EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
CESSAÇÃO ANTECIPADA DO PROCEDIMENTO
Sumário

I – As razões justificativas da recusa da exoneração são, exclusivamente, as enunciadas nas três alíneas do n.º 1, do artigo 243.º, por força da remissão operada pelo artigo 244.º, n.º 2, ambos do CIRE; ocorrendo alguma delas, o juiz não pode deixar de recusar a exoneração do passivo restante; no caso contrário, não pode deixar de conceder tal exoneração.
II – De acordo com a al. b) daquele n.º 1 do artigo 243.º, os únicos motivos de indeferimento liminar que também justificam a cessação antecipada do procedimento e, consequentemente, a recusa da exoneração findo o período de cessão são os previstos nas alíneas b), e) e f), do n.º 1, do artigo 238.º, do CIRE, e apenas se forem objectiva ou subjectivamente supervenientes, por referência ao despacho inicial.
III – Não são, assim, justificativos da cessação antecipada do procedimento ou da recusa da exoneração depois de decorrido o período de cessão os demais motivos legais de indeferimento liminar do pedido de exoneração, mais concretamente os descritos nas alíenas a), c), d) e g), do n.º 1, do artigo 238.º do CIRE.
IV – Ainda que se aceitasse a interpretação extensiva da norma do artigo 243.º, n.º 1, al. b), do CIRE, à luz da norma do artigo 246.º, n.º 1, do mesmo Código, os factos subsumíveis à previsão do artigo 238.º, n.º 1, al. d), apenas poderiam fundamentar a recusa de exoneração se tivesse sido alegada e ficasse demonstrada a sua superveniência objectiva ou subjectiva, por referência ao despacho inicial, em conformidade com o disposto naquele artigo 243.º, n.º 1, al. b), por remissão do artigo 244.º, n.º 2, ambos do CIRE.

Texto Integral

Processo: 7299/21.7T8VNG-B.P1





Acordam no Tribunal da Relação do Porto




I. Relatório


AA propôs a presente acção requerendo a declaração da sua insolvência, bem como a exoneração do passivo restante, identificando como seus credores, entre outros, os ora recorrentes BB e CC.
O requerente foi declarado insolvente por sentença proferida em 06.10.2021, na qual foi ordenada a citação dos credores identificados na petição inicial nos termos do artigo 37.º, n.ºs 3 e 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), e advertiu que «tendo sido prescindida a realização da assembleia de credores, os credores serão notificados pelo/a A.I. para se pronunciarem quanto ao pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos requerentes na petição inicial, juntamente com a posição da A.I., nos termos do disposto no art. 236º nº 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas».
Em 16.11.2021 a administradora da insolvência (AI) juntou aos autos o relatório referido no artigo 155.º do CIRE, referindo que «[n]ão tendo sido comprovada nenhuma circunstância previstas no art. 238 do CIRE, e pese embora a atual situação patrimonial e financeira do insolvente, anteriormente exposta, a admissão do pedido de exoneração do passivo restante não merecerá oposição por parte da AI». Mais propôs o encerramento do processo por inexistência de bens, nos termos do disposto nos artigos 230.º, n.º 1, al. e), e 232.º, do CIRE.
Por requerimento de 25.11.2021, o credor Banco 1..., S.A. veio aos autos manifestar o seu voto a favor da proposta de encerramento do processo por falta de bens e o seu voto contra o pedido de exoneração do passivo restante, tendo em conta que não foram respeitados os prazos de apresentação à insolvência (artigo 238.º, n.º 1, al. d), do CIRE).
Em 02.12.2021 o Ministério Púbico declarou nada ter a opor ao encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente, ao abrigo do artigo 230.º, n.º 1, alínea d) do CIRE, e nada ter a opor ao deferimento liminar da exoneração do passivo restante.
Em 09.12.2021 foi proferido o seguinte despacho:
Na esteira da derradeira M.D.Promoção, determino o encerramento do processo, por insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente, ao abrigo do art.º 230º, nº 1, alínea d) do CIRE.
Mais defiro liminarmente a impetrada exoneração do passivo restante, fixando o sustento digno em 1 SMN, acrescido de ½, iniciando-se o período de cessão com a prolação do presente despacho.
Exmo. Fiduciário: a actual Exma Administradora da Insolvência.
Nos termos conjugados dos artºs 230.º e 233º, nº 6, do CIRE, não tendo sido aberto incidente de qualificação de insolvência e não tendo sido alegado por qualquer interessado factos que permitam a sua qualificação como culposa, julgo a presente insolvência como fortuita.
Decorrido o período de cessão, em 03.04.2025 o Ministério Público promoveu o seguinte:
Compulsado o CRC do devedor verifica-se que do mesmo não consta qualquer condenação pela prática dos crimes p. e p. pelos art.ºs 227º a 229º do C.P.
Da análise dos “Relatórios Anuais Fiduciário - Estado da Cessão - 240º/2 CIRE”, também, não resultam elementos que permitam concluir pela verificação de qualquer situação que determinasse a cessação antecipada do procedimento de exoneração, nos termos do n.º 1, al. a), do art.º 243 do CIRE.
Assim, tendo em conta o disposto nos art.ºs 237º, al. d); 244º, n.º1 e n.º 2, a contrario, do CIRE, nada se tem a opor a que seja proferido despacho a decretar a exoneração definitiva do passivo restante do devedor, sem prejuízo do disposto no art.º 245º, n.º2, do CIRE.
Ordenada a audição do devedor, do fiduciário e dos credores a insolvência, nos termos do disposto no artigo 244.º, n.º 1, do CIRE, em 10.04.2025 a fiduciária emitiu parecer final no sentido de ser concedido ao insolvente a exoneração do passivo restante.
Por requerimento apresentado em 29.04.2025, os credores BB e CC opuseram-se à exoneração do passivo restante, pugnando pelo indeferimento desse pedido, nos termos do artigo 238.º, n.º 1, al. d), do CIRE.
Em 08.05.2025 foi proferido o seguinte despacho:
Ao nada detectar que a tal objecte de dirimente forma, sou a conceder ao insolvente(s) a exoneração definitiva do passivo restante (cfr. os arts.244º/245º do CIRE).
Custas do incidente pelo insolvente(s).

*

Inconformados, os credores BB e CC apelaram desta decisão, concluindo assim a respectiva alegação:
«1. A decisão proferida pelo Tribunal a quo, de concessão da exoneração do passivo restante ao Insolvente AA, que não teve em conta a oposição apresentada pelos Credores aqui Recorrentes, deve ser alterada, visto que na referida decisão não corresponde a uma uma justa e completa aplicação do direito.
2. Com o devido respeito, transparece que a decisão recorrida não configura uma correta interpretação das regras jurídicas aplicáveis ao caso concreto, uma vez que a exoneração do passivo restante foi concedida ao insolvente apesar da oposição apresentada pelos aqui Recorrentes.
3. Tendo-se em conta a oposição apresentada pelos credores aqui Recorrentes, entendem estes que o Tribunal a quo errou na decisão proferida.
4. Os credores, aqui Recorrentes, foram notificados para se pronunciarem sobre a exoneração do passivo restante nos termos do art.º 244.º (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), o que fizeram através de requerimento apresentado em juízo em 29/04/2025, alegando que se opunham à concessão da exoneração do passivo restante e alegaram todos os argumentos e fundamentos para esse efeito.
5. No requerimento apresentado pelos aqui Recorrentes, estes opuseram-se à exoneração do passivo restante peticionada pelo Insolvente e requereram o indeferimento do requerido, nos termos do art. 238.º n.º1 al. d) do C.I.R.E.
6. O Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo proferiu, erroneamente, o despacho em 08/05/2025, de que se recorre, que exara: “Ao nada detectar que a tal objecte de dirimente forma, sou a conceder ao insolvente(s) a exoneração definitiva do passivo restante (cfr. os arts.244º/245º do CIRE). Custas do incidente pelo insolvente(s).”
7. Ora, apesar dos Recorrentes terem apresentado, em tempo, oposição fundamentada ao pedido de exoneração do passivo restante, nos termos do art.º 238.º do CIRE, onde indicaram factos e circunstâncias que demonstram o incumprimento dos deveres legais que impendem sobre o insolvente, o que é facto é que a decisão recorrida não considerou e ignorou os factos apresentados pelos aqui Recorrentes.
8. A decisão recorrida, com a qual os Recorrentes não podem concordar, erroneamente não considerou os factos apresentados na oposição que constituem fundamento legal para a não concessão da exoneração nos termos dos art.ºs 238.º n.º 1 alínea d) do CIRE.
9. O Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo deveria ter tido em conta os fundamentos invocados pelos Recorrentes para se oporem à exoneração do passivo restante, nomeadamente o disposto na alínea d) do art.º 238.º do CIRE que estabelece que deve ser indeferida a exoneração se "O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica”, o que não aconteceu.
10. A referida alínea compreende o preenchimento de três elementos que, a verificarem-se, obstam ao deferimento do pedido de exoneração do passivo restante, designadamente a não apresentação à insolvência no momento devido, a inexistência de perspetiva séria da melhoria da situação económica e o prejuízo para os credores.
11. O Insolvente, pelo menos desde 2008, não consegue cumprir com as suas obrigações, pois desde esta data os Recorrentes são seus credores e na qualidade de fiadores do Insolvente, viram-se confrontados com uma execução intentada pelo então Banco 2... S.A.
12. O Insolvente não cumpriu com o prazo de seis meses para se apresentar à Insolvência, aliás, o referido prazo foi em muito ultrapassado e o crédito dos aqui Recorrentes, de um valor que excede o montante de 74.264,69€ (setenta e quatro mil duzentos e sessenta e quatro euros e sessenta e nove cêntimos), encontra-se vencido desde há muito tempo pelo que o Insolvente não poderia ignorar que se encontrava em indubitável situação de insolvência.
13. O Insolvente apenas tomou a decisão de se apresentar à insolvência em outubro de 2021, o que ultrapassa largamente os 60 dias de que dispunha, como também se absteve dessa apresentação nos 6 meses seguintes à verificação da impossibilidade do cumprimento dos compromissos financeiros assumidos.
14. Quando se apresentou à insolvência, o Insolvente já estava em incumprimento com o Banco credor Banco 2... tendo sido demandado no processo executivo n.º 4570/08.7TBVNG que correu termos no Juízo de Execução do Porto - Juiz 7.
15. Ora, o Insolvente deveria, de acordo com a ponderação de um homem médio, ter tomado conhecimento da situação de impossibilidade de cumprimento da generalidade dos seus compromissos.
16. O Insolvente requereu a exoneração do passivo restante sem oferecer prova da inexistência de prejuízo para os credores, prejuízo esse que, como ficou exposto, existiu efetivamente.
17. O retardar da sua apresentação à insolvência nada teve que ver com a perspetiva de um melhoramento da sua situação patrimonial, pois que, desde há muito tempo estava já irremediavelmente comprometida.
18. É inquestionável que a omissão de se apresentar à Insolvência causou prejuízo aos seus Credores, que viram os seus créditos aumentarem - designadamente através da contínua contagem de juros moratórios e aumento do volume da dívida e das obrigações vencidas e incumpridas e cuja recuperação é dificultada pelo decurso do tempo.
19. In casu, não se pode considerar que a situação de insolvência emerge de uma inesperada conjugação de circunstâncias e, por isso, não se justifica, com sacrifício dos Credores, a concessão, ao Insolvente, de uma nova oportunidade.
20. Verifica-se um evidente e manifesto prejuízo para os aqui Recorrentes resultante da ação executiva movida pelo Banco 2... S.A., credor hipotecário do Insolvente, uma vez que o Insolvente nunca procedeu a qualquer ressarcimento do seu crédito, que ascende ao montante de 74.264,69€ (setenta e quatro mil duzentos e sessenta e quatro euros e sessenta e nove cêntimos), e caso seja exonerado do passivo restante, os aqui credores nunca serão ressarcidos.
21. Os Credores aqui Recorrentes foram fiadores do Insolvente na celebração de uma escritura de Mútuo com Hipoteca e Fiança, outorgada no dia 29 de Outubro de 1998 que formalizou a aquisição de uma fração autónoma correspondente à habitação própria e permanente do Insolvente.
22. Os aqui Recorrentes aceitaram serem fiadores do Insolvente atendendo à amizade existente entre ambos e porque o Banco Mutuário (Banco 2...) exigia o cumprimento dessa formalidade para lhe conceder o empréstimo e em 2008, foram surpreendidos com a citação para uma ação executiva que sob o nº. 4570/08.7TBVNG correu termos no Juízo de Execução do Porto - Juiz 7, em que eram executados, juntamente com o Insolvente, sendo Exequente o Mutuário Banco 2..., S.A, sendo a quantia exequenda de 59.928,69€ (cinquenta e nove mil novecentos e vinte e oito euros e sessenta e nove cêntimos).
23. Nesses autos do processo executivo, foi penhorada a fração autónoma de que o insolvente era proprietário, sendo posteriormente adjudicada ao Banco pelo valor de €27.400,00, em 22/06/2012, que correspondia a parte da dívida e tendo ficado uma parte da dívida por pagar, a execução prosseguiu os seus termos e os credores aqui Recorrentes viram-se confrontados com a penhora da fração autónoma de que eram proprietários em ..., Vila Nova de Gaia e que era a sua habitação própria e permanente.
24. Os credores aqui Recorrentes viram-se confrontados com esta dura realidade: a fração autónoma de que eram proprietários acabou por ser vendida nesses autos executivos, tendo os mesmos ficado privados da sua habitação, que haviam adquirido com sacrifício e que ainda estavam a pagar à Banco 3..., pois haviam contraído empréstimo para o efeito.
25. Os aqui Recorrentes pagaram por conta da dívida do Insolvente o montante de 15.372,88€ (quinze mil trezentos e setenta e dois euros e oitenta e oito cêntimos) o que lhes trouxe um manifesto e significativo prejuízo e ainda se viram confrontados com a perda do direito de propriedade da sua habitação, para a qual já tinham liquidado à Banco 3... o montante de 32.229,84€ (trinta e dois mil duzentos e vinte e nove euros e oitenta e quatro cêntimos).
26. Os Reclamantes, reformados, pessoas idosas, não tiveram qualquer benefício com a dação da fiança ao insolvente e viram o seu padrão de vida substancialmente diminuído porque o Insolvente não honrou o compromisso assumido e ignorou o prejuízo que lhes estava a causar.
27. Há mais de 17 anos que os credores aqui Recorrentes sofrem consternações, constrangimentos, aborrecimentos diversos, muito desagradáveis e penosos, consubstanciados em tentativas de penhora dos seus bens e prejuízos causados com despesas que tiveram e têm de suportar.
28. Os aqui Recorrentes viram-se confrontados, durante todos estes anos, com a indiferença e desprezo por parte do Insolvente para o que lhes estava a suceder o que protelou o incómodo, a insatisfação e o desconforto que a situação estava a causar, para além do desgosto provocado, pela constatação no decorrer dos anos de que iam ficar sem a sua habitação que tanto lhes custou pagar à Banco 3....
29. O Recorrente BB tem graves problemas de saúde é doente oncológico e foi sujeito a um transplante pulmonar, tendo a sua situação agravado com o decorrer dos anos e com a circunstância de ter perdido a sua casa.
30. Esta desagradável situação, para a qual os credores, aqui Recorrentes não contribuíram, provocou-lhes grande consternação, desconforto, angústia, sofrimento, pois sentiram-se enganados e chocados com a astúcia, falsidade e indiferença do Insolvente, causando-lhes além de danos patrimoniais, danos não patrimoniais, uma vez que se viram privados do direito de propriedade da sua habitação, tendo como único responsável o insolvente.
31. O que se pretende com o presente recurso é que seja revogada a decisão do Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo de exoneração do passivo restante, visto que foram ignorados os argumentos expendidos pelos credores aqui Recorrentes no requerimento de oposição à exoneração do passivo restante.
32. A oposição apresentada pelos credores, aqui Recorrentes, foi efetuada em cumprimento à notificação para se pronunciarem nos termos do art.º 244.º n.º 1 do CIRE.
33. O Tribunal a quo deveria ter tido em conta os argumentos e fundamentos alegados pelos Recorrentes, pelo que os mesmos não se podem conformar com a decisão proferida de exoneração do passivo restante.
34. As alegações de recurso dos aqui Recorrentes traduzem a realidade dos factos e o que de essencial se verificou nos presentes autos e não foi sustentado na decisão do Tribunal a quo.
35. Isto posto, devem, as alegações de recurso apresentadas pelos Recorrentes proceder totalmente, revogando-se a decisão recorrida e, em sua substituição, ser proferida outra que indefira a exoneração do passivo restante ao Insolvente».
Não foi apresentada qualquer reposta à alegação dos recorrentes.

*



II. Fundamentação

1. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, importa decidir se o pedido de exoneração do passivo restante deve ser indeferido com fundamento nos motivos invocados pelos ora recorrentes no requerimento que apresentaram na sequência da notificação prevista no artigo 244.º, n.º 1, do CIRE, e que o Tribunal a quo não chegou a apreciar.
*

2. A factualidade a considerar na apreciação do presente recurso corresponde às ocorrências processuais descritas no relatório deste aresto.
*

3. O instituto da exoneração do passivo restante – inspirado na discharge britânica e norte-americana, mas que chega a nós por influência do direito alemão e que tem paralelo em quase todas as leis de insolvência europeias – foi introduzido no nosso ordenamento jurídico pelo CIRE, que entrou em vigor em 2004.
Como ensina Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Coimbra, 2021, p. 610), à semelhança do alemão, «o regime português consiste, em traços gerais, na afectação, durante certo período após a conclusão do processo de insolvência, dos rendimentos do devedor à satisfação dos créditos remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção daqueles que não tenha sido possível cumprir, por essa via, durante esse período».
A lei portuguesa não seguiu, portanto, um modelo puro de fresh start, em que a liquidação do património e o pagamento das dívidas têm lugar no processo de insolvência, findo o qual o devedor é libertado das dívidas que não tiverem sido satisfeitas.
O regime legal português aproxima-se mais do modelo do earned start, em que o devedor, findo o processo de insolvência, passa ainda por uma espécie de período de prova, durante o qual parte dos seus rendimentos é afectada ao pagamento das dívidas remanescentes, só então podendo beneficiar de um fresh start, se ficar demonstrado que o merece. Na súmula de Pedro Pidwell (Insolvência das Pessoas Singulares. O “Fresh Start” – será mesmo começar de novo? O Fiduciário. Algumas Notas, in Revista de Direito da Insolvência, n.º 0, 2016, p. 197), a exoneração do passivo restante «vigente no nosso ordenamento jurídico tem como finalidade precípua facilitar a recuperação/integração socioeconómica do insolvente de boa fé (“honest but unfortunate debtor”), através de um procedimento que, em primeiro lugar, passa pela liquidação do seu acervo patrimonial (art. 156.º e ss), e em segundo lugar pressupõe a cessão ao fiduciário (art. 240.º) da parte considerada disponível do seu rendimento (art. 239.º) e, afinal, se o insolvente tiver cumprido com as obrigações de conduta a que está adstrito [art. 239.º, n.º 4, alíneas a) a e)], é-lhe perdoado o remanescente da dívida que ainda subsistir (art. 245.º, n.º 1)». Nas palavras de Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 8.ª ed., Coimbra 2022, p. 401), «[a] exoneração do passivo restante é aplicável exclusivamente aos devedores pessoas singulares (titulares de empresa ou não, titulares de uma grande ou de uma pequena empresa) que se tenham “portado bem”, desde que não tenha sido aprovado e homologado um plano de insolvência».
O aludido período de prova, que a nossa lei designa como período de cessão, tem início com a prolação do despacho inicial, isto é, o despacho em que, por não haver motivos para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, o juiz declara que esta será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239.º do CIRE (cfr. artigo 237.º, alíneas a) e b), do mesmo código).
Decorrido o período de cessão e mostrando-se cumpridas as referidas obrigações, o juiz emite despacho decretando a exoneração definitiva, designado despacho de exoneração (cfr. artigo 237.º, al. d), do CIRE).
4. De acordo com o regime legal que vimos exposto, são diversas as circunstâncias (e os momentos em que as mesmas ocorrem) que podem obstar à prolação deste despacho de exoneração.
A primeira será, como vimos, a existência de algum motivo para indeferir liminarmente o pedido de exoneração, ao abrigo do artigo 238.º do CIRE, cujo n.º 1 dispõe o seguinte:
1 - O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
a) For apresentado fora de prazo;
b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;
c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;
f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.
Proferido despacho inicial, por não haver razões para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, o procedimento de exoneração pode extinguir-se antecipadamente, por via da ocorrência de algum dos fundamentos de recusa da exoneração previstos no n.º 1, do artigo 243.º, do CIRE, ou porque os créditos sobre a insolvência se mostram integralmente satisfeitos, nos termos do n.º 4, do mesmo artigo.
De acordo com o disposto no citado artigo 243.º, n.º 1, do CIRE, mesmo antes de terminado o período de cessão, o juiz deve recursar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
Não tendo havido lugar ao indeferimento liminar do pedido de exoneração nem à cessação antecipada do respectivo procedimento, o artigo 244.º, n.º 1, do CIRE, determina que o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período de cessão, sobre a respectiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242.º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor.
Nos termos do n.º 2, do mesmo artigo 244.º, a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente.
5. No caso concreto, o pedido de exoneração do passivo restante foi liminarmente admitido por despacho inicial proferido em 09.12.2021, tendo, entretanto, decorrido o período de cessão sem que tenha sido requerida a cessão antecipada do procedimento, por alguma das razões previstas no artigo 243.º do CIRE (e sem que tenha sido requerida a sua prorrogação, ao abrigo do disposto no artigo 242.º-A do CIRE).
Incumbia, portanto, ao Tribunal proferir decisão final sobre a exoneração, nos termos do disposto no artigo 244.º, n.º 1, do CIRE, depois de ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência.
Como alertam Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda logo na primeira edição do seu Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado (Vol. II, 2005, Quid Juris Sociedade Editora, p. 206), «o juiz não dispõe de um poder discricionário de conceder, ou não, a exoneração. Ao contrário, deve atribuí-la se não ocorrer nenhum motivo que possa justificar a cessação antecipada e recusá-la no caso contrário».
Assim, as razões justificativas da recusa da exoneração são, exclusivamente, as enunciadas nas três alíneas, do n.º 1, do artigo 243.º, do CIRE, antes transcritas, por força da remissão operada pelo artigo 244.º, n.º 2, do mesmo código; ocorrendo alguma delas, o juiz não pode deixar de recusar a exoneração do passivo; no caso contrário, não pode deixar de conceder tal exoneração.
De acordo com a al. b) daquele artigo 243.º, n.º 1, os únicos motivos de indeferimento liminar que também justificam a cessação antecipada do procedimento ou a recusa da exoneração findo o período de cessão são os previstos nas alíneas b), e) e f), do n.º 1, do artigo 238.º, do CIRE, e apenas se forem objectiva ou subjectivamente supervenientes, por referência ao despacho inicial, o que se compreende, tendo em conta o momento em que se vai atender a essas circunstâncias e o fim para que revelam (ob. cit., p. 203).
Não são, assim, justificativos da cessação antecipada do procedimento ou da recusa da exoneração depois de decorrido o período de cessão os demais motivos legais de indeferimento liminar do pedido de exoneração, mais concretamente os descritos nas alíenas a), c), d) e g), do n.º 1, do artigo 238.º do CIRE.
Diferentemente, o artigo 246.º do CIRE erige em fundamento de revogação da exoneração cada uma das situações previstas nas alíneas b) a g), do n.º 1, do artigo 238.º do CIRE (acrescentando também ao elenco a violação dolosa das obrigações do devedor durante o período da cessão), exigindo ainda a prova da existência de prejuízo relevante para a satisfação dos credores da insolvência e da superveniência subjectiva do fundamento da revogação, por referência ao trânsito em julgado do despacho de exoneração.
A respeito da articulação entre os regimes do indeferimento liminar do pedido de exoneração, da cessação antecipada do procedimento, da recusa da exoneração e da revogação desta, Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2021, 2.ª ed., pp. 623 a 625), ao debruçar-se sobre a interpretação das normas dos artigos 243.º, n.º 1, e 246.º, n.º 1, do CIRE, alude à tese que sustenta a possibilidade de cessação antecipada do procedimento por qualquer dos fundamentos previstos para a revogação, por via de uma interpretação extensiva da norma da cessação antecipada à luz do disposto sobre a revogação, mas rejeita tal solução, preconizando antes uma leitura mais restritiva da norma sobre a revogação por referência à norma sobre a cessação antecipada, de acordo com a qual o legislador, no artigo 246.º do CIRE, pretendeu remeter para as alíneas b) e seguinte, do n.º 1, do artigo 243.º, apenas por lapso remetendo para as alíneas b) e seguintes, do n.º 1, do artigo 238.º.
Voltando ao caso concreto, verifica-se, na sequência do cumprimento do artigo 244.º. n.º 1, do CIRE, apenas os ora recorrentes se opuseram à concessão da exoneração do passivo restante, com fundamento no disposto artigo 238.º, n.º 1, al. d), do CIRE (cfr. requerimento de 29.04.2025).
Mais se verifica que o Tribunal a quo não se pronunciou, como devia, sobre a questão assim suscitada, impondo-se que este Tribunal ad quem o faça, em obediência à regra da substituição ao tribunal recorrido, plasmada no artigo 665.º do CPC.
Mas desde já se adianta que a fundamentação esgrimida no aludido requerimento de 29.04.2025 pelos ora recorrentes estava, à partida, votada ao fracasso, pelo que sempre seria inútil apreciar os factos alegados com base na prova que então protestaram apresentar.
Por um lado, da exposição que antecede já decorre que, numa interpretação literal das normas que regulam o despacho de exoneração, a circunstância prevista no artigo 238.º, n.º 1, al. d), do CIRE, embora seja fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, não é passível de justificar a cessação antecipada do procedimento nem, consequentemente, a recusa da exoneração após decurso do período de cessão.
Tal argumentação apenas podia ter sido eficazmente esgrimida no prazo previsto no artigo 236.º, n.º 4, do CIRE, o que os ora recorrentes não fizeram. É certo que outro credor o fez (o Banco 1..., S.A.), mas sem sucesso e sem que aquele, os ora recorrentes ou qualquer outro interessado tenham impugnado o despacho que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, pelo que este transitou em julgado.
Por outro lado, ainda que se aceitasse a já aludida interpretação extensiva da norma do artigo 243.º, n.º 1, al. b), do CIRE, à luz da norma do artigo 246.º, n.º 1, do mesmo código, os factos subsumíveis à previsão do artigo 238.º, n.º 1, al. d), apenas poderiam fundamentar a recusa de exoneração se tivesse sido alegada e ficasse demonstrada a sua superveniência objectiva ou subjectiva, por referência ao despacho inicial (datado de 09.12.2021), em conformidade com o disposto naquele artigo 243.º, n.º 1, al. b), por remissão do artigo 244.º, n.º 2, ambos do CIRE.
Perscrutado o requerimento de 29.04.2025, verifica-se que nada é aí alegado no sentido de demonstrar a superveniência dos factos que, no entendimento dos ora recorrentes, revelam que o devedor se absteve de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação da insolvência, com prejuízo para os credores, sabendo ou não podendo ignorar sem culpa grava que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
Pelo contrário, o teor daquele requerimento acaba mesmo por infirmar essa superveniência.
Com efeito, afirma-se aí que devedor está insolvente e que conhece ou, pelo menos, não pode desconhecer sem culpa grave essa situação desde 2008, por ser a data em que o Banco 2... moveu contra o referido devedor e os seus fiadores, aqui recorrentes, uma execução hipotecária para cobrança coerciva de um crédito de quase 60 mil euros, proveniente de um mútuo bancário, na qual foi penhorado o imóvel hipotecado que havia sido adquirido pelo ora insolvente com recurso ao referido crédito, que veio a ser adjudicado ao exequente; acrescenta-se que, não tendo ficado integralmente satisfeito o crédito exequendo, foi também penhorado um imóvel dos fiadores, que acabou por ser vendido nessa execução (e remido pelo filho destes); acrescenta-se ainda que, desde o mesmo ano de 2008, os reclamantes interpelaram por diversas vezes o insolvente tendo em vista o pagamento dos valores por estes desembolsados, mas sem sucesso; acrescenta-se, por fim, que o retardar da apresentação à insolvência não se deveu a qualquer perspectiva de melhoramento da situação patrimonial do devedor, que já estava há muito tempo irremediavelmente comprometida, e que causou prejuízos aos credores, que viram os seus créditos aumentarem, designadamente por via do vencimento de juros de mora.
Decorre, assim, da alegação dos ora recorrentes que os factos que, no seu entender, preenchem a previsão do artigo 238.º, n.º 1, al. d), do CIRE, ocorreram e chegaram ao seu conhecimento muito antes da prolação do despacho inicial.
Pelo exposto, em qualquer das interpretações da norma do artigo 243.º, n.º 1, al. b), antes referidas, sempre se concluiria pela não verificação dessa previsão normativa.
Deste modo, e porque não foram alegadas nem decorrem dos autos quaisquer circunstâncias subsumíveis aos preceitos das alíneas a) e c), do mesmo artigo 243.º, restava ao Tribunal a quo proferir despacho de exoneração, em obediência ao disposto nos artigos 237.º, al. d), e 244.º, n.º 2, do CIRE.
Uma última nota para realçar que, como já resulta da exposição antecedente, os demais argumentos esgrimidos pelos recorrentes, designadamente os relativos às razões que os levaram a prestar a fiança e as demais vicissitudes que estiveram na origem do seu crédito sobre o insolvente, agora abrangido pela exoneração, extravasam a questão a decidir no presente procedimento de exoneração do passivo restante e, por conseguinte, a matéria objecto de cognição deste Tribunal.
Por tudo quanto ficou exposto, importa negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, ficando as custas da apelação a cargo dos recorrentes, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
*



Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
………………………………………………………….
………………………………………………………….
………………………………………………………….
*










IV. Decisão

Pelo exposto, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.

Registe e notifique.





*





Porto, 16 de Setembro de 2025

Relator: Artur Dionísio Oliveira
Adjuntos: Alexandra Pelayo
Anabela Andrade Miranda