedente o recurso interposto da sentença de homologação do plano devendo as percentagens de votação fixadas serem recalculadas em função da decisão a proferir quanto ao recurso da decisão interlocutória que julgou procedente a impugnação à lista provisória apresentada pela Devedora.
Assim, se fará, como sempre, inteira JUSTIÇA!»

A devedora requerente apresentou contra-alegações em que pugnou pela improcedência do recurso e consequente confirmação das decisões recorridas.
* * *


2. Questões a decidir:

Em atenção à delimitação constante das conclusões das alegações do recorrente – que fixam o thema decidendum deste recurso [arts. 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 als. a) a c) do CPC] -, as questões a apreciar e decidir [a não ser que surjam outras de conhecimento oficioso] consistem em saber:
- Relativamente ao despacho de 08.02.2025:
. Se a apresentação da devedora a novo PER implicou o imediato incumprimento do plano homologado no primeiro PER, ficando sem efeito a moratória e o perdão neste fixados;
. Se, no caso, a apresentação da devedora a novo PER é reveladora de manifesto abuso de direito;
. Se ocorreu repristinação da dívida de que a recorrente é credora de modo a ser atendida no plano deste novo PER;
- Quanto à sentença homologatória do plano de revitalização:
. Se a percentagem de votos atribuídos aos créditos da recorrente está incorreta e se tal altera a votação do plano aprovado por maioria.
* * *


3. Materialidade fáctica:

A materialidade fáctica a ter em conta é a que consta do ponto 1 (Relatório) deste acórdão.
* * *


4. Apreciação jurídica:

4.1. Se a apresentação da devedora a novo PER implicou o imediato incumprimento do plano homologado no primeiro PER, ficando sem efeito a moratória e o perdão neste fixados.
A recorrente começa por sustentar, a propósito da sua discordância relativamente ao despacho de 08.02.2025 [atrás transcrito], que a apresentação da devedora [requerente] a [este] novo PER, depois de o anterior [que havia requerido] ter terminado com a prolação de sentença homologatória do plano de revitalização que aí havia sido concretizado, implicou o imediato incumprimento do plano acabado de referenciar e, por via disso, ficaram sem efeito a moratória e o perdão nela fixados.
Adiantamos já que não lhe assiste razão.
É sabido que a decisão de homologação do plano de revitalização vincula a empresa [devedora] e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data da prolação da decisão prevista no nº 5 do artigo 17º-C – art. 17º-F nº 11 do CIRE [diploma a que nos reportaremos daqui em diante quando outra menção não foi feita].
Homologado o plano de revitalização [transitada em julgado a respetiva sentença], a devedora fica, em princípio, impedida de, nos dois anos seguintes [contados desde a data em que foi proferida a sentença homologatória do plano], requerer novo processo especial de revitalização [abreviadamente PER] – arts. 17º-F nº 14 e 17º-G nº 8.
Decorrido tal prazo e, excecionalmente, até sem que este tenha decorrido, nada impede a devedora de recorrer a um novo PER, desde que alegue e demonstre, no respetivo requerimento inicial, que executou integralmente o plano ou que o novo pedido seja motivado por fatores alheios ao próprio plano e a alteração superveniente seja alheia à devedora – art. 17º-F nº 14.
Não está aqui em causa a observância ou não do prazo previsto no nº 14 do art. 17º-F; é questão que não vem suscitada, sendo certo que, como acabado de referir, a apresentação a um segundo PER pode ter lugar antes de decorrido o prazo de dois anos ali indicado, desde que a respetiva «causa de pedir» se reporte às circunstâncias enunciadas na parte final daquele nº 14.
A devedora requerente, no requerimento que está na origem destes autos, alegou que, à data, estava a cumprir pontualmente o que havia sido acordado no plano homologado no PER anterior e que a sua apresentação a novo PER se devia a fatores alheios quer a esse plano quer à ela própria, supervenientes à homologação do mesmo.
Aliás, apesar da recorrente alegar que a devedora confessou, naquele requerimento, a impossibilidade de cumprir o referido plano e que, assim, estava já em incumprimento à data em que veio requerer este segundo PER [cfr., por ex., conclusões 16 e 36 das alegações], tal não corresponde à verdade. O que aquela ali alegou foi que à data estava a cumprir integralmente as obrigações estabelecidas no dito plano [arts. 10º a 13º do requerimento inicial], embora estivesse a suportar algumas dificuldade para continuar a cumpri-lo por causa da subida das taxas de juros e do spread decorrente da subida da taxa Euribor aplicável [arts. 14º e segs. do mesmo requerimento]. E é isso mesmo que depois volta a alegar na impugnação que, em 20.01.2025, deduziu contra a lista provisória de créditos apresentada pelo AJP [cfr., i. a., arts. 3º, 17º e 26º de tal impugnação]. Aliás, a própria recorrente, algo contraditoriamente, acaba por reconhecer que à data em que a devedora se apresentou a este novo PER ainda não havia deixado de cumprir as obrigações do plano homologado no PER anterior, pelo menos quanto à dívida de que é credora [quanto às dos outros credores nada diz], como resulta do que consta da conclusão 13 das alegações, onde consignou que a primeira prestação [do seu crédito] vencida e não paga é de 15.12.2024, posterior, portanto, à entrada do requerimento inicial deste PER em tribunal, que ocorreu em 12.12.2024.
Não estando demonstrado que em 12.12.2024 a devedora estivesse em efetivo incumprimento das obrigações a que estava vinculada no PER anterior [por homologação do respetivo plano], importa então aferir se a simples apresentação da devedora e este novo PER implicou, direta e necessariamente, como sustenta a recorrente, o incumprimento do dito plano e, por via disso, que a moratória e o perdão nele fixados tenham ficado sem efeito.
O nº 13 do art. 17º-F estabelece que é aplicável ao PER o disposto no nº 1 do art. 218º, que se reporta à execução do plano de insolvência e seus efeitos e que dispõe que «[s]alvo disposição expressa do plano de insolvência em sentido diverso, a moratória ou o perdão previstos no plano ficam sem efeito:
a) Quanto a crédito relativamente ao qual o devedor se constitua em mora, se a prestação, acrescida dos juros moratórios, não for cumprida no prazo de 15 dias após interpelação escrita pelo credor;
b) Quanto a todos os créditos se, antes de finda a execução do plano, o devedor for declarado em situação de insolvência em novo processo.».
A recorrente parece querer encontrar respaldo para a sua tese no que consta da al. b) deste preceito, interpretando a referência que aí se faz a um novo processo de insolvência como valendo também para a apresentação a um no PER.
Não tem razão.
A remissão que o nº 13 do art. 17º-F faz para o nº 1 do art. 218º é apenas para os precisos termos que constam das duas alíneas deste último, sem lugar a interpretações analógicas. A única adaptação permitida é a que se reporta ao plano de insolvência, constante do corpo do nº 1 do segundo preceito, que, no caso do PER, passa a ser lida como referindo-se ao plano neste aprovado e homologado. A al. b) do nº 1 do art. 218º refere-se apenas e tão só a um novo processo de insolvência [como sendo gerador da cessação da moratória ou do perdão previstos no plano] e não pode ser interpretada de modo a nela enquadrar a apresentação da empresa devedora a novo PER, já que este processo [o processo especial de revitalização] possui matriz, objeto e finalidade bastante distintos do processo de insolvência.
Com efeito, acompanhamos o entendimento perfilhado no Acórdão desta Relação do Porto de 24.10.2019 [proc. 923/19.3T8AVR-A.P1, disponível in www.dgsi.pt/jtrp] que considerou que “os pressupostos da insolvência e os pressupostos necessários para requerer o PER são efetivamente diversos, destinando-se o processo especial de revitalização às empresa que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, tal como o define o artº 17º-B do CIRE, ou seja, numa situação em que estando a enfrentar sérias dificuldades em cumprir pontualmente as suas obrigações, ainda são passíveis de recuperação – nº 1 do artº 17º-A do CIRE” e que, por via disso, “não tem qualquer fundamento a interpretação que as recorrentes pretendem que deve ser feita do disposto no artº 218º, nº 1-b) do CIRE quando aplicável ao processo de revitalização. A aplicação deste preceito ao plano de recuperação está hoje - depois da alteração introduzida pelo DL n.º 79/2017, de 30/06 – expressamente prevista no nº 12 do artº 17º-F, do CIRE [atualmente nº 13 deste art. 17º-F, na redação dada pela Lei nº 9/2022, de 11.01]. A aplicação daquela norma - prevista a propósito do plano de insolvência - ao plano de recuperação está feita sem qualquer referência à necessidade da sua adaptação, e de facto os termos do ali estatuído são perfeitamente passíveis de transposição para a situação do plano de recuperação aprovado em PER. Assim que nada autoriza a pretendida interpretação “adaptada” que os recorrentes pretendem que deve ser feita, e que mais não é do que a tentativa de fazer passar uma interpretação ‘contra legem’. Em conclusão, à luz do disposto no artº 218º, nº 1-b) do CIRE, aqui aplicável por força do disposto no nº 12 [ora nº 13] do artº 17º-F do mesmo diploma, só a declaração de insolvência do devedor implicará que a moratória ou o perdão previstos no plano de recuperação que haja sido aprovado e homologado fique sem efeito, não tendo a apresentação a novo PER essa consequência”.
Este entendimento encontra respaldo nos ensinamentos de Catarina Serra [in Lições de Direito da Insolvência, 3ª ed., Almedina, 2025, pgs. 620, 621 e 623] quando diz que “[p]or força do art. 218º, nº 1, dá-se, em certos termos, uma repristinação dos créditos originais. A moratória e o perdão ficam sem efeito quanto aos créditos relativamente aos quais a empresa se constituiu em mora, se a prestação, acrescida dos juros moratórios, não for cumprida no prazo de 15 dias a contar da interpelação escrita do credor e, quanto a todos os créditos, quando a empresa é declarada insolvente em novo processo” [e não também quando requer um novo PER] e, sobretudo, de Alexandre de Soveral Martins [in Um Curso de Direito da Insolvência, vol. II, 3ª ed., reimpres., Almedina, 2023, pg. 290] que expressamente refere que “no art. 218º, 1, b), apenas é referida a declaração de insolvência do devedor em novo processo. Será que pode considerar-se aplicável a mesma solução no caso de abertura de um novo PER? Parece-nos que as diferenças entre ambos os processos e suas finalidades são demasiado vastas para se poder aceitar esse caminho” [Maria do Rosário Epifânio, in Manual de Direito da Insolvência, 8ª ed., Almedina, 2022, pg. 528, tem, porém, entendimento diverso, pois defende que “o art. 218º, nº 1, al. b) também se aplica a esta hipótese” (apresentação da empresa a novo PER) e que ficam “sem efeito as moratórias e os perdões, valendo também aqui, ‘mutatis mutandis’, as mesmas razões que subjazem à ineficácia do perdão e da moratória em consequência da declaração de insolvência da empresa”, orientação que, contudo, não acompanhamos por, na nossa ótica, não ter em conta as sensíveis diferenças entre as finalidades das duas espécies processuais em questão].
Temos, pois, como certo que a apresentação da devedora a novo PER não implica o imediato incumprimento do plano homologado no primeiro PER, nem a consequente repristinação dos créditos originais, sem as moratórias e/ou os perdões ali acordados/fixados.
O recurso improcede, assim, neste segmento.

*
*


4.2. Se, no caso, a apresentação da devedora a novo PER é reveladora de manifesto abuso de direito.
Defende a recorrente que a apresentação da devedora a novo PER «dias antes de se verificar a primeira prestação vencida e não paga» configura manifesto abuso de direito na modalidade de desequilíbrio no exercício das posições jurídicas.
Também aqui não tem razão.
O art. 334º do CCiv. considera que age em abuso de direito ou que é ilegítimo o exercício de um direito «quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
A propósito deste normativo, ensina António Menezes Cordeiro [in Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas, ROA ano 2005, ano 65, vol. II, setembro 2005] que:
“I. (…) O preceito começa pela estatuição: é ilegítimo o exercício (…). A ilegitimidade tem no Direito civil, um sentido técnico: exprime, no sujeito exercente, a falta de uma específica qualidade que o habilite a agir no âmbito de certo direito. No presente caso, isso obrigaria a perguntar se o sujeito em causa, uma vez autorizado ou, a qualquer outro título, “legitimado”, já poderia exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito em causa. A resposta é, obviamente, negativa: nem ele, nem ninguém. “Ilegítimo” não está, pois, usado em sentido técnico. O legislador pretendeu dizer “é ilícito” ou “não é permitido”. Todavia, para não tomar posição quanto ao dilema (hoje ultrapassado) de saber se, no abuso, ainda há direito, optou pela fórmula ambígua da ilegitimidade.
II. De seguida, o preceito exige que o titular exceda manifestamente certos limites. A expressão liga-se aos superlativos usados por alguma doutrina, anterior ao Código Civil. Na época, lidava-se com uma construção sem base legal, de fundamentação doutrinária insegura e ainda desconhecida na jurisprudência. O uso de uma linguagem empolada visava captar o intérprete-aplicador, apresentando-se, além disso, como uma criptojustificação da proibição do abuso. Perante institutos modernos, a adjetivação enérgica não faz sentido. Além desse aspeto, temos outras dificuldades exegéticas. “Manifestamente” contrapõe-se a “ocultamente” ou “implicitamente”. Não parece defendível que se possa atentar contra a boa fé ou os bons costumes, desde que às ocultas. E também os fins económico e social do direito em jogo poderão não ser alcançados perante desvios não manifestos. Em suma: “manifestamente” deixa-nos um apelo a uma realidade de nível superior, mas que a Ciência do Direito terá de localizar, em termos objetivos.
III. Os “limites impostos pela boa fé” têm em vista a boa fé objetiva. Aparentemente, lidamos com a mesma realidade presente noutros preceitos, com relevo para os artigos 227.º/1, 239.º, 437.º/1 e 762.º/2. Teríamos, então, um apelo aos dados básicos do sistema, concretizados através de princípios mediantes: a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente. Trata-se de um dado a reter, mas que não poderemos deixar de confirmar.
IV. Os “limites impostos pelos bons costumes” remetem-nos para as regras da moral social. Também aqui é de presumir uma certa coerência sistemática: os bons costumes prefigurados no artigo 334.º equivalerão aos mesmos “bons costumes” presentes no artigo 280.º/1: regras de conduta sexual e familiar e códigos deontológicos. Mas assim sendo – e assim é – não se entende o porquê da especialização representada pelo artigo 334.º. (…)
V. Finalmente: o fim social ou económico do direito invoca uma determinada construção historicamente situada, a examinar de modo mais detido. Adiantamos que, no fundo, ela apenas apela a uma interpretação melhorada das normas, que dê valor à dimensão teleológica. Não exige a ideia de “abuso”.
VI. Fica-nos, ainda, um ponto: o da presença de um direito subjetivo. Sublinhamos, todavia, que a locução “direito” surge, aqui, numa aceção muito ampla, de modo a abranger o exercício de quaisquer posições jurídicas, incluindo as passivas: abusa do “direito” o devedor que, invocando o artigo 777.º/1, in fine, se apresenta a cumprir, na residência do credor, às quatro da manhã.”.
O mesmo Autor acrescenta depois que:
“I. A análise anterior permite concluir que o artigo 334.º não comporta uma exegese comum. Os seus diversos termos ora devem ser corrigidos pela interpretação, ora soçobram no vazio. Estamos, com efeito, perante uma disposição legal que (…) remete para o sistema e para a Ciência do Direito, confiando, ao intérprete-aplicador, a tarefa do seu adensamento. A presença de uma norma deste tipo não suscita quaisquer dúvidas ou perplexidades. Há-as, por todo o tecido do Código, num fenómeno que o Direito conhece, controla e aplica. Para o seu funcionamento, a Ciência do Direito é essencialmente convocada a intervir. O artigo 334.º faz, em suma, um apelo a uma Ciência Jurídica atualizada, constituinte e experiente.
II. Perante o fenómeno da expansão doutrinária e, sobretudo, jurisprudencial, do abuso do direito, são requeridas, por parte do intérprete-aplicador, determinadas posturas: de tipo mental e de tipo metodológico. Em primeiro lugar, deve ficar claro que lidamos com matéria jurídico-científica já experimentada, objetiva e muito séria. Não faz sentido abordá-la com aversões ou desconsiderações seja de que tipo for: ou já não haverá Ciência.
Também se torna patente que o abuso do direito não é “abuso” nem tem a ver com “direitos” em si: como adiante melhor veremos, “abuso do direito” é uma expressão consagrada para traduzir, hoje, um instituto multifacetado, internamente complexo e que prossegue, in concreto, os objetivos últimos do sistema. Batalhar com palavras ou contra elas representa pura perda de tempo. De todo o modo, o progresso registado em torno do abuso do direito poderá ser ponderado: forma cómoda e bem ilustrada para documentar os avanços da Ciência do Direito dos nossos dias.
Apesar da indeterminação dos conceitos, o abuso do direito mantém uma unidade de conjunto e uma particular coesão. Não é conveniente, nem em termos dogmáticos nem, sobretudo, por prismas práticos, esfacelar o instituto, dispersando, na base de considerados conceptuais, as suas diversas manifestações.”.
E a propósito da modalidade do desequilíbrio no exercício das posições jurídicas, invocado pela recorrente, esclarece o mesmo insigne Professor de Direito que esta “constitui um tipo extenso e residual de atuações contrárias à boa fé” e “comporta diversos subtipos; podemos apontar três:
- o exercício danoso inútil;
- dolo agit qui petit quod statim redditurus est [tradução: age com dolo aquele que pede o que deve restituir imediatamente; significado: alguém pede o que não lhe é devido ou que já devia ter devolvido, agindo de forma desleal e com o propósito de prejudicar a outra parte];
- desproporção grave entre o benefício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem.
(…) Em todas estas hipóteses, podemos considerar que o titular, exercendo embora um direito formal, fá-lo em moldes que atentam contra vetores fundamentais do sistema, com relevo para a materialidade subjacente. (…)” [a propósito desta modalidade do abuso de direito, cfr., i. a., os Acórdãos do STJ de 05.05.2015, proc. 3820/07.1TVLSB.L2.S1, disponível in juris.stj.pt/ECLI, da Relação de Coimbra de 24.09.2024, proc. 382/23.6T8FIG.C1, disponível in www.dgsi.pt/jtrc, da Relação de Lisboa de 15.06.2023, proc. 147/06.0TCSNT-B.L1-6, disponível in www.dgsi.pt/jtrl e da Relação de Guimarães de 26.01.2023, proc. 1353/20.0T8VNF.G1, disponível in www.dgsi.pt/jtrg].
Regressando ao caso sub judice.
De entre as três indicadas variáveis da modalidade [do abuso de direito] do desequilíbrio no exercício das posições jurídicas poderiam estar aqui em causa a segunda e/ou a terceira, respetivamente a formulação desleal de pedido indevido com o propósito de prejudicar a outra parte [no caso, os credores] e a desproporção grave entre o benefício do titular exercente [a empresa devedora] e o sacrifício por ele imposto a outrem [aos credores].
Porém, nenhuma destas situações se verifica no caso em apreço, como passamos a explicar.
A recorrente, neste segmento das suas alegações/conclusões, parte dos seguintes pressupostos:
- por um lado, de que o não pagamento atempado, por parte da devedora, de uma prestação do seu crédito, nos termos fixados no plano homologado no PER anterior, implica o imediato incumprimento de tal plano e a consequente repristinação do seu crédito original, sem a moratória e o perdão ali estabelecidos;
- e por outro, que ao requerer este novo PER alguns dias antes da data do vencimento [e não pagamento] daquela prestação, a devedora impediu tais incumprimento e repristinação, prejudicando-a por não poder exigir o seu crédito na totalidade neste segundo PER.
Além disso, alega que a devedora confessou o incumprimento da execução do plano, afirmação que, como já vimos no item anterior, não corresponde à verdade, quer em função do que aquela exarou no requerimento inicial, quer em face da impugnação que apresentou à lista provisória de créditos do AJP.
Ora, em parte alguma do CIRE consta que a simples mora [atraso] no pagamento de uma prestação tenha, no seu âmbito – seja na insolvência ou em processo especial de revitalização –, valor equivalente ao incumprimento definitivo, ou seja, no que para aqui interessa, que baste a mora para que a moratória e o perdão fixados no plano do PER anterior fiquem sem efeito e ocorra a repristinação da dívida originária.
Pelo contrário, o que resulta do que dispõe a al. a) do nº 1 do art. 218º, aplicável ex vi do nº 13 do art. 17º-F [ambos do CIRE], é que o incumprimento definitivo do plano homologado num PER só se verifica depois da mora ser convertida em incumprimento, só então ficando sem efeito a moratória e o perdão previstos nesse plano – segundo aquela alínea, «a moratória ou o perdão previstos no plano ficam sem efeito (…) [q]uanto a crédito relativamente ao qual o devedor se constitua em mora, se a prestação, acrescida dos juros moratórios, não for cumprida no prazo de 15 dias após interpelação escrita pelo credor» [cfr. Catarina Serra, in Lições de Direito da Insolvência, 3ª ed., Almedina, 2025, pgs. 620-621, no segmento já atrás citado e Acórdão do STJ de 14.01.2025, proc. 472/23.5T8CHV-A.G1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj, que decidiu que: “I - Os efeitos do incumprimento do plano de recuperação enunciados no artigo 218.º, n.º 1, al. a) “ex vi” do artigo 17º-F, n.º 13, ambos do CIRE – como seja a cessação dos efeitos da moratória ou do perdão de créditos – produzem-se desde que o credor interpele por escrito o devedor que se tenha constituído em mora e a prestação, acrescida dos juros moratórios, não seja cumprida no prazo de 15 dias a contar dessa interpelação. II - Compete ao credor (…), nos termos do n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, a prova de ter feito essa interpelação escrita, incluindo a prova da sua receção pelos executados (no caso, pela empresa devedora), nos termos do artigo 224.º, n.º 1, 1.ª parte, do Código Civil, dada a natureza recetícia da declaração em causa. III - Não obstante o incumprimento das obrigações decorrentes do plano de recuperação, se a credora (…) não lograr provar a efetivação de tal interpelação admonitória, a moratória e o perdão do plano de recuperação homologado não ficam sem efeito.”].
O pedido de novo PER não impede, no entanto, em caso de mora da devedora [ocorrida antes ou depois da entrada do requerimento inicial em tribunal], que os credores [os titulares dos créditos vencidos e não pagos], mesmo depois de proferido o despacho previsto no nº 5 do art. 17º-C, lancem mão do que estabelece a al. a) do nº 1 do citado art. 218º para converterem a mora em incumprimento, interpelando a devedora por escrito, já que a tal não obsta o prescrito no nº 1 do art. 17º-E que apenas impede a «instauração de quaisquer ações executivas contra a empresa para cobrança de créditos, durante um período máximo de quatro meses” [suspendendo-se também, durante o mesmo período, as ações em curso contra a empresa com idêntica finalidade], sem prejuízo do que consta do nº 4 do mesmo art. 17º-C, que aqui não releva [embora criticando a opção do legislador da Lei nº 9/2022, de 11.01, que alterou o preceito em causa, Catarina Serra, nas citadas Lições, pgs. 507 e segs., é perentória a afirmar que a proibição da primeira parte do nº 1 do art. 17º-E circunscreve atualmente “o alcance dos efeitos às ações executivas para cobrança de créditos”]. Acompanha-se, por isso, o que se exarou no despacho recorrido de 08.02.2025, na parte em que diz que «a decisão a que se refere o n.º 5 do art. 17º-C do CIRE apenas obsta à instauração de quaisquer ações executivas para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as ações executivas em curso com idêntica finalidade – cfr. art. 17º-E n.º 1 do CIRE. Daqui decorre que os credores não ficam inibidos de instaurar e/ou fazer prosseguir ações declarativas contra o devedor, e, por maioria de razão, nada os impede de lançar mão de notificação judicial avulsa para converter uma situação de mora em incumprimento definitivo.».
E caso os credores [ou algum deles] procedam a tal conversão da mora em incumprimento a tempo dos efeitos deste poderem ser atendidos no novo PER, ou seja, em princípio, até à conversão da lista provisória do AJP em lista definitiva [nºs 5 e 6 do art. 17º-D], haverá então lugar à repristinação das dívidas originais [quanto aos credores que tiverem procedido àquela conversão em incumprimento], sem as limitações decorrentes das moratórias e/ou dos perdões estabelecidos no plano homologado no PER anterior.
Do que fica exposto resulta, pois, que a apresentação da empresa devedora a novo PER, na eminência de entrar em mora quanto ao cumprimento das [ou de algumas das] obrigações fixadas no plano do PER anterior [ou mesmo já depois de entrar em mora, desde que esta resulte de fatores alheios ao próprio plano e a alteração superveniente alheia à empresa, caso estas circunstâncias constituam a «causa de pedir» do novo PER] não constitui per se impedimento à repristinação das dívidas originais, sem as moratórias e/ou os perdões acordados no plano de revitalização que estava em execução, para serem consideradas no novo PER, já que os credores não ficam impedidos, com a apresentação da devedora a este novo PER, de proceder à dita conversão da mora em incumprimento, mediante a observância das exigências estabelecidas na al. a) do nº 1 do art. 218º, ex vi do nº 13 do art. 17º-F. Condição é que, como referido, procedam a tal conversão a tempo de os efeitos dela decorrentes – a dita repristinação das dívidas originais – poderem ser tidos em conta no novo PER em curso.
Não colhe, por isso, a argumentação da recorrente de que «[a] admitir-se tal prática, deixaríamos de ter planos incumpridos, pois as empresas, perante o incumprimento iminente, e até antes do decurso dos 2 anos da homologação do PER anterior, apresentar-se-iam a segundo PER, alegando de forma vaga e sem fazer prova, (…), fatores alheios ao próprio plano e alteração superveniente alheia à empresa» [conclusão 30 das alegações], nem que «a referida estratégia permitiria consolidar as dívidas que resultaram da implementação do primeiro plano, afastando a consequência do incumprimento legalmente prevista – a repristinação das dívidas» [conclusão 31].
E, como também surge evidente, nem a devedora formulou pedido desleal com o propósito de prejudicar os credores [ou, dentre estes, a recorrente], nem se mostra evidenciada qualquer desproporção grave entre o benefício pretendido por aquela e o sacrifício a suportar por estes [pelos credores]; a devedora limitou-se a exercer um direito que o CIRE, nas normas que ficaram apontadas, lhe concede, sendo certo que o benefício por ela pretendido [a concessão de um novo plano de revitalização] dependia, ainda, de dois fatores: a aprovação desse novo plano pela maioritária dos credores e a sua homologação pelo tribunal.
Soçobra, por isso, este segmento do recurso, não se vislumbrando abuso de direito no pedido formulado pela empresa devedora.
*
*

4.3. Se ocorreu repristinação da dívida de que a recorrente é credora de modo a ser atendida no plano deste novo PER.
A recorrente considera, ainda, que procedeu à interpelação escrita prevista na al. a) do nº 1 do art. 218º e que a devedora não procedeu, no prazo que lhe concedeu, ao pagamento da prestação em falta, pelo que passou a incorrer em incumprimento definitivo, com a consequente repristinação do seu crédito original, pelo que, na sua ótica, deveria ser este o crédito atendido neste novo PER.
Já vimos no item anterior que a repristinação da dívida original da recorrente dependia da observância, por esta, do que prescreve a al. a) do nº 1 do art. 218º a tempo de ser atendida neste novo PER.
Do requerimento que a recorrente juntou aos autos em 15.05.2025 e documentação que o acompanhou resulta que a mesma procedeu efetivamente à interpelação escrita da devedora, mediante carta registada com A/R datada de 25.03.2025, para que esta, no prazo de 15 dias, lhe pagasse a quantia de 21.336,29€, relativa à prestação vencida em 15.12.2024 e que a devedora recebeu aquela missiva em 27.03.2025, alegando, ainda, que, não obstante, a dita quantia não lhe foi paga neste novo prazo.
Acontece, porém, que o referido requerimento só deu entrada em tribunal já depois de esgotado o prazo de reclamação de créditos [nº 2 do art. 17º-D], depois da conversão em definitiva da lista provisória de créditos apresentada pelo AJP [nºs 4, 5 e 6 do art. 17º-D; no caso, depois de proferido o despacho recorrido de 08.02.2025] e até mesmo depois de concluídas as negociações e a votação com vista à aprovação do novo plano [nºs 3 a 6 do art. 17º-F] e de proferida a sentença homologatória do plano aprovado pela maioria dos credores [nº 7 do mesmo preceito]. Ou seja, em momento processual em que já não podia ser considerado o que dele decorria, mais concretamente o incumprimento da devedora e a repristinação do crédito original da recorrente [sem as limitações da moratória e do perdão fixados no plano do primeiro PER], sendo certo que para esta comunicação tardia da recorrente [estamos a referir-nos ao requerimento de 15.05.2025] muito contribuiu o facto de só bastante depois do início da mora da devedora [não pagamento da prestação vencida em 15.12.2024] e apenas na sequência do despacho de 08.02.2025 ter a recorrente levado a cabo a interpelação escrita daquela [que só recebeu a interpelação em 27.03.2025].
Como tal, não tendo havido atempada repristinação do crédito original da recorrente [sem a moratória e o perdão fixados no plano do primeiro PER], não podia o mesmo ser tido em conta neste novo PER, quer nas negociações entre devedora e credores, quer no plano acordado pela maioria dos credores e homologado pelo tribunal a quo.
Improcede, assim, também esta pretensão da recorrente.
Consequentemente, mantém-se inalterado o despacho recorrido de 08.02.2025.
*
*

4.4. Se a percentagem de votos atribuídos aos créditos da recorrente está incorreta e se tal altera a votação do plano aprovado por maioria.
Na parte final das conclusões das alegações, a recorrente põe em causa a percentagem de votos que lhe foi atribuída no mapa de votação do plano.
Fá-lo no pressuposto da procedência do recurso na parte em que se insurge contra o despacho de 08.02.2025, ou seja, de que neste PER devia ser tido em conta o seu crédito original, decorrente da repristinação operada pela observância do estabelecido na al. a) do nº 1 do art. 218º e não o que foi efetivamente considerado pelo AJP e consta do plano aprovado por maioria de credores e homologado pelo tribunal a quo, mais concretamente o(s) montante(s) que estava(m) em dívida aquando da apresentação, pelo AJP, da lista provisória de créditos.
Acontece, porém, como resulta dos itens anteriores, que o referido segmento recursório improcedeu in totum, com a consequente manutenção do decidido naquele despacho.
Não operando, pelos motivos atrás apontados, a repristinação da dívida original e não pondo a recorrente em causa a percentagem correspondente ao crédito que foi efetivamente considerado neste PER e reportado no mapa de votação do plano, impõe-se também, sem necessidade de outros considerandos, a improcedência desta parte do recurso.
Este improcede, por isso, na totalidade.

Pelo decaimento, as custas deste recurso ficam a cargo da recorrente - arts. 527º nºs 1 e 2 e 529º do CPC.


*
*



Síntese conclusiva:
…………………………………………………….
…………………………………………………….
…………………………………………………….


***






5. Decisão:

Nesta conformidade, os Juízes desta secção cível do tribunal da Relação do Porto acordam em:

1º. Julgar o recurso totalmente improcedente e, em consequência, confirmar o despacho e a decisão recorridos.
2º. Condenar a recorrente, pelo decaimento, nas custas deste recurso.











Porto, 16 de setembro de 2025
Pinto dos Santos

Alexandra Pelayo

Rui Moreira