I - A competência em razão da matéria afere-se pela natureza jurídica da relação, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, pelo pedido e pela causa de pedir.
II - É requisito objetivo da instrumentalidade do procedimento cautelar em relação à ação principal que esta tenha por fundamento o direito acautelado, tutelando-se, o mesmo direito. Daí a competência em razão da matéria para as providências cautelares não ter autonomia, porquanto o procedimento cautelar está na dependência da ação principal.
III - O conceito de “direitos sociais”, presente no artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da LOSJ, não deve ser objeto de uma interpretação redutora, mas antes abranger os direitos cuja matriz se funde diretamente na lei societária e/ou no contrato de sociedade, dos quais podem ser titulares a sociedade, os sócios, os credores sociais e administradores, justificando-se a competência do juízo de comércio por razões relacionadas com a aplicação de legislação específica do Código das Sociedades Comerciais.
IV - A responsabilidade direta dos gerentes e administradores, por atos praticados no exercício das suas funções, perante os sócios enquanto tais, apenas pode resultar do regime previsto no artº. 79.º do CSC, que apenas contempla na sua previsão, “os danos que diretamente lhes causarem no exercício das suas funções”.
V - Se o crédito invocado pelos Recorridos – prejuízo sofrido em consequência da desvalorização da quota social, em consequência da atuação do gerente - não é um dano exigível pelos sócios aos gerentes, por ser um dano direto relativamente à sociedade, mas indireto, ou reflexo, relativamente aos sócios, que, por isso, não permite o acionamento dos gerentes pelos sócios ao abrigo do artº. 79.º do CSC, ficamos fora do âmbito do exercício dos direitos sociais, expressão, utilizada pelo legislador na alínea c), do n.º1, do artigo 128.º, da LOSJ, para delimitar a competência dos Juízos de Comércio.
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Juízo de Comércio de Amarante - Juiz 3
Juíza Desembargadora Relatora:
Alexandra Pelayo
Juízes Desembargadores Adjuntos:
Artur Dionísio Oliveira
Ramos Lopes
SUMÁRIO:
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Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:
I-RELATÓRIO:
AA, BB e CC intentaram no JUÍZO DE COMÉRCIO DE AMARANTE, contra DD E EE procedimento cautelar de ARRESTO, como preliminar de ação de processo comum e de impugnação pauliana, pedindo o arresto dos seguintes bens:
a) Prédio urbano correspondente a casa de cave e rés-do-chão e quintal, sito atualmente na Rua ..., ... [antigo Lugar ...], freguesia ..., concelho de Marco de Canaveses, descrito na CRP de Marco de Canaveses sob o número ...0, inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ...40 da freguesia ... [antigo artigo urbano ...50 da extinta freguesia ...], com o valor patrimonial de 120.561,70 euros.
b) Prédio rústico correspondente a terreno de cultura com videiras em cordão, sito em Lugar ..., freguesia ..., concelho de Penafiel, descrito na CRP de Penafiel sob o número ...17, inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ..., com o valor patrimonial para efeitos de IMT, de 254,47 euros.
g) Veículo automóvel da marca Ford, modelo ..., com a matrícula ..-..-IH.
h) Veículo automóvel da marca Nissan, modelo ..., com a matrícula ..-MM-...
i) Recheio da casa sita na Rua ..., ..., ..., composto por todo o mobiliário, eletrodomésticos e peças de decoração.
j) Quota Social de 673.38€ na sociedade A... LDA., NIPC ...95, com sede na Rua ..., ..., ... ....
k) A pensão de reforma que aufere o requerido DD junto da Segurança Social, com o montante máximo legalmente possível.
l) Saldos de contas bancárias que os requeridos sejam titulares em qualquer Banco ou Instituição Financeira a operar em Portugal.
Para tanto e em suma alegaram os Requerentes que são sócios da sociedade A..., LDA, [A....
Que o requerido DD, sócio gerente da sociedade, e a sociedade A..., LDA foi condenados no âmbito do processo 34/B.5TELSB, o primeiro, na prática de, em autoria imediata e na forma consumada de um crime de fraude fiscal qualificada, p.p. pelos art.s 103º, nº 1, al c) e 104º nºs 2 al a) e 3 ambos do RGIT e a sociedade pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p.p. pelos arts. 103º nº 1 al. c) e 104º nºs 2 al a) e 3 ambos do RGIT e pelos arts. 90-A nº 1 e 90-B nºs 4 e 5 ambos do C.Penal.
Foram ainda aqueles arguidos condenados solidariamente a pagar Fazenda Nacional o valor de € 2.082.498,49 euros, acrescido de juros moratórios.
Nessa sequência, o valor da participação social de que os Requerentes são titulares na sociedade A..., LDA, [A... e que à data do balanço de dez 2023 ascendia a €703.252.47, na sequência da atuação ilícita e culposa do gerente DD naquela sociedade, ficou reduzida a zero.
Os Requeridos, separaram-se de pessoas e bens e conluiados entre si e de má-fé, procederam à deslocação patrimonial dos bens de que o requerido DD era titular para o exclusivo património do seu cônjuge através de Partilha de separação de pessoas e bens, perpetrada, com o fim de impedir a satisfação do crédito dos credores, verificando-se o perigo de perda de garantia patrimonial.
Alegam em suma que tal partilha configurou um ato premeditado que teve em vista sonegar o património do Requerido DD, com isso logrando obter a frustração da cobrança dos créditos que sobre si impende.
Foi produzida a prova apresentada pelos Requerentes, e no final, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“Nestes termos, julga-se procedente o presente procedimento cautelar intentado por AA, BB e CC contra DD E EE, determinando-se o ARRESTO até ao valor de €703.252.47, dos seguintes
bens: a) Prédio urbano correspondente a casa de cave e rés-do-chão e quintal, sito atualmente na Rua ..., ... [antigo Lugar ...], freguesia ..., concelho de Marco de Canaveses, descrito na CRP de Marco de Canaveses sob o número ...0, inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ...40 da freguesia ... [antigo artigo urbano ...50 da extinta freguesia ...], com o valor patrimonial de 120.561,70 euros.
b) Prédio rústico correspondente a terreno de cultura com videiras em cordão, sito em Lugar ..., freguesia ..., concelho de Penafiel, descrito na CRP de Penafiel sob o número ...17, inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ..., com o valor patrimonial para efeitos de IMT, de 254,47 euros.
g) Veículo automóvel da marca Ford, modelo ..., com a matrícula ..-..-IH.
h) Veículo automóvel da marca Nissan, modelo ..., com a matrícula ..-MM-...
i) Recheio da casa sita na Rua ..., ..., ..., composto por todo o mobiliário, eletrodomésticos e peças de decoração.
j) Quota Social de 673.38€ na sociedade A... LDA., NIPC ...95, com sede na Rua ..., ..., ... ....
k) A pensão de reforma que aufere o requerido DD junto da Segurança Social, com o montante máximo legalmente possível.
l) Saldos de contas bancárias que os requeridos sejam titulares em qualquer Banco ou Instituição Financeira a operar em Portugal, determinando que se oficie tal pedido ao Banco de Portugal, que por sua vez procederá à sua difusão a cada instituição bancária ou financeira, devendo o saldo arrestado ficar indisponível desde a data do arresto.
As custas por ora, são a cargo dos Requerentes – art. 539/1 CPC.”
De seguida foi ordenada a notificação dos Requeridos nos termos do art.º 366.º, n.º 6 e 372º do CPC.”
Notificados da decisão, os Requeridos DD e EE vieram interpor o presente recurso de APELAÇÃO, apresentando as seguintes conclusões:
I - O presente recurso tem por objeto a sentença de fls., com a ref.ª Citius 94467489, que decretou o arresto de bens dos Recorrentes, bem como os despachos com a ref.ª Citius 97884896 e com a ref.ª Citius 98747674, que subsequentemente determinaram o arresto de outros bens da Recorrente EE, visando sindicar a decisão proferida pelo Tribunal a quo quer quanto à matéria de facto indiciariamente dada como provada, quer a decisão sobre a matéria de direito, uma vez que, por um lado, e desde logo, o Tribunal a quo deveria ter julgado verificadas exceções de conhecimento oficioso que impediam o decretamento do procedimento cautelar de arresto e, por outro lado, porque, em face dos factos que indiciariamente deram como provados, o arresto deveria ter sido indeferido por não se verificarem os pressupostos de que depende o seu decretamento.
II - Em primeiro lugar, os presentes autos de arresto foram instaurados como (a.) preliminar de ação de processo comum e (b.) como preliminar de ação pauliana, tendo sido requerido (i) o arresto de bens do Recorrente DD como preliminar (medida antecipatória) da ação de responsabilidade civil que pretendem intentar para efetivação da sua alegada responsabilidade enquanto gerente da referida sociedade; (ii) o arresto de bens da Recorrente EE como preliminar (medida antecipatória) de ação de responsabilidade civil extracontratual; (iii) o arresto de bens da Requerida EE como preliminar (medida antecipatória) de ação de impugnação pauliana que pretendem instaurar contra esta e DD com vista à restituição dos bens objeto de partilha realizada entre ambos em dezembro de 2022, na medida do seu interesse (direito de crédito que invocam).
III - Estamos, assim, perante uma coligação passiva, nos termos do disposto no artº. 30.º do CPC, sendo que, conforme decorre expressamente do n.º 1 do artº. 37.º do CPC, a coligação não será admissível quando, entre outros, a cumulação possa ofender regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia.
IV - A ação principal com vista à efetivação da responsabilidade civil de gerente que os Recorridos, na sua qualidade de sócios da A..., pretendem instaurar contra o Recorrente DD em virtude dos alegados atos de gestão por este praticados corresponde ao exercício de um direito social, sendo que os juízos do comércio materialmente competentes para julgar as ações relativas ao exercício dos direitos sociais.
V - Já a ação de impugnação pauliana que os Recorridos pretendem instaurar contra os Recorrentes tendo por objeto a partilha de bens realizada por ambos não corresponde ao exercício de qualquer direito social dos Requerentes, sendo, por conseguinte, da competência dos juízos cíveis.
VI - Com efeito, a ação pauliana que os Recorridos visam intentar convoca o regime civilista previsto nos artº. 610.º e ss. do CPC, sendo totalmente irrelevante para a preparação e o julgamento daquela ação, nomeadamente para aferição dos pressupostos de que depende a procedência da ação pauliana, a qualidade de sócios da A... dos Recorridos e o papel do Recorrente naquela sociedade.
VII - Em virtude do exposto, não restam dúvidas de que a coligação passiva em causa nos autos é ilegal por violação das regras da competência em razão da matéria, uma vez que os juízos do comércio não são competentes para julgar o procedimento cautelar de arresto que é antecâmara da ação pauliana.
VIII - Por outro lado, quanto ao procedimento cautelar de arresto contra a Recorrente EE como preliminar de ação de responsabilidade civil por factos ilícitos, como vimos, são os próprios Recorridos, no seu requerimento inicial, que afirmam que a responsabilidade daquela que pretendem acionar não decorre da sua qualidade de gerente da sociedade, encontrando apenas hipotético fundamento legal no âmbito da responsabilidade civil extracontratual prevista nos artigos 483.º e ss. do CC.
IX - A eventual responsabilidade civil da Recorrente EE perante a sociedade não resulta de qualquer quadro normativo do direito societário – designadamente dos artº.s 72.º e ss. do CC –, mas sim do direito civil, não estando em causa o exercício de qualquer direito social dos Recorridos.
X - Os tribunais competentes para preparar e julgar a ação de responsabilidade civil extracontratual contra a Recorrente EE e, por conseguinte, o presente procedimento cautelar de arresto que lhe antecede, são os juízos cíveis, nos termos do art.º 117.º, n.º 1, als. a) e c), da LOSJ.
XI - Assim, quer relativamente ao procedimento cautelar de arresto como antecâmara da ação pauliana, quer quanto ao procedimento cautelar de arresto requerido contra a Recorrente EE como antecâmara da ação com vista à efetivação da sua responsabilidade civil, verifica-se a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal prevista na alínea a) do art.º 577.º do CPC, bem como a exceção dilatória de coligação ilegal prevista na alínea f) da mesma disposição legal.
XII - A sentença recorrida julgou-se competente para o procedimento cautelar, designadamente, para o que ora nos importa, em razão da matéria, o que fez mal.
XIII - Note-se que, na fundamentação da sentença recorrida, o Tribunal a quo apenas se refere ao crédito indemnizatório dos Requerentes sobre o “Requerido”(singular), ao abrigo do artº. 79.º do CSC, mas decreta o arresto de bens da Recorrente EE além dos que foram objeto de partilha, o que sugere uma apreciação do direito (não social) invocado pelos Recorridos sobre aquela.
XIV - Em virtude de tudo quanto ficou dito, a sentença recorrida padece de erro de julgamento, na medida em que nos termos do artº. 576.º, n.º 2, do CPC, as exceções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância, o que o Tribunal recorrido deveria ter feito, desde logo porque as referidas exceções dilatórias são de conhecimento oficioso nos termos do disposto no artº. 578.º do CPC.
XV - Nessa sequência, deverá a sentença recorrida ser substituída por outra que julgue verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal e coligação ilegal, sendo os Requeridos absolvidos da instância.
XVI - Sem prescindir, em segundo lugar, a sentença recorrida deu erradamente como indiciariamente provado o facto 22 com fundamento no balanço e demonstração de resultados de DEZ2023 e relatório de avaliação de quota da sociedade A..., elaborado pelo ROC FF em 10.12.2024, conjugado com o depoimento da testemunha GG.
XVII - No entanto, da análise do referido relatório, resulta, desde logo, que o trabalho encomendado ao ROC não foi apurar se deveria ser considerado o passivo superveniente de 2.953.738,95€ na avaliação da empresa, mas sim solicitada a avaliação da empresa com o referido passivo
incluído, ou seja, partindo do pressuposto que esse passivo deve ser considerado numa avaliação da empresa/das quotas.
XVIII - Por outro lado, do referido relatório resulta evidente que também não foi o ROC a avaliar qual o valor do ali referido “passivo superveniente”, computado em 2.953.738,95€, mas antes que esse valor já lhe foi apresentado/indicado por quem solicitou aquele trabalho como sendo o valor em dívida e a considerar.
XIX - Note-se ainda que da leitura do relatório também ressalta à evidência que o ROC subscritor do mesmo não sindicou se deve ser de considerar o valor de 2.953.738,95€ na análise realizada ao valor da empresa/quotas, tomando esse facto como assente e que, se o tivesse feito, não teria concluído como concluiu: que o valor ajustado dos capitais próprios será negativo em 136.221,06, uma vez que é o próprio ROC que diz no seu relatório que assume uma realidade que é sabido (pela decisão proferida no Processo Crime junta ao requerimento inicial) que não se verifica, isto é, que o valor de 2.953.738,95€ corresponde ao montante por cujo pagamento a sociedade é exclusiva e integralmente responsável.
XX - Além de não ter avaliado o valor do “passivo superveniente” que efetivamente deveria ser considerado (se é que algum), o ROC parte erradamente do pressuposto que o pagamento é da exclusiva e integral responsabilidade da A..., quando, na realidade, esta foi condenada a pagar € 2.082.498,49, acrescida de juros, solidariamente com mais cinco entidades/pessoas.
XXI - Daquele relatório não resulta que, em face do trânsito em julgado da decisão proferida no Processo Crime, deva ser incorporado nas contas da sociedade a dívida ao Estado, nem por que montante.
XXII - Já o depoimento da testemunha GG, em que a decisão recorrida também refere ter fundamentado a decisão acerca daquele facto (!), mostra-se, na verdade, totalmente inútil para sustentar o facto 22 indiciariamente dado como provado na decisão recorrida – cfr. depoimento prestado na audiência de julgamento de 2025.02.10, com início aos minutos 14:49:51 e termo em 15:05:00, em concreto as passagens entre os minutos 13:16 e 14:25.
XXIII - Em primeiro lugar, a testemunha não conseguiu explicar, em concreto, qual o âmbito do trabalho que pediu ao ROC ou mesmo o objetivo porque referiu apenas ter dúvidas sobre as contas da empresa, sem explicar quais, e que recorreu ao Dr. FF para a ajudar.
XXIV - Em segundo lugar, além de dois processos judiciais, que a testemunha confundiu no que diz respeito a valores envolvidos e ao seu estado, a testemunha apenas referiu que “a conclusão” era que não se sabia onde é que a empresa iria buscar o valor para pagar e, como tal, o património dos Requerentes valeria zero.
XXV - Além de este depoimento genérico e confuso não servir minimamente para sustentar qualquer análise técnica à avaliação da empresa ou das quotas dos Requerentes, o que dele se extrai, na verdade, é que a “análise” feita, quando muito, corresponde a um juízo de prognose, pois também do depoimento da testemunha não resulta que a sociedade haja desembolsado o montante indemnizatório objeto de condenação ou que o algum valor esteja ou devesse estar registado nas contas da sociedade.
XXVI - Os referidos meios de prova não demonstram que a sociedade tenha incorporado nas suas contas a dívida à AT nem em que valor ou sequer que em face do mero trânsito em julgado da decisão do Processo Crime a sociedade deva inscrever nas contas a dívida à AT e em que montante, pelo que dali também não se extrai que o valor da quota dos Recorridos seja atualmente zero.
XXVII - Os referidos meios de prova não atestam – nem existe facto indiciariamente dado como provado nesse sentido –que a A... tenha pago qualquer montante indemnizatório ao Estado na sequência da condenação no Processo Crime.
XXVIII - Tudo quanto ficou supra exposto leva à necessária conclusão de que o Tribunal a quo andou mal ao dar como provado o ponto 22. dos factos constantes da sentença recorrida, a qual deve ser alterada no sentido de excluir o ponto 22. do elenco dos factos indiciariamente provados.
XXIX - Em terceiro lugar, a sentença recorrida enferma de erro de julgamento quanto ao preenchimento dos pressupostos do decretamento do arresto, seja como preliminar de uma ação de responsabilidade civil, seja como antecâmara de uma ação pauliana.
XXX - O Tribunal a quo deveria ter concluído pela falta de probabilidade da existência de um crédito dos Requerentes sobre o Requerido DD que sustentasse o procedimento cautelar de arresto como preliminar de ação de responsabilidade civil contra este.
XXXI - Os Recorridos instauraram o presente procedimento cautelar de arresto invocando a sua qualidade de sócios da sociedade A..., Lda. (adiante, A...) e um crédito sobre os Recorrentes no valor de € 703.252,47, alegadamente correspondente ao prejuízo sofrido pelos Recorridos com a desvalorização da quota de que são contitulares na A..., que alegam ter passado de um valor contabilístico de € 703.252,47 para zero, por força do trânsito em julgado da sentença proferida no processo n.º ... (doravante, Processo Crime) que condenou a A... a pagar, solidariamente com outros, à Autoridade Tributária a quantia de € 2.082.498,49, acrescida de juros, que imputam ao Recorrente DD e a HH, e da incorporação daquele valor nas contas da sociedade – cfr. artº. 17.º do requerimento inicial.
XXXII - Os Recorridos invocam um direito próprio resultante da responsabilidade direta dos gerentes perante os sócios, o que convoca, como refere a sentença recorrida, o regime previsto no artº. 79.º, n.º 1, do CSC.
XXXIII - Na decisão recorrida, com relevância para esta questão, vejam-se os pontos 2., 5., 6., 7., 21. e 22. Dos factos indiciariamente dados como provados (sem prejuízo da requerida alteração à decisão sobre a matéria de facto) e a circunstância de ter enquadrado a responsabilidade no regime previsto no artº. 79.º do CSC, o qual rege sobre a responsabilidade dos gerentes ou administradores perante sócios ou terceiros.
XXXIV - No entanto, a decisão recorrida abstém-se de, ainda que perfunctoriamente, analisar em que medida seria provável que esse invocado direito existisse na esfera jurídica dos Requerentes, designadamente no que diz respeito à verificação dos pressupostos previstos nos artº.s 483.º e 487.º do CPC.
XXXV - Desde logo, no que diz respeito ao requisito da ilicitude, a sentença recorrida falha em demonstrar qual o concreto facto ilícito que, no caso concreto, permite sustentar uma aparência do direito dos Recorridos sobre o Recorrente DD.
XXXVI - No caso dos autos, não vem sequer alegado no requerimento inicial – nem se mostra nos factos indiciariamente provados na decisão recorrida – qualquer violação pelo Recorrente de direitos absolutos dos Recorridos.
XXXVII - Nem a sentença recorrida se detém na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, abstendo-se de indicar qual a disposição legal violada e de analisar se se verificam, no caso concreto, os requisitos de que depende, nesses casos, a obrigação de indemnizar: (i) que a tutela dos interesses do lesado figure entre os fins da norma violada; (ii) que o dano se tenha registado no círculo de interesses que a lei visa acautelar.
XXXVIII - Neste conspecto, a sentença recorrida limita-se a afirmar (concluir) que os Requerentes demonstraram ter um crédito indemnizatório do Requerido por força do artº. 79.º do CSC, por força da responsabilidade civil decorrente da atuação ilícita e culposa expressa na condenação criminal que levou a que a quota dos Requerentes passasse a ter um valor nulo, o que é manifestamente insuficiente!
XXXIX - Nem se diga que, no caso, o pressuposto da ilicitude se mostraria preenchido com apelo à violação pelo Recorrente DD dos deveres previstos no artº. 64.º do CSC, na medida em que aquela norma não visa tutelar os interesses dos sócios nem os danos diretamente causados aos sócios – que, relembra-se, são aqueles que os Recorridos expressamente indicaram pretender salvaguardar com o procedimento cautelar de arresto – se inserem no círculo de interesses que a referida norma visa acautelar.
XL - Acresce que, a sentença recorrida considerou (mal) que os Requerentes poderiam demandar o Requerido DD ao abrigo do disposto no artº. 79.º do CSC para ressarcimento do alegado dano próprio decorrente da desvalorização da quota, julgando assim verificada a aparência do direito, quando, na verdade, os Requerentes não podem demandar o Requerido ao abrigo do disposto no artº. 79.º do CSC para dele exigir o ressarcimento do dano que invocam.
XLI - Isto porque o dano que os Requerentes invocam – e que (a existir) estaria na base do seu direito de crédito sobre o Requerido DD – não é um dano diretamente causado aos sócios e, portanto, que por estes possa ser exigido aos gerentes, ao abrigo do disposto no artº. 79.º do CSC.
XLII - Ora, o dano que os Recorridos invocam nos presentes autos e que a decisão recorrida deu como indiciariamente demonstrado – desvalorização da quota social –, a existir (o que não se concede), é um dano indireto, reflexo, que, por isso, não permite o acionamento dos gerentes pelos sócios ao abrigo do artº. 79.º do CSC, sendo esse um dos exemplos-escola comumente citados na doutrina e na jurisprudência como estando excluído do âmbito de aplicação da responsabilidade direta dos gerentes e administradores perante os sócios prevista no artº. 79.º do CSC, uma vez que o dano de desvalorização da quota resulta de um dano infligido diretamente no património social, que reflexamente (ou indiretamente) acarreta prejuízos também aos sócios, que veem diminuir o valor das suas participações sociais.
XLIII - Se o dano invocado que sustenta o alegado crédito dos Requerentes não pode ser exigido pelos sócios aos gerentes, o mesmo é dizer que não há (porque não pode haver) – nem indiciariamente – direito de crédito.
XLIV - Os comportamentos dos gerentes e administradores que provocam danos indiretos aos sócios não são ilícitos, pois não geram responsabilidade direta dos primeiros perante os últimos.
XLV - Assim, resulta à saciedade que, ao contrário do entendido pelo Tribunal a quo, não existe “aparência do direito” por falta de verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, encontrando-se a decisão recorrida ferida de erro de julgamento por violação do disposto no artº. 79.º do CSC.
XLVI - Não se mostrando preenchidos os requisitos previstos no artº. 619.º do CC e no artº. 391.º do CPC, que a decisão recorrida também violou, de cuja verificação depende o decretamento do procedimento cautelar de arresto.
XLVII - No caso dos autos, não existe ilícito que sustente uma responsabilidade direta do Requerido DD perante os Requerentes, nem existe dano que seja suscetível de ser reclamado diretamente pelos Requerentes ao Requerido DD.
XLVIII - Deve, consequentemente, a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que indefira o decretamento do procedimento cautelar de arresto.
XLIX - Por outro lado, o Tribunal a quo deveria ter concluído pela falta de probabilidade da existência de um crédito dos Requerentes sobre a Requerida EE que sustentasse o procedimento cautelar de arresto como preliminar de ação de responsabilidade civil contra esta.
L - Os Recorridos, não obstante reconhecerem que a Recorrente EE não participou na gestão da A... nem praticou os atos que, na sua tese, levaram ao prejuízo que invocam (de depreciação da sua quota) –cfr.º artº. 26.º do requerimento inicial –, concluem pela responsabilidade civil desta por atos ilícitos – cfr. artº. 31.º do requerimento inicial.
LI - A sentença recorrida, embora não se debruce acerca da probabilidade da existência do direito de crédito dos Requerentes sobre a Requerida EE, determinou o arresto de outros bens da Recorrente EE que não foram objeto da partilha realizada em dezembro de 2022 alvo do procedimento cautelar de arresto como antecâmara de ação de impugnação pauliana daquela ato: a saber, quota na sociedade A... e os saldos bancários (cfr. alíneas j) e l) da sentença recorrida), bem como o prédio rústico descrito na CRP de Penafiel sob o n.º ...9/19931293 (despacho com a ref.ª Citius 97884896) e a sua pensão de reforma (despacho com a ref.ª Citius 98747674), o que sugere uma apreciação do direito (não social) indemnizatório invocado pelos Recorridos sobre aquela.
LII - No entanto, a verdade é que inexistem quaisquer factos indiciariamente dados como provados na decisão recorrida – que tão pouco foram alegados – que permitam concluir pela provável existência de um crédito dos Requerentes sobre a Requerida EE.
LIII - Nem, sublinha-se, a decisão recorrida afirma a probabilidade da existência de um tal direito de crédito dos Requerentes sobre a Requerida EE, pois quanto a esta a sentença recorrida apenas aprecia – embora também mal, como veremos – a verificação dos pressupostos para o procedimento cautelar de arresto como preliminar da ação pauliana.
LIV - A sentença recorrida não aprecia, ainda que perfunctoriamente, os pressupostos da responsabilidade civil de cuja verificação dependeria o crédito dos Recorridos sobre a Recorrente EE, designadamente, o facto ilícito, dano, nexo de causalidade e culpa, os quais também não resultam dos factos indiciariamente dados como provados na decisão recorrida.
LV - Note-se que, desde logo quanto ao primeiro requisito (ilicitude), não se mostra indiciariamente demonstrada a violação pela Requerida EE de direitos absolutos dos Requerentes, nem estes o alegaram.
LVI - Assim como também não se mostra indiciariamente demonstrada a violação pela Requerida EE de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, dependendo, ainda, a obrigação de indemnizar dos seguintes requisitos: (i) que a tutela dos interesses do lesado figure entre os fins da norma violada; (ii) que o dano se tenha registado no círculo de interesses que a lei visa acautelar, o que os Requerentes também sequer invocaram.
LVII - Nesta conformidade, a sentença recorrida devia ter concluído (se é que não o fez) pela não verificação do primeiro dos pressupostos do procedimento cautelar de arresto como antecâmara de uma ação de responsabilidade civil dos Requerentes contra a Requerida EE: probabilidade da existência do direito de crédito.
LVIII - E, consequentemente, devia ter indeferido o arresto dos bens da Recorrente EE que não tenham sido objeto da partilha realizada em dezembro de 2022 por total ausência de fundamento legal, nomeadamente vertido na própria sentença recorrida, para que tenha sido ordenado o seu arresto.
LIX - Em virtude do exposto, a sentença recorrida e os despachos subsequentes com a ref.ª Citius 97884896 e com a ref.ª Citius 98747674, que decretaram o arresto de outros bens da Recorrente EE além dos que foram objeto de partilha em dezembro de 2022, incorreram em erro de julgamento, violando o disposto nos artº.s 391.º e 483.º e ss. do CC, e o artº. 619.º do CC.
LX - Em consequência, a sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que indeferia o procedimento cautelar de arresto contra a Requerida EE como antecâmara de ação de responsabilidade civil, revogando-se igualmente os despachos subsequentes com a ref.ª Citius 97884896 e com a ref.ª Citius 98747674,
LXI - E, como quer que seja, que determine o levantamento do arresto de bens da Recorrente EE que não tenham sido objeto da partilha de bens realizada em dezembro de 2022: a saber, quota na sociedade A... e os saldos bancários (cfr. alíneas j) e l) da sentença recorrida), bem como o prédio rústico descrito na CRP de Penafiel sob o n.º ...9/19931293 (despacho com a ref.ªCitius 97884896) e a sua pensão de reforma (despacho com a ref.ª Citius 98747674).
LXII - Acresce que, sempre deveria a sentença recorrida ter concluído pela falta de probabilidade da existência de um direito dos Requerentes sobre os Requeridos DD e EE como preliminar de uma ação de responsabilidade civil contra os mesmos, uma vez que para que se possa afirmar a probabilidade da existência do direito, é indispensável estarmos perante um crédito já constituído (ainda que ilíquido), como tem vindo a ser dito, em uníssono, na doutrina e na jurisprudência.
LXIII - O mesmo é dizer que o crédito futuro, hipotético ou eventual não permite concluir pela verosimilhança da existência do crédito, uma vez que ainda não se integra na esfera jurídica do requerente, fazendo soçobrar o primeiro requisito do procedimento cautelar de arresto.
LXIV - Ora, no caso dos autos, o crédito invocado pelos Requerentes sobre os Requeridos, ainda que existisse (o que não acontece), sempre seria um crédito eventual, dependente de um evento futuro e incerto.
LXV - Não existem factos indiciariamente dados como provados que permitam concluir – ainda que através de um juízo de mera verossimilhança – pela existência de um crédito constituído.
LXVI - Apenas resulta dos factos indiciariamente provados que existe uma sentença transitada em julgado no Processo Crime que condenou a sociedade a pagar ao Estado o referido montante, solidariamente com outras pessoas e entidades.
LXVII - Não está sequer indiciariamente provado que (i) A sociedade pagou ao Estado a indemnização cível na sequência da condenação no Processo Crime; (ii) A sociedade efetivamente registou nas suas contas o passivo de cerca de dois milhões de euros que, na tese dos Requerentes, terá como efeito a desvalorização da sua quota para valor nulo.
LXVIII - Note-se que, ainda que se não se alterasse a matéria de facto provada conforme supra requerido (o que não se concede), o que resulta do ponto 22. dos factos provados é o valor da quota dos Requerente após a incorporação nas contas da dívida à AT, mas já não que essa incorporação se tenha verificado ou devesse ter sido feita.
LXIX - O dano da sociedade é eventual e eventual é também o dano invocado pelos Requerentes, o qual, a existir, não pode ser exigido por aqueles, como acima ficou demonstrado.
LXX - Assim sendo, como efetivamente é, ao contrário do entendido pelo Tribunal a quo, não existe “aparência do direito”, uma vez que esse direito, para efeitos de preenchimento dos requisitos legais de que depende o decretamento do arresto, é um direito constituído, que, no caso, não existe.
LXXI - Pelo que a sentença recorrida violou o artº. 619.º do CC e o artº. 391.º do CPC, devendo, consequentemente, a ser revogada e substituída por outra que indefira o decretamento do procedimento cautelar de arresto contra os Recorrentes.
LXXII - Por último, a sentença recorrida andou mal ao julgar verificados os pressupostos legais de que depende o decretamento do cautelar de arresto como preliminar da ação pauliana invocada pelos Recorridos.
LXXIII - Nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 392.º do CPC, em procedimento cautelar de arresto preliminar de uma ação pauliana, o requerente, além do mais, se não mostrar ter sido judicialmente impugnada a aquisição, deduz ainda os factos que tornem provável a procedência da impugnação, o que remete para os pressupostos da ação de impugnação pauliana previstos nos artº.s 610.º e 612.º do CC, entre os quais, a existência de um crédito.
LXXIV - No caso dos autos, a sentença recorrida julgou verificados os pressupostos de impugnação pauliana, o que fez com base no direito de crédito que julgou provável os Requerentes serem titulares nos termos do art.º 79.º do CSC: o crédito indemnizatório em virtude do dano de desvalorização da quota social dos Requerentes.
LXXV - No entanto, dos factos indiciariamente dados como provados não decorre que os Recorridos sejam titulares de qualquer direito de crédito sobre os Recorrentes, nomeadamente porque o dano que os Recorridos invocam – dano indireto de desvalorização da quota social – não é suscetível de ser diretamente exigido por aqueles aos Recorrentes.
LXXVI - Por outro lado, inexistem factos alegados ou indiciariamente demonstrados suscetíveis de preencher os pressupostos da responsabilidade civil da Recorrente EE perante os Recorridos.
LXXVII - Por fim, porque o crédito suscetível de servir de fundamento ao procedimento cautelar de arresto tem necessariamente de ser um crédito já constituído, e não um crédito eventual, como (a existir, o que não se concede) seria o caso do crédito invocado pelos Recorridos.
LXXVIII - Assim, também não se mostra preenchido o requisito da probabilidade da existência do direito necessário ao decretamento do procedimento cautelar de arresto como preliminar da ação pauliana, nem é possível concluir, como fez o Tribunal a quo, pela probabilidade da verificação dos pressupostos de que depende a ação de impugnação pauliana (existência de um crédito), na medida em que o crédito não existe.
LXXIX - A sentença recorrida violou, assim, o disposto no artº. 392.º do CPC e os artº.s 610.º e 612.º do CC.
LXXX - Nesta sequência, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que indeferia o arresto de bens dos Recorrentes no âmbito do procedimento cautelar preliminar da ação de impugnação pauliana.
LXXXI - Em consequência, e pelos mesmos motivos, deverão ser revogados os despachos subsequentemente proferidos pelo Tribunal a quo, com a ref.ª Citius 97884896 e com a ref.ª Citius 98747674, que decretaram também o arresto de outros bens da Recorrente EE.
LXXXII - Por fim, ainda que se entenda que a sentença recorrida andou bem ao julgar procedente a ação de impugnação pauliana tendo por objeto a partilha realizada em dezembro de 2022, com o objetivo de estes virem a responder pela alegada dívida do Recorrente DD aos Recorridos, sempre se teria de se concluir ter o Tribunal a quo julgado mal ao decretar aquele arresto sobre a totalidade dos bens objeto de partilha.
LXXXIII - A decisão recorrida não julgou ser provável a existência de um direito de crédito dos Requerentes sobre a Requerida EE, nem se encontram indiciariamente demonstrados quaisquer factos que permitam julgar provável a existência de uma tal responsabilidade, pelo que o património da Requerida EE nunca responderia pelo prejuízo invocado pelos Recorridos.
LXXXIV - Até à partilha apenas metade do património do casal respondia pela alegada dívida do Requerido DD e era apenas essa metade que constituía garantia de satisfação dos créditos aos credores daquele Requerido, pelo que também num cenário (hipotético) de eventual procedência da ação de impugnação pauliana, apenas metade do anterior património conjugal responderá pelo crédito invocado nos autos.
LXXXV - Como tal, inexiste qualquer fundamento legal para que o Tribunal a quo tenha ordenado o arresto da totalidade dos bens que, antes da partilha, compunham o património comum do casal, apenas podendo ser decretado o arresto relativamente ao direito à metade do Recorrente DD nos bens partilhados.
LXXXVI - A decisão recorrida violou, assim, o disposto no artº 1696.º do CC, pelo que, no referido cenário hipotético em que julguem verificados os pressupostos para o decretamento do arresto, sempre teria de ser revogada e substituída por outra que julgue apenas parcialmente procedente o arresto e o mesmo decretado apenas sobre metade dos bens objeto da partilha realizada em dezembro de 2022.
LXXXVII - Em conclusão: deverão a sentença de fls., com a ref.ª Citius 94467489, e os despachos com a ref.ª Citius 97884896 e com a ref.ª Citius 98747674, que decretaram o arresto de bens dos Recorrentes ser revogados e proferida decisão que indefira o procedimento cautelar instaurado pelos Recorridos.
Assim decidindo, V. Exª. farão, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA!”
Os Requerentes AA, NIF ...32, viúva, residente na Rua ..., ..., ... ... - ..., BB, NIF ...57, solteiro, maior, residente na Rua ..., ... Braga e CC, NIF ...65, solteiro, maior, responderam ao recurso, pugnando pela sua improcedência, concluindo da seguinte forma:
“i) Na relação de instrumentalidade existente entre o procedimento cautelar e ação principal, a decisão proferida naquele não faz caso julgado material nem se configura com prejudicialidade relativamente à pretensão reclamada na ação principal, não condicionando a decisão a proferir nesta.
ii) Ou seja, do teor do decidido no âmbito da providência cautelar, seja em termos de fixação da matéria de facto, seja na integração jurídica desta, não é suscetível de extrair quaisquer efeitos de caso julgado material aplicáveis ao processo principal, isto é, o teor do decidido nos autos cautelares não exerce qualquer efeito sobre a ação principal.
iii) A decisão proferida no procedimento cautelar, assume, assim, uma natureza precária, pois assenta em fatores de menor solidez de fiabilidade, não devendo influenciar a apreciação a efetuar no âmbito da ação definitiva.
iv) Exceto se for decretada a inversão do contencioso (art. 369º do CPC), os procedimentos cautelares estão na dependência de uma ação (declarativa ou executiva), em que o autor pretende fazer valer o seu direito ou interesse tutelado (art. 364º do CPC).
v) O carácter instrumental do procedimento cautelar (face à ação principal de que depende) significa que este é um instrumento ao serviço da ação judicial a que se encontra associado, com o propósito de garantir a utilidade da respetiva decisão.
vi) Nada se opondo a que em sede de ação principal se vir a alegar e a provar a responsabilidade de ambos os requeridos pelo pagamento da indemnização, com fundamento, designadamente, em proveito comum do casal (art. 1691º nº1-c) e 1692º-b) CC), tanto mais que esta foi durante muito tempo sócia da sociedade e aquele gerente, numa relação muito conveniente e que conduziu à separação e partilha documentada e provada nos autos, com claro prejuízo para os credores e para o Estado.
vii) Acresce que a causa de pedir principal que justifica a atuação dos requerentes é a responsabilização dos gerentes pelos prejuízos causados à sociedade A..., que afetam indiretamente os sócios através da desvalorização das suas quotas. As outras pretensões (pauliana e responsabilidade de EE) surgem como instrumentos para assegurar a efetividade desse crédito principal.
viii) Relativamente à matéria de facto dada como assente, não sofre a mesma de qualquer erro, sendo que os recorrentes não cumprem o que na lei se estabelece para efeitos da sua modificação.
ix) No que concerne à probabilidade da existência de um crédito, o legislador não exige a prova efetiva desse crédito, mas tão só que seja provável a existência do mesmo, nem tão pouco que a obrigação seja certa, exigível e líquida ou que já se encontre reconhecida pelos Tribunais. Na verdade, a lei basta-se com a mera aparência do direito de crédito e esta traduz-se na alegação de factos que, ainda que perfuntoriamente, demonstrem de forma sumária ser razoável a titularidade do invocado direito de crédito.
x) In casu, temos assente, ainda que perfunctoriamente, que por força da atuação dos requeridos e do outro gerente, foram causados danos aos requerentes no valor de 700.000,00€ correspondentes ao valor de desvalorização da quota, sendo que aqueles resultam de atos praticados enquanto gerentes da sociedade A... e redundaram na praticaram ilícitos fiscais que culminaram na condenação da sociedade, da qual o requerentes são sócios, a pagar ao Estado um valor superior a 2.000.000,00€, a título de IVA não entregue.
xi) Veja-se que a própria sociedade no anexo às demonstrações financeiras de Dezembro de2023 (doc. 13 do petição) fez constar:
Facto este que deve ser aditado ao probatório.
xii) Por conseguinte, pelo menos, a probabilidade da existência de um crédito existe.
xiii) A responsabilidade civil dos administradores tem que decorrer da "preterição de deveres contratuais e legais", tendo que existir sempre uma desconformidade entre a conduta do administrador, gerente, e aquela que lhe era normativamente exigível.
xiv) A responsabilidade é direta quando os danos resultem do facto ilícito, sem nenhuma intervenção de quaisquer outros eventos, o que redunda, em termos valorativos, numa restrição desta responsabilidade, como defende Menezes Cordeiro, aos casos de «práticas dolosas dirigidas à consecução do prejuízo verificado»; ou de «práticas negligentes grosseiras, cujo resultado seja, inelutavelmente, a verificação do dano em causa.».
xv) As atribuições do órgão da administração de uma sociedade assumem, como é óbvio, papel fundamental para a vida social: é a este órgão que cabe, verdadeiramente, a condução dos negócios sociais, a prática corrente dos atos destinados a dinamizar e prosseguir o escopo da sociedade.
xvi) Os requeridos não podem ficar impunes, provada a prática dos atos patentemente lesivos, devendo ser levado em consideração que a Doutrina, diante da configuração flagrante do dolo intenso dos agentes, tem admitido a configuração do dano direto, para os efeitos de preenchimento do requisito exigido pelo artigo 79º, nº 1 do Código das Sociedades Comerciais, principalmente quando provado que as condutas lesivas assumem um patamar de gravidade e de intensidade como o do presente caso.
xvii) Os requerentes invocaram factos de onde decorre o seu prejuízo, proveniente da atuação criminosa do requerido que, como é manifesto, não resultou da vontade da sociedade mas apenas de uma conduta levada a cabo à margem da sociedade e por iniciativa do requerido.
xviii) Assim e porque os requerentes intentaram a presente ação como sócios, sendo a determinação do modelo normativo da responsabilidade uma questão de qualificação jurídica e, portanto, matéria de direito, de conhecimento oficioso, a cuja indagação, interpretação e aplicação o juiz não está sujeito às respetivas alegações das partes, por força do preceituado pelo artigo 5º, nº 3, do Código do Processo Civil.
xix) Não se acolhendo o entendimento de que as indemnizações peticionadas pelos requerentes não se fundam juridicamente no disposto no artigo 79° Código das Sociedades Comerciais (scilicet, na verificação de um dano diretamente causado), mas na subsunção das situações fácticas à hipótese legal do artigo 75º ou 77º do CSC, haverá que verificar na ação principal tal situação.
xx) Como pertinentemente se colhe da sentença recorrida, in casu, dos factos provados resulta que a atuação do requerido DD veio a causar na sociedade um prejuízo superior a 2 000 000,00€, valor que quando contabilizado nas contas daquela, conduzirá a capitais próprios negativos, o que determinará a perda da totalidade do valor das quotas dos requerentes, num montante aproximado dos 700.000,00€.
xxi) Ademais verifica-se que o requerido tem apenas a sua pensão de reforma, não tendo contas bancárias, sendo, pois, manifesta a brutal discrepância entre o ativo e o passivo, acrescendo que o requerido, mal se conheceu a existência do processo inspetivo e do processo crime, logo cedeu a quota social sem renunciar à gerência, o que bem demonstra o seu modus operandi.; e antes do trânsito em julgado do acórdão daquele processo se tenha separado de pessoas e bens pela forma documentada e provada.
Termos em que e nos mais de direito, deve o recurso improceder com as legais consequências.”
Notificados, os requerentes juntaram requerimento pedindo que o aditamento à decisão sobre a matéria de facto da Sentença requerido pelos Recorridos seja julgado totalmente improcedente, por inadmissível.
Foi proferido despacho Admito o recurso de apelação dos requeridos (art 644 n.º 1 alínea a) do CPC), a subir imediatamente, em separado e no efeito meramente devolutivo – art. 14 n.º 5 do CIRE.
Colhidos os vistos cumpre apreciar e decidir.
II-OBJETO DO RECURSO:
Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.
As questões a dirimir, delimitadas pelas conclusões do recurso são as seguintes:
-conhecimento das exceções dilatórias de conhecimento oficioso da incompetência absoluta do tribunal e da coligação ilegal.
-erro de julgamento da matéria de facto- modificabilidade da decisão de facto por reapreciação das provas produzidas e eventual alteração da decisão de direito em consequência de tal modificação;
-erro de julgamento na aplicação do direito, por falta de verificação dos pressupostos do arresto.
III-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Na sentença recorrida foram julgados indiciariamente provados os seguintes FACTOS:
1. A sociedade A..., LDA, [A... com o NIPC ...95, com sede no ..., tem por objeto social a indústria de produtos de alumínio e de redes de arame, e um capital social de €249.398,95.
2. AA, BB e CC são titulares em comum e sem determinação de parte ou direito, de uma quota no valor nominal de €62.259,95 da A....
3. Aos 20/05/2024 EE transmitiu duas partes sociais que detinha na A..., uma no valor de €46.448,06 e uma outra no valor de €25.426,66, a II.
4. Passando a ser titular de uma quota social no valor de 673.38€ na aludida sociedade.
5. Por Acórdão de 15/02/2021 proferido no Processo n.º ..., que correu termos pelo Juízo Central Criminal de Lisboa (Juiz 22), já transitado em julgado, entre outros, foram condenados:
- o arguido DD pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos. 103.º, n.º 1, al. c), e 104.º, n.ºs 2, al. a), e 3, ambos do RGIT, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo a contar do trânsito em julgado do acórdão de condenação, ficando esta suspensão subordinada ao dever de aquele, no decurso do período de suspensão, entregar à Autoridade Tributária o montante global de €48.000,00 por conta do valor fixado a título de indemnização, devendo comprovar anualmente no processo o pagamento de €12.000,00;
- a sociedade arguida “A..., Lda.”, pela prática de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, al. c), e 104.º, n.ºs 2, al. a), e 3, ambos do RGIT, e pelos artigos. 90.º-A, n.º 1, e 90.º-B, n.ºs 4 e 5, ambos do Código Penal, ex vi art. 3.º do RGIT, na pena de 700 dias de multa à taxa diária de €100,00, o que perfaz o montante global de €70.000,00;
- ambos os arguidos condenados solidariamente com outros arguidos do processo, a pagarem à Fazenda Nacional o valor de €2.082.498,49, acrescido juros de mora à taxa legal, vencidos desde a data da notificação dos arguidos/demandados para contestarem o pedido de indemnização civil, e vincendos, até integral pagamento [arts. 559.º e 804.º a 806.º, todos do Código Civil, e Portaria n.º 291/2003, de 08.04].
6. … assente nos factos provados e transcritos nos arts. 3.º e 6.º do requerimento inicial deste Procedimento Cautelar e que aqui se dão por reproduzidos, onde entre o mais se diz:
“Apurou-se que no ano de 2012 a sociedade arguida B... adquiriu às empresas C... e D..., sedeadas em Espanha, um total de 19.998,94 toneladas de ferro.
Por seu turno, no ano de 2012, a sociedade arguida B... emitiu a favor da sociedade arguida A... faturas correspondentes à aparente venda a esta de 17.958,620 toneladas de ferro pelo valor total de €11.326.765,99, sendo €9.208.752,83 relativos ao valor da mercadoria, e tendo a primeira liquidado IVA no valor de €2.118.013,15.
Por fim, também no ano de 2012, a sociedade arguida A... emitiu a favor da sociedade arguida E... faturas correspondentes à aparente venda a esta de 16.053,292 toneladas de ferro, pelo valor total de €8.839.821,99, não tendo a primeira liquidado IVA, por se tratar de aparente transação intracomunitária de bens [art. 14.º, n.º 1, al. a), do Regime do IVA nas Transações Intracomunitárias, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 290/92, de 28.12]
Conforme também se apurou, nem o arguido JJ, em representação da sociedade arguida B..., quis vender à sociedade arguida A... a referida mercadoria, nem os arguidos DD e HH, em representação da sociedade arguida A..., quiseram comprar ou vender o ferro, nem o arguido JJ, em representação da sociedade arguida E..., quis comprar a mercadoria à sociedade arguida A.... Não obstante, por ordem dos arguidos DD e HH em representação da sociedade arguida A..., esta solicitou à Autoridade Tributária o reembolso do IVA liquidado pela sociedade arguida B... correspondente à mercadoria faturada pela B... à A..., e que esta transmitiu à sociedade arguida E... [art. 19.º, n.º 2, do Regime do IVA nas Transações Intracomunitárias]. O valor total do IVA correspondente à mercadoria faturada pela sociedade arguida B... à sociedade arguida A... que esta transmitiu à sociedade arguida E... é de €1.904.286,65, sendo que, nesta sequência, foi pago à sociedade arguida A... o reembolso do aludido IVA relativo aos meses de Maio, de Junho e de Julho de 2012, no valor total de €686.100,81.
Assim, o negócio celebrado entre o arguido JJ, em representação da sociedade arguida B..., e os arguidos DD e HH, em representação da sociedade arguida A..., e entre os arguidos DD e HH, em representação da sociedade arguida A..., e o arguido JJ, em representação da sociedade arguida E..., é simulado (art. 240.º, n.º 1, do Código Civil), por interposição da A... (o negócio real pretendido efetuar era a venda de ferro pela sociedade arguida B... à sociedade arguida E...).
Mas, mais do que isso, os arguidos DD e HH, ao agirem conluiados e da forma descrita com o arguido JJ, executaram uma parte do plano concertado entre os três, com vista a que a sociedade arguida B... não entregasse ao Estado o referido montante de €2.082.498,49, valor que aqueles sabiam ser devido ao Estado por estar documentado nas faturas emitidas a favor da sociedade arguida A... (tais faturas, como se referiu, documentavam, inclusive, um valor ligeiramente superior, de €2.118.013,16, pelo que o dolo dos arguidos DD e HH abrange o montante efetivamente deduzido pela B...). Aliás, é a intervenção da sociedade arguida A... que permite a dedução de IVA pela sociedade arguida B...”.
7. No dia 27.9.2022, o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a Decisão da 1.ª instância, o mesmo acontecendo pelo Supremo Tribunal de Justiça em 9.3.2023 (este com a rejeição do recurso de revista)
8. Os factos considerados provados no Acórdão Condenatório proferido, foram previamente apurados em sede inspetiva pela Direção de Finanças do Porto, que elaborou o relatório de inspeção tributária à sociedade A..., concluindo pela utilização de faturação falsa por esta sociedade.
9. Na sequência de tal inspeção, foi pela AT liquidado IVA e JC dos meses de maio, junho, julho setembro e novembro de 2012 e respetivos juros compensatórios e de mora, no valor global de €697.511,83, apurado com base na utilização de faturação falsa.
10. Por sentença proferida pelo TAF de Penafiel no âmbito do Proc. n.º 366/14.5BEPNF, ainda não transitada em julgado, foi confirmado o valor liquidado pela AT e referido no número anterior, determinando-se o seu pagamento pela A....
11. EE, tinha conhecimento dos factos acima descritos e quis atuar em conluio e comunhão de esforços com o seu marido, o requerido DD, por forma a que o património não pudesse ser afetado pelos credores.
12. Assim, em 11/11/2022, DD e a sua esposa EE separaram-se de pessoas e bens.
13. Em 16/12/2022, os requeridos fizeram partilha com atribuição total do património imobiliário a esta, que se comprometeu a pagar, no prazo de 1 ano a quantia de 48.000.00€ à AT.
14. No âmbito da escritura de Partilha, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, entre outros, foram partilhadas as seguintes verbas:
a) verba um: Prédio urbano descrito na CRP de Marco de Canaveses sob o n.º ...0, inscrito na matriz sob o artigo ...40 da mesma freguesia, com o valor patrimonial de 120.561,70 euros, pelo valor de 125 000,00€;
b) verba dois: Prédio rústico descrito na CRP de Penafiel sob o n.º ...17, inscrito na matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial para efeitos de IMT, de 254,47 euros, pelo valor de 4.500,00€;
15. As verbas referidas em a) e b) do número anterior, têm um valor mínimo de mercado de 500.000,00€ e 100.000.00€, respetivamente.
16. Anteriormente ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa o requerido DD havia cedido as suas quotas da sociedade A..., mas mantendo-se como gerente.
17. EE foi convocada pelos requerentes para uma Assembleia Geral da A... para o dia 21.5.2024, para entre outros, Deliberar sobre os pontos:
18. A requerida EE, na véspera, cedeu a II, seu filho, duas quotas, apenas conservando para si uma no valor de 673.38€, o que fez com que tais pontos tivessem sido rejeitados com os votos deste.
19. E quanto a outros pontos, ou seja:
20. Obteve mesmo resultado com a conjunção dos votos de II e HH, irmãos.
21. A quota social dos ora requerentes, na proporção da sua participação, reportada ao balanço de Dezembro de 2023, e para efeitos fiscais, que não de mercado, tinha o valor de 703.252.47€, de acordo com o disposto no art.º 15º, n.º 1 do Código de Imposto de Selo, sendo este o seu valor tributário.
22. Com o trânsito em julgado da sentença do processo-crime, acima referida e com a incorporação nas contas da sociedade da dívida à AT, conforme acima exposto, a quota social dos requerentes passa a ter o valor de 0,00€ em resultado da conduta do requerido DD e HH.
23. Ao realizarem a Partilha nos termos sobreditos, Requeridos quiseram prejudicar os credores do requerido DD, entre eles os requerentes, frustrando a possibilidade de os bens em causa serem objeto de penhora.
24. A propriedade do prédio urbano descrito na CRP de Marco de Canaveses n.º...0 do prédio rustico descrito na CRP de Penafiel n.º...71, e dos veículos com as matriculas ..-MM-.. e ..-..-IH, encontram-se registada em nome de EE.
25. O terreno que foi adjudicado em partilha a EE foi colocado à venda numa imobiliária.
IV-DAS EXCEÇÕES DILATÓRIAS:
Da incompetência do tribunal em razão da matéria e da coligação ilegal de réus:
Os apelantes afirmam que o tribunal a quo, na sentença recorrida ao julgar-se competente para o procedimento cautelar, em razão da matéria errou, pretendendo ver reconhecida por este tribunal de recurso a incompetência absoluta do tribunal que decretou o arresto dos bens dos Requeridos, ora apelantes.
Pedem que a sentença recorrida seja substituída por outra que julgue verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal e coligação ilegal, sendo os Requeridos absolvidos da instância.
Alegam que, os Requerentes/recorridos invocam um crédito sobre os Recorrentes no valor de € 703.252,47, correspondente ao prejuízo sofrido pelos Recorridos com a desvalorização da quota de que são contitulares na A..., que alegam ter passado de um valor contabilístico de € 703.252,47 para zero, por força do trânsito em julgado da sentença proferida no processo n.º ..., que condenou a A... a pagar, solidariamente com outros, à Autoridade Tributária a quantia de € 2.082.498,49, acrescida de juros, que imputam ao Recorrente DD e a HH, e da incorporação daquele valor nas contas da sociedade.
Resulta assim, que o alegado crédito que os Requerentes pretendem salvaguardar diz respeito a uma indemnização que invocam que lhes é devida diretamente enquanto sócios da A... em virtude de atos praticados pelos gerentes.
Os Recorridos invocam um direito próprio resultante da responsabilidade direta dos gerentes perante os sócios, o que convoca, como refere a sentença recorrida, o regime previsto no artº. 79.º, n.º 1, do CSC.
Relativamente ao Recorrente DD, os Recorridos alegaram, no requerimento inicial, a sua responsabilidade pelo prejuízo invocado decorrente da sua atuação ilícita enquanto gerente da A....
Porém, no que concerne à Recorrente EE, os Recorridos, não obstante reconhecerem que aquela não participou na gestão da A... nem praticou os atos que, na sua tese, levaram ao prejuízo que invocam (de depreciação da sua quota) – cfr.º artº. 26.º do requerimento inicial –, concluem pela responsabilidade civil desta por atos ilícitos – cfr. artº.31.º do requerimento inicial
Por outro lado, quanto ao procedimento cautelar de arresto contra a Recorrente EE como preliminar de ação de responsabilidade civil por factos ilícitos, são os próprios Recorridos, no seu requerimento inicial, que afirmam que a responsabilidade daquela que pretendem acionar não decorre da sua qualidade de gerente da sociedade.
Por outro lado, no requerimento inicial, os Recorridos alegaram os factos com os quais pretendem demonstrar ser provável a procedência de ação de impugnação pauliana contra os Recorrentes tendo por objeto a partilha de bens celebrada entre ambos em dezembro de 2022.
Ou seja, apenas encontra hipotético fundamento legal no âmbito da responsabilidade civil extracontratual prevista nos artigos 483.º e ss. do CC, sendo totalmente indiferente a sua relação orgânica à sociedade A..., não tendo por fundamento a responsabilidade civil de gerentes.
Afirmam os Recorrentes, estarmos, em consequência, perante uma coligação passiva, nos termos do disposto no artº. 30.º do CPC, sendo que, conforme decorre expressamente do n.º 1 do artº. 37.º do CPC, a coligação não será admissível quando, entre outros, a cumulação possa ofender regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia.
Concluindo, defendem que a ação principal com vista à efetivação da responsabilidade civil de gerente que os Recorridos, na sua qualidade de sócios da A..., pretendem instaurar contra o Recorrente DD em virtude dos alegados atos de gestão por este praticados corresponde ao exercício de um direito social, sendo que os juízos do comércio materialmente competentes para julgar as ações relativas ao exercício dos direitos sociais.
Já a ação de impugnação pauliana que os Recorridos pretendem instaurar contra os Recorrentes tendo por objeto a partilha de bens realizada por ambos não corresponde ao exercício de qualquer direito social dos Requerentes, sendo, por conseguinte, da competência dos juízos cíveis.
A coligação passiva em causa nos autos é ilegal por violação das regras da competência em razão da matéria, uma vez que os juízos do comércio não são competentes para julgar o procedimento cautelar de arresto que é antecâmara da ação pauliana.
E os tribunais competentes para preparar e julgar a ação de responsabilidade civil extracontratual contra a Recorrente EE e, por conseguinte, o presente procedimento cautelar de arresto que lhe antecede, são os juízos cíveis, nos termos do art.º 117.º, n.º 1, als. a) e c), da LOSJ.
Vejamos se lhes assiste razão.
Estamos perante exceções dilatórias de conhecimento oficioso do tribunal, nos termos do que dispõe o artº 576º nº 2 e 577º al a) do CPC.
Cumpre em primeiro lugar aferir a competência material do tribunal - Juízo de Comércio– onde foi proferida a sentença recorrida no âmbito deste procedimento cautelar de arresto, o qual se julgou, por isso competente.
A questão que se coloca consiste em apurar se a jurisdição comum é competente em razão da matéria para preparar e julgar o presente procedimento cautelar (enquanto preliminar da respetiva ação – art. 364 n.º 1 do C. P. Civil), tal como defendem os apelantes ou se a mesma está afeta a jurisdição especializada – Tribunal de Comércio, entendimento acolhido pelo tribunal recorrido.
Estamos perante um procedimento cautelar especificado, de ARRESTO.
Os procedimentos cautelares são caracterizadas pela instrumentalidade, acessoriedade e dependência em relação à ação principal; pela provisoriedade; pela sumariedade do procedimento e da cognição levada a cabo pelo juiz e ainda pela urgência, celeridade e proporcionalidade.
A tutela cautelar visa assegurar os efeitos úteis da demanda principal, assegurando as suas funções de conservar e/ou de antecipar, de forma reversível, os efeitos da decisão de mérito que virá a ser decretada na ação principal. Visa acautelar o efeito útil da ação, o mesmo será dizer, visa evitar que a sentença que virá a ser proferida na ação principal chegue tarde demais, na medida em que venha a declarar um direito que já não se possa exercitar na prática.
A referida característica da dependência, manifesta-se na apensação do processo cautelar ao processo principal, no pedido a formular, no conteúdo e efeitos da medida cautelar e para o que aqui nos importa, na fixação do tribunal competente.
Ademais, a dependência repercute-se no objeto da providência cautelar, que será conjugado com o objeto da ação principal.
Desta forma, a providência cautelar encontra-se dependente de uma outra ação que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurada como preliminar ou como incidente de ação declarativa ou executiva – art. 364º do CPC.
Tal como se entendeu no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2019.04.09[1], a competência em razão da matéria para as providências cautelares não tem autonomia porquanto o procedimento cautelar está na dependência da ação principal.
A competência do tribunal constitui um pressuposto processual que resulta do facto do poder jurisdicional ser repartido, segundo diversos critérios, por numerosos tribunais.
A competência em razão da matéria distribui-se por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre elas.
Neste domínio funciona o princípio da especialização, de acordo com o qual se reserva para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do direito.[2]
Com efeito, no âmbito da competência interna dos tribunais portugueses, o poder jurisdicional divide-se por diferentes categorias de tribunais, de acordo com a natureza da matéria das causas. Assim, e em primeiro lugar, distinguem-se os tribunais judiciais e os tribunais especiais.
Os tribunais judiciais, dentro da organização judiciária, constituem a regra e daí que gozem de competência não discriminada, como consta do art. 40º, n.º 1 da Lei 62/2013, de 26 de Agosto – Lei da Organização do Sistema Judiciário, a seguir LOSJ ao estabelecer que “os tribunais judiciais tem competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.”
De acordo com o art. 80º nº 2 da LOSJ os tribunais de comarca são de competência genérica e de competência especializada.
Os Juízos de Comércio, por sua vez, correspondem a juízos de competência especializada, nos termos do artigo 81.º, n.º 3, al. i) da LOSJ, encontrando-se a sua competência material prevista no artigo 128.º da LOSJ.
Como é referido no Acórdão do STJ de 5.7.2018[3] a criação dos juízos do comércio cuja implantação no território nacional foi alargada com a atual LOSJ foi orientada pelo objetivo de melhorar a administração da justiça quando os conflitos emergem de aspetos específicos do direito comercial ou do direito das sociedades comerciais. Nesta e noutras áreas, a criação de juízos com competência especializada leva necessariamente a que essa especialização se estenda aos juízes que têm que apreciar os correspondentes conflitos ou proceder à composição dos interesses, contribuindo para uma mais correta aplicação da lei.
Ao mesmo tempo, é suposto que a referida especialização crie sinergias que permitam uma resolução mais célere dos processos, objetivo que historicamente tem orientado o legislador na adoção de medidas substantivas e na criação de instrumentos processuais que visam especificamente as empresas comerciais.
Como referia já o Professor Alberto dos Reis [4]“(… ) a competência do foro comum só pode afirmar-se com segurança depois de percorrido o quadro dos tribunais especiais e de se ter verificado que nenhuma disposição de lei submete a ação em vista à jurisdição de qualquer tribunal especial”
Isto posto, dispõe o artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da LOSJ que “Compete aos juízos de comércio preparar e julgar: (…) As ações relativas ao exercício dos direitos sociais”.
A única alínea desta norma que pode abarcar, em termos de competência material a ação de que o procedimento cautelar de arresto é dependente e por conseguinte a competência material do tribunal para o arresto em apreço, é a alínea c) - “As ações relativas ao exercício de direitos sociais”.
Importa assim saber se, através do presente procedimento cautelar os Requerente pretendem acautelar um qualquer direito social de que sejam titulares, na qualidade de sócios da sociedade A... LDA., a sociedade comercial por quotas, a seguir designada A....
É hoje pacífico, o entendimento segundo o qual a competência em razão da matéria se afere pela natureza jurídica da relação, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, pelo pedido e pela causa de pedir.[5]
A apreciação do pedido e da causa de pedir tal como são apresentados pelo autor, constituem pois fatores fundamentais para nos permitirem determinar qual o tribunal competente para a apreciação e julgamento de determinada ação, entendida esta em sentido amplo, abarcando por isso as providências cautelares e incidentes autonomizados da ação.
E sendo o tribunal materialmente competente para apreciar a ação principal, como vimos, os procedimentos cautelares prévios a tal ação terão de ser intentados no mesmo tribunal.
Os requerentes na qualidade de sócios da sociedade A..., interpuseram o presente procedimento cautelar de ARRESTO pretendendo acautelar, através do arresto dos bens do devedor (do Requerido DD) e da terceira adquirente dos bens daquele devedor, (a Requerida EE)- faculdade conferida pelo nº 2 do artº 392º nº 2 do CPC,– o direito à indemnização que entendem ter direito em consequência da desvalorização da quota societária de que são titulares na aludida sociedade, desvalorização essa que imputam ao gerente daquela sociedade, o requerido DD, em consequência da prática de atos lesivos praticados no âmbito daquela gestão, pelos quais foi condenado no âmbito do processo crime - Processo n.º ..., que correu termos pelo Juízo Central Criminal de Lisboa, mediante acórdão transitado em julgado.
Concretamente, invocam os Requerentes um direito de crédito sobre os Recorrentes no valor de € 703.252,47, correspondente ao prejuízo que sofreram com a desvalorização da quota de que são contitulares na A..., a qual passou de um valor contabilístico de € 703.252,47 para zero, por força do trânsito em julgado da sentença proferida no processo n.º ..., que condenou a A... a pagar, solidariamente com outros, à Autoridade Tributária a quantia de € 2.082.498,49, acrescida de juros, que imputam ao Recorrente DD e a HH, e da incorporação daquele valor nas contas da sociedade – cfr. artº. 17.º do requerimento inicial.
Os Recorridos, no requerimento inicial, esclarecem que interpõe PROCEDIMENTO CAUTELAR DE ARRESTO, “como preliminar de ação de processo comum e de impugnação pauliana”.
No artigo 31º do requerimento inicial de arresto, os Recorridos invocam que, “o requerido DD responde pela atuação ilícita, enquanto gerente da sociedade, culposa e que casou danos aos requerentes; a requerida EE também incorre em responsabilidade civil por factos ilícitos, devendo o Tribunal lançar mão do disposto no art.º 392/2 do CPC, dado que será apresentada a competente impugnação pauliana, quanto ao negócio referido em 9” (que tem a seguinte redação: “o requerido DD e a sua esposa EE separam-se de pessoas e bens (doc. 8) e imediatamente fizeram partilha com atribuição total do património imobiliário a esta que se comprometeu a pagar, no prazo de 1 ano a quantia de 48.000.00€ à AT.)”
Do exposto decorre que, relativamente ao Requerido DD, enquadram os Recorridos, a sua pretensão, em sede de ação principal a intentar contra aquele, para reconhecimento do direito invocado que pretendem acautelar, em ação intentada pelos sócios contra o gerente da sociedade, no âmbito do art. 79º do C.Sociedades Comerciais, que dispõe o seguinte:
1 - Os gerentes ou administradores respondem também, nos termos gerais, para com os sócios e terceiros pelos danos que diretamente lhes causarem no exercício das suas funções.
A pretensão dos Requerentes contra a Requerida EE, em sede de ação principal, para reconhecimento do direito invocado que pretendem acautelar, em ação de responsabilidade civil por factos ilícitos, (que não decorre da sua qualidade de gerente da sociedade), implicando ainda uma ação de impugnação pauliana, que convoca o regime civilista previsto nos artº. 610.º e ss. do CC., tendo em vista a impugnação do negócio jurídico de partilha.
Isto posto, impõe-se agora apurar se os Requerentes através da ação principal (ou da providência cautelar) pretendem exercer um “direito social”, pois que, apenas neste caso é possível reconhecer competência em razão da matéria ao Tribunal de Comércio.
Para tanto, necessário se torna saber em que consiste um “direito social” para efeitos deste norma, isto é para efeitos de conexão com a jurisdição especializada do comércio.
Os direitos dos sócios encontram-se elencados, essencialmente, nos artigos 21.º (direitos de natureza geral) e 24.º (direitos de índole especial, a criar no âmbito do contrato de sociedade), ambos do Código das Sociedades Comerciais, tudo sem prejuízo de outros que se acham previstos noutras disposições desse mesmo diploma legal e de outros textos legislativos de carácter complementar.
De acordo com o Professor Menezes Cordeiro,[6] os direitos do sócio são classificados e arrumados, em diversas categorias, de acordo com os valores ou bens jurídicos tutelados (patrimoniais, participativos e pessoais), indicando os seguintes como mais característicos de cada uma delas:
- Patrimoniais – o direito aos lucros ou a “quinhoar nos lucros” (artigo 24.º, número 1do Código das Sociedades Comerciais), que implica ainda muitos outros de índole instrumental e o direito à disposição da sua participação social, nos termos correspondentes ao tipo societário considerado:
- Participativos (que têm a ver com a possibilidade, reconhecida aos sócios, de ingressar no modo coletivo de gestão dos interesses, inserindo-se na organização social e atuando nos esquemas de cooperação por ela previstos):
- O direito a participar nas deliberações dos sócios (artigo 21.º, n.º 1, alínea b) do Código das Sociedades Comerciais);
- O direito a obter informações sobre a vida da sociedade (artigo 21.º, n.º 1, alínea c) do Código das Sociedades Comerciais);
- O direito a ser designado para os órgãos de administração e de fiscalização (artigo 21.º, n.º 1, alínea d) do Código das Sociedades Comerciais);
- Pessoais – os direitos parassociais, o direito à lealdade e o direito ao respeito do estado de sócio.
Entendemos, na esteira da jurisprudência e da doutrina mais atuais que, o conceito de “direitos sociais”, presente no artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da LOSJ, não deve ser objeto de uma interpretação redutora, mas antes abranger os direitos cuja matriz se funde diretamente na lei societária e/ou no contrato de sociedade, dos quais podem ser titulares a sociedade, os sócios, os credores sociais e administradores, justificando-se a competência do juízo de comércio por razões relacionadas com a aplicação de legislação específica do Código das Sociedades Comerciais.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.02.2022, proferido no âmbito do processo n.º 1044/21.4T8LRA-C1.S, [7] pode ler-se o seguinte: “A expressão exercício de direitos sociais, utilizada pelo legislador na alínea c), do n.º1, do artigo 128.º, da LOSJ, para delimitar a competência dos tribunais de comércio, não deve ser equiparada a direitos dos sócios, mas sim a direitos específicos do regime do direito das sociedades, competindo àqueles tribunais decidir os litígios emergentes de relações jurídicas conformadas pela legislação que especificamente rege as sociedades comerciais, designadamente o Código das Sociedades Comerciais. (…) Para determinar se os tribunais de comércio são os competentes para julgar esta ação, há, pois, que apurar se o pedido deduzido e a causa de pedir respeitam a matéria especificamente regida pelo direito societário.”
Necessário é pois que a concreta ação interposta emerja da aplicação de normas que regem especificamente as sociedades comerciais.
No mesmo sentido, os seguintes acórdãos do STJ:
- Ac. do STJ. de 29-3-2022, in www.dgsi.pt.«Os direitos sociais nos termos e para os efeitos da norma atributiva de competência material das secções do comércio - art. 128.º, n.º 1, al. c), da LOSJ - são os direitos cuja matriz, direta e imediatamente, se funda na lei societária (lei que estabelece o regime jurídico das sociedades comerciais) e/ou no contrato de sociedade».
- Acórdão de STJ, de 26.10.2022, in www.dgsi.pt. «A expressão “direitos sociais” (constante da alínea c) do art. 128.º/1 da LOSJ) não equivale ou corresponde a “direitos dos sócios”, devendo entender-se que, quando em tal alínea se fala em “ações relativas ao exercício de direitos sociais”, se está a pensar e a referir às ações que emergem do regime jurídico das sociedades comerciais, se está a pensar e a referir às ações em que estão em causa e são invocados os direitos sociais emergentes de tal regime jurídico, sendo que podem ser titulares de tais direitos sociais quer os sócios, quer a sociedade, quer os credores sociais quer mesmo terceiros».
- Ac. do STJ. de 16-11-2023, in www.dgsi.pt. «Os direitos sociais nos termos e para os efeitos da norma atributiva de competência material das secções do comércio - art. 128.º, n.º 1, al. c), da LOSJ - são os direitos cuja matriz, direta e imediatamente, se funda na lei societária (lei que estabelece o regime jurídico das sociedades comerciais) e/ou no contrato de sociedade».
Ou, mais recentemente,
- do STJ de 2024.09.17[8], in www.dgsi.pt: «Por outro lado, considerando o modo como o art.128º da LOSJ define a competência do tribunal de comércio (espartilhando-a em diferentes alíneas), conclui-se que o legislador não pretendeu consagrar um critério de abrangência total dessa competência a todos os conflitos de origem societária (ou gerados no âmbito da vida ou da dinâmica das sociedades comerciais). Se tivesse sido esse o propósito, certamente que o legislador o teria enunciado de forma clara, dizendo que os tribunais de comércio são competentes para conhecer de todos os conflitos respeitantes a matéria societária, em vez de ter estabelecido diferentes hipóteses de ações nas várias alíneas. »
Seguindo esta jurisprudência, mostra-se claro que, relativamente à ação principal a intentar contra a Requerida EE, não sendo esta gerente da sociedade A..., quer a impugnação pauliana, que tem em vista impugnar o negócio de partilha, quer a ação a mover tendo em vista a sua eventual condenação no pagamento de uma indemnização aos ora Recorrentes, tem apenas contornos civilísticos, inserindo-se no âmbito da responsabilidade extracontratual – artigo 483º do C.C- sendo que a mera qualidade de sócios dos “lesados” em nada contende com essa qualificação.
Não estamos, por isso quanto a ela, calmamente, no âmbito do exercício de direitos sociais.
Maior dificuldade, o que implica mais minuciosa reflexão acerca do conceito do que sejam “direitos sociais”, requer a apreciação da propositura da ação (e procedimento cautelar) contra o requerido DD, uma vez que os atos danosos foram praticados por aquele na qualidade de gerente da A....
Recorde-se que os Requerentes pretendem ver reconhecido um crédito no valor de € 703.252,47, correspondente ao prejuízo sofrido pelos Recorridos com a desvalorização da quota de que são contitulares na A..., que alegam ter passado de um valor contabilístico de € 703.252,47 para zero.
Como vimos, os factos que têm a ver com o estatuto e desenvolvimento da atividade de gerente enquadram-se, aliás como foi entendido na sentença recorrida, no regime previsto no artigo 79.º do Código das Sociedades Comerciais, que dispõe no seu nº 1, que “Os gerentes ou administradores respondem também, nos termos gerais, para com os sócios e terceiros pelos danos que diretamente lhes causarem no exercício das suas funções” e demais disposições para onde remete o número 2 desse mesmo dispositivo legal (artigos 72.º, números 3 a 6, 73.º e 74.º, número 1).
Constata-se que os Requerentes não pretendem mediante a propositura da ação contra o requerido, fazê-lo em nome ou representação ou sequer em substituição da sociedade A..., fazendo-o antes a título exclusivamente pessoal e com vista a serem reciprocamente indemnizadas pelo gerente pela desvalorização sofrida na sua quota social.
É certo que na pretensão que deduzem, bem como as respetivas causas de pedir, têm como pano de fundo o estatuto de sócios, porém a pretensão dos Requerentes é feita a título exclusivamente pessoal e com vista a serem indemnizados pelo gerente pela desvalorização sofrida na respetiva quota social, desvalorização ocorrida na sequência da prática por aquele de atos de natureza criminal, que redundaram num prejuízo direto à sociedade.
Perspetivando a pretensão dos Requerentes – direito de indemnização que pretendem ver acautelado e reconhecido em ação a intentar - os pedidos e respetivos fundamentos, dirigidos contra o gerente, não podem ainda assim e em nosso entender, ser configurados como o exercício de direitos sociais como os que acabámos de analisar, situando-se antes num plano diverso, da responsabilidade civil extra-contratual.
Também aqui não nos achamos face ao exercício de direitos sociais mas antes de natureza civil, nos mesmo moldes acima indicados.
Neste sentido, subscrevemos o entendimento acolhido no acórdão do TRL de 17.9.2009 [9] em que se aprecia a competência material do tribunal e são julgadas as Varas Cíveis competentes em razão da matéria para julgar o litígio, em que a autora pretendia ser indemnizada pela desvalorização da sua quota social e pela perda de rendimentos que lhe advinha do normal exercício da gerência, Tendo o tribunal entendido, conforme respetivo sumário, que: “III – Nem a Autora nem a Ré, procuram, mediante a propositura desta ação, acionar a contraparte em nome ou representação ou sequer em substituição da sociedade, fazendo-o antes a título exclusivamente pessoal e com vista a serem reciprocamente indemnizadas pela outra parte pela desvalorização sofrida na sua quota social e pela perda do rendimento que lhes advinha do normal exercício da gerência (Autora) ou da distribuição dos proventos sociais futuros (Ré).
Essas pretensões, bem como as respetivas causas de pedir, têm como pano de fundo o estatuto de sócias e gerentes que ambas possuem no quadro da dita sociedade e o esvaziamento do seu objeto social e posterior situação de inatividade, mas o ente societário é parte ausente no litígio cruzado dos autos, sendo encarado por ambas as partes, numa posição concordante entre elas, como uma sociedade moribunda, no final do seu ciclo de vida, porque inviável, sem objeto ou atividade possíveis, imputando-se uma e outra, reciprocamente, a responsabilidade por tal desfecho societário e pretendendo retirar ganhos pessoais dessas imputações (quer a ação, como a contra-acção não visam defender o ente societário ou insuflar-lhe nova vida, situando-se antes fora e para além do termo da vida útil da sociedade).
Os pedidos da Autora e respetivos fundamentos não podem ser configurados como o exercício de direitos sociais, situando-se antes num plano diverso, da responsabilidade civil extra-contratual, por atuações desenvolvidas essencialmente à margem da sociedade (constituição de uma outra empresa, que ocupou o lugar e a atividade daquela, muito embora haja também acusações de má e desleal gestão por parte da Ré) e num acionamento de direitos de carácter particular e extra-social.”
Também em acórdão recente deste Tribunal da Relação, de 10.07.2025,[10] que não apreciou a questão da competência do tribunal, mas apreciou a natureza do direito que os sócios pretendiam exercer numa situação com muitas similitudes com o caso em apreço, (“No caso concreto, no que respeita ao requerido FF (ora recorrente), os requerentes (ora recorridos) alegaram que o primeiro, na qualidade de gerente da sociedade B..., Lda., da qual os segundos são sócios, praticou ilícitos fiscais que culminaram na condenação daquela sociedade a pagar à Administração Tributária (AT) um valor superior a 2 milhões de euros e que, em face de tal condenação, a quota de que dispõem na referida sociedade passou de um valor de cerca de 700.000,00 € para um valor nulo, uma vez que os capitais próprios da sociedade passaram a ser negativos”)- é afastado o enquadramento da responsabilidade do gerente, no artigo 79º do CSC, porquanto o dano – que (a existir) estaria na base do direito de crédito sobre o Requerido – não é um dano diretamente causado aos sócios e, portanto um dano que por estes possa ser exigido aos gerentes, ao abrigo daquela disposição legal.
Pode aí ler-se a este respeito o seguinte: “Já em face ao artigo 79.º, a responsabilidade perante sócios e terceiros só existirá para os danos diretamente causados, consagrando-se aqui uma responsabilidade por violação de deveres especiais fundados numa relação específica, direta, entre o gerente ou administrador e os aludidos sócios e terceiros.
O dano direto na esfera patrimonial dos sócios e/ou terceiros não implica dano no património da sociedade, podendo até corresponder a um acréscimo do património social.
Não existindo qualquer relação obrigacional entre os gerentes ou administradores da sociedade, por um lado, e os sócios desta ou terceiros, por outro lado, esta norma tem em vista uma situação de responsabilidade civil extracontratual ou delitual comum, pelo dano direto provocado aos referidos sócios e/ou terceiros (cfr. Tânia Meireles da Cunha, Da Responsabilidade dos Gestores de Sociedades perante os Credores Sociais, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2009, p. 60), pelo que depende igualmente da verificação dos requisitos enunciados no artigo 483.º do CC.
Mas, como já ficou referido, o ato suscetível de gerar a responsabilidade do gerente ou administrador enquanto tal deverá ter sido praticado no exercício das suas funções de gestão ou administração. Se tiver sido praticado pelos referidos gerentes ou administradores pessoalmente considerados, estaremos no âmbito do regime geral da responsabilidade aquiliana previsto no Código Civil.”
Este mesmo entendimento é perfilhado pelos ora recorrentes, nas alegações de recurso que juntaram (artigos 113 e ss) e respetivas conclusões (XL e ss), (a propósito do pressuposto do procedimento cautelar da “aparência do direito”), onde afirmam que, o dano que os Requerentes invocam – e que (a existir) estaria na base do seu direito de crédito sobre o Requerido DD – não é um dano diretamente causado aos sócios e, portanto, que por estes possa ser exigido aos gerentes, ao abrigo do disposto no artº. 79.º do CSC.
O dano de desvalorização da quota resulta de um dano infligido diretamente no património social, que reflexamente (ou indiretamente) acarreta prejuízos também aos sócios, que veem diminuir o valor das suas participações sociais.
Para concluírem que “se o dano invocado que sustenta o alegado crédito dos Requerentes não pode ser exigido pelos sócios aos gerentes, o mesmo é dizer que não há (porque não pode haver) – nem indiciariamente – direito de crédito.”
Como se escreve no acórdão desta Relação acabado de citar (de 10.7.2025): “Por conseguinte, como se conclui no aresto do STJ antes citado[11] (a propósito de um caso que apresenta similitudes com a situação em apreço neste recurso), ao cingir a responsabilidade dos gerentes ou administradores aos danos diretamente causados aos sócios, o artigo 79.º, n.º 1, exclui a responsabilidade daqueles pelos danos decorrentes da perda de valor da quota social destes. A circunstância de os recorridos relacionarem «causalmente o seu dano com a diminuição do património da sociedade», isto é, com o facto da sua quota social passar de um valor de cerca de 700 mil euros para um valor nulo, uma vez que os capitais próprios da referida sociedade passaram a ser negativos, confirma que o dano é indireto e que, consequentemente, o recorrente, como gerente, não responde perante os recorridos, como sócios, pela perda do valor da sua participação social, sem prejuízo de poder responder pelos danos causados à própria sociedade, cuja indemnização se poderá refletir indiretamente no valor das participações sociais, nomeadamente as detidas pelos recorridos.”
A reforçar este entendimento, de que o dano alegadamente causado pelo Recorrente DD, invocado pelos recorrentes – desvalorização da quota social – de que pretendem ser ressarcidos, não é um dano que lhes tenha sido diretamente causado, enquanto sócios da sociedade A..., convocamos ainda por se julgar pertinente, o Acórdão do TRL de 8.11.2022,[12], concretamente as considerações aí feitas a propósito do conceito do capital social.
Pode aí ler-se o seguinte: “O ponto que deve sublinhar-se é este: o capital social é um instrumento jurídico destinado a defesa e tutela dos interesses dos credores, e não dos sócios.
Para os sócios, além da função organizativa – verem os seus direitos e deveres modulados pela participação que detêm, - funciona ainda como contrapartida da sua limitação de responsabilidade patrimonial[13], na exata medida em que funciona como garantia dos credores.
E este é o ponto nevrálgico da questão: para a representada da recorrente o regresso à titularidade de uma participação social não corresponde ao (re)investimento numa posição jurídica que lhe dê direito a uma percentagem do património (bruto ou líquido) da sociedade num dado momento no tempo – representa o regresso a uma posição jurídica de titular de direitos e deveres em relação a uma sociedade na exata medida dessa participação. Porque, e pese embora tal questão não tenha sido expressamente suscitada, os sócios não são, por essa estrita qualidade, credores da sociedade.”
“(…) Aliás, o capital social consta do lado direito do balanço, não por constituir uma dívida da sociedade aos sócios, mas por ser essa a forma contabilística de reter, no ativo da sociedade, os bens necessários para cobrir a respetiva cifra, como já se referiu.
Não há aqui qualquer direito de crédito do sócio. Este tem direito, a, em caso de dissolução e liquidação, da “quota de liquidação”, achada após a satisfação dos direitos dos credores da sociedade nos termos do disposto nos arts. 154º e 156º nº1 do Código das Sociedades Comerciais.
E esse direito apenas se torna efetivo em caso de liquidação e caso o património social seja suficiente para o pagamento aos credores sociais e para distribuir pelos sócios o remanescente. Ou seja, em qualquer momento anterior a esses, ao invés de um direito de crédito existe uma expectativa relativa a parte do remanescente do produto de liquidação da sociedade após satisfeitos os credores.
Feito este excurso compreende-se que o direito feito valer na ação principal não tem qualquer correspondência com o valor económico da quota à data da deliberação cuja nulidade é arguida.”
Também significativa a este respeito, a nosso ver, é a afirmação feita no acórdão do STJ 29 de outubro de 2002,[14], onde se pode ler: “Na verdade, lidas as pertinentes normas do CSC, particularmente as que regem sobre as sociedades por quotas, uma conclusão é possível extrair - aí não se divisa (não podia divisar) disposição alguma que faça recair sobre os gerentes uma qualquer obrigação de aumentar ou manter o valor real das quotas sociais”
De todo o exposto resulta, para o que aqui nos importa apurar é que, a responsabilidade direta dos gerentes e administradores, por atos praticados no exercício das suas funções, perante os sócios enquanto tais apenas pode resultar do regime previsto no artº. 79.º do CSC, que impõe a ocorrência de danos diretos, sendo indiretos os danos invocados pelos Apelados.
Se o direito a indemnização, invocado pelos Requerentes e que estes pretendem acautelar neste Arresto, (mas que terão de ver reconhecido em ação intentada com tal fim), não pode ser exigido pelos sócios aos gerentes, por ser um dano indireto, reflexo, ao abrigo do artº. 79.º do CSC, ficamos fora do âmbito do exercício dos direitos sociais, expressão, utilizada pelo legislador na alínea c), do n.º1, do artigo 128.º, da LOSJ, para delimitar a competência dos tribunais de comércio.
Com efeito, a responsabilidade dos gerentes ou administradores pelos danos causados aos sócios rege-se pelo artigo 79.º, n.º 1, do CSC, e esta norma cinge essa responsabilidade aos danos diretamente causados aos segundos no exercício das funções dos primeiros.
Os danos causados à sociedade que apenas reflexa ou indiretamente atinjam o património dos sócios, não lhes conferem um direito indemnizatório próprio, previsto nas regras especiais do Código das Sociedades Comerciais.
Ainda que causados pelos atos praticados pelos gerentes ou administradores da sociedade, no exercício das suas funções de administração, aqueles danos apenas conferem um direito indemnizatório à própria sociedade - para ressarcimento de dano diretamente causado à mesma - embora este direito possa ser efetivado por via da ação de responsabilidade proposta por sócios prevista no artigo 77.º do CSC.
Conclui-se assim que o direito de crédito que os Requerentes, enquanto sócios da sociedade A... pretendem ver reconhecido contra o gerente, não é um direito que possa ser efetivado através da ação de responsabilidade prevista no art. 79º do CSC., uma vez que não cabe na previsão legal desta norma.
Desta forma, quando muito, a atuação ilícita, enquanto gerente da sociedade, culposa e que casou danos aos requerentes; faz incorrer os requeridos em eventual responsabilidade civil por factos ilícitos, colocando o litígio em apreço fora da alçada dos Tribunais de Comércio, por não corresponder ao exercício de direitos sociais, a que alude a alínea c), do n.º1, do artigo 128.º, da LOSJ.
Não estamos assim, também no que respeita o direito que os Recorridos pretendem exercer contra o gerente da sociedade, perante o exercício de direitos específicos do regime do direito das sociedades, nem perante litígio emergentes de relações jurídicas conformadas pela legislação que especificamente rege as sociedades comerciais, designadamente o Código das Sociedades Comerciais.
Conclui-se assim em face de todo os exposto que, o pedido e a causa de pedir respeitantes ao direito de crédito invocado, não respeitam a matéria especificamente regida pelo direito societário, pelo que temos de concluir pela incompetência absoluta dos JUÍZOS DE COMÉRCIO, em razão da matéria.
A “insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida de jurisdição suficiente para essa apreciação”, determina a incompetência do tribunal, pois a infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, como se prevê no art. 96º alínea a) do CPC.
Estabelece o artigo 278º nº 1 do CPC, no seu número um, al a), que em consequência da procedência da exceção da incompetência absoluta, deverá o tribunal abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância.
Cumprirá apenas proceder a uma última consideração.
De acordo com os princípios reitores da economia processual e da prevalência da decisão de fundo sobre a de mera forma, ínsitos na redação conferida pelo DL 180/96, de 25 de setembro, ao artigo 288º, nº3, do CPC e mantidos no artigo278º, nº3, do CPC [aprovado pela Lei 1/2013, de 26 de junho], a simples ocorrência de uma exceção dilatória não suprida não deverá conduzir irremediavelmente à absolvição da instância, antes, se o pressuposto processual em falta se destinar à tutela do interesse de uma das partes, se outra circunstância não obstar a que se conheça do mérito e se a decisão a proferir dever ser inteiramente favorável à parte em cujo interesse o pressuposto fora estabelecido, faculta-se ao juiz o imediato conhecimento do mérito da causa.
Dispõe, com efeito, o art. 278.º do CPC o seguinte:
“1 - O juiz deve abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância:
a) Quando julgue procedente a exceção de incompetência absoluta do tribunal;
b) Quando anule todo o processo;
c) Quando entenda que alguma das partes é destituída de personalidade judiciária ou que, sendo incapaz, não está devidamente representada ou autorizada;
d) Quando considere ilegítima alguma das partes;
e) Quando julgue procedente alguma outra exceção dilatória.
2 - Cessa o disposto no número anterior quando o processo haja de ser remetido para outro tribunal e quando a falta ou a irregularidade tenha sido sanada.
3 - As exceções dilatórias só subsistem enquanto a respetiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º; ainda que subsistam, não tem lugar a absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da exceção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte.”
O nº3 deste norma, privilegia a prolação de decisões de mérito, em detrimento das de natureza formal, sendo que no caso em apreço, por entendermos que a responsabilidade dos gerentes ou administradores aos danos diretamente causados aos sócios, o artigo 79.º, n.º 1, do CSC não só não prevê, (daí a falta de competência material dos Juízos de Comércio, nos moldes atrás apreciados), como exclui a responsabilidade daqueles pelos danos decorrentes da perda de valor da quota social destes (entendimento acolhido no Acórdão desta Relação de 10.7.2025, proferido no P, 3796/24.0T8PNF.P2-A, supra citado) ao cingir a responsabilidade dos gerentes ou administradores aos danos diretamente causados aos sócios, tal implicaria o reconhecimento da “falta de aparência do direito de crédito”, pressuposto da procedência do arresto nos termos do artº 391º nº 1 e 392º nº 1 do CPC, implicando a improcedência do mérito do procedimento cautelar.
Como se pode ler no Acórdão do STJ de 24.01.2019, no P 1250/12.2TBVCD-A.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt, “A norma constante da parte final do nº 3 do art. 288º do CPC anterior à Lei nº 41/2013 – equivalente ao nº 3 do art. 278º do atual CPC - privilegia a prolação de decisões de mérito, em detrimento das de natureza formal, visando impedir que a real possibilidade de resolução de litígios seja prejudicada por questões de ordem formal que desnecessariamente impeçam a obtenção da justiça material.
O uso desta regra, pressupondo que a decisão de mérito possa ser proferida no momento em que o tribunal conheceria da falta do pressuposto processual, é limitado pela exigência de que o julgamento de mérito a emitir seja integralmente favorável à parte cujo interesse seja tutelado pela causa de absolvição da instância que assim se despreza.”
Também no Ac STJ de 14.9.2023 - 3364/20.6T8VFR.P1.S1 in www.dgsi.pt, se escreve: “Como pressuposto desta possibilidade/obrigação de desconsiderar a absolvição da instância em favor do conhecimento do mérito da causa, por imperativos pragmáticos de aproveitamento e não inutilização do estado do processo, a lei exige que a causa de absolvição da instância se destine a tutelar o interesse de uma das partes e o conhecimento do mérito da causa seja favorável integralmente a essa mesma parte. E isto porque, deste modo, aquele que estava à espera da absolvição da instância em nada sai prejudicado porque obtém ainda maior satisfação com uma decisão que lhe é, em termos finais, total e mais favorável.”
Acontece que, não obstante este entendimento, não se conhecerá do mérito do procedimento cautelar, por se acompanhar o entendimento de Miguel Teixeira de Sousa e Abrantes Geraldes, no sentido em que, a absolvição da instância com fundamento na incompetência absoluta não é abrangida pela norma citada, por estarem em causa interesses eminentemente públicos, que não interesses privados das partes.
Escreve o Professor Miguel Teixeira de Sousa[15], a este respeito que, assumindo alguns pressupostos processuais a proteção de interesses de ordem pública enquanto outros têm em vista a salvaguarda dos interesses das partes, a prevalência da emissão da decisão de mérito em detrimento da de forma pode ter lugar, apenas quando o pressuposto em falta possua esta última natureza, ou seja, vise “(…) assegurar que a parte possa defender convenientemente os seus interesses em juízo e não seja indevidamente incomodada com a propositura de ações inúteis ou destituídas de objeto.”
Acresce (pg. 85 e 86)“não se encontra preenchido um pressuposto processual destinado a proteger interesses das partes, importa verificar se o conhecimento do mérito pode ser favorável à parte que seria beneficiada com a proteção que resultaria do preenchimento do pressuposto
(…)Nalguns casos, a falta do pressuposto processual não prejudica a parte, porque ela, mesmo que aquele se encontrasse preenchido, não poderia obter uma tutela mais favorável.(…)
Por exemplo: se falta a capacidade judiciária do autor, o tribunal pode proferir uma decisão de procedência, porque, mesmo que essa incapacidade fosse sanada, o autor não poderia obter uma tutela mais favorável (…)”
No mesmo sentido escreve o Conselheiro Abrantes Geraldes[16], “Seguramente ficam excluídas do novo regime legal as exceções dilatórias da incompetência absoluta, de ineptidão da petição inicial ou do caso julgado, cuja natureza as torna insupríveis e cuja justificação assente em interesses de ordem pública e não em simples interesses do autor ou do réu.
Com efeito a incompetência absoluta briga com os próprios fundamentos do poder jurisdicional do Estado – competência internacional -, com as regras de repartição desse poder por uma diversidade de jurisdições ou de tribunais especializados em determinadas áreas do direito – competência material- ou com planos hierárquicos inultrapassáveis – competência em razão da hierarquia.[17]
Resta assim determinar a incompetência absoluta do Juízo de Comércio, em razão da matéria, com a consequente absolvição da instância dos Requeridos.
Impondo-se julgar procedente a incompetência absoluta daquele tribunal, com a consequente absolvição dos Requeridos da instância, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas neste recurso.
V-DECISÃO:
Pelo exposto e em conclusão, acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação em julgar procedente a exceção dilatória da incompetência do Juízo de Comércio em razão da matéria, com a consequente absolvição dos Apelantes da Instância.
Determina-se em consequência o oportuno levantamento do arresto.
Custas pelos recorridos (cfr. artigo 527.º do CPC).
Relativamente á questão da taxa de justiça paga pelos recorrente, abra oportunamente vista ao Ministério Público.
Registe e notifique.
Porto, 16 de setembro de 2025.
Alexandra Pelayo
Artur Dionísio Oliveira
João Ramos Lopes
_____________________
[1] Citado pelos apelantes e proferido Trg2019.04.09, Proc. 1466/15.0T8BCL-A.G1, disponível em dgsi.pt.
[2] ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Atualizada de acordo com o DL 242/85, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 195. JOÃO DE CASTRO MENDES Direito Processual Civil, vol I, Lisboa, AAFDL, 1980, 646.].
[3] Proferido no P .11411/16.0T8LSB.L1, disponível in www.dgsi.pt.
[4] In Código de Processo Civil Anotado, Tomo I, pág. 201
[5] MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pág. 91. Na jurisprudência, entre outros, podem consultar-se: Ac. Rel. Porto 31.03.2011 – Proc. 147/09.8TBVPA.P1 endereço eletrónico: www.dgsi.pt; Ac. STJ, CJ/STJ, 1997, I, 125; Ac. Rel Porto 07/11/2000, CJ, Tomo V/2000, pág. 184.].
[6] Manual de Direito das Sociedades”, Volume I, “Das Sociedades em geral”, 2004, Almedina, páginas 509 e seguintes.
[7] Relatado pelo Juiz Conselheiro JOÃO CURA MARIANO e disponível in www.dgsi.pt.
[8] Citado pelos Recorrentes, proferido no Proc. 20106/23.7T8SNT.L1.S1, disponível em dgsi.pt.
[9] Proferido no P 23/08.1YLSB.L1-6, (Relator José Eduardo Sapateiro), disponível in www.dgsi.pt.
[10] Proferido no P 3796/24.0T8PNF.P2-A, tendo sido Relator, o Exm.º Juiz Adjunto Artur Dionísio Oliveira, disponível in www.dgsi.pt.
[11] c. do STJ de 28.02.2019, «[o] critério de distinção entre os danos diretos e os danos indiretos, entre os danos diretamente causados no sentido do art. 79.º e os danos indiretamente causados no sentido do art. 78.º do Código das Sociedades Comerciais, encontra-se na intermediação do património da sociedade. Os danos diretos produzem-se na esfera do terceiro sem a intermediação do património da pessoa coletiva; os danos indiretos, com a intermediação do património da pessoa coletiva».
[12] Proferido no P 10130/22.2T8LSB-A.L1-1 (Relatora Fátima Reis Siva), disponível in www.dgsi.pt.
[13] Paulo de Tarso Domingues, agora em Do Capital Social – Noção, Princípios e Funções, Studia Iuridica, nº33, Coimbra Editora, pg. 141.
[14] Proferido no P 02A2277 (Relator Ferreira Ramos), disponível in www.dgsi.pt.
[15] in Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, 2ª edição pág. 84.
[16] in Temas da Reforma do Processo Civil, vol. I, 2ª edição, págs. 38.
[17] Também neste sentido Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in Código de Processo Civil Anotado, 3ª edição, pág. 550 – anotação ao art. 278º.
Neste sentido os AC STJ de 12.09.13 (Fernandes do Vale, Proc. 1300/05.9TBTMR, www.dgsi.pt) e de 14.01.2015 (Melo Lima, Proc. 870/08.4TTLSB.L2.S1, www.dgsi.pt).