FACTOS COMPLEMENTARES
RESPONSABILIDADE POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
REPARAÇÃO NATURAL
EXCESSIVA ONEROSIDADE
Sumário

I - A reapreciação da materialidade fáctica impugnada pelo/a recorrente está reservada à que se apresenta relevante para a solução do caso, na medida em que o propósito que subjaz à impugnação da decisão da matéria de facto é o de possibilitar à parte vencida a obtenção de decisão diversa da que foi proclamada na decisão recorrida no que concerne ao mérito da causa.
II - Quando incida sobre factos que não interferem com a solução da questão de direito, por serem irrelevantes para alteração/modificação da decisão decretada pelo tribunal recorrido, a Relação deve abster-se de proceder à sua reapreciação, evitando, assim, levar a cabo uma atividade inútil e sem qualquer efeito prático.
III - Os factos (essenciais) complementares (o mesmo acontece com os concretizadores) não alegados só podem ser atendidos pelo tribunal se resultarem da instrução da causa e se as partes tiverem tido a possibilidade de se pronunciar quanto a eles (incluindo o seu atendimento pelo tribunal).
IV - No âmbito da responsabilidade civil emergente de sinistros rodoviários, a reparação natural do dano constitui a regra, o que significa que a ré seguradora, para quem está transferida a responsabilidade civil relativamente aos danos decorrentes do acidente em causa, deverá prover à reparação do veículo sinistrado, a não ser que esta seja excessivamente onerosa para si.
V - A reparação do veículo será excessivamente onerosa quando se concluir que o valor da reparação excede em muito o valor de substituição do veículo sinistrado [valor que não coincide nem se confunde com o valor venal deste] e que tal valor de substituição é suficiente para a aquisição de outro veículo com características e utilidade idênticas.
VI - É à ré seguradora que compete provar a factualidade integradora da existência de manifesta desproporção entre o custo da reparação e o valor patrimonial ou de substituição do veículo.

Texto Integral

Proc. 2030/24.8T8MAI.P1 – 2ª Secção (apelação)
Relator: Pinto dos Santos
Adjuntos: Ramos Lopes
Maria da Luz Seabra

* * *
Acordam nesta secção cível do tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:

AA, residente na Trofa, instaurou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra Companhia de Seguros Tranquilidade, ora A..., SA, com sede em Lisboa, pedindo a condenação desta a pagar-lhe as quantias de 910,62€ a título de perdas salariais, de 10.874,86€ a título de danos patrimoniais com a reparação do motociclo acidentado, de 599,95€ a título de danos patrimoniais com capacetes, de 11.450,00€ a título de privação do uso do motociclo, de 2.000,00€ por danos não patrimoniais decorrentes dos ferimentos que sofreu e de 2.000,00€ também por danos não patrimoniais por privação do uso, totalizando uma indemnização de 27.835,43€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento, exceto quanto aos danos não patrimoniais em que pede juros a partir da sua fixação.
Alegou, para tal, que no dia 20 de Agosto de 2023 ocorreu um acidente de viação cuja responsabilidade imputa à condutora do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-RM-.. e do qual resultaram, para si e para o seu motociclo de matrícula ..-..-QJ, os danos cujo pagamento peticiona.

A , regularmente citada, contestou a ação, por impugnação, nomeadamente, contrariando os factos alegados atinentes à responsabilidade pela eclosão do sinistro e por exceção, imputando a respetiva responsabilidade ao autor, tendo concluído pela improcedência da ação.

O Instituto da Segurança Social, IP, representado pelo Centro Distrital ..., citado para o efeito, deduziu pedido de reembolso do subsídio de doença, no valor de 900,42€, acrescido de juros de mora, à taxa legal, até efetivo pagamento, alegando que procedeu ao pagamento desta quantia ao autor em consequência da incapacidade para o trabalho por este sofrida, motivada pelo acidente descrito nos autos.

A ré contestou o pedido do ISS, IP, pugnando pela sua improcedência.

Foi dispensada a realização de audiência prévia e foi proferido despacho saneador, com identificação do objeto do litígio e fixação dos temas de prova, tendo, ainda, sido admitidos os meios de prova a produzir em julgamento.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que decidiu assim:
«III – DECISÃO
Pelo exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente e em consequência condeno a Ré a pagar ao Autor a quantia de 19.919,63 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, sobre a quantia de 17.919,63 € desde 11.04.2024 e sobre a quantia de 2.000,00 € desde a prolação da presente sentença, até efetivo e integral pagamento.
Julgo totalmente procedente o pedido de reembolso deduzido pelo Instituto da Segurança Social, IP. E em consequência condeno a Ré no pagamento da quantia de 900,42 €, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, desde 29.07.2024 até efetivo e integral pagamento.
Condeno Autor e Ré no pagamento das custas da ação, na proporção do decaimento.
Notifique e Registe.».

Irresignada com o sentenciado, interpôs a o presente recurso de apelação [admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo], cujas alegações culminou com as seguintes conclusões:
«DO ACIDENTE E DA RESPONSABILIDADE NA SUA PRODUÇÃO
1. Da conjugação dos depoimentos das testemunhas BB e CC, a primeira ouvida na sessão de julgamento de 11 de Dezembro de 2024 e a segunda ouvida na sessão de julgamento de 7 de Janeiro de 2025, depoimentos transcritos no corpo destas alegações, resultam demonstrados factos constantes dos artigos 8º e 16º da contestação.
2. Do depoimento da testemunha CC decorre que a manobra de diminuição da velocidade que a condutora do veículo segurado na recorrente imprimia ao veículo que conduzia – manobra que culminou na imobilização do veículo – teve como causa a intensidade do trânsito que na altura se fazia sentir.
3. Do depoimento da testemunha BB, conjugado com o depoimento da testemunha CC, decorre que nos momentos que antecederam o acidente e no momento em que ocorreu o embate entre o motociclo conduzido pelo autor/recorrido e o veículo segurado na recorrente o trânsito era fluído mas processava-se com intensidade e que a partir do momento em que o veículo segurado na recorrente se imobilizou veículos houve que transpuseram o veículo imobilizado, sem nele embaterem.
4. Do depoimento prestado pelo autor/recorrido AA, na sessão de julgamento de 11 de Dezembro de 2024, ouvido na sessão de julgamento de 11 de Dezembro de 2024, depoimento transcrito no corpo destas alegações, resulta que o autor/recorrido avistou o veículo segurado na recorrente quando dele se encontrava a uma distância de, pelo menos, 60 metros.
5. Do depoimento prestado pela testemunha CC, transcrito no corpo destas alegações, resulta que estando o veículo por si conduzido imobilizado, uma das suas passageiras assinalou a sua presença, utilizando para o efeito uma t-shirt e acenando com ela fora da janela do veículo.
6. Com base nos depoimentos acima referidos e alegados devem ser dados como provados factos constantes dos artigos 8º e 16º da contestação, no sentido de ser dado como demostrado que:
- Como próximo do local do acidente o trânsito, na altura, se processava com intensidade, a condutora do RM teve necessidade de diminuir a velocidade que imprimia ao veículo que conduzia, até quase o imobilizar – artigo 8º da contestação.
- Durante o período de tempo em que o RM permaneceu imobilizado e mesmo na altura em que o trânsito começou a ficar mais fluído diversos veículos transpuseram o RM sem nele embaterem – artigo 16º da contestação.
7. Deve ser ainda dado como provado que:
- O autor avistou o RM quando se encontrava a uma distância de, pelo menos, 60 metros.
- Estando o veículo imobilizado, uma das suas passageiras assinalou a sua presença, utilizando para o efeito uma t-shirt e acenando com ela fora da janela do veículo.
8. Nos termos do disposto no art.º 662º do CPCivil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se a prova produzida impuser decisão inversa – é o que desde já respeitosamente se requer a este Venerando Tribunal, no sentido de serem dados como provados os factos referidos em 6 e 7 destas Conclusões.
9. Decorre dos factos dados como provados na douta sentença recorrida que não ficou demonstrada atuação culposa por parte da condutora do veículo segurado na recorrente.
10. O autor/recorrido imprimia ao motociclo que conduzia velocidade superior a 100 km/hora – 11. dos factos provados; na altura o trânsito processava-se com intensidade – artigo 8º da contestação, facto aditado; diversos veículos transpuseram o veículo segurado na recorrente sem nele embaterem – artigo 16º da contestação, facto aditado; após a sua imobilização a condutora do veículo segurado na recorrente acionou os quatro piscas - 15. dos factos provados; o autor/recorrido avistou o RM quando se encontrava a uma distância de, pelo menos, 60 metros – facto aditado; estando o veículo imobilizado, uma das suas passageiras assinalou a sua presença, utilizando para o efeito uma t-shirt e acenando com ela fora da janela do veículo – facto aditado.
11. Tivesse o autor/recorrido, que para mais levava um passageiro transportado no motociclo, adequado a velocidade que imprimia ao motociclo às condições de trânsito que se faziam sentir e atentado à sinalização do veículo e teria conseguido imobilizar o motociclo sem embater no veículo segurado na recorrente naqueles mais de 60 metros que dispunha para o fazer.
12. A culpa na produção do acidente pertenceu ao autor/recorrido, por infração, entre o mais, ao disposto nos art.ºs 11º, 24º, nº 1 e 25º, nº 1, alínea m), todos do CEstrada.
13. Nos termos do disposto no art.º 505º do CCivil, a responsabilidade da recorrente decorrente do regime previsto no nº 1 do art.º 503º encontra-se excluída, dado o acidente ser de imputar ao autor/recorrido.
14. A ação deverá improceder e a recorrente deverá ser absolvida de todos os pedidos formulados pelo autor/recorrido e pelo interveniente/recorrido.
Sem Prescindir, caso se considere ser de imputar a responsabilidade tal como decidido na douta sentença recorrida – o que de todo o modo não se concede,
A CONDENAÇÃO NO PAGAMENTO DO VALOR DA REPARAÇÃO DO MOTOCICLO DO AUTOR/RECORRIDO
15. Considerando o valor da reparação do motociclo de € 10.874,86, o seu valor comercial de € 4.000,00 e o valor dos salvados de € 410,00, não é devido o pagamento da reparação por esta se revelar excessivamente onerosa.
16. Considerando que o valor da reparação do motociclo do autor/recorrido ultrapassa em mais de 250% o seu valor comercial, esta diferença traduz-se em desproporção que deve determinar a excessiva onerosidade da reparação, tal como previsto no art.º 566º, nº1, do CCivil e no art.º 41º do DL 291/2007, de 21 de Agosto.
17. O valor indemnizatório referente aos danos sofridos pelo motociclo do autor/recorrido deverá assim ser fixado em € 3.590,00, correspondente ao seu valor comercial deduzido do valor dos salvados.
18. Na douta sentença recorrida fez-se menos acertada interpretação dos factos e errada aplicação da Lei, designadamente dos art.ºs 607º do CPCivil, dos art.ºs 483º, 503º, 505º, 506º, 562º, e 566º, todos do CCivil, dos art.ºs 11º, 24º, nº 1 e 25º, nº 1, alínea m), todos do CEstrada e do artº 41º do DL 291/2007, de 21 de Agosto.
Pelo exposto,
Na procedência das conclusões do recurso da recorrente, deve a douta sentença ora recorrida ser revogada nos termos supra descritos, assim se fazendo JUSTIÇA.».

O autor apresentou contra-alegações em defesa da manutenção/confirmação in totum da decisão recorrida.

Foram colhidos os vistos dos Exmos. Adjuntos.
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II. Questões a apreciar e decidir:

Em atenção às conclusões das alegações da recorrente, que, de acordo com o estabelecido nos arts. 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do CPC, fixam o thema decidendum deste recurso [salvo ocorrendo outras questões de conhecimento oficioso, o que aqui não acontece], as questões a apreciar e decidir consistem em saber:
1. Se houve erro no julgamento da matéria de facto e há lugar à alteração desta nos termos pretendidos pela recorrente [conclusões 1 a 8 das alegações];
2. Se há que imputar a responsabilidade pelo sinistro, a título de culpa, ao autor [conclusões 9 a 14];
3. Se há que alterar o decidido quanto à reparação do motociclo do autor, por excessiva onerosidade da mesma [conclusões 15 a 17].
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III. Factos provados e não provados:

A) A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
1. No dia 20 de Agosto de 2023, pelas 17h35, ocorreu um acidente de viação na autoestrada (...), ao Km. 2.400, no sentido ... – ..., na freguesia ..., concelho da Maia, distrito do Porto, em que foram intervenientes:
a) O veículo ligeiro de passageiros, marca Toyota, modelo ..., matrícula ..-RM-.., propriedade de DD, com seguro válido e eficaz na Companhia de Seguros Tranquilidade, com a Apólice n.º ..., e conduzido por CC
b) O motociclo, marca Honda, modelo ..., matrícula ..-..-QJ, propriedade do Autor e conduzido pelo próprio, com seguro válido e eficaz na Seguradora B... S.A., Apólice n.º ....
2. A referida autoestrada, no sentido ... – ..., tem uma faixa de rodagem, com quatro vias de trânsito no mesmo sentido.
3. As vias de trânsito são separadas por traço longitudinal descontínuo, com a largura total de 17,45 m.
4. Nesse local, o piso encontra(va)-se em bom estado de conservação.
5. Na altura fazia bom tempo, o piso estava seco e limpo.
6. Nas descritas circunstâncias de tempo e lugar, o Autor, acompanhado de um seu amigo, circulava na terceira via de trânsito, do lado esquerdo, atrás de um veículo automóvel.
7. Subitamente, sem que nada o fizesse prever, o condutor do referido veículo, bruscamente, guinou o mesmo para o lado direito.
8. Apercebeu-se então o Autor, que tal manobra ficou a dever-se ao facto de se encontrar imobilizado naquela via de trânsito, o veículo de matrícula ..-RM-.., que, até então, não era visível para o Autor.
9. Acabando por colidir na traseira da viatura imobilizada.
10. Como consequência direta do embate o Autor e o amigo foram projetados acabando por cair da frente da viatura imobilizada.
11. O Autor imprimia ao seu veículo velocidade superior a 100 Km/hora.
12. A condutora do veiculo da matrícula ..-RM-.. não colocou o sinal de sinalização de perigo, perpendicularmente em relação ao pavimento e ao eixo da faixa de rodagem.
13. Pouco tempo antes de o Autor ter embatido no veículo imobilizado, um outro motociclo de matrícula ..-RE-.., esbarrou também contra a mesma viatura.
14. O veículo de matrícula ..-RM-.. imobilizou-se na via por força de uma avaria tendo-se desligado e não mais voltado a ligar.
15. Após a sua imobilização a condutora do veículo de matrícula ..-RM-.. acionou os quatro piscas.
16. E contactou a Brisa e a assistência em viagem.
17. A condutora e os restantes ocupantes que se encontravam dentro da viatura, não saíram da mesma para salvaguarda da sua integridade física.
18. Como consequência direta e necessária do embate o Autor sofreu ferimentos no corpo.
19. Tendo sido transportado ao Centro Hospitalar ... onde lhe foram prestados os primeiros socorros, no respetivo Serviço de Urgência e efetuados exames.
20. No dia 21 de Agosto de 2024, foi transferido para o Centro Hospitalar 1..., EPE – Unidade de Famalicão, onde foi submetido a cirurgia de fratura dos arcos costais e fratura de Galeazzi.
21. Teve alta médica no dia 22 de Agosto de 2023.
22. As lesões sofridas e as sequelas delas resultantes determinaram para o Autor, um período de doença de 54 dias, com igual período de incapacidade temporária para o trabalho, sendo:
De 21.08.2023 a 01.09.2023 – 12 dias
De 02.09.2023 a 29.09.2023 – 28 dias
De 30.09.2023 a 13.10.2023 – 14 dias
23. Durante o período de Incapacidade Temporária para o Trabalho, o Autor viu-se impossibilitado de desempenhar a sua atividade profissional.
24. O Autor, à data do acidente, auferia como vencimento base o montante de 885,00 €, acrescido de 5,20 € por dia, a título de subsídio de alimentação.
25. No mês de Agosto de 2023, a entidade empregadora procedeu ao desconto de 9 dias de trabalho, no montante de 367,62 €.
26. No mês de Setembro de 2023, a entidade empregadora procedeu ao desconto de 21 dias de salário, no montante de 885,00 €, a que acresce o montante de 109,20 € referente a 21 dias de subsídio de alimentação, num total de 994,20 €.
27. No mês de Outubro de 2023, a entidade empregadora procedeu ao desconto de 9 dias de salário a que corresponde o montante de 367,62 €, a que acresce o montante de 46,80 €, referente a 09 dias de subsídio de alimentação, totalizando o montante de 414,42 €.
28. A Segurança Social atribuiu ao Autor um subsídio de doença desde 21.08.2023 a 13.10.2023, num total de 54 dias.
29. Em consequência da incapacidade para o trabalho o Instituto da Segurança Social pagou ao Autor a quantia de 900,42 €.
30. Em consequência do embate o motociclo sofreu danos que impedem a sua circulação e cuja reparação ascende a 10.874,86 €.
31. O valor atual do motociclo é de, pelo menos, 4.000,00 €.
32. O valor dos salvados é de 410,00 €.
33. Em consequência do embate os capacetes ficaram danificados sendo o seu valor de 599,95 €.
34. O motociclo encontrava-se em bom estado de conservação, capaz de proporcionar ao Autor vantagens de comodidade e rapidez nas viagens de trabalho e de ócio.
35. O Autor reside na cidade da Trofa e trabalha no Porto - C..., Ldª, com sede na Avª ..., ..., Porto - que dista cerca de 32 Km, através da ....
36. O Autor usava o seu motociclo para o acesso ao emprego e fruição de momentos livres.
37. Com a sua privação o Autor viu-se na necessidade de sair mais cedo de casa e chegando mais tarde.
38. O custo de aluguer de motociclos de cilindrada inferior à do Autor ascende á quantia diária de 50,00 €.
39. No momento do acidente e nos instantes que o precederam, o Autor sofreu um enorme susto e receou pela própria vida.
40. O Autor sofreu dores em todas as regiões do seu corpo atingidas.
41. E sofreu as dores e os incómodos inerentes aos tratamentos a que se viu na necessidade de se submeter, nomeadamente no Hospital ..., no Centro Hospitalar 1..., bem como no Centro de Saúde ... – Trofa.
42. As lesões sofridas e as sequelas delas resultantes, determinaram, para o Autor, um período de doença de 54 dias.
43. O Autor sofreu e sofre de ansiedade, dores físicas e desgosto.
44. Por contrato de seguro titulado pela Apólice n.º ..., válido e eficaz à data do acidente, o proprietário do veículo de matrícula ..-RM-.., transferiu para a aqui Ré a responsabilidade civil por danos causados a terceiros emergentes da circulação do referido veículo.*
B) … E não provados os seguintes factos:
1. No local, atento o sentido de marcha .../..., a faixa de rodagem desenvolve-se numa reta sem inclinação, com várias centenas de metros, à qual se segue uma curva aberta, com visibilidade superior a 100 metros para a direita.
2. O Autor circulava a menos de 15 m de distância do veículo que seguia á sua frente.
3. Quando viu o veículo de matrícula ..-RM-.. o Autor não reduziu a velocidade nem travou.
4. Após a sua imobilização, a condutora do veículo de matrícula ..-RM-.. não ligou as luzes avisadoras de perigo.
5. O contacto com a Brisa e a assistência em viagem ocorreu pelas 17h24.
6. O valor de mercado do motociclo não é superior a 3.500,00 €.
7. A partir da data da ocorrência do acidente e como consequência direta e necessária das lesões sofridas e das sequelas delas resultantes, o Autor no desempenho das suas tarefas diárias, tem necessidade de efetuar esforços acrescidos.
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IV. Apreciação das questões indicadas em II:

1. Se houve erro no julgamento da matéria de facto e há lugar à alteração desta nos termos pretendidos pela recorrente.
Mostram-se cumpridos os ónus primários e secundários da impugnação da matéria de facto estabelecidos no art. 640º nºs 1 als. a) a c) [primários] e 2 al. a) [secundário] do CPC [diga-se que, contrariamente ao que acontece com os ónus primários, o não cumprimento do ónus secundário não implica, por regra, a rejeição do recurso da matéria de facto, nem obsta à reapreciação da prova, como vem defendendo a jurisprudência maioritária, de que são exemplo os Acórdãos do STJ de 14.03.2024, proc. 8176/21.7TSLSB.L1.S1, de 27.02.2024, proc. 2351/21.1T8PDL.L1.S1, de 25.01.2024, proc. 1007/17.4T8VCT.G1.S1, de 21.03.2023, proc. 296/19.4T8ESP.P1.S1, de 13.10.2022, proc. 1700/20.4T8LRS.L1.S1, de 03.10.2019, proc. 77/06.5TBGVA.C2.S2 e de 29.10.2015, proc. 233/09.4T8VNC.G1.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj].
Há, por isso, sem necessidade de outros considerandos acerca de tais ónus de impugnação, que indagar, à luz do nº 1 do art. 662º do CPC, se a decisão de facto da 1ª instância deve ser alterada quanto aos concretos pontos impugnados.
Importa, porém, recordar que o poder de reapreciação da prova pelos tribunais da Relação, quando assenta, no todo ou em parte, em depoimentos/declarações gravados [como acontece no caso em apreço], não tem hoje o alcance restrito, quase residual, que teve no passado, em que se sustentava que a 2ª Instância não podia procurar uma nova convicção e que devia limitar-se, apenas e só, a aferir se a do julgador a quo, vertida nos factos provados e não provados e na fundamentação desse seu juízo valorativo, tinha suporte razoável no que a gravação, em conjugação com os demais elementos probatórios dos autos, permitiam percecionar. Pelo contrário, atualmente impera uma conceção mais ampla de tal poder que, embora reconheça que a gravação áudio ou vídeo dos depoimentos e declarações [ainda assim, mais no primeiro caso que no segundo] não consegue traduzir tudo quanto pôde ser percecionado pelo julgador da 1ª instância, designadamente, o modo como as declarações foram prestadas, as hesitações que as acompanharam, as reações perante as objeções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, e que existem aspetos comportamentais ou reações dos depoentes que apenas são percecionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia, entende, ainda assim, que os tribunais da Relação têm a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância, devendo proceder à audição dos depoimentos e fazer incidir as regras da experiência, como efetiva garantia de um segundo grau de jurisdição.
Por isso, quando, ao reapreciar a prova e valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção a que também está sujeito, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, o tribunal da Relação deve proceder à modificação da decisão, fazendo jus ao reforço dos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um efetivo segundo grau de jurisdição [neste sentido, i. a., Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª ed. atualiz., 2022, Almedina, pgs. 333-334 e Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., reimpres, 2025, Almedina, pg. 858, anotação 5 (relativamente ao art. 712º nº 1 do CPC na versão anterior a 2013, mas válidos para o atual art. 662º nº 1 do CPC, ainda, Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., 2008, pgs. 213-218 e Remédio Marques, in A Ação Declarativa à Luz do Código Revisto, 3ª ed., 2011, pgs. 638-646); na jurisprudência, entre muitos outros, Acórdãos do STJ de 27.02.2024, proc. 7997/20.2T8SNT.L1.S2, de 17.10.2023, proc. 2154/07.6TBPVZ.P2.S1, de 28.11.2023, proc. 2898/17.4T8CSC.L1.S1, de 12.10.2023, proc. 1358/19.3T8PTM.E2.S1 e de 10.03.2022, proc. 6640/12.3TBMAI.P2.S2, todos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj].

A recorrente pretende que sejam dados como provados os factos que alegou nos arts. 8º e 16º da contestação, mais concretamente:
«Como próximo do local do acidente o trânsito, na altura, se processava com intensidade, a condutora do RM teve necessidade de diminuir a velocidade que imprimia ao veículo que conduzia, até quase o imobilizar» – artigo 8º da contestação.
E «Durante o período de tempo em que o RM permaneceu imobilizado e mesmo na altura em que o trânsito começou a ficar mais fluído diversos veículos transpuseram o RM sem nele embaterem» – artigo 16º da contestação.
E, ainda, que se considerem provados os seguintes factos ao abrigo do disposto no nº 2 do art. 5º do CPC [como expressamente refere a pgs. 11 do corpo/motivação das alegações]:
«O autor avistou o RM quando se encontrava a uma distância de, pelo menos, 60 metros.
Estando o veículo imobilizado, uma das suas passageiras assinalou a sua presença, utilizando para o efeito uma t-shirt e acenando com ela fora da janela do veículo.”.
Estriba esta pretensão nos depoimentos prestados na audiência final pelas testemunhas BB e CC e nas declarações do autor recorrido, indicando os segmentos das respetivas gravações que, na sua ótica, sustentam a alteração da matéria de facto que pretende.
Começando pelo facto alegado no art. 8º da contestação diremos que o mesmo é de todo irrelevante para o que a recorrente pretende: a imputação da responsabilidade pelo sinistro ao autor em vez da sua segurada como decidiu a 1ª instância. Isto porque está assente e a recorrente não põe em causa que imediatamente antes da colisão do motociclo do autor e por ele conduzido [matrícula ..-..-QJ] com a traseira do veículo segurado na ré recorrente [ligeiro de passageiros de matrícula ..-RM-..], este encontrava-se imobilizado na via de trânsito [autoestrada ..., sentido ..., Km 2.400] «por força de uma avaria tendo-se desligado e não mais voltado a ligar» - factos provados nºs 8 e 14.
Não questionando a recorrente estes dois factos provados, particularmente o do nº 14, e deles resultando que a imobilização do RM se deveu a avaria e ao facto de se ter desligado e não mais voltado a ligar, não pode querer agora a prova de versão diversa no sentido que alegou no referido art. 8º da contestação. Além de que, como começámos por dizer, encontrando-se provado aquele circunstancialismo sempre seria irrelevante a prova do que consta deste artigo do articulado da ré, já que tal situação – diminuição da velocidade do RM até quase ficar imobilizado – teria necessariamente ocorrido antes da que está descrita naqueles nºs 8 e 14 dos factos provados, dos quais resulta, repete-se, que, no momento da colisão do motociclo QJ, aquele veículo segurado na ré recorrente estava imobilizado por causa de uma avaria em consequência da qual se desligou e não mais voltou a ligar-se [não mais a sua condutora logrou ligar a respetiva ignição].
E idêntica irrelevância, para o indicado efeito, se verifica relativamente à factualidade alegada no art. 16º da contestação. Desde logo, face ao que consta do nº 13 dos factos provados, onde se refere que «pouco tempo antes de o Autor ter embatido no veículo imobilizado, um outro motociclo, de matrícula ..-RE-.., esbarrou contra a mesma viatura» [ou seja, contra o veículo segurado na ré recorrente]. Além disso, a irrelevância do que consta daquele artigo da contestação resulta, ainda, da falta de concretização fáctica do exato circunstancialismo em que os tais alegados «diversos veículos transpuseram o RM [quando este estava imobilizado] sem nele embaterem», designadamente se tal aconteceu já depois da colisão do motociclo QJ e quando este se encontrava caído, embatido, na via [o que tornava o embaraço/obstáculo nesta existente mais evidente e visível para os demais condutores, por haver um veículo ligeiro imobilizado e um motociclo danificado caído no pavimento], se esses veículos circulavam com outras viaturas à sua frente que dificultassem ou impedissem a visibilidade dos respetivos condutores [como aconteceu com o autor, cujo motociclo, nos instantes que precederam a colisão, seguia atrás de um veículo automóvel que diminuía ou impedia o visionamento, pelo autor, do RM imobilizado – factos provados nºs 6 a 9], etc..
Ora, sabendo-se que a reapreciação da materialidade fáctica impugnada está reservada à que se apresenta relevante para a solução do caso, já que o propósito que subjaz à impugnação da decisão da matéria de facto é o de possibilitar à parte vencida a obtenção de decisão diversa da que foi proclamada na decisão recorrida no que concerne ao mérito da causa, tal atividade só faz sentido em situações em que a factualidade impugnada possa ter interferência na solução jurídica do caso [decisão de mérito], ou seja, quando o desfecho do recurso a favor do/a recorrente esteja dependente da modificação daquela factologia [ainda que em conjugação com outra matéria de facto provada]. Quando incida sobre factos que não interferem com a solução da questão de direito, por serem irrelevantes para alteração/modificação da decisão decretada pelo tribunal recorrido, a Relação deve abster-se de proceder à sua reapreciação, evitando, assim, levar a cabo uma atividade inútil e sem qualquer efeito prático [sobre esta problemática e no sentido que fica exposto, vd. Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª ed. atualiz., nota 526, pg. 334, que refere: “[é] claro que a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto apenas se justifica nos casos em que da eventual modificação da decisão possa resultar algum efeito útil relativamente à resolução do litígio no sentido propugnado pelo recorrente, sendo dispensável nos demais casos em que não interfira de modo algum no resultado declarado pela 1ª instância”; idem, Acórdãos do STJ de 14.07.2021, proc. 65/18.9T8EPS.G1.S1 e de 09.02.2021, proc. 26069/18.3T8PRT.P1.S1, disponíveis in www.dgsi.pt/jstj].
Por conseguinte, sendo irrelevante para o desfecho deste recurso [decisão de mérito a proferir] o apuramento do que foi alegado nos referidos arts. 8º e 16º da contestação, não há que proceder à audição da indicada prova gravada, por se tratar de ato inútil.
Nesta parte, improcede a impugnação da matéria de facto.

Passando aos dois factos da conclusão 7 das alegações.
A recorrente refere que tais factos não foram «diretamente alegados» por si, na contestação, mas «podem e devem ser dados como provados, ao abrigo do disposto no nº 2 do art. 5º do CPCivil».
O nº 2 deste preceito permite, nas suas als. a) e b), que, além dos factos articulados pelas partes, sejam considerados pelo tribunal:
- os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
- e os factos [essenciais] que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar.
Não já os factos essenciais nucleares, uma vez que estes, por constituírem o núcleo da causa de pedir da pretensão formulada ou serem o fundamento das exceções invocadas, têm que ser obrigatoriamente alegados nos articulados [petição inicial ou contestação], sob pena de ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir ou de rejeição, por nulidade, da exceção – arts. 5º nº 1 e 186º nºs 1 e 2 al. a) do CPC.
Importa, pois, começar por aferir se os factos ora em apreço são factos essenciais nucleares, factos essenciais complementares ou concretizadores, ou factos instrumentais.
Ensina Paulo Pimenta [in Os Temas da Prova, pgs. 22-23, disponível no site www.cej.justica.gov.pt] que os factos essenciais comportam duas vertentes/modalidades: os ‘essenciais nucleares’ e os ‘essenciais complementares’ ou ‘concretizadores’, explicando que “[o]s ‘nucleares’ constituem o núcleo primordial da causa de pedir ou da exceção, desempenhando uma função individualizadora ou identificadora, a ponto de a respetiva omissão implicar a ineptidão da petição inicial ou a nulidade da exceção”, ao passo que “os ‘complementares’ e os ‘concretizadores’, embora também integrem a causa de pedir ou a exceção, não têm já uma função individualizadora”, logo acrescentando que “os factos complementares são os completadores de uma causa de pedir (ou de uma exceção) complexa, ou seja, uma causa de pedir (ou uma exceção) aglutinadora de diversos elementos, uns constitutivos do seu núcleo primordial, outros complementando aquele”, enquanto “os factos concretizadores têm por função pormenorizar a questão fáctica exposta sendo, exatamente, essa pormenorização dos factos anteriormente alegados que se torna fundamental para a procedência da ação (ou da exceção).”.
E quanto aos factos instrumentais [que se contrapõem aos factos essenciais], refere Lopes do Rego [in Comentário ao CPC, pg. 201] que “definem-se, (…), como sendo aqueles que nada têm a ver com substanciação da ação e da defesa (…), podendo ser livremente investigados pelo juiz no âmbito dos seus poderes inquisitórios de descoberta da verdade material”, ou, nos dizeres de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa [in Código de Processo Civil Anotado, cit. vol. I, pgs. 32-33, anotação 16], são “aqueles que permitem a afirmação, por indução, de outros factos de que depende o reconhecimento do direito ou da exceção”.
Embora a ré, ora recorrente, não tenha alegado, na contestação, os dois factos ora em equação, alegou, ainda assim, que:
«17. Tendo em vista salvaguardar a sua integridade física, a condutora do RM e os passageiros que nele seguiam transportados optaram por ficar no interior do veículo, porquanto era grande o risco de o abandonarem – relembre-se que o veículo se encontrava em plena autoestrada, onde habitualmente se praticam velocidades elevadas.
18. Pelo mesmo motivo, de risco elevado para a sua integridade física, a condutora do RM não abandonou o veículo para colocar o triângulo sinalizador na faixa de rodagem da .... Não obstante,
19. A sinalização do veículo, quatro piscas ligados, era perfeitamente percetível, a pelo menos 100 metros de distância, por qualquer condutor prudente e minimamente diligente e atento.
20. Dito de outro modo, o RM, imobilizado, era visível a pelo menos 100 metros de distância.».
Significa isto que na contestação foi alegado que o RM, imobilizado na via, era visível a, pelo menos, 100 metros de distância, sendo-o também para o autor, condutor do motociclo QJ, que a condutora daquele sinalizou a imobilização do veículo ligando os quatro piscas e que ela e os demais ocupantes do mesmo permaneceram no seu interior.
Assim sendo, não há dúvida que, com vista à imputação do sinistro ao próprio autor a título de culpa [esta constitui um dos pressupostos da causa de pedir complexa das ações de responsabilidade civil emergentes de acidentes de viação, sendo os outros o facto ilícito, os danos e o nexo causal entre aquele e estes, como estabelecem os arts. 483º nº 1 e 563º do CCiv.], a ré recorrente alegou na contestação a factualidade essencial nuclear de tal pressuposto, pelo que os factos que agora quer ver declarados provados, referidos na conclusão 7 das alegações, se apresentam, no caso do primeiro caso [«O autor avistou o RM quando se encontrava a uma distância de, pelo menos, 60 metros»], como facto essencial concretizador e, no segundo [«Estando o veículo imobilizado, uma das suas passageiras assinalou a sua presença utilizando para o efeito uma t-shirt e acenando com ela fora da janela do veículo»], como facto complementar do que foi alegado nos referidos/transcritos números da contestação. Estamos, assim, perante factos enquadráveis na previsão da al. b) do nº 2 do citado art. 5º.
Para poderem ser atendidos, exige, ainda, este normativo que as partes, particularmente a parte contrária à que deles se quer prevalecer ou a quem podem aproveitar, tenham tido a possibilidade de se pronunciarem quanto a esses factos.
Estando em causa factos que a recorrente diz resultarem da produção da prova na audiência final e tendo, nesta, estado ambas as partes representadas pelos seus ilustres mandatários [cfr. as respetivas atas de 11.12.2024 e de 07.01.2025], poderia pensar-se que estaria, assim, também verificada a exigência imposta na parte final daquela al. b) [este entendimento parece encontrar acolhimento em Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, in Primeiras notas ao NCPC, vol. I, Almedina, pgs. 41 e 521, que consideram que “para que a parte tenha a possibilidade de se pronunciar, não é necessário que o juiz despache no sentido de lhe ser dada a palavra para o efeito”].
Mas a maioria da doutrina e da jurisprudência segue outra orientação, sustentando que “o juiz deve anunciar às partes, antes do encerramento da audiência, que está a equacionar utilizar esse mecanismo de ampliação da matéria de facto”, pois só assim ficará salvaguardada “a confiança que é necessário ter quanto ao conteúdo dos atos do processo e de não impor aos mandatários graus de diligência e atenção absolutos, exigindo-lhes que a todo o momento prevejam todas as hipóteses e levem o esforço probatório aos limites, apenas para evitar que se o tribunal vier a considerar relevantes outros factos os mesmos resultem provados ou não provados” [assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., reimpr., 2025, Almedina, pg. 32; idem, Teixeira de Sousa, in CPC Online Livro I, pg. 9, também ali citado e Acórdãos desta Relação do Porto de 13.07.2022, proc. 1836/12.5TBMCN-A.P1 (desta Secção) e de 03.06.2024, proc. 8590/20.5T8PRT.P1, disponíveis in www.dgsi.pt/jtrp; no primeiro destes acórdãos exarou-se que “não basta que o facto novo aflore na discussão da causa, onde o contraditório é observado, para que se possa concluir que às partes foi dada a possibilidade de sobre os mesmos se pronunciarem (…); admitir-se que o juiz possa, sem mais (isto é, apenas com a exigência de audiência contraditória na produção do meio de prova), considerar o facto novo, essencial (complementar ou concretizador), corresponderia a exigir ao mandatário da parte interessada um grau de atenção e diligência incomum, dirigida não só à produção e valoração da prova que fosse sendo realizada, mas também, antecipando o juízo valorativo do tribunal, à possibilidade de vir a ser retirado desse meio de prova e considerado provado um novo facto nele mencionado, sendo por isso de entender que a disciplina prevista no art. 5º, nº 2, b) do CPC exige para que tais factos sejam considerados (independentemente de requerimento das partes nesse sentido) que o tribunal expressamente advirta as partes, antes do encerramento da discussão de facto, sobre a possibilidade de tais factos serem considerados, pois importa cumprir o contraditório quanto ao próprio aproveitamento do facto pelo tribunal (…). É esta a solução que se nos afigura respeitadora do processo justo e equitativo e a que resulta da ponderação do princípio da cooperação na obtenção da justa composição do litígio (art. 7º do CPC), sendo a mais consentânea com a proibição de decisões-surpresa”].
Para esta segunda orientação, a não observância de tal pressuposto necessário para a aquisição oficiosa da factualidade complementar [o mesmo vale para a factualidade concretizadora] determina a anulação da decisão, nos termos do art. 662º nº 2 al. c) do CPC.
Como, in casu, a Mma. Julgadora a quo não anunciou às partes, antes de proferir a sentença, a possibilidade de utilizar o mecanismo de ampliação da matéria de facto previsto na al. b) do nº 2 do art. 5º do CPC, daí decorreria, ao abrigo desta segunda orientação, que se impunha a anulação da sentença recorrida.
Mas a anulação da sentença só deve ter lugar como último recurso. Se a factualidade em questão não emergir da discussão da causa com a consistência suficiente e necessária para a sua demonstração em juízo, ou seja, se não resultar patente da discussão da causa, já não fará sentido anular-se a sentença, pois tal traduzir-se-ia na prática de um ato inútil – a anulação da sentença determinaria a baixa dos autos 1ª instância, seria aí observado o referido pressuposto e, caso a matéria de facto em questão não resultasse suficientemente demonstrada dos meios de prova indicados pela ora recorrente, o tribunal a quo voltaria a proferir nova sentença em tudo igual à que está aqui sob apreciação, sem aditamento dos ditos factos de natureza complementar.
Por isso, para aferir se tais meios de prova permitem concluir, com a necessária e suficiente consistência, no sentido pretendido pela recorrente, procedemos à audição da pertinente prova gravada [sem nos limitarmos aos segmentos especificados nas alegações de recurso, como permite a 1ª parte da al. b) do nº 2 do art. 640º do CPC].
A recorrente limitou-se a indicar o depoimento de parte do autor para prova do primeiro facto indicado na conclusão 7 das alegações e o depoimento da testemunha CC para prova do segundo facto referido na mesma conclusão.
Da fundamentação/motivação da matéria de facto dada como provada e não provada, constante da sentença recorrida, resulta que sobre a dinâmica do acidente depuseram, em julgamento, além do autor, as testemunhas BB, que minutos antes também havia embatido no veículo segurado na recorrente, EE, amigo do autor e que seguia como passageiro no motociclo que este conduzia [o autor e estas duas testemunhas foram inquiridas na sessão de julgamento de 11.12.2024], CC, interveniente no acidente e FF, militar da GNR [estas duas testemunhas foram ouvidas na sessão de julgamento de 07.01.2025].
Ouvimos todos estes depoimentos.
Quanto ao primeiro facto indicado na conclusão 7 das alegações da recorrente, apenas o autor, AA, no depoimento de parte que prestou, se pronunciou quanto a ele. Disse que no momento do acidente havia bastante trânsito na via [...], no sentido em que circulava, mas o mesmo fluía normalmente e sem paragens; que circulava atrás de uma carrinha/furgão Ford ..., pela terceira faixa a contar da direita, e que, de repente, a mesma guinou para a direita sem fazer qualquer sinal; que se apercebeu então da existência de um veículo à frente, cerca de 60 metros adiante, mas não deu logo conta que o mesmo estivesse imobilizado na via, nem identificou nenhum perigo associado à presença do mesmo por não haver sinalização a indicá-lo; que só instantes depois e já muito próximo dele é que se apercebeu que o referido veículo estava imobilizado/parado na via [na mesma faixa por onde conduzia o seu motociclo (a via no local e nesse sentido tinha quatro faixas de rodagem)], altura em que tentou desviar-se dele para evitar embater-lhe, mas já não conseguiu, indo embater na respetiva traseira.
Relativamente ao segundo facto da mesma conclusão 7 depuseram as testemunhas BB, que conduzia o motociclo RE que alguns instantes antes também havia embatido, embora de raspão, no veículo RM [segurado na recorrente], e CC, condutora do RM. A testemunha BB afirmou que, depois de ter embatido no RM, se dirigiu aos seus ocupantes, incluindo a condutora, questionando-os porque não sinalizavam o perigo que o RM representava para os demais condutores e para os próprios ocupantes deste [já que todos permaneciam no interior do veículo e havia bastante trânsito, embora fluindo normalmente], dizendo-lhes que, pelo menos, deveriam sinalizar a presença do mesmo com um colete ou uma t-shirt, agitando-a pelo exterior do veículo, para chamarem a atenção do perigo que a imobilização deste representava. Mais referiu que os ocupantes do RM se mantiveram no interior do veículo, sem nada fazerem, e que instantes depois, não mais de 3-4 minutos após o seu embate naquele, ocorreu o embate do motociclo do autor no RM. Acrescentou, ainda, que era de dia [referiu também a hora aproximada do acidente] e que o trânsito que se fazia sentir dificultava o avistamento do RM pelos outros condutores e a perceção de que este se encontrava imobilizado na via. A condutora do RM disse, por sua vez, que logo depois do seu veículo ter ficado imobilizado na via ligou os quatro piscas e um dos ocupantes pôs-se a agitar uma t-shirt através de uma das janelas das portas traseiras do veículo, para alertar os outros condutores. As restantes testemunhas atrás referidas nada disseram sobre este assunto.
Que concluir desta prova?
No que concerne ao primeiro facto a Mma. Juíza a quo exarou na fundamentação/motivação da matéria de facto, constante da sentença recorrida, o seguinte:
«Ora, é necessário ter em consideração que o acidente é dinâmico. O Autor seguia atrás de uma carrinha Ford ... que pela sua dimensão lhe retirava, necessariamente, visibilidade. Assim, quando a carrinha saiu da frente do motociclo o mesmo estava a cerca de 60 m de distância do carro, cuja imobilização não estava sinalizada, á exceção dos 4 piscas, que por ser dia e estar sol podia não ser imediatamente percetível. Acresce que o trânsito apesar de fluído era intenso. Ora, quando o Autor se apercebeu do carro imobilizado continuava em movimento pelo que no tempo de reação percorreu, ainda, alguns metros considerando que circulava a cerca de 104 Km/hora. Assim, no momento de reagir ao obstáculo o Autor já estava tão perto do mesmo que não conseguiu evitar a colisão.».
Concordamos com esta análise. A circunstância de o autor se ter apercebido da presença do veículo RM quando distava deste cerca de 60 metros, imediatamente após a viatura que seguia à sua frente ter guinado bruscamente para a direita sem sinalizar tal manobra – viatura que até então, pela sua dimensão, o impedia de se aperceber da presença daquele – é perfeitamente compatível com a outra circunstância relatada pelo autor: não se ter apercebido de imediato que o RM se encontrava imobilizado na via, na referida faixa, e que só instantes depois e, necessariamente, quando já se encontrava demasiado perto deste, é que se apercebeu que o mesmo estava parado na via, na faixa por onde ele circulava. É verdade que o RM tinha os quatro piscas ligados [como consta do nº 15 dos factos provados], mas não havia triângulo a sinalizar o perigo/obstáculo que a sua imobilização representava para os outros utentes da via [triângulo que deveria estar colocado a não menos de 30 metros da retaguarda do veículo, de modo a ser visível a 100 metros de distância, como impõe o art. 88º nº 3 do CEstrada]. Além disso, não podemos esquecer-nos que era de dia [cerca das 17,35h de um dia de sol de agosto (como referiram algumas das testemunhas que ouvimos)], em que a visibilidade dos piscas é incomparavelmente menor do que durante a noite, e que a via, no dito sentido, apresentava então trânsito intenso, embora fluido, o que também constituía, necessariamente, forte obstáculo à boa visibilidade de eventuais obstáculos na via. Uma coisa é um veículo parado numa reta [com algumas dezenas de metros de extensão] de uma estrada nacional [ou municipal] com pouco trânsito e apenas com uma ou duas faixas de rodagem, em que os condutores se apercebem – ou, pelo menos, podem aperceber-se – facilmente daquele obstáculo, e outra, bem diferente, é a existência de um veículo imobilizado numa autoestrada com várias faixas de rodagem e bastante trânsito, fluido, no mesmo sentido, em que os próprios veículos em circulação dificultam a perceção, por parte dos outros condutores, da exata situação em que aquele se encontra [se em movimento, ainda que lento, ou se completamente imobilizado] e do perigo que representa para esses condutores… mesmo que o veículo imobilizado até tenha os quatro piscas acionados [como era o caso do RM], pois durante o dia e, sobretudo, num dia com sol, a visibilidade destes é bem menor que a que têm durante a noite.
Como o que relevaria para aferição da culpa do autor pela eclosão do sinistro seria a determinação do momento em que se apercebeu da presença do RM parado na via [que é coisa diferente do simples avistamento do mesmo] e não havendo nada, em termos de prova, ainda que com recurso a presunções naturais, que nos permita concluir que à referida distância de 60 metros [em que se apercebeu pela primeira vez da presença do RM] o autor poderia ter logo dado conta que aquele se encontrava parado e que tal só não aconteceu por ir distraído/desatento [constatação/presunção esta que se mostra afastada pelo que atrás dissemos], entendemos que o que a recorrente pretende – que se considere provado que o autor se apercebeu que o RM estava imobilizado na via quando se encontrava a uma distância de [pelo menos ou cerca de] 60 metros – não poderá, nem poderia, caso os autos voltassem à 1ª instância, obter provimento.
Já o simples avistamento do RM pelo autor a [pelo menos ou cerca de] 60 metros de distância, tal como pretende a recorrente, apresenta-se como facto inócuo, por não ser possível concluir-se, em complemento, que ele só não se apercebeu logo que o RM estava parado por ir desatento/distraído.
Quanto ao segundo facto da conclusão 7, também entendemos que não poderá, nem poderia [se baixasse à 1ª instância], ser dado como provado, por não ser claro que a testemunha CC, condutora do veículo RM, tenha, quanto a ele, deposto com total verdade e isenção, até porque, como resulta do que atrás exarámos, a sua versão se mostra contrariada pelo que disse a testemunha BB, condutor do outro motociclo que, antes do autor, também embateu, embora de raspão, no RM. Aliás, não é de afastar que a ‘ideia’ de um ocupante do RM a agitar uma t-shirt para chamar a atenção dos condutores tenha surgido na mente e depois no depoimento da testemunha CC, em função do que disse a testemunha BB em julgamento, a qual, no seu depoimento [após ter embatido no RM], declarou que questionou a condutora e os ocupantes do RM por não sinalizarem a presença [e a imobilização] deste, dizendo-lhes que, pelo menos, deveriam agitar um colete ou uma t-shirt pelo exterior do veículo. E isto porque a testemunha BB depôs na sessão de julgamento de 11.12.2024, enquanto a testemunha CC só depôs na sessão de 07.01.2025, tanto mais que quando esta foi ouvida no local pelo agente da GNR, FF, que elaborou a participação do acidente que foi junta com a petição inicial como doc. 1, não fez qualquer alusão a tal sinalização [com uma T-shirt, por um dos ocupantes], tendo-se limitado a afirmar que acionou os quatro piscas logo após o RM ter ficado imobilizado na via.
Por conseguinte, a pretensão da recorrente de ver alterada a matéria de facto fixada na sentença não poderá, nem poderia [na 1ª instância] proceder, acarretando a consequente manutenção da mesma.
Como tal, para não incorrermos na prática de ato inútil, também não faz sentido a anulação da sentença.
Improcede, assim, o recurso na parte atinente à matéria de facto.
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2. Se há que imputar a responsabilidade pelo sinistro, a título de culpa, ao autor.
A recorrente, nas conclusões 9 a 14 das alegações, defende a alteração do decidido na sentença recorrida quanto à responsabilidade pelo acidente dos autos, sustentando que este deve ser imputado, a título de culpa, exclusivamente ao autor [na sentença considerou-se que o acidente não podia ser imputado a título de culpa a nenhum dos condutores (autor e condutora do veículo segurado na recorrente) e que os danos sofridos pelo motociclo do autor tiveram como causa a imobilização do veículo segurado na Ré, fazendo, por isso, recair sobre esta, ao abrigo do art. 506º nº 1 do CCiv., a obrigação de indemnizar aquele pelos danos sofridos].
Fá-lo, porém, no pressuposto da procedência da impugnação que deduziu contra a matéria de facto, apreciada no item anterior, como decorre da conclusão 10. Ou seja, nesta parte, a recorrente só questiona o que declarou a sentença recorrida no pressuposto da procedência do recurso na parte relativa à matéria de facto que impugnou [com o consequente aditamento à matéria provada dos quatro factos que descreveu nas conclusões 6 e 7 das suas alegações], não pondo em causa a bondade [o acerto] da mesma em função da factualidade que nela foi dada como provada. Quer isto significar que a alteração que pretende relativamente ao referido segmento do mérito da causa [responsabilidade pela eclosão do sinistro, por culpa exclusiva do autor] tem como pressuposto [ou conditio sine qua non] a modificação da decisão de facto nos precisos termos em que esta vinha impugnada.
Como esta parte da pretensão recursória não obteve provimento, sendo de manter inalterada a factologia fixada na sentença recorrida, fica prejudicada a apreciação da questão da imputação da responsabilidade pelo acidente ao autor a título de culpa, suscitada nas indicadas conclusões das alegações.
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3. Se há que alterar o decidido quanto à reparação do motociclo do autor, por excessiva onerosidade.
Finalmente, nas conclusões 15 e seguintes, a recorrente insurge-se contra o que se decidiu na sentença no que diz respeito ao dano relativo à reparação do motociclo do autor.
Invocando o disposto nos arts. 566º nº 1 do CCiv. e 41º do DL 291/2007, de 21.08, e por considerar que a reparação do motociclo se apresenta excessivamente onerosa, entende que o dano em referência deve ser fixado em 3.590,00€, correspondente ao valor comercial do mesmo deduzido do valor dos salvados, e não nos 10.874,86€ declarados na sentença recorrida.
Em fundamentação do decidido sobre esta questão, consignou-se na sentença o seguinte:
«Quanto aos danos materiais no veículo resulta da prova produzida que como consequência do acidente o veículo do autor sofreu danos que impedem a sua circulação e cuja reparação ascende a 10.874,86€.
O valor atual do motociclo é de, pelo menos, 4.000,00€ e o valor dos salvados é de 410,00€.
Nos termos do artigo 566º, nº 1, do Código Civil, a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não for possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
No caso da reparação natural é ao lesante que incumbe o ressarcimento dos prejuízos causados, consequentemente é seu encargo promover a reparação dos danos que causou.
A restauração natural é, sem dúvida, a forma mais perfeita de reparar um dano, seja através da reintegração pura ou da indemnização em forma específica. Pode, todavia, acontecer que a referida reintegração ou reposição específica se apresente inviável porque não existe possibilidade material de reconduzir as coisas à situação exata ou aproximada em que estariam se a lesão se não tivesse verificado, porque desse modo se não reparam integralmente os danos ou ainda porque a ordem jurídica a não admite, designadamente por considerá-la demasiado onerosa para o devedor.
Nestes casos tem de optar-se por uma indemnização ou restituição por equivalente, traduzida na entrega de uma quantia em dinheiro que corresponda ao montante dos danos.
Estipula o artigo 41º, do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, que entende-se que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total, na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, quando se verifique uma das seguintes hipóteses: a) Tenha ocorrido o seu desaparecimento ou a sua destruição total; b) Se constate que a reparação é materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável, por terem sido gravemente afetadas as suas condições de segurança; c) Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100% ou 120% do valor venal do veículo consoante se trate respetivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos.
O veículo do Autor tem um valor de mercado de, pelo menos, 4.000,00€ e o valor do salvado é de 410,00€.
Resulta do exposto que atendendo ao seu valor venal e ao valor do salvado, o valor da reparação é superior a 200%.
Não obstante, tal como resulta do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7.09.2010, publicado em www.dgsi.pt “esse diploma, tal como o que o antecedeu (DL 83/2006), teve como objetivo reduzir a conflitualidade existente entre as seguradoras e os seus segurados e terceiros e reforçar a proteção dos interesses económicos dos consumidores, através da introdução de procedimentos a adotar pelas empresas de seguros e da fixação de prazos com vista à regularização rápida de litígios e do estabelecimento de princípios base na gestão de sinistros. A intenção foi, portanto, a de se obter uma resolução rápida e simplificada dos litígios entre seguradoras, segurados e terceiros numa fase extrajudicial, visando uma solução amigável e evitando o recurso aos tribunais. Assim, mediante a apresentação de uma proposta razoável de indemnização apresentada pela seguradora, fundada nos critérios estabelecidos nesse diploma (291/2007), pode o segurado ou o terceiro aceitá-la, resolvendo-se em definitivo o litígio. Porém, se não houver acordo, e se houver necessidade de recorrer às vias judiciais, a determinação da espécie e o quantum da indemnização passam a ser regulados pelos regras e princípios gerais da responsabilidade civil e da obrigação de indemnização, entre os quais avultam, de um lado, o princípio da reparação in natura e, de outro, o princípio da reparação integral do dano, ficando afastada a aplicação dos critérios previstos no Capítulo III do DL 291/2007, designadamente o artigo 41º”.
No mesmo sentido se pronunciam os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães, de 25.06.2020 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 7.09.2021, ambos publicados em www.dgsi.pt.
Com efeito, conforme se refere no citado acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, “em termos gerais, a excessiva onerosidade, enquanto limitação ao princípio da reposição natural, terá lugar sempre que “houver manifesta desproporção entre o interesse do lesado, que importa recompor, e o custo que a restauração natural envolve para o responsável” (…) a excessiva onerosidade ocorre quando a indemnização específica, sendo possível, acarrete, no entanto, para o obrigado a indemnizar, um esforço que não tenha qualquer equivalência com a vantagem acarretada para o lesado, ou seja, quando a sua exigência atente gravemente contra o princípio da boa fé”, o que no caso dos autos não decorre dos factos provados e recaía sobre Ré o ónus da prova da excessiva onerosidade.
Assim, não obstante o valor venal do veículo sendo possível a sua reparação técnica deverá a Ré ser condenada no pagamento do seu valor.».
Acompanhamos esta fundamentação e adiantamos, desde já, que também neste ponto o recurso não pode proceder.
Por se tratar se questão que vem sendo decidida pelos nossos tribunais superiores de modo uniforme, tratando-se de fundamentos devidamente consolidados, seremos sintéticos na sustentação do nosso entendimento.
Começando pela aplicabilidade ao caso disposto no art. 41º do DL 291/2007, de 21.08, defendida pela recorrente.
Dispõe este artigo que:
«1 - Entende-se que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total, na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, quando se verifique uma das seguintes hipóteses:
a) Tenha ocorrido o seu desaparecimento ou a sua destruição total;
b) Se constate que a reparação é materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável, por terem sido gravemente afetadas as suas condições de segurança;
c) Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respetivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos.
2 - O valor venal do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente.
3 - O valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respetivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização.
(…)».
A jurisprudência portuguesa vem entendendo, unanimemente – e com ela concordamos –, que o regime previsto neste preceito, designadamente o que decorre da al. c) do nº 1, em conjugação com os nºs 2 e 3, não visou substituir as regras gerais indemnizatórias estabelecidas, essencialmente [no que para aqui interessa considerar], nos arts. 562º e 566º do CCiv. – que consagram o princípio da reconstituição da situação anterior ao dano, mesmo que alcançada pela equivalência de um valor em dinheiro como elemento reparador da lesão [quando a reparação natural não seja possível; nestes casos, a entrega de um valor em dinheiro visa, fundamentalmente, fornecer ao lesado meios para ele próprio suprimir o dano] –, sendo apenas aplicável aos casos de resolução extrajudicial dos litígios e que visa, no essencial, fornecer às companhias de seguros critérios orientadores mínimos com vista à célere resolução dos mesmos, de modo a evitarem que os lesados recorram aos meios judiciais. Além disso, acrescenta-se que o estipulado naqueles números e alíneas do art. 41º do DL 291/2007 também não se mostra adequado às situações em que os veículos acidentados têm já um uso e desgaste consideráveis e que a sua aplicação pura e simples, com mero atendimento do valor de mercado do bem [o seu valor de venda], converteria a responsabilidade civil numa espécie de expropriação privada pelo preço de mercado. Além de muitos outros e dos citados na sentença recorrida [no segmento acima transcrito], decidiram neste sentido os Acórdãos do STJ de 28.05.2024 [proc. 3587/19.0T8OAZ.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj] e desta Relação do Porto de 26.06.2025, de 10.10.2024, de 20.02.2024, de 04.05.2022 e de 15.12.2021 [respetivamente, nos procs. 3693/23.7T8AVR.P1, 10599/22.5T8VNG.P1, 6267/19.3T8VNG.P1, 107/22.3YRPRT.P1 e 103/18.0T8VGS.P2, todos disponíveis in www.dgsi.pt/jtrp].
Afastada a aplicação ao caso dos critérios fixados no aludido art. 41º do DL 291/2007, vejamos então porque não é de afastar in casu a reparação do motociclo, tal como decidido na sentença recorrida.
De acordo com art. 566º do CCiv.:
«1. A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
2. Sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.».
A propósito deste normativo, reportado à reparação de veículos acidentados em sinistros rodoviários, decidiu-se no Acórdão do STJ de 31.05.2016 [proc. 741/03.0TBMMN.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj] o seguinte [que tem total pertinência para o caso sub judice]:
“(…) Sendo o fim precípuo da lei que o lesante proveja à direta remoção do dano real, e consistindo este em danos produzidos num veículo, há que proceder à sua reparação ou substituição, por outro idêntico ou similar, por conta do agente, que lhe proporcione igual utilidade e satisfação das suas necessidades, em detrimento do recebimento do correspondente valor em dinheiro, cabendo ainda as despesas tendentes a esta substituição, tal como a reparação material, propriamente dita, na forma de indemnização, por reparação natural, e não na indemnização por equivalente.
(…) Contendendo o princípio geral da restauração natural, em matéria de obrigação de indemnização, com o dano real ou concreto, põe em relevo o valor de uso que o lesado extrai de veículo sinistrado, ou seja, o seu valor patrimonial (…)
(…) A excessiva onerosidade da reconstituição natural tem de ser aferida, não, apenas, em função da diferença entre o preço da reparação e o valor venal do veículo, mas, também, no confronto entre aquele preço e o valor patrimonial do veículo, como o valor de uso que dele retira o seu proprietário, sendo que a um insignificante valor comercial daquele pode corresponder a satisfação, em elevado grau, das necessidades do seu proprietário.
(…) É errado estabelecer-se a comparação entre o valor venal ou de mercado do automóvel, antes do acidente, por um lado, e o custo da sua restituição natural [reparação ou aquisição de bem idêntico, em valor e qualidades], por outro, porquanto os termos da relação são, antes, entre o valor necessário para a satisfação dos interesses legítimos do credor, por um lado, e o custo da restauração natural, por outro.
(…) A existência da excessividade da restauração natural resulta da verificação cumulativa de dois requisitos, sendo o primeiro o do benefício para o credor, consequente à reconstituição, e o segundo o de que esta se revele iníqua e abusiva, por contrária aos princípios da boa-fé, pelo que a reconstituição natural será, excessivamente, onerosa para o devedor e, portanto, de excluir, por inadequada, apenas, quando se apresente como um sacrifício, manifestamente, desproporcionado para o lesante, quando confrontado com o interesse do lesado na integridade do seu património.
(…) Sendo a regra geral da restauração natural imposta, no interesse de ambas as partes, como modo primário de indemnização, se o credor reclama a restauração natural é ao devedor que pretenda contrapor-lhe a indemnização pecuniária, enquanto réu, que cabe o ónus de alegação e de prova da excessiva onerosidade da mesma, enquanto facto excetivo, justificativo da possibilidade da restituição por equivalente, ou seja, a prova da exceção, isto é, que a restauração natural é, excessivamente, onerosa para si.”.
No mesmo sentido, decidiu o Acórdão do STJ de 27.02.2025 [proc. 743/22.8T8PFR.P1.S1, disponível no mesmo sítio da dgsi], a saber:
“Acontece, por vezes, que a restauração natural (reparação do veículo) não se considera viável, o que sucederá sempre que aquela seja impossível ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
A questão que se coloca é a de saber em que situações a condenação da seguradora no pagamento do custo da reparação deve considerar-se excessivamente onerosa.
O valor venal do veículo – valor de mercado do veículo antes do acidente – foi, ao longo de vários anos, utilizado como critério pelas seguradoras para invocar a excessiva onerosidade da reparação. Considerava-se, então, que sempre que o valor da reparação excedesse o valor venal do veículo, verificar-se-ia uma situação de excessiva onerosidade justificativa da atribuição ao lesado de indemnização em valor correspondente ao referido valor venal (deduzido o valor do salvado).
Porém, logo se percebeu que a consideração, em exclusivo, do critério do valor venal poderia levar a soluções iníquas.
Como esclarece Júlio Gomes, ‘este entendimento não protege efetivamente os bens do lesado, mas tão-só o preço que com a sua venda ele poderia obter, tutelando o lesado apenas na sua função social de potencial alienante’ (…). Como também explica Maria da Graça Trigo ‘o afastamento do critério do valor venal foi sendo concretizado pela nossa jurisprudência que veio defender que, para efeito de se apurar se uma reparação do veículo exigida pelo lesado é ou não excessiva, se deve ponderar, por um lado, o interesse do lesado na dita reparação e, por outro lado, o custo que a mesma acarreta para o responsável (ver, designadamente, os Acórdãos do STJ de 15/05/2000, de 29/04/2003, de 10/02/2004, de 05/07/2007, de 04/12/2007, de 05/06/2008 e de 21/04/2010, assim como os Acórdãos da Relação do Porto de 14/06/2010 e de 29/05/2012). Também para efeitos de fixação da indemnização por equivalente se criticou a aceção tradicional de valor venal, pois, atender estritamente ao valor de mercado do bem (no sentido do seu valor de venda) seria converter a responsabilidade civil numa forma de expropriação privada, pelo preço de mercado’ (…).
A jurisprudência tem vindo a recorrer ao valor de substituição do veículo como critério para aferição quer do interesse do lesado na reparação, quer para o efeito de fixação do valor da indemnização por equivalente.
O valor de substituição pode não coincidir com o valor venal do veículo (sendo, em regra, superior), pois que o primeiro tem em consideração a situação específica do veículo sinistrado e a posição que o mesmo ocupa no património do lesado.
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, em particular, tem vindo, em sintonia, a propugnar o entendimento de que ‘a excessiva onerosidade da reconstituição natural tem de ser aferida, não, apenas, em função da diferença entre o preço da reparação e o valor venal do veículo, mas, também, no confronto entre aquele preço e o valor patrimonial do veículo, como o valor de uso que dele retira o seu proprietário, sendo que a um insignificante valor comercial daquele pode corresponder a satisfação, em elevado grau, das necessidades do seu proprietário.’ – acórdão do STJ de 31-05-2016 (proc. n.º 741/03.0TBMMN.E1.S1), disponível em www.dgsi.pt.
Em suma: deve garantir-se ao lesado a reconstituição da situação que existiria não fosse o acidente, o que operará, em regra, por via da reparação do seu veículo ou, caso a reparação se afigure excessivamente onerosa, por via da atribuição de indemnização a fixar no montante equivalente ao valor da substituição do veículo.
A reparação do veículo será excessivamente onerosa se se concluir que o valor da reparação é excessivo face ao valor de substituição do veículo sinistrado e que o valor de substituição é mais do que suficiente para repor a situação que existia antes do acidente, o que ocorrerá sempre que, com aquele valor, seja possível adquirir veículo com utilidade e características idênticas.
Como é evidente, é ao devedor (obrigado à restauração natural) que compete demonstrar, através de elementos objetivos, que existe uma manifesta desproporção entre o interesse do lesado (à reconstituição da sua situação patrimonial) e o custo da reparação. Não basta uma simples onerosidade (uma maior ou menor poupança da seguradora), sendo essencial demonstrar que a reparação do veículo impõe ao devedor um encargo desmedido e desajustado, face aos limites impostos pela boa-fé. Tal sucederá, por exemplo, sempre que se conclua que o lesado lograria adquirir no mercado um veículo idêntico ao sinistrado com recurso a uma indemnização calculada com recurso ao critério do valor de substituição e que o valor da reparação é manifestamente desproporcional face a esse valor de substituição.” [em sentido idêntico ao destes dois arestos do STJ, vejam-se, ainda, i. a., os acórdãos desta Relação do Porto atrás citados].
Assentando nestes ensinamentos e volvendo ao caso em apreço, diremos que, apesar de estar provado que a reparação do motociclo do autor ascende a 10.874,86€, que o valor [venal] atual do mesmo é de, pelo menos, 4.000,00€ e que o valor dos salvados é de 410,00€ [factos provados nºs 30, 31 e 32] – o que significa que, como se diz na sentença, o valor da reparação é superior a 200% do valor venal daquele –, não se mostra, ainda assim, a mesma excessivamente onerosa para a recorrente. E isto porque, por um lado, a excessiva onerosidade da reparação, enquanto causa excludente da reconstituição natural do dano [parte final do nº 1 do art. 566º do CCiv.], não se afere em função do valor venal do motociclo [único que se mostra provado], mas sim do seu valor patrimonial ou de substituição [que tem em conta o valor de uso que dele retira o proprietário e que, por regra, é superior ao respetivo valor venal] e porque, por outro, se desconhece se o montante que a recorrente propõe para a compensação pela perda total do motociclo é suficiente para a aquisição de outro pelo autor, de idênticas características e com idêntico grau de satisfação das necessidades deste.
Como era à ora recorrente, ré na ação, que cabia, de acordo com o estatuído no art. 342º nº 2 do CCiv., a prova da factologia integradora destas duas condições [valor de substituição do motociclo e suficiência do montante que propõe, como compensação pela perda total do mesmo, para a aquisição de outro com idênticas características e funcionalidade], surge inequívoco que a sua pretensão recursória, de ver alterada a decisão recorrida no segmento em que a condenou a pagar ao autor a quantia de 10.874,86€, correspondente ao valor de reparação do motociclo do autor, não pode proceder, impondo-se, pelo contrário, a confirmação do que decidiu o tribunal a quo.
Improcede, assim, o recurso na totalidade.

As custas deste recurso ficam a cargo da recorrente, pelo decaimento total – arts. 527º nºs 1 e 2, 607º nº 6 e 663º nº 2, todos do CPC..
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Síntese conclusiva:
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V. Decisão:

Face ao exposto, os Juízes desta secção cível do tribunal da Relação do Porto acordam em:
1º) Julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença recorrida.
2º) Condenar a recorrente nas custas do recurso, pelo total decaimento.

Porto, 16 de setembro de 2025
Pinto dos Santos
João Ramos Lopes
Maria da Luz Seabra