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PRAZO DE APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
INDEMNIZAÇÃO AOS CREDORES
Sumário
I - As chamadas Leis Covid, que determinaram a suspensão do prazo de apresentação à insolvência após o conhecimento da situação da empresa, viram cessados os seus efeitos a 5/7/2023, pelo que qualquer situação de insolvência em curso deveria ter sido alvo de apresentação até 5/8/2023. II - A qualificação de uma insolvência como culposa, por incumprimento do dever de apresentação à insolvência e do dever de levar a registo as contas de exercício, exige o estabelecimento de uma conexão entre tais omissões e o surgimento ou agravamento da situação de insolvência. III - A ausência de dolo directo na criação da situação de insolvência, em situação em que se apurou apenas a contribuição de dois gerentes para o agravamento da situação, justificada que fica a qualificação da insolvência como culposa, pode ser apta a determinar uma limitação da respectiva responsabilidade indemnizatória aos credores, enquanto agentes afectados por essa qualificação.
Texto Integral
PROC. N.º 1627/23.8T8AMT-C.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo de Comércio de Amarante - Juiz ...
REL. N.º 974
Relator: Juiz Desembargador Rui Moreira
1º Adjunto: Juíza Desembargadora Maria Eiró
2º Adjunto: Juíza Desembargadora Lina Castro Baptista
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
1 - RELATÓRIO
Por apenso aos autos de insolvência relativos a A... UNIPESSOAL LDA, declarada insolvente por sentença de 04.09.2024, veio a credora AA requerer a qualificação de insolvência como culposa, com afetação dos seus gerentes BB e CC, alegando, em síntese, que ambos, em conluio, lograram esvaziar totalmente a atividade da sociedade insolvente, desviando a sua clientela para uma sociedade constituída pelo único sócio da insolvente, com a mesma designação pela qual era conhecida a Insolvente “B...”, e que utilizava o mesmo web site, impossibilitando a insolvente de obter receitas que lhe permitissem pagar os seus créditos, além de terem incumprido o dever de apresentação à insolvência que já se verificava no ano de 2021.
Notificado, o Administrador de Insolvência veio apresentar o seu parecer, pretendendo que a insolvência seja qualificada culposa, com afetação do referido gerente BB. Afirmou que o Requerido prosseguiu com uma exploração deficitária e incumpriu o dever de apresentação à insolvência.
Aberta vista ao Ministério Público, promoveu o mesmo e com igual fundamento. Concluiu peticionando a afetação dos gerentes da Insolvente, BB e CC.
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Regularmente citados/notificados dos Pareceres apresentados pelo/a Administrador/a de Insolvência e pelo Ministério Público, os Requeridos deduziram Oposição, pedindo que a Insolvência seja qualificada como fortuita, sem afetação dos Requeridos.
Foi dispensada a Audiência Prévia, proferido despacho saneador e foram fixados o objeto do litígio os temas da prova.
A final, foi proferida sentença que qualificou como culposa a insolvência da devedora, “A... Unipessoal Lda.” e, em consequência, dispôs:
“a) Declarar afetados pela qualificação culposa da insolvência, com culpa grave, os gerentes de direito e de facto da Insolvente, os Requeridos, CC e BB;
b) Decretar a inibição dos requeridos CC e BB para administrar patrimónios de terceiros, por um período de 3 (três) anos, atenta a gravidade do seu comportamento e da sua contribuição para o agravamento da situação de insolvência da Requerida;
c) Decretar a inibição dos requeridos CC e BB para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, por um período de 3 (três) anos.
d) Condenar os Requeridos CC e BB a indemnizarem os credores da Devedora Insolvente, solidariamente, no montante dos créditos não satisfeitos e até às forças do respetivo património, fixando-se o valor dessa indemnização, no montante de 50% dos créditos não satisfeitos na presente insolvência, atento o grau de ilicitude dos factos praticados, o grau de culpa apurado e a sua participação no agravamento da insolvência.”
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Desta sentença, vieram interpor recurso CC, BB e A... UNIPESSOAL, LDA, concluindo nos seguintes termos:
(…)
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A credora AA veio igualmente interpor recurso da sentença, por entender não dever ser limitada a 50% dos créditos não satisfeitos na insolvência a responsabilidade dos requeridos CC e BB.
Concluiu nos termos seguintes:
(…)
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O MºPº apresentou resposta ao recurso oferecido pelos requeridos, pronunciando-se pelo seu não provimento e pela confirmação da decisão recorrida.
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A credora AA apresentou resposta ao recurso dos requeridos, começando por defender a rejeição do segmento respeitante à impugnação da matéria de facto, porquanto “… os Recorrentes não referem qual a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre a matéria de facto. Nem referem quais os concretos pontos da matéria de facto que consideram incorrectamente julgados.” Sucessivamente, e face a tal inadmissibilidade da impugnação da matéria de facto, conclui pela extemporaneidade do restante recurso, por não ser aplicável a extensão do prazo de 10 dias, reservado às situações de efectiva impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Em qualquer caso, conclui pela falta de fundamento do respectivo recurso.
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Por sua vez, CC, BB, e A... UNIPESSOAL, LDA, ofereceram resposta ao recurso da credora AA, afirmando a respectiva falta de fundamento.
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Ambos os recursos foram admitidos, como de apelação, com subida nos próprios autos do incidente e com efeito devolutivo.
Foram recebidos nesta Relação, cumprindo apreciá-los.
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2- FUNDAMENTAÇÃO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1 e 2, do C.P.Civil.
Nas circunstâncias do processo, as questões a resolver são as seguintes:
No recurso da insolvente e dos requeridos:
- Se deve ser admitido e, nessa hipótese, como deve ser decidida a impugnação do juízo da matéria de facto;
- Se não ficou demonstrado que a actividade da devedora foi prosseguida no interesse de terceiros, designadamente da C..., Lda, ou dos gerentes;
- Se não resultou demonstrado a partir de quando é que a devedora se deveria ter apresentado à insolvência, o que prejudica a conclusão de que incumpriu essa obrigação;
- Se o prazo de apresentação à insolvência esteve suspenso, por efeito da legislação COVID, até 2023, o que exclui a existência de atraso, tanto mais que a credora AA veio requerer a insolvência antes de decorridos 6 meses sobre o fim daquela suspensão;
- Se, em qualquer caso, não decorreu qualquer agravamento da situação de insolvência, em virtude da não apresentação à insolvência em momento anterior;
- Se não decorreu qualquer agravamento da situação, ou prejuízo, do não registo da IES na Conservatória do Reg. Comercial.
No recurso da requerente AA:
- Se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto, com eliminação da al. a) dos factos não provados, e se deve ser aditado o facto proposto pela apelante;
- Se a culpa dos requeridos é muito elevada, pelo que a sua responsabilidade deve elevar-se à satisfação da totalidade dos créditos que não venham a ser satisfeitos na insolvência.
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A análise das questões colocadas implica que se ponderem os factos ajuizados na decisão recorrida. Diz-se ali:
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A) FACTOS PROVADOS:
(…)
A) A Requerida “A... Unipessoal Lda.” foi declarada insolvente por sentença proferida nos autos principais, em 04.09.2024, em ação apresentada a Juízo em 04.12.2023.
B) A Requerida foi constituída em 04.07.2012, com o objeto social comercialização, exportação, importação e representação com recurso a leilões, ou estabelecimento próprio, de antiguidades e objetos de arte e similares. Consultoria e serviços de apoio à compra, venda, intermediação e outros conexos aos supracitados, incluindo em suporte digital. Promoção e realização de eventos sociais. Transportes rodoviários ocasionais de mercadorias nacionais e internacionais; com sede social na Praceta ..., ..., ...; com o capital social inicial de 5 000 euros e desde ../../2016 de 80 000,00 euros, dividido inicialmente em duas quotas, após aumento de capital, de valor nominal de 40 000 euros, cada uma, pertencentes aos sócios DD e CC, obrigando-se a sociedade com a assinatura de um gerente e tendo sido nomeada gerente a sócia DD, que renunciou à gerência em 03.08.2018, tendo sido nomeado gerente nesta data o sócio CC, que renunciou em 17.06.2022, tendo nesta data sido nomeado gerente BB; a sócia DD transmitiu a sua quota a CC em 20.07.2020, tendo sido unificadas as duas quotas em 15.12.2020, e transmitida a quota única a BB em 04.07.2022.
C) A requerida “A... Unipessoal Lda.” não publicou na respetiva Conservatória de Registo Comercial as suas contas referentes aos exercícios dos anos de 2021 e de 2023.
D) No apenso de reclamação de créditos foram reconhecidos créditos, no montante global de 191 393,35 euros.
E) Foi reconhecido um crédito à Autoridade Tributária, no montante global de 61 093,32 euros, referente a IRS vencido em 28-10-2021, no montante de 34 659,29 euros, e IRC vencido em 02-11-2021, no montante de 21 155,07 euros.
F) Foi reconhecido um crédito ao Instituto de Segurança Social, no montante global de 8 502,44 euros, por contribuições vencidas referentes aos meses de dezembro de 2021, janeiro, fevereiro, março, abril e maio de 2022, consecutivamente.
G) A sociedade “B..., Lda.”, inicialmente denominada “C..., Lda.” foi constituída em 23.06.2020, com o objeto social comércio a retalho por correspondência ou via Internet de obras de arte; atividades relacionadas com as tecnologias de informação e informática; com sede social na Rua ..., ..., ... ..., Porto; com o capital social de 5 000 euros, numa quota única pertencente ao sócio CC, obrigando-se a sociedade com a assinatura de um gerente e tendo sido nomeado gerente o único sócio.
H) A marca “B...” encontra-se registada no INPI, desde 2012, com o número ...39, inicialmente a favor da sociedade Insolvente e transferida para a sociedade “C..., Lda.”, em 14.08.2020.
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Após a produção de prova realizada em audiência de julgamento, consideram-se provados também os seguintes factos essenciais e os instrumentais com interesse para a decisão da causa:
1. A sociedade “D..., Lda.” foi constituída em 23.06.2020, com a denominação de “C..., Lda.”, com o objeto social inicial de Comércio a retalho de artigos em segunda mão, em estabelecimentos especializados com venda online; comércio a retalho de antiguidades e objetos de arte antigos; organização de leilões por conta de terceiros, com sede social na Praceta ..., ..., freguesia ..., ... ..., com o capital social de 5 000 euros, dividido em duas quotas, uma de valor nominal de 4 999 euros, pertencente ao sócio CC, e outra de 1 euro, pertencente à socia EE, obrigando-se a sociedade com a assinatura de um gerente e tendo sido nomeado gerente o sócio CC; após alteração ocorrida em 04-05-2021, passou a denominar-se “B..., Lda.” e alterou a sua sede para a Rua ..., ..., freguesia ..., ... Porto; após alteração ocorrida em 15-12-2021 alterou o seu objeto social para comercio a retalho por correspondência ou via Internet de obras de arte; e, após alteração ocorrida em 07-12-2022 alterou o seu objeto social para comercio a retalho por correspondência ou via Internet de obras de arte; atividades relacionadas com as tecnologias de informação e informática; e, após alteração ocorrida em 31-10-2024 alterou o seu objeto social para comercio a retalho por correspondência ou via Internet de obras de arte; atividades relacionadas com as tecnologias de informação e informática; Consultoria em marketing e publicidade e a sua sede social para a Rua ..., ... ..., Porto; tendo a sócia EE transmitido a sua quota para o sócio CC, em 15-05-2024.
2. Da declaração de IES da Insolvente do exercício de 2020 constam os seguintes saldos: vendas e serviços prestados 127 771,99 euros, custo de mercadorias vendidas e das matérias consumidas sem valor, fornecimentos de serviços externos 179 143,87 euros, gastos com o pessoal 89 533,94 euros, outros rendimentos e ganhos 21 545,34 euros, outros gastos e perdas 32 478,77 euros, resultado liquido do período -168 773,52 euros, ativos fixos tangíveis 284 358,38 euros, ativos intangíveis 13 271,90 euros, inventário 16 975 euros, clientes 384 419,66 euros, outros ativos correntes 5 288,76 euros, caixa e depósitos bancários 18 049,39 euros, capital realizado 80 000 euros, outros instrumentos de capital próprio 50 000 euros, resultados transitados 162 976,34 euros, capital próprio 130 908,78 euros, financiamentos obtidos 232 346,48 euros, outras contas a pagar 193 192,47 euros, fornecedores 72 621,45 euros, outros passivos correntes 87 585,80 euros, total do passivo 591 630,51 euros.
3. Da declaração de IES da Insolvente do exercício de 2021 constam os seguintes saldos: vendas e serviços prestados 5 381,29 euros, custo de mercadorias vendidas e das matérias consumidas sem valor, fornecimentos de serviços externos 19 745,36 euros, gastos com o pessoal 89 512,20 euros, outros rendimentos e ganhos 11 502 euros, outros gastos e perdas 8 232,59 euros, resultado liquido do período -82 498,38 euros, ativos fixos tangíveis 279 835,48 euros, ativos intangíveis 12 064,54 euros, inventário 16 975 euros, clientes 352 090,73 euros, outros ativos correntes 5 458,48 euros, caixa e depósitos bancários 16 831,95 euros, capital realizado 80 000 euros, outros instrumentos de capital próprio 50 000 euros, resultados transitados 89 216,58 euros, capital próprio 143 424,16 euros, financiamentos obtidos 111 597,97 euros, fornecedores 59 381,24 euros, total do passivo 542 145,33 euros.
4. Da declaração de IES da Insolvente do exercício de 2022 constam os seguintes saldos: vendas e serviços prestados sem valor, subsídios à exploração 1 364,28 euros, fornecimentos de serviços externos 7 355,20 euros, gastos com o pessoal 29 705,10 euros, outros rendimentos e ganhos 20 euros, outros gastos e perdas 8 679,28 euros, resultado liquido do período -55 097,52 euros, ativos fixos tangíveis 275 648,66 euros, ativos intangíveis 10 857,18 euros, inventário 16 975 euros, clientes 352 090,73 euros, outros ativos correntes 5 570,48 euros, caixa e depósitos bancários 17 084,11 euros, capital realizado 80 000 euros, outros instrumentos de capital próprio 50 000 euros, resultados transitados 6 718,20 euros, capital próprio 88 326,64 euros, financiamentos obtidos 75 288,63 euros, fornecedores 115 974,71 euros, outros passivos correntes 391 982,88 euros, total do passivo 594 114,30 euros.
5. Da declaração de IES da Insolvente do exercício de 2023 constam os seguintes saldos: vendas e serviços prestados sem valor, fornecimentos de serviços externos 20,80 euros, gastos com o pessoal 73,10 euros, outros rendimentos e ganhos 391,36 euros, outros gastos e perdas 72 700,49 euros, resultado liquido do período -77 407,83 euros, ativos fixos tangíveis 257 470,85 euros, ativos intangíveis 9 649,80 euros, inventário 16 975 euros, clientes 312 114,14 euros, outros ativos correntes 5 230,03 euros, caixa e depósitos bancários 1 800,39 euros, capital realizado 80 000 euros, outros instrumentos de capital próprio 50 000 euros, resultados transitados -48 379,32 euros, capital próprio 10 918,81 euros, financiamentos obtidos 60 844,29 euros, fornecedores 100 846,50 euros, outros passivos correntes 426 159,93 euros, total do passivo 596 403,89 euros.
6. No exercício de 2019, a Insolvente declarou vendas e serviços prestados no montante de 211.824,55 euros, custo das mercadorias vendidas e das matérias consumidas no montante de 36.708,00 euros, fornecimentos e serviços externos no montante de 105.626,41 euros, gastos com o pessoal 76.927,95 euros, ativos fixos tangíveis o montante de 297.261,16 euros, ativos fixos intangíveis o montante de 14 479,26 euros.
7. No exercício de 2020, a sociedade “D..., Lda.” declarou vendas e serviços prestado no montante de 61.483,04 euros, fornecimentos e serviços externos no montante de 48 598,40 euros, gastos com o pessoal sem valor, ativos fixos tangíveis sem valor.
8. No exercício de 2021, a sociedade “D..., Lda.” declarou vendas e serviços prestado no montante de 1.039.259,79 euros, custo das mercadorias vendidas e das matérias consumidas no montante de 742.486,74 fornecimentos e serviços externos no montante de 242.282,51 euros, gastos com o pessoal 41 950,66 euros, ativos fixos tangíveis o montante de 24.916,26 euros, ativos fixos intangíveis sem valor.
9. No exercício de 2022, a sociedade “D..., Lda.” declarou vendas e serviços prestado no montante de 1.191.775,97 euros, custo das mercadorias vendidas e das matérias consumidas no montante de 917.274,96 euros, fornecimentos e serviços externos no montante de 132.538,17 euros, gastos com o pessoal 126 734,80 euros, ativos fixos tangíveis o montante de 18.918,83 euros e ativos fixos intangíveis o montante de 127.556,52 euros.
10. No exercício de 2023, a sociedade “D..., Lda.” declarou vendas e serviços prestado no montante de 1.030.350,74 euros, custo das mercadorias vendidas e das matérias consumidas no montante de 672.771,20 euros, fornecimentos e serviços externos no montante de 190.489,98 euros, gastos com o pessoal 131.532,76 euros, ativos fixos tangíveis o montante de 12.466,51 euros e ativos fixos intangíveis o montante de 127.556,52 euros.
11. A Insolvente deixou de cumprir os acordos de pagamento celebrados com a Autoridade Tributária e Segurança Social no final do ano de 2022.
12. O Requerido BB foi funcionário da insolvente até cerca de 3/4 meses antes de se ter tornado seu gerente de direito.
13. A Insolvente era conhecida e identificada no mercado de arte, por fornecedores e clientes, pela marca “B...”, enquanto o requerido CC foi o seu gerente de direito.
14. Os créditos reconhecidos aos credores AA, E... -Serviços de Comunicações e Multimédia, S.A. e FF estão em incumprimento, respetivamente, desde 18-04-2017, 08-01-2022 e 30-04-2022.
15. O requerido CC é filho do requerido BB e de DD.
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B) FACTOS NÃO PROVADOS:
Com interesse para o objeto do presente litígio não se provaram os seguintes factos alegados:
a) A existência de um conluio ente os Requeridos (pai e filho) para esvaziar totalmente a atividade da sociedade insolvente, com o desvio da sua clientela para a sociedade “D..., Lda.”, antes designada por “B...”, Lda.”, dentro do período de 3 anos anterior ao início do processo de insolvência.
b) Que a constituição da sociedade “D..., Lda.”, antes designada “B...”, Lda.”, impossibilitasse a Insolvente de gerar receitas que lhe permitissem pagar os seus créditos, sendo a sua constituição a causa da insolvência da “A... Unipessoal Lda.”.
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A questão referente à admissão do recurso sobre a matéria de facto, que sempre seria de resolver, mas que foi expressamente suscitada pela credora AA, precede logicamente as restantes, pelo que se tratará de imediato.
O regime processual respeitante à impugnação de tal segmento da decisão encontra-se fixado pelo art. 640º do CPC, que, nas als. do respectivo nº 1 exige rigor, quer quanto à indicação da factualidade a discutir, quer quanto ao sentido pretendido para a decisão, quer quanto aos meios de prova que, nos termos do recurso, justificam a alteração.
Tal exigência de rigor não constitui mero apreço pela forma, sendo, isso sim, imprescindível para a concretização da actividade pretendida do tribunal de recurso, depois de facultado um efectivo contraditório à parte contrária, interesses estes que não serão garantidos se o apelante não der cumprimento ao regime processual em causa.
No caso em apreço, os apelantes impugnam que se dê por provado, no âmbito do item 14 da matéria de facto, que o crédito de AA não se encontrava em incumprimento desde 18/04/2017, mas apenas desde 18 de Maio de 2023. E aponta como prova os documentos 4 e 5 juntos com a oposição.
Em relação a esta matéria cumpre, pois considerar satisfeito o regime processual da impugnação, havendo de decidir-se a questão colocada.
Para além disso, os apelantes, nas conclusões XXXII e XXXV, referem “Atenta a prova documental e a prova gravada produzida em sede de audiência de julgamento deveria ter sido dado como provado a existência de uma redução abrupta do financiamento bancário pela insolvente e um aumento das limitações de acesso ao crédito junto da Banca pela insolvente.” E, ainda, “…a redução abrupta do financiamento bancário pela insolvente e o impacto da pandemia por Covid-19 na exploração da atividade da insolvente como causas da insolvência da sociedade…”.
É certo que concretizam segmentos das declarações do gerente BB a este propósito. No entanto, além da natureza absolutamente conclusiva das afirmações antecedentes, nem sequer se pode isolar uma efectiva factualidade que possa ser alvo de averiguação probatória a fim de, eventualmente, ser ajuizada positivamente, para inclusão na matéria provada.
Em relação a tal alegação, por inobservância do disposto no art. 640, nº 1, al. a) e c), do CPC, não cumprirá apreciar qualquer questão.
Vejamos, então, se assiste razão aos apelantes no tocante á alteração da data de incumprimento do crédito de AA.
Referem os apelantes que o crédito de AA teve origem num processo executivo movido por aquela, relativamente ao qual foram opostos embargos, que foram julgados procedentes em 1ª instância, 24/11/2022, por ter sido dada por “cumprida a obrigação exequenda, com a consequente extinção da execução”. Em sede de recurso, o Tribunal da Relação, por acórdão de 18 de Maio de 2023, revogou essa sentença, determinando a improcedência dos embargos e o prosseguimento da execução.
Os documentos em que suportam a sua tese são a sentença de procedência dos embargos e o acórdão que a revogou, determinando o prosseguimento da execução, de 18/5/2023.
Nesse processo, o título dado à execução era uma sentença homologatória de transação, transitada em julgado em 3/9/2028, como consta de ambas as decisões. A acção onde foi concretizada tal transacção correu termos no Juízo Local Cível de Matosinhos – Juiz 1, sob o n.º 2030/17.4T8MTS, tendo sido intentada em 18/4/2017, segundo consta do requerimento inicial da insolvência e documentos que o acompanham, designadamente a acta de transacção, de 7/6/2018.
Verifica-se, então, que o tribunal recorrido deu por provado que o crédito estava em incumprimento ao momento da propositura da acção em que foi celebrada a transacção constante do título dado à execução, em ulterior acção executiva. Esta, que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Execução do Porto – Juiz 1, sob o n.º 20297/18.2T8PRT, foi alvo de embargos e de acórdão subsequente a sentença neles proferida, acórdão esse que teve lugar em 18/5/2023, mandando prosseguir a execução. E é por isso que os apelantes sustentam que o crédito só ingressou em incumprimento a partir de 18/5/2023.
Inerente à definição do início do incumprimento do crédito de AA, sobre a insolvente serão a fonte e as características de um tal crédito. Só na percepção desses elementos poderíamos definir o momento da constituição em mora da insolvente, quanto ao cumprimento da correspondente obrigação, a qual não coincide necessariamente com a data do acórdão que, definitivamente, reconheceu a sua existência.
Porém, no caso em apreço, depois de o tribunal recorrido ter considerado que o crédito estava vencido e em incumprimento no momento da propositura da primeira acção, de forma alguma veio a discussão a ser dotada de elementos que, agora, permitam alterar essa decisão para que se afirme que, diferentemente, por o crédito em causa não ser anteriormente certo, ou liquido, ou exigível, só com o acórdão que recaiu sobre os embargos, como acima referido, se pode considerar ter sido fixada a obrigação da devedora e ter ela, subsequentemente, entrado em incumprimento, designadamente à luz do nº 3 do art. 805º do C. Civil.
Cumpre, pois, indeferir a pretensão dos recorrentes, nesta parte, mantendo-se a decisão sobre a matéria de facto nos precisos termos em que foi formulada na decisão recorrida.
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A credora/apelada AA, veio sustentar que a inadmissibilidade do recurso da decisão da matéria de facto, por incumprimento do ónus do art. 640º, do CPC, deveria acarretar a perda do acréscimo de prazo de 10 dias para o recurso da devedora e gerentes afectados pela decisão, o que determinaria a extemporaneidade da apelação.
A precedente admissão e apreciação de tal segmento do recurso, mesmo nos termos parcialmente concretizados, prejudica a pretensão da apelada, ainda que se tenha considerado não poder ser reapreciada a questão relativamente à qual os apelantes invocam prova gravada.
Tal como a jurisprudência vem afirmando repetidamente, a dedução da pretensão de impugnação da matéria de facto, com apelo à reapreciação de prova gravada, faculta desde logo a disponibilidade da extensão de 10 dias do prazo para recurso, previsto no nº 7 do art. 638º do CPC. Neste sentido, cfr Ac. do STJ 613/20.4T8PVZ.P2.S1 de 03-10-2024 (Relator: OLIVEIRA ABREU, em dgsi.pt): “VI. A questão do benefício do prazo decorrente n.º 7 do art.º 638º do Código de Processo Civil não se confunde com aqueloutra atinente ao cumprimento ou incumprimento pelo recorrente dos ónus previstos no art.º 640º do Código de Processo Civil, mormente no seu n.º 1 alínea b) e no n.º 2, alínea a). VII. A essência para reconhecer o benefício do prazo decorrente n.º 7 do art.º 638º do Código de Processo Civil não é apreciar se a recorrente cumpriu os ónus de impugnação do art.º 640º do Código de Processo Civil, pois, esta questão só caberá apreciar a jusante, na apreciação do recurso, caso este seja admitido. VIII. O acréscimo de 10 (dez) dias no prazo para interpor recurso previsto no art.º 638º n.º 7 do Código de Processo Civil não está subordinado ao cumprimento dos ónus de impugnação e muito menos do mérito da impugnação, dependendo sim de a impugnação da matéria de facto visar a reapreciação da prova gravada.”
Inexiste, pois, o invocado obstáculo ao conhecimento das questões suscitadas pelos apelantes.
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O primeiro dos fundamentos para a qualificação da insolvência da A... UNIPESSOAL LDA como culposa, com afectação dos seus sucessivos gerentes, foi a conclusão de que a respectiva actividade foi mantida no interesse pessoal daqueles, bem como de uma outra sociedade “D..., Lda.”, antes conhecida por “C..., Lda.”, constituída com uma quota única pertencente a CC, sabendo que isso conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência.
Tal fundamento consta da al. g) do nº 2 do art. 186º do CIRE e, tal como bem explicado na decisão recorrida, a sua verificação constitui uma presunção inilidível de que a insolvência foi determinada culposamente, tal como previsto no nº 1 da mesma norma.
Resulta da factualidade provada que a Insolvente era conhecida e identificada no mercado de arte, por fornecedores e clientes, pela marca “B...”, no tempo em que o requerido CC foi o seu gerente de direito, designadamente entre 2018 e 2022. Nesta fase (meados de 2022), com alteração das quotas como descrito na al. B) dos factos provados, BB, pai de CC, foi nomeado gerente da devedora. Ou seja, o pai ficou como sócio e gerente da devedora A... (da qual já era funcionário), ao passo que o filho ficou a gerir a C..., Lda, ulteriormente designada D..., Lda e, por fim, “B..., Lda”.
Ambas as sociedades tinham sede no mesmo local - Praceta ..., ..., ... – até que a B...,Lda, juntamente com a mudança de designação, mudou a sua sede para a Rua ..., ..., no Porto, em 2021.
Não obstante a amplitude e alterações do objecto social constante dos respectivos pactos, constata-se que ambas as sociedades se dedicavam à mesma actividade: o comércio de arte e serviços conexos, sob diversas formas, designadamente por correspondência e digitais, sendo que a Insolvente era conhecida e identificada no mercado de arte, por fornecedores e clientes, pela marca “B...”, como já se referiu. Mas, em 14.08.2020, a marca B..., registada enquanto tal, foi transferida para a C..., Lda que, como já se referiu, acabou por a integrar na sua designação social.
Como salientou o tribunal recorrido, o acto de transmissão da marca, por si mesmo, não pode ter-se como um acto prejudicial para a insolvente e/ou determinante da sua insolvência, quer por se desconhecerem as condições em que ocorreu, os proventos que possa ter gerado ou a ausência destes, quer por ter ocorrido fora do período dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, estabelecido no nº 1 do art. 186º, para definição dos actos relevantes para a apreciação da insolvência.
Todavia, se isso é assim no tocante ao relevo do acto de per si, como sobressai da decisão em curso, ele não deixa de ter significado no âmbito da apreciação das decisões de gestão das duas empresas em causa. E, nessa perspectiva, o que sobressai é que a marca B..., que identificava a actividade da ora insolvente, passou a ser o elemento identificador da actividade da C..., para a qual tinha migrado também o seu sócio e gerente, deixando na A... o seu pai.
Nestas circunstâncias, é difícil admitir que as duas sociedades prosseguissem o seu negócio independentemente uma da outra, já que, dedicando-se ao mesmo, a segunda passou precisamente a utilizar os elementos de identificação da primeira, sendo o seu gerente aquele que era antes o gerente da primeira e na mesma sede. Em qualquer caso, se o objectivo era passar a prosseguir a actividade através da exploração da segunda empresa, isto é, da C..., o normal seria que a primeira fosse encerrada. Porém, não foi isso que se verificou e, como salienta a decisão recorrida, a A... continuou a suportar os custos de funcionamento, ao passo que o volume de vendas e serviços passou a entrar, já não na A..., mas na C.... Veja-se como o demonstra a decisão recorrida, referindo os factos dados por provados sem qualquer controvérsia: a insolvente, em 2019, apresentou um volume de vendas e serviços de 211 824,55 euros; em 2020, facturou vendas e serviços no valor de 127 771,99 euros; em 2021esse valor foi reduzido para 5 381,29 euros; nos anos seguintes, de 2022 e de 2023, não teve qualquer valor em vendas e serviços prestados.
E, apesar do volume de vendas da insolvente ter caído no ano de 2021 para 5.381,29 euros, o valor dos fornecimentos de serviços externos a que recorreu ascendeu ao montante de 19.745,36 euros e os gastos com o pessoal ascenderam a 89.512,20 euros; no ano de 2022 e 2023, os dados constam dos itens 4 e 5 dos factos provados, sendo desnecessário repeti-los aqui. Ali se constata, todavia, uma repetição de resultados negativos e um avolumar do passivo, com ausência de receitas, permanência de custos e redução de capital próprio. Tudo, enfim, em condições que inequivocamente determinaram a sua incontroversa insolvência.
Nestas circunstâncias, é inevitável concordar com o tribunal recorrido, quando afirma: “Além de estar também já em incumprimento com os créditos dos credores AA, E... -Serviços de Comunicações e Multimédia, S.A. e FF, respetivamente, desde 18-04-2017, 08-01-2022 e 30-04-2022. Assim, face a tal factualidade, conjugada entre si, tem de concluir-se que o Requerido CC manteve durante o ano de 2021 e enquanto foi gerente, até 17.06.2022, uma exploração deficitária da Devedora, em seu próprio benefício e da sociedade por si criada em agosto de 2020, bem sabendo que a “A... Unipessoal Lda.” já se encontrava em situação de insolvência, face às suas dividas já vencidas e à circunstância de não estar a gerar receitas que lhe permitissem solver tais créditos vencidos.”
E a mesma conclusão se estende ao gerente subsequente, pai do primeiro, isto é, a BB, que manteve a situação a partir do momento em que passou a ser o gerente da insolvente.
Paralelamente, a nova sociedade C... florescia, usando a sede e a marca que antes eram da devedora, com o mesmo gerente que anteriormente dirigira a ora insolvente, onde ficar o seu pai como gerente: em 2020, facturou 61 483,04 euros; em 2021 cresceu para um volume de vendas de 1 039 259,79, nos anos de 2022 e 2023, em que as suas vendas foram sempre superiores a um milhão de euros. Mas, em 2020, não declarou gastos com pessoal ou activos fixos tangíveis; em 2021 declarou custos com o pessoal 41 950,66 euros, ativos fixos tangíveis o montante de 24.916,26 euros; e em 2022 gastos com o pessoal 126 734,80 euros, ativos fixos tangíveis o montante de 18.918,83 euros e ativos fixos intangíveis o montante de 127.556,52 euros.
Em suma, a insolvente foi mantida em actividade enquanto que a nova sociedade, a C... passou a desenvolver e fez crescer o respectivo negócio, sob a marca que fora sua e dirigida pelo seu anterior gerente, com a mesma sede, enquanto que ia acumulando passivo e a nova sociedade ia incrementando as receitas. Até que a A..., como era inevitável, foi declarada insolvente, ficando para pagar uma totalidade de créditos de 191 393,35 euros
Temos, pois, por inequivocamente preenchida a al. g) do nº 2 do art. 186º do CIRE.
É certo que a matéria de facto não permite identificar uma realidade espelhada entre o declínio da A..., ora insolvente, e o crescimento da C..., designadamente entre a perda de facturação de uma e o incremento da outra. Mas isso é natural e não é isso que se procura. Muitos factores prejudicam o rigor de um tal paralelismo: o efeito da pandemia Covid 19, hipotéticas alterações na forma como a actividaade de cada uma se possa ter diferenciado; a alteração de fontes de despesa. Porém, mesmo na ausência de um diagnóstico tão preciso, não deixa de sobressair, de entre a factualidade provada, aquilo que acima se identificou: o sacrifício da A..., que se quedou com custos e sem proventos, designadamente sem proventos que lhe permitissem satisfazer as suas responsabilidades, maxime os créditos de terceiros, da Segurança Social e da AT, em benefício de uma nova empresa que cresceu e se desenvolveu sem o aperto de tais responsabilidades, mas aparecendo a público com a mesma actividade, a mesma marca e o mesmo gerente da anterior.
Improcede, portanto, a argumentação dos apelantes a respeito do não preenchimento da previsão da norma da al. g) do nº 2 do art. 186º do CIRE, transposta para as conclusões I a XII.
A sentença recorrida considerou ainda outro fundamento para a qualificação da insolvência em questão como culposa: ter a devedora omitido a sua obrigação de apresentação à insolvência, omissão essa imputada à gestão de cada um dos sucessivos gerentes, filho e pai, a relevar nos termos do art. 186º, nº 3, al. a) do CIRE.
Alegaram os apelantes, contestando essa conclusão, que não resultou demonstrado a partir de quando é que a devedora se deveria ter apresentado à insolvência, o que prejudica a conclusão de que incumpriu essa obrigação; que o prazo de apresentação à insolvência esteve suspenso, por efeito da legislação COVID, até 2023, o que exclui a existência de atraso, tanto mais que a credora AA veio requerer a insolvência antes de decorridos 6 meses sobre o fim daquela suspensão; e que, não decorreu qualquer agravamento da situação de insolvência, em virtude da não apresentação à insolvência em momento anterior.
Contrariamente ao alegado, a sentença recorrida identificou o momento em que a devedora deveria apresentar-se à insolvência: “… pelo menos aquando da aprovação das contas da sociedade insolvente referente ao exercício de 2021, momento em que CC ainda era o seu gerente. Refere-se, no texto impugnado, que a sociedade insolvente foi mantida em atividade, numa exploração claramente deficitária, em beneficio da nova sociedade por ele criada e, por isso, também em seu benefício, quando ela devia ter sido apresentada à insolvência, pois que tinha créditos vencidos, da Segurança Social, no montante global de 8 502,44 euros, por contribuições vencidas referentes aos meses de Dezembro de 2021, Janeiro, Fevereiro, Março, Abril e Maio de 2022, consecutivamente, e também da Autoridade Tributária, no montante global de 61 093,32 euros, referente a IRS vencido em 28-10-2021, no montante de 34 659,29 euros, e IRC vencido em 02-11-2021, no montante de 21 155,07 euros. E, então, também já subsistiam os créditos de AA, da E... -Serviços de Comunicações e Multimédia, S.A. e de FF, respetivamente, desde 18-04-2017, 08-01-2022 e 30-04-2022.
Nestas condições, afirma-se na decisão recorrida, impunha-se a apresentação à insolvência, nos termos do art. 20.º, n.º 1, g) ii), do CIRE. Mas o tribunal considerou ainda que qualquer dos dois requeridos, enquanto gerente da insolvente, manteve a respectiva actividade, apesar de conhecer a sua situação de insolvência, bem como que “… não podiam desconhecer que a situação dos credores se estava a agravar pois ao não apresentarem a sociedade à insolvência aumentavam os créditos da Autoridade Tributária e da Segurança Social, e retardam a satisfação dos credores, que agora não serão ressarcidos da totalidade dos seus créditos face ao que resulta já do apenso de Liquidação e que levou já a que fosse extraída certidão para apuramento de factos com natureza criminal.”
O apelo do tribunal à regra constante do 20.º, n.º 1, g) ii), do CIRE resulta algo incompleto, pois nesta norma o que se prevê, no que ao caso interessa, é a legitimidade de qualquer pessoa que por isso possa ser legalmente responsabilizado, para requerer a insolvência, se se verificar um incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas correspondentes a contribuições e quotizações para a segurança social.
Afirmam os apelantes que a insolvente até se encontrava a cumprir um plano prestacional para satisfazer tais créditos, o que exclui um tal incumprimento generalizado. Porém, provou-se que a insolvente que não satisfez as responsabilidades perante a Segurança Social relativas aos meses de Dezembro de 2021 a Maio de 2022, tendo incumprido o próprio plano a partir de final de 2022 (factos provados F) e 11).
Em qualquer caso, não está em discussão a legitimidade de qualquer dos sucessivos gerentes da insolvente ter podido requerer a insolvência da A..., perante a possibilidade de vir a ser responsabilizado pessoalmente pela satisfação de algumas das suas obrigações, designadamente as de cariz fiscal em virtude da eventualidade de decisões de reversão fiscal. Daí a irrelevância da norma em causa.
Diferentemente, o que se deve averiguar é se a própria insolvente, representada por qualquer desses gerentes, ora requeridos, deveria ter-se apresentado à insolvência.
Dispõe o art. 18º, no seu nº 1, que o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la.
Acima já se referiu, afirmando-se agora a concordância para com tal asserção, que pelo menos aquando da aprovação de contas em 2022 a insolvente, através do seu gerente, tinha de percepcionar que se encontrava num processo irreversível de inviabilidade económica, tanto mais que já acima se conclui que era isso uma consequência necessária da opção de que a respectiva actividade passasse a ser desenvolvida pela C.... E isso também não podia deixar de ser conhecido de BB que, sendo já funcionário da insolvente, assumiu a sua gerência a partir de 17/6/2022. Em suma, ambos tinham de saber que, pelo menos após a aprovação das contas de 2022, a A... jamais ficaria em condições de satisfazer as dívidas que já tinha, ingressando assim numa situação de insolvência. Tal situação ficou, aliás, perfeitamente descrita na IES relativa ao ano de 2021, apresentada à AT em 4/7/2025, tal como resulta do documento em causa, junto pelo Serviço de Finanças do ..., em 19/2/2025.
De resto, nos termos do art. 18º, nº 3 do CIRE, o incumprimento generalizado das obrigações perante a AT e a Segurança Social, tal como previsto nos § i) e ii) da al. g) do nº 1 do art. 20º do CIRE, situação em que a insolvente ingressou em 2022, como resulta das als. E) e F) e 11º dos factos provados, faz presumir, em termos inilidíveis, o conhecimento da situação de insolvência por ambos os requeridos, em qualquer das fases das respectivas gerências.
Nestas circunstâncias, nos termos do art. 18º, nº 1 do CIRE, a devedora deveria ter-se apresentado à insolvência num prazo de trinta dias, sendo certo que jamais o fez, pois que foi a credora AA, que o requereu, em 4/12/2023.
Os apelantes alegam, no entanto, que não infringiram tal dever, pois que o prazo de trinta dias referido se encontrava suspenso, em virtude das chamadas Leis Covid.
É certo que o Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13/3, sucedido pela Lei 1-A/2020, de 19/3, e, seguidamente, pela Lei 4-A/2020, de 6/4, determinaram a suspensão do prazo em questão, desde Março de 2020.
Todavia, a Lei nº 31/2023, de 4/7, determinou a cessação da vigência de leis publicadas no âmbito da pandemia da doença Covid-19, entrando em vigor a 5/7/2023.Ou seja, terminou então a suspensão do prazo do dever de apresentação à insolvência, que durava, como se viu, desde 22/1/2021. Consequentemente, sendo de 30 dias o prazo para cumprir a obrigação de apresentação à insolvência (contados da data em que o devedor teve, ou devesse ter tido, conhecimento de que se encontrava em situação de insolvência), caberia à insolvente, que teve conhecimento da sua situação insolvencial durante o período de suspensão do prazo, apresentar-se à insolvência até ao dia 5/8/2023.
Sabemos já que não o fez então, nem até ao final desse ano, pois que foi a credora AA que veio requerer a sua insolvência.
Temos, pois, ainda que em termos algo diferentes dos da decisão recorrida, de concluir que os requeridos, ora apelantes, incumpriram o dever de apresentação à insolvência.
Questão diferente é a de apurar se com essa omissão agravaram a situação de insolvência da A..., como se exige para que se considere culposa a insolvência nas situações em que a presunção de culpa resulta de tal omissão.
Resulta do nº 3 do art. 186º do CIRE que a omissão do dever de apresentação à insolvência faz presumir a culpa grave daqueles sobre quem impendesse tal obrigação. Todavia, para além disso, a actuação do nº 1 da norma exige a demonstração de um nexo de causalidade entre a omissão e o agravamento da situação de insolvência.
No caso, a omissão relevante ocorreu entre 5/8/2023 e Dezembro de 2023, data em que AA, veio requerer a presente insolvência. Poderemos concluir que, nesses período de 4 meses, se agravou a situação de insolvência da A...? Considerando que os créditos reclamados, mesmo aqueles constituídos perante a Segurança Social e a AT, sãoi todos anteriores a esse período, a resposta a esta questão só pode ser negativa.
Por conseguinte, procederá neste segmento a apelação, não devendo qualificar-se a insolvência como culposa por referência ás regras da al. a) do nº 3 e do nº 1 do art. 186º do CIRE.
Considerou, por fim, a sentença recorrida, que a insolvente também incorreu na omissão de depósito das contas referentes aos exercícios dos anos de 2021 e de 2023 (al C dos factos provados), assim dando azo ao funcionamento da presunção de insolvência culposa resultante da al. b) do nº 3 do art. 186º do CIRE.
Nos termos desta norma, a presunção de culpa, ilidível, resulta do incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, ou de as submeter à devida fiscalização, ou ainda de as depositar na conservatória do registo comercial.
Todavia, tal como antes se referiu quanto à hipótese da al. a), a verificação de uma das hipóteses contida na previsão desta norma não dispensa a necessidade de identificação de um nexo de causalidade entre a omissão da obrigação e a geração ou o agravamento da situação de insolvência (cfr. ac. deste TRP, de 20/2/2024, proc. nº 1872/22.3T8AMT-C.P1, Relator ARTUR DIONÍSIO DE OLIVEIRA, em dgsi.pt).
No caso, a insolvente apresentou tais contas à AT. Porém, omitiu a sua apresentação ao registo comercial. Mas nada resulta da sentença recorrida que revele que isso tenha sido determinante ou que daí tenha ocorrido qualquer agravamento para a situação de insolvência ulteriormente verificada.
Deverá, pois, revogar-se a sentença em crise, na parte em que tal considerou.
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Mostram-se conhecidas as questões que cabia apreciar, do recurso dos apelantes CC, BB e A... UNIPESSOAL, LDA.
Em suma, a sentença resultará confirmada quanto à qualificação da insolvência como culposa, com afectação dos seus sucessivos gerentes CC e BB, com fundamento no art. 186º, nº 2, al g) do CIRE, isto é, por prosseguimento da actividade em seu proveito pessoal e no de uma empresa terceira.
Diferentemente, não se consideram verificadas, como pressuposto da mesma qualificação, as circunstâncias previstas nas als. a) e b) do nº 3 do mesmo art. 186º.
Todavia, isso não prejudica a qualificação da insolvência como culposa, com base no fundamento anteriormente referido.
Acresce que nenhuma questão vem complementarmente suscitada a respeito das consequências determinadas em razão de tal qualificação, designadamente quanto aos efeitos fixados em relação a CC e BB.
Por isso, nada cumpre apreciar a esse propósito, em tal recurso, sendo de manter a decisão recorrida, embora com mitigação dos respectivos fundamentos.
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Cabe passar à apreciação do recurso interposto por AA que, como acima se referiu, conclui não dever limitar-se a responsabilidade dos requeridos CC e BB a 50% dos créditos não satisfeitos na insolvência.
Para o efeito, começa por pretender que se elimine a al. a) dos factos dados por não provados e, em sentido contrário, se dê por provado que “Os Requeridos (pai e filho) agiram em conluio e comunhão de esforços para esvaziar totalmente a atividade da sociedade insolvente, com o desvio da sua clientela para a sociedade “D..., Lda.”, antes designada por “B...”, Lda.”, dentro do período de 3 anos anterior ao início do processo de insolvência”
Para o efeito, a apelante invoca excertos do depoimento de parte de BB e, genericamente, a prova documental junta aos autos, o que, quanto a esta última, é irrelevante por incumprimento do disposto no art. 640º, nº 1, al. b) do CPC.
No tocante à apreciação do depoimento de parte, é certo que dele resulta – como sobressai da análise da apelante – um completo envolvimento do referido BB no desenvolvimento da actividade quer da empresa insolvente, quer daquela que, depois de adquirir a sua marca B..., tratou de desenvolver a mesma actividade,
Isso foi, de resto, perfeitamente tratado na sentença recorrida, bem como no anteriormente exposto neste acórdão, e o desenvolvimento económico de ambas as empresas, negativo no caso da insolvente, como acima se referiu, e positivo no caso da C..., traduz a conexão entre as opções de gestão e complementaridade entre uma e outra, no que não se esqueceu a partilha da mesma sede. Tudo, enfim, como salienta agora a apelante. E a solução decretada na decisão recorrida, de responsabilização solidária de ambos os gerentes pela indemnização dos credores, na parte não satisfeita pelas forças da insolvência reconhece isso mesmo.
O que a análise do depoimento de parte citado não nos permite é justificar uma afirmação tão absolutamente conclusiva como a agora pretendida: a existência de um conluio especificamente destinado a esvaziar totalmente a atividade da sociedade insolvente, com o desvio da sua clientela para a sociedade a C..., depois designada por B....
Com efeito, inexistem factos provados que permitam inferir o facto subjectivo correspondente a uma tal intenção. Com efeito, outra poderia ser a intenção de ambos, sendo a degradação da actividade da insolvente um mero efeito indirecto, não pretendido ab initio. Ou seja, não temos elementos que permitam inferir a conclusão que a apelante pretende ver afirmada. Conclusão essa que, de resto, nem sequer é essencial para os fins da solução decretada ou para os efeitos do seu recurso.
Improcederá, pelo exposto, tal pretensão da apelante.
Sem prejuízo, cabe apreciar o outro pedido da apelante, tendente a que a responsabilidade de ambos os gerentes não seja limitada a 50% dos créditos não satisfeitos.
A este propósito, a sentença recorrida referiu: “Donde, tudo ponderado, face ao grau de ilicitude, que se mostra elevado, à gravidade da conduta dos requeridos, a que vimos fazendo referência, julga-se adequado fixar o valor dessa indemnização a pagar pelos Requeridos, solidariamente, no montante de 50% dos créditos não satisfeitos na presente insolvência, uma vez que não ficou provado que a insolvência foi causada direta e exclusivamente pelo comportamento dos Requeridos e por factos praticados nos três últimos anos anteriores ao inicio do processo (e só estes podem relevar), mas apenas ficou provado que lhes é imputável o seu agravamento.”
Considerou o tribunal, na essência, não ter sido apurado que os requeridos CC e BB tenham actuado dolosamente, isto é, de forma voluntária e consciente em ordem a provocar a insolvência da A..., mas apenas que a referida actuação, designadamente com o desenvolvimento da actividade da A..., acabaram por agravar a situação em que a mesma se encontrava, tornando inevitável a sua insolvência.
Diferentemente, entende a apelante nada haver que atenue a culpa ou a ilicitude da conduta dos requeridos, pelo que não se justifica a limitação da respectiva responsabilidade.
Dispõe o art. 189º do CIRE, no seu nº 4, que o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença. Daqui se retira a hipótese de a condenação ser proporcional ao grau de culpa dos responsáveis, bem como ao grau de ilicitude.
Isso mesmo se explica no Ac. deste TRP de 10/7/2025, proc. nº 1707/24.2T8STS-B.P1 (relator PINTO DOS SANTOS, em dgsi.pt) nos seguintes termos: “IV - O «quantum» adequado da inibição prevista na al. b) do nº 2 do art. 189º do CIRE deve assentar no grau do juízo de censurabilidade do comportamento do requerido e na sua contribuição para a criação ou agravamento da insolvência da sociedade. V - Na fixação da indemnização prevista no mesmo art. 189º nºs 2 al. e) e 4, o julgador deve atentar nas circunstâncias do caso concreto, com enfoque no grau de culpa e na gravidade da ilicitude do comportamento do requerido/afetado [mais nesta que naquele, já que aquele é sempre elevado porque lhe subjaz atuação dolosa ou gravemente negligente – nº 1 do art. 186º] e na dupla função de tal condenação [funções ressarcitória e sancionatória da indemnização], devendo, ainda, ser proporcional a estes pressupostos e não ir além do montante máximo dos créditos não satisfeitos.”
No caso, como refere a sentença recorrida, não está apurado um dolo directo dos requeridos tendente à criação da insolvência da requerida, tendo-se limitadamente verificado que a sua actuação facultou, pelo menos, o agravamento da situação, por terem permitido o prosseguimento de uma actividade deficitária da insolvente, em benefício de outra empresa.
Cumpre reconhecer que, nestes autos, não resultou concretizado em que medida é que o prejuízo de uma redundou no benefício da outra e dos próprios requeridos, mas tão só que isso inequivocamente ocorreu. E, neste contexto, não se pode apurar, de entre o volume de créditos a satisfazer, qual aquele que resultou da actuação culposa dos requeridos, traduzido no agravamento da situação de insolvência da A....
A isso acresce ainda o facto de as condutas ilícitas imputadas aos requeridos se verem limitadas nestes autos, pela irrelevância reconhecida ao incumprimento dos deveres de apresentação à insolvência e de registo das contas dos anos 2021 a 2023.
Em tais circunstâncias, ganha relevo aquilo que se apurou sobre a não verificação de um dolo directo tendente à insolvência. E, como tal, só pode ter-se por adequada e proporcional ao grau de culpa dos requeridos a solução decretada na sentença recorrida que, assim, nesta parte igualmente se manterá.
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Resta, em suma, afirmar o não provimento de qualquer uma das apelações, na confirmação da sentença recorrida, sem prejuízo da mitigação dos respectivos fundamentos no tocante à qualificação da insolvência como culposa, designadamente por via da exclusão dos fundamentos previstos nas als. a) e b) do nº 3 do art. 186º do CIRE.
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Sumário:
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3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em rejeitar o provimento de ambos os recursos de apelação, em consequência do que confirmam a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes, em relação aos respectivos recursos, pois que neles que decaíram.