I - No âmbito de um único processo de jurisdição voluntária, a lei permite que seja requerida a destituição do titular de cargo social e, como procedimento cautelar, a sua suspensão.
II - A suspensão do cargo de gerente segue, atenta a sua natureza, o regime do procedimento cautelar comum, e nesta conformidade, está sujeita aos requisitos previstos no art. 362.º, n.ºs 1 e 2 do C.P.Civil
III - A urgência e a provisoriedade, características do procedimento cautelar, cuja finalidade é evitar o invocado prejuízo grave e irreparável até que a decisão definitiva seja proferida pelo tribunal, não permitem a suspensão da instância designadamente com fundamento em causa prejudicial, sob pena de ser anulado, por esta via, o referido efeito útil cautelar.
Relatora: Anabela Andrade Miranda
Adjunto: João Ramos Lopes
Adjunto: Lina Castro Baptista
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I—RELATÓRIO
AA, residente na Travessa ..., ..., na freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, em nome próprio, enquanto herdeiro de BB, e na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de BB, CC, casado, residente na Rua ..., em Lisboa, DD, menor, residente na Rua ..., ..., em ..., Brasil, representado por sua mãe EE, FF, solteiro, maior, residente na Rua ..., n.º ...–1º andar esquerdo, no Porto, EE, NIF ..., com domicílio na Rua ..., ..., em ..., Brasil, intentaram a presente providência de suspensão e destituição de gerente contra GG, solteiro, maior, residente na Rua ..., Vila Nova de Gaia, e “A..., Lda.”, com sede na Rua ..., ..., Lugar ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova.
Alegaram, em síntese, que imediatamente após o óbito do seu pai, a 27 de Dezembro de 2019, o Requerido, em deliberação social ilegal (e não somos nós que o dizemos só, também as decisões judiciais entretanto tomadas o afirmam) entronizou-se gerente da sociedade requerida e da sociedade “B...”. Colocada esta última deliberação à apreciação judicial pelo processo n.º770/20.0T8VNG, que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 3, foi proferida sentença que julgou “como anulada a deliberação social reportada à B..., Lda tomada no passado dia 27 de Dezembro de 2019, desprovida ficando este acto jurídico de qualquer efeito jurídico útil, mais determinando, em decorrência, o cancelamento da inscrição constante na certidão permanente de que o cargo de gerente compete a GG. A avaliação judicial da segunda parte do plano do Requerido correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 2, pelo Processo n.º 1739/20.0T8VNG. O resultado foi exactamente o mesmo do que acima descrito e por sentença, devidamente transitada em julgado “declaram-se nulas as deliberações tomadas na assembleia geral da Requerida, “B..., Lda.”, no dia 27 de janeiro de 2020 e, em consequência, determina-se que seja ordenado o cancelamento da inscrição do aumento de capital na certidão comercial da Requerida, caso o mesmo já tenha ocorrido”.
O projecto que o Requerido criou para a sociedade B..., e que as decisões judiciais acima mencionadas desmontaram por completo, foi inteiramente replicado na Requerida A... e motivou idêntica reacção por parte dos Requerentes. Assim, relativamente à auto nomeação do Requerido como gerente da mesma, corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 4, pelo Processo n.º ...., acção tendente à anulação dessa deliberação. Esse processo está “suspenso, nos termos do art. 272º, nº 1 do Código de Processo Civil, até que transite em julgado a decisão a proferir no processo nº ..., que corre termos no Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 1, quanto à determinação da pessoa que deverá exercer o cargo de cabeça de casal da herança de BB.” Essa decisão já foi tomada e o cabeça de casal da herança de BB é o primeiro A. AA e não o Requerido GG. Pelo acima descrito, resulta que existe uma probabilidade séria da existência do crédito dos Requerentes à quota do falecido BB, esmagadora maioritária na sociedade A..., correspondente a 90% do respectivo capital. O Requerido forjou documentos, e, seguidamente, começou a praticar actos dentro das sociedades a que se aludiu, em ordem a autoinvestir-se da qualidade de gerente. Fechou-se nos escritórios das sociedades, passando a actuar como se fosse o único dono e senhor do património e assim foi desenvolvendo a sua conduta até aos dias de hoje, apesar de perder em toda a linha todos os processos judiciais, com o único propósito de se apoderar do que não é seu. Uma vez autoinvestido na qualidade de gerente, passou a administrar a sociedades conforme os seus desvaneios lhe demandavam, não prestando contas a ninguém, o que, permitia, desde cedo, perspectivar ruptura, pela clara inabilidade do mesmo para o cargo a que se propôs e que, pelo modo concupiscente que actou, lhe permitiu ser investido da qualidade de gerente. O de cujus BB, depositava o seu património, na sua quase totalidade na sociedade A... Lda. De entre o património aí depositado, existiam 4 estabelecimentos comerciais e duas arrecadações incertas num prédio de elevado valor económico, qual seja o edificio empresarial na Rotunda ..., freguesia ..., Vila Nova de Gaia, denominado Edifício .... Tais fracções foram adquiridas através da instituição bancária Banco 1... SA, mediante contrato de locação financeira imobiliária. E achavam-se, como se acham, arrendadas, na sua globalidade, a uma empresa multinacional, denominada de C... SA, o qual permitia a obtenção e um rendimento mensal superior a 4.000,00€.
O requerido, à revelia de qualquer ou conhecimento dos demais herdeiros, decidiu, dissipar património da dita sociedade A.... Foi assim que, em 31 de janeiro de 2023, no Cartório Notarial onde o Requerido recorre, foi celebrada uma escritura de compra e venda, na qual o Requerido, investido da qualidade de gerente e em representação da sociedade A..., declarou vender a cidadão angolano duas frações autónomas pelo valor patrimonial que fazem parte do parque imobiliário da A..., e, por conseguinte, do património hereditário dos Requerentes. E fê-lo, ao arrepio de todos, sem ter convocado qualquer Assembleia, para deliberar nesse sentido, bem sabendo que os seus actos se encontravam a ser sindicados judicialmente. Está, assim, demostrada a quebra de confiança que sempre deve presidir o exercício do cargo, tornando-se inexigível a sua manutenção na função. O Requerido não tinha, nunca teve, nem tem, legitimidade para a prática de qualquer acto, na qualidade de gerente, destruídos que se acham os “malfeitos” praticados, inexistindo sequer legitimidade para a prática de tais actos. Temem por isso, os AA. que o Requerido continue a praticar actos de igual índole, fazendo desaparecer o património da A..., para além de manter a conduta de dissipar património, ainda que de forma simulada, procurando acautelar os seus interesses mesquinhos, pessoais e egoísticos, e, necessariamente, prejudicando a empresa e os Requerentes.
E este receio é tanto mais evidente e cada dia mais presente, quando se constata que as decisões proferidas pelos tribunais vão transitando a paripassu, todas elas favoráveis aos Requerentes, e, consequentemente, desfavoráveis ao aqui Requerido.
Assim, em primeiro lugar, importa parar com esta actuação do Requerido, para o mesmo não colocar em causa o património societário e hereditário que o seu pai, BB deixou aos seus herdeiros, legais, testamentários e legatários. Por outro lado, a actuação do Requerido poderá estar a tentar criar “terceiros de boa fé”, a quem poderá ser inoponível a nulidade (ou anulação) dos actos que este praticou.
Por isso, mostra-se necessário e urgente retirar a gerência ao Requerido GG, antecipando a decisão judicial que se avizinha.
-Os Autores propuseram uma ação de anulação de deliberações sociais, no passado dia 27.01.2020 e que corre termos pelo J3, deste Tribunal de Comercio, com o Pº nº ...., conforme Doc. 1 que se junta e que aqui se dá por reproduzido e integrado para todos os efeitos legais.
-Aquela referida ação foi apresentada pelos aqui Requerentes, tendo por base o facto de ter sido realizada uma Assembleia Geral, no dia 20.12.2019 e ter sido eleito como Gerente o segundo Requerido.
-Os Requerentes entenderam que a deliberação era nula e anulável, e portanto interpuseram a referida ação.
-Ora, desde essa altura até á presente data, as partes (Requerentes e Requeridos), litigam para se apurar se a deliberação é ou não válida e em consequência se o gerente atual – Sr. GG, aqui Requerido – é ou não gerente da sociedade, desde a data da deliberação.
-Para espanto dos Requeridos, foi proposta a presente ação, que com a devida vénia e todo o respeito por opinião diferente, não pode continuar e tem que ser suspensa.
-A questão discutida no Pº nº ... é essencial, e tem tudo a ver com o que agora se discute, ou seja, no final da presente providência é pedida a suspensão imediata das funções de gerente do Sr. GG, bem como a sua destituição como gerente.
-Ora, se os aqui Requerentes tiverem ganho de causa no Pº nº ..., significa que a nomeação de gerente na Assembleia Geral de 20.12.2019 não é válida, e os efeitos de tal vicio operam á data da Assembleia.
-O mesmo é dizer que, a sociedade Requerida, não tem qualquer gerente nomeado.
-Não tendo qualquer gerente nomeado, ninguém pode ser destituído do cargo que não está preenchido.
-Ao invés, se os Requerentes perderem aquela referida ação, então aí sim, a destituição poderá fazer sentido e a propositura dos presentes autos, juridicamente válida.
-Verifica-se assim, uma relação de prejudicialidade entre as duas causas.
“As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, sendo de reputar como legítimas.
Por relação à economia pregressa dos autos (e aos termos do processo nº ... que corre termos no J4 deste tribunal, cumpre tomar interlocutória decisão no âmbito destes autos de jurisdição voluntária, mormente por consideração do disposto consideração do disposto no art.611º nº1 do CPC.
Tal visando - e por relação aos elementos constantes deste pleito -tenho como facticamente adquiridos os seguintes factos com relevo para dirimir o presente pleito:
1)-No âmbito do presente processo nº 3021/25, foi impetrada a suspensão imediata (e ulterior destituição de tal incumbência) do Sr.GG das funções de gerente da sociedade A...,Lda, em consequência de tal sendo no imediato conferidos poderes de gerência às pessoas melhor identificadas no D.Petitório.
2) -No âmbito dos autos nº... que corre termos no J 4 deste Tribunal de Comércio de V.N. Gaia foi sentenciado a 3 de Abril do corrente ano: “(…) declaro nulas e anuladas as deliberações tomadas na assembleia geral realizada no dia 27 de Dezembro de 2019 (onde foi eleito como gerente o Sr.GG, aqui demandado, sublinhado meu) ; b) determino o cancelamento do registo correspondente à inscrição ..., Ap. ....
Estes os elementos assentes que, na minha óptica, permitem desde já oferecer julgado.
Isto posto:
DO DIREITO
Conforme flui do vertido no D.Petitório, pretendem os aqui A.A. que o sobredito Sr.GG seja no imediato suspenso das funções de gerente da A...,Lda, a final sendo destituído com justa causa desta incumbência social.
Como resulta apodíctico, a suspensão/destituição de qualquer cargo societário apresenta (como metodológico “prius”) que a pessoa demandada se encontre no cabal exercício da função de gerente, o que -a todas as luzes -não se verifica no caso “sub judice”, tal se verificando como inexorável consequência do sentenciado a 3 de Abril corrido passado no âmbito dos autos nº ... que correm termos no juízo 4 deste Tribunal do Comércio de V.N. de Gaia.
Assim sendo -e sempre salvo melhor opinião – não pode, ao momento, o presente processo de jurisdição voluntária trilhar os seus ulteriores processuais termos, nesta sede trazer aqui à colação o disposto no art.272º nº1 nº1 “in fine” do C.P.C, “hic et nunc” impondo-se aguardar pelo desfecho com trânsito em julgado da supra assinalada (conexa) acção declarativa.
Assim sendo - e como silogístico corolário das supra elencadas razões de facto e de direito - determino que esta demanda declarativa nº ... fique suspensa no seu andamento adjectivo, aguardando que seja dirimido (com trânsito) o processo nº ... do J 4 deste Tribunal de Comércio de V.N. de Gaia vista a natureza prejudicial do que aí venha a ser dirimido para a sorte do presente pleito.”
Conclusões
I A DECISÃO RECORRIDA DETERMINOU A SUSPENSÃO DOS PRESENTES AUTOS DE PROVIDÊNCIA CAUTELAR COM FUNDAMENTO NA EXISTÊNCIA DE UMA ALEGADA QUESTÃO PREJUDICIAL, RELATIVA AO PROCESSO N.º ..., AINDA PENDENTE DE DECISÃO COM TRÂNSITO EM JULGADO.
II TAL DECISÃO PADECE DE NULIDADE, NOS TERMOS DO ARTIGO 154.º DO CPC E DO ARTIGO 205.º, N.º 1, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO LEGAL E FACTUAL ADEQUADA, VIOLANDO O DEVER CONSTITUCIONAL E LEGAL DE FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS.
III A SUSPENSÃO ORDENADA AFECTA GRAVEMENTE O DIREITO DOS RECORRENTES À TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA, CONSAGRADO NO ARTIGO 20.º DA CRP, IMPEDINDO O ACESSO TEMPESTIVO À JUSTIÇA E A PROTEÇÃO URGENTE DOS SEUS DIREITOS.
IV A PROVIDÊNCIA CAUTELAR REQUERIDA VISA IMPEDIR A PRÁTICA DE ATOS LESIVOS E IRREVERSÍVEIS SOBRE O PATRIMÓNIO SOCIAL DA SOCIEDADE, NOMEADAMENTE POR PARTE DE QUEM SE ARROGA LEGITIMIDADE PARA GERIR A SOCIEDADE E QUE JÁ INICIOU A ALIENAÇÃO DE BENS SOCIAIS.
V O PROCESSO N.º ... NÃO CONSTITUI VERDADEIRA CAUSA PREJUDICIAL NOS TERMOS DO ARTIGO 269.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CPC, PORQUANTO NÃO ESTÁ EM CAUSA, NA PRESENTE PROVIDÊNCIA, A APRECIAÇÃO DO MÉRITO DA AÇÃO PRINCIPAL, MAS SIM A NECESSIDADE URGENTE DE PROTEÇÃO PREVENTIVA DOS DIREITOS DOS REQUERENTES.
VI AS PROVIDÊNCIAS CAUTELARES TÊM NATUREZA URGENTE E PROVISÓRIA (ARTIGO 362.º DO CPC), NÃO PODENDO SER SUSPENSAS DE FORMA AUTOMÁTICA SEM QUE TAL IMPLIQUE O ESVAZIAMENTO DO SEU EFEITO ÚTIL.
VII ESTÃO VERIFICADOS E DEMONSTRADOS OS PRESSUPOSTOS DA PROVIDÊNCIA CAUTELAR:
A) FUMUS BONI IURIS, PELA VEROSIMILHANÇA DO DIREITO JÁ RECONHECIDO EM 1.ª INSTÂNCIA;
B) PERICULUM IN MORA, PELA PRÁTICA ATUAL DE ATOS LESIVOS E RISCO DE DISSIPAÇÃO DO PATRIMÓNIO;
C) PROPORCIONALIDADE, NA MEDIDA EM QUE A SUSPENSÃO REQUERIDA É NECESSÁRIA PARA ACAUTELAR O INTERESSE SOCIAL E NÃO CAUSA PREJUÍZO IRREPARÁVEL À PARTE CONTRÁRIA.
VIII A DECISÃO RECORRIDA ENFERMA AINDA DE ERRO DE DIREITO, POR ERRADA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO REGIME DAS PROVIDÊNCIAS CAUTELARES E DA FIGURA DA CAUSA PREJUDICIAL, O QUE JUSTIFICA A SUA REVOGAÇÃO.
A.a douta decisão “a quo” não padece de nenhum vício de fundamentação, seja a sua falta, seja a sua obscuridade.
B.Está suficientemente fundamentada, de tal forma que é simples perceber as razões, e a logicidade do raciocínio que conduziram à decisão final.
C. O P.º n.º ... que corre termos pelo Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia, juiz 4, constitui causa prejudicial, em relação aos presentes autos.
D.A prossecução simultânea de ambos os processos, poderá originar julgados contraditórios, bastando para o efeito que aqui se destitua o actual gerente e ali se declare que a deliberação que nomeou tal gerente é nula.
E.Sendo nula, não se pode destituir da gerência quem nunca o foi.
F. Os requisitos formais e materiais da providência cautelar não se encontram respeitados nem sequer foram indiciariamente e fundadamente alegados.
A questão principal decidenda, delimitada pelas conclusões do recurso, para além da questão da nulidade da decisão por falta de fundamentação, consiste em saber se a providência de suspensão do cargo de gerente deve prosseguir os seus trâmites processuais ao invés da sua suspensão com fundamento na pendência de causa prejudicial.
Em primeira linha cumpre analisar os argumentos recursórios no que concerne à questão da nulidade da decisão por falta de fundamentação.
É nula a sentença quando nomeadamente não especifique os fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão—cfr. artigo 615.º, n.º 1, al.b) do C.P.Civil.
Como se sabe, a fundamentação da decisão permite aos destinatários a compreensão do sentido da decisão e a reapreciação da causa, em caso de recurso.[1]
Tem sido entendido, de forma reiterada e unânime pela doutrina e jurisprudência, que este vício (falta de fundamentação) só existe no caso de se verificar uma absoluta e total falta de fundamentação, quer ao nível do quadro factual apurado quer no que respeita ao respectivo enquadramento legal.
Assim, a sentença/decisão que contenha uma deficiente, incompleta ou não convincente fundamentação não enferma deste vício.
Trata-se, portanto, de um vício de natureza meramente formal (omissão total da discriminação dos factos e/ou das normas jurídicas aplicáveis) e não substancial.
Como se pode verificar da leitura da decisão, foram consignados os fundamentos que conduziram à solução jurídica perfilhada, inexistindo a apontada nulidade.
Cumpre agora reapreciar os fundamentos que justificaram a decisão de suspensão da instância, proferida no procedimento cautelar.
Os Requerentes pretendem obter a suspensão e a destituição do Requerido do cargo de gerência que o mesmo exerce na sociedade Requerida.
Nesta matéria rege o art. 1055.º, n.º 1 do C.P.Civil: “O interessado que pretenda a destituição judicial de titulares de órgãos sociais…, nos casos em que a lei o admite, indica no requerimento os factos que justificam o pedido.”
Se for requerida a suspensão do cargo, o n.º 2 do referido preceito legal determina que o juiz decida imediatamente o pedido de suspensão, após a realização das diligências necessárias.
A suspensão/destituição de titulares de cargos sociais constitui um dos processos de jurisdição voluntária, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 392-A/95, de 12 de dezembro-art. 1484.º-B.
No respectivo preâmbulo o legislador esclareceu que pretende realizar uma adequação entre o Código de Processo Civil e o Código das Sociedades Comerciais.
Assim, no âmbito de um único processo de jurisdição voluntária, a lei permitiu que fosse peticionada a destituição do titular de cargo social e, como procedimento cautelar, admitiu também que fosse requerida a sua suspensão.
Como se sumariou no Acórdão desta Relação, de 30/10/2012[2]:
“I – Sob a aparência de uma única acção, o art. 1484°-B do CPC prevê dois pedidos que seguem distinta tramitação: o de suspensão do cargo de gerente, que é um procedimento cautelar semelhante ao procedimento cautelar comum previsto nos arts. 381° a 392° do CPC; e o de destituição da gerência, que é uma acção declarativa com as especificidades características dos processos de jurisdição voluntária.
II –Estes dois pedidos podem ser cumulados na petição inicial, seguindo-se, para apreciação de cada um deles, a tramitação adequada.
III- O deferimento do pedido de suspensão de funções de gerência depende da verificação de justa causa, ou seja, designadamente, da violação grave dos deveres a que o gerente está legal e estatutariamente sujeito ou da sua incapacidade para o exercício normal das respectivas funções.
IV – Cabe ao requerente a prova da factualidade integradora da justa causa da suspensão de funções do gerente.”
Nesse aresto explicou-se que “Aquele art. 1484º-B é uma espécie de «dois em um», pois, sob a aparência de uma única acção, prevê efectivamente dois pedidos e dois processos distintos: o de suspensão do cargo de gerente, que é um procedimento cautelar, com semelhanças evidentes com o procedimento cautelar comum previsto nos arts. 381º a 392º do CPC; e o de destituição da gerência, que é uma acção declarativa com as especificidades características dos processos de jurisdição voluntária [prevalência do princípio do inquisitório sobre o princípio do dispositivo – art. 1409º nº 2 – e não sujeição do tribunal a critérios de legalidade estrita, mas sim a critérios de conveniência e de oportunidade – art. 1410º].
Embora a petição seja apenas uma única [nela tanto se pode pedir só a destituição do gerente, como, simultaneamente, esta destituição e a sua imediata suspensão das respectivas funções], a verdade é que o procedimento cautelar de suspensão segue uma determinada tramitação e a acção de destituição segue outra. O primeiro é decidido imediatamente, sem audição do requerido [sem observância do contraditório], depois de realizadas as diligências que forem consideradas necessárias – nº 2 do art. 1484º-B. Na segunda, o requerido tem de ser citado para, querendo, contestar a acção, seguindo-se a fase da produção da prova [que inclui a audição dos restantes sócios ou dos administradores da sociedade] e só depois é proferida decisão final a deferir ou indeferir o pedido de destituição do gerente – nº 3 do mesmo normativo [sobre esta distinção processual e diferentes tramitações do procedimento de suspensão e da acção de destituição…”
As decisões, inseridas no mesmo procedimento, não são tomadas simultaneamente.
Com efeito, o advérbio “imediatamente” constante do n.º 2 do mencionado normativo determina que o julgador decida, em breve prazo, o pedido de suspensão do cargo, em conformidade com as normas processuais que regem o procedimento cautelar comum.
Ainda sobre esta norma, e no mesmo sentido, escreveu-se no Acórdão desta Relação do Porto, de 26/10/2017[3], citando Solange Jesus que “A condensação de ambos os pedidos num único processo tem a indiscutível vantagem de concentrar no mesmo requerimento toda a factualidade relevante;(…) e evita-se que a factualidade-fundamento seja apreendida de forma estanque e descontextualizada, permitindo ao julgador uma apreciação global e uma decisão mais rigorosa e concertada.”
Em suma, a suspensão do cargo de gerente segue o regime do procedimento cautelar comum, e nesta conformidade, está sujeita aos requisitos previstos no art. 362.º, n.ºs 1 e 2 do C.P.Civil a saber:
a)-probabilidade séria da existência do direito alegadamente ameaçado;
b)-fundado receio de que esse direito sofra lesão grave e de difícil reparação;
c)-adequação da providência solicitada para evitar a lesão;
d)-o prejuízo resultante para o requerido não pode ser superior ao dano que se pretende evitar.
O procedimento cautelar visa, nas palavras de A. Varela; Miguel Bezerra e Sampaio e Nora,[4]acautelar o efeito útil da acção, impedindo “que, durante a pendência de qualquer acção declarativa ou executiva, a situação de facto se altere de modo a que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela. Pretende-se deste modo combater o periculum in mora (o prejuízo da demora inevitável do processo) afim de que a sentença se não torne numa decisão puramente platónica.”
Assim, a decisão proferida no âmbito de um procedimento cautelar é meramente provisória porquanto a sua vigência está dependente do resultado da acção principal pendente ou a instaurar.
Com efeito, do seu regime (art. 364.º, n.º 1) emerge uma relação de instrumentalidade entre o procedimento cautelar e a acção principal, e a providência está sujeita a caducidade nas situações previstas no art. 373.º do C.P.Civil.
Os Recorrentes alegaram que o Recorrido decidiu dissipar património da dita sociedade “A...” e executando a sua intenção, celebrou uma escritura de compra e venda, na qualidade de gerente e em representação daquela sociedade, declarando vender a cidadão angolano duas frações autónomas pelo valor patrimonial que fazem parte do parque imobiliário da “A...”, e, por conseguinte, do património hereditário dos Requerentes.
Acrescentaram que não convocou qualquer assembleia para deliberar nesse sentido, bem sabendo que os seus actos se encontravam a ser sindicados judicialmente.
Consideram, assim, que está demostrada a quebra de confiança que sempre deve presidir o exercício do cargo, tornando-se inexigível a sua manutenção na função.
Temem, atendendo à conduta do Recorrido, que continue a praticar actos de igual índole, fazendo desaparecer o património da sociedade, prejudicando, desta forma, a empresa e os Recorrentes.
Por outro lado, alertam para o risco da situação de “terceiros de boa fé”, a quem poderá ser inoponível a nulidade (ou anulação) dos actos que o Recorrido praticou.
A urgência e a provisoriedade da decisão, características do procedimento cautelar, cuja finalidade é evitar prejuízo grave e irreparável até que a decisão definitiva seja proferida pelo tribunal, tornam inviável a suspensão da instância designadamente com fundamento em causa prejudicial, sob pena de ser anulado, por essa via, o seu efeito útil cautelar.
A suspensão da instância, no âmbito deste procedimento, é incompatível com o efeito cautelar que se pretende alcançar, que consiste em impedir a verificação dos alegados prejuízos decorrentes da inevitável morosidade de um processo judicial.
Neste sentido, o Acórdão do STJ, de 24/09/2020[5]declarou que “A suspensão da instância por alegada pendência de causa prejudicial, prevista no art.º 272º do CPC, é incompatível com a natureza dum procedimento cautelar e como tal inaplicável a estes procedimentos. (…)
Ora no caso a previsível demora na obtenção duma decisão impunha a rejeição liminar da possibilidade de suspensão da instância. Por outro lado a suspensão da instância por existência de causa prejudicial é absolutamente incompatível com a natureza dos procedimentos cautelares e não foi pensada para eles mas sim para as acções principais. Mesmo antes da reforma do Processo Civil acima referida, que veio reforçar a urgência e prioridade a dar aos procedimentos cautelares, já este STJ vinha afirmando a incompatibilidade e inaplicabilidade aos procedimentos cautelares do regime da suspensão da instância quer por motivo de pendência de causa prejudicial ou por incumprimento de obrigações fiscais. (…)”
A sentença proferida no processo judicial acima mencionada, que declarou a nulidade da deliberação de nomeação de gerente, não transitou em julgado.
Por nada obstar, atendendo a essa situação de pendência do processo de anulação da deliberação social, que o Requerido continue a exercer as funções inerentes ao cargo, conclui-se, em conformidade com essa realidade, que está sujeito à presente acção de destituição, com pedido urgente de suspensão da gerência da sociedade.
As considerações explanadas permitem concluir que não se verifica o apontado risco de decisões contraditórias.
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso, e em consequência, revogam a suspensão da instância.
Custas pelo Recorrido.
Notifique.
Porto, 16/9/2025
Anabela Miranda
João Ramos Lopes
Lina Baptista
___________________
[1] cfr. Freitas, José Lebre de,A Acção declarativa Comum, 3.ª edição, Coimbra Editora, pág. 332 e Varela, Antunes e outros, Manual de Processo Civil, 2.ª edição,, pág. 689.
[2] Rel. Pinto dos Santos, e no mesmo sentido v., entre outros, Acs. TRG de 08/10/2020 e de 21/04/2022, consultáveis em www.dgsi.pt
[3] Rel. Jorge Seabra, consultável em www.dgsi.pt.
[4] Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 23.
[5] Consultável em www.dgsi.pt