MEDIDA DE CONFIANÇA COM VISTA A FUTURA ADOPÇÃO
RECURSO
LEGITIMIDADE
Sumário

Sumário:[1]:
I - Não tem legitimidade para interposição de recurso de Acórdão que decidiu pela aplicação de uma medida de uma medida confiança com vista a futura adopção, nos termos do n.º 2 do artigo 123.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, uma avó que nem é legal representante da menor, nem tem ou teve a sua guarda de facto.
II – O artigo 631.º, n.º 2, do Código de Processo Civil não se sobrepõe ao 123.º, n.º 2, da LPCJP, que se constitui como uma norma especial, justificada e compreensível perante os interesses em jogo.
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[1] Da responsabilidade do Relator, em conformidade com o n.º 7 do artigo 663.º do Código de Processo Civil.

Texto Integral

Decide-se na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa[2]
Relatório
No âmbito do processo que, a 13 de Fevereiro de 2023, o Ministério Público, nos termos dos artigos 3.º, n.ºs 1 e 2, alíneas c) e f), 11.º, alínea c), 37.º, 73.º, alínea b), 80.º, da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), em processo judicial de promoção e proteção, requereu a aplicação de medida cautelar relativamente à criança AF (nascida a 31/12/2022, filha de C e de A), veio a ser proferido Acórdão (a 04 de Junho de 2025), com a seguinte decisão[3]:
……
A avó da criança AF veio interpor Recurso do Acórdão, tendo o Ministério Público contra-alegado.
A 28 de Julho de 2025, em turno, foi proferida a seguinte Decisão Sumária:
“S, na qualidade de avó materna da menor AF, nascida no dia …-…-2022, veio interpor recurso ordinário de apelação do acórdão do Juízo de Família e Menores de Ponta Delgada – Juiz 2, proferido no dia 04- 06-2025, que lhe aplicou, para além do mais, a medida de promoção e de protecção de confiança à casa de acolhimento residencial denominada “Mãe…“, com vista a futura adopção.
O Ministério Público, junto do tribunal de primeira instância, veio suscitar a questão prévia da falta de legitimidade da avó materna para a interposição do recurso em causa, na medida em que entende, muito em síntese, que a menor AF nunca lhe esteve confiada para o exercício de responsabilidades parentais, pelo que não apresenta legitimidade para recorrer ao abrigo do art. 123.º da Lei n.º 147/99, de 01-09 (Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo).
Apreciando e decidindo:
O art. 123.º, n.º 2, da Lei n.º 147/99, reconhece legitimidade (activa) ao MP, ao próprio menor, aos pais, ao representante legal e ainda a quem tiver a guarda de facto da criança ou do jovem, para interpor recurso das decisões judiciais que apliquem, que modifiquem ou que façam cessar as medidas de promoção e proteção decretadas.
A recorrente S veio a invocar que a título pessoal, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 631.º do CPC, apresenta legitimidade para recorrer da decisão judicial proferida Juízo de Família e Menores de Ponta Delgada – Juiz 2, com vista à protecção dos direitos e do bem-estar da menor, sua neta, AF.
Ao invocar a norma geral constante do CPC, a recorrente S admite, pelo menos, implicitamente, que, na qualidade de avó materna da menor AF, não apresenta legitimidade para interpor recurso da decisão judicial que aplicou à sua neta a medida de promoção e protecção em referência.
Na realidade, para além de não ser legal representante da sua neta (vide máxime art. 124.º do CC), a recorrente S nunca exerceu, de facto, quaisquer responsabilidades parentais, nem tão-pouco a menor AF, por alguma vez, esteve entregue à guarda e aos cuidados da sua avó materna.
Conforme deixa assinalado o Digno Magistrado do Ministério Público, junto do tribunal a quo, a menor AF, à data em que foi proferida a decisão recorrida, encontrava-se sujeita, a título cautelar e provisório, à medida de acolhimento residencial, conjuntamente com a sua mãe A.
Acresce que o art. 123.º, n.º 2, da Lei n.º 147/99, indica, de forma taxativa, os sujeitos processuais que apresentam legitimidade (activa) para interposição de recurso das decisões judiciais que decretem, modifiquem ou cessem a aplicação de uma medida de promoção e protecção, sem que exista uma lacuna susceptível de suprida, mediante o recurso às normas invocadas pela recorrente S.
Existe um regime específico, que indica, de modo exaustivo, os sujeitos processuais que apresentam legitimidade para recorrer das decisões judiciais que sejam proferidas ao abrigo da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo.
Não se afigura que o art. 123.º, n.º 2, da Lei n.º 147/99 apresente uma lacuna susceptível de ser suprida mediante o recurso ao regime geral do art. 631.º, n.º 2, do CPC, nem tão-pouco nada aponta no sentido do legislador pretender reconhecer legitimidade activa a sujeitos que não são enumerados no mencionado dispositivo.
Por conseguinte, afigura-se que assiste razão ao Digno Magistrado do Ministério Público, junto do tribunal de primeira instância, na medida em que a recorrente S não assume nenhuma das qualidades que lhe atribuem legitimidade activa para efeitos do disposto no art. 123.º, n.º 2, da Lei n.º 147/99, de 01- 09, nem tão-pouco se considera ser de aplicar ao presente caso concreto a norma de extensão de legitimidade activa decorrente do art. 631.º, n.º 2, do CPC.
Em face do exposto, ao abrigo do disposto no art. 652.º, n.º 1, al. b), do CPC, decide-se não admitir o recurso interposto pela recorrente S, a título pessoal, com fundamento na falta da sua legitimidade, do acórdão do Juízo de Família e Menores de Ponta Delgada – Juiz 2, proferido no dia 04-06-2025, que aplicou à menor AF, a medida de promoção e de protecção de confiança à casa de acolhimento residencial denominada “Mãe…“, com vista a futura adopção.
Custas a cargo da recorrente.
Notifique”.
É desta decisão que a Recorrente S veio apresentar Reclamação (convolada para Reclamação para a Conferência), pretendendo que “se revogue o despacho que não admitiu o recurso de apelação interposto pela ora Reclamante, reconhecendo-se a sua legitimidade enquanto parte processual afetada pela decisão, ao abrigo do art. 631.º, n.º 2 do CPC, com interpretação conforme aos princípios constitucionais e internacionais aplicáveis”.
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Cumpre decidir.
Os Factos
A factualidade a considerar é a que resulta do Relatório.
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O Direito
Perante a Decisão Singular proferida e a Reclamação para a Conferência apresentada, a situação mostra-se perfeitamente clarificada.
Verificados os autos e a bem fundamentada Decisão Sumária de indeferimento do recurso da ora Reclamante, só podemos concluir que não assiste a esta qualquer razão.
De facto, e como também foi decidido no Acórdão da Relação do Porto de 24 de Outubro de 2022 (Processo n.º 452/18.2T8OBR-C.P1-Mendes Coelho), face “à regra de legitimidade para interposição de recurso prevista no nº 2 do art. 123º da LPCJP, não sendo os avós legais representantes da menor e tendo os mesmos deixado de ter a sua guarda de facto (nos termos em que esta é definida no art. 5º alínea b) daquela Lei) há mais de 4 meses por referência à data da decisão de aplicação de medida de promoção e protecção, não têm legitimidade para dela recorrer”.
 Ora, in casu,  a ora Reclamante (avó da criança AF) nem sequer teve – em momento algum – a guarda da menor[4].
Assim, a recorrente S não assume nenhuma das qualidades que lhe atribuiriam legitimidade activa para efeitos do disposto no artigo 123.º, n.º 2, da LPCJP (“Podem recorrer o Ministério Público, a criança ou o jovem, os pais, o representante legal e quem tiver a guarda de facto da criança ou do jovem”), inexistindo qualquer situação lacunar que permita o recurso ao regime do n.º 2 do artigo 631.º do Código de Processo Civil (“As pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias”), o qual não tem a susceptibilidade de se sobrepor à norma especial, específica, da LPCJP, que não só tem plena aplicação, como se mostra totalmente justificada e plenamente compreensível, dados os interesses em jogo (repare-se que - como pano de fundo - temos sempre a Constituição da República Portuguesa[5], a Declaração dos Direitos da Criança[6] e a Convenção Sobre os Direitos da Criança[7]).
Assim se reafirma, agora em Conferência, a Decisão Singular proferida a 10 de Fevereiro de 2025.
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DECISÃO
Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos dos artigos 663.º e 656.º do Código de Processo Civil, decide-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e às disposições legais citadas, julgar improcedente a reclamação, confirmando a Decisão Singular de 28 de Julho de 2025, que não admitiu o Recurso apresentado por  S quanto ao Acórdão 04 de Junho de 2025, por ilegitimidade.
Custas a cargo da Recorrente.
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Registe e notifique
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Lisboa, 23 de Setembro de 2025
Edgar Taborda Lopes
Carlos Oliveira
José Capacete[8]
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[2] Por opção do Relator, o Acórdão utilizará a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1945 (respeitando nas citações a grafia utilizada pelos/as citados/as).
A jurisprudência citada no presente Acórdão, salvo indicação expressa noutro sentido, está acessível em http://www.dgsi.pt/ e/ou em https://jurisprudencia.csm.org.pt/.
[3] Previamente e como bem enumera o Ministério Público na sua resposta ao recurso interposto, “foi aplicada à menor …», medida que vigorou e até à sua substituição pela medida de apoio junto do pai, por decisão de 29-02-2024, em referência à menor AF, e por medida de autonomia de vida, em referência a A, não obstante a manutenção das dificuldades de A ao nível da autorregulação, considerando a atitude e desempenho parental de A, que não sendo isento de fragilidades, se revelava protetor, bem como o projetos de ambos os pais de AF de se autonomizarem do agregado materno de A.
Na sequência de incidentes de agressão ocorridos no dia 25-04-2024 no agregado de origem de A, a envolver o pai de AF (C), o companheiro da mãe de A (AA), A e sua progenitora, no âmbito dos quais A desferiu uma facada no ombro do companheiro da mãe, por decisão de 03-05-2024, foi aplicada à menor AF, a título cautelar e provisório, a medida de acolhimento residencial, juntamente com a mãe A, na valência «…» da casa de acolhimento residencial «Mãe…», medida aplicada a 27-06-2024, pelo período de 6 meses, por acordo de promoção e proteção de 27-06-2024, esta última prorrogada por mais três meses e novamente a título cautelar, por se aguardar pela conclusão de perícias solicitadas ao Gabinete Médico Legal com o objetivo de se aferir se a jovem A padecia de perturbação de personalidade ou outra patologia, bem como se as suas características de personalidade afetavam gravemente as suas competências parentais.
Assim, está vigente em relação à AF e a medida de acolhimento residencial, sendo que à data da decisão ora sob recurso, a menor, por via daquela decisão anterior proferida nos autos e transitada em julgado, não se esteve confiada à avó materna em termos desta desempenhar para com ela funções próprias de responsabilidade parentais”.
[4] E repare-se que o artigo 5.º, alínea b), da LPCJP define guarda de facto da criança como “a relação que se estabelece entre a criança ou o jovem e a pessoa que com ela vem assumindo, continuadamente, as funções essenciais próprias de quem tem responsabilidades parentais”.
[5] Que define o regime essencial nesta matéria:
- no artigo 69.º n.ºs 1 e 2, quando afirma que as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral, em particular contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições, cabendo ao Estado, em especial, assegurar proteção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal;
- no artigo 36.º, n.ºs 5 e 6 quando estipula que os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos e não podem de estes ser separados, salvo quando não cumpram os deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.
[6] Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas 1836 (XIV), de 20 de Novembro de 1959.
[7] Adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20/11/1989, assinada por Portugal em 26/01/1990, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, de 12 de Setembro, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 49/90, de 12 de Setembro.
Nela se impõe aos Estados (para além de tomar medidas de protecção das crianças contra todas as formas de violência física ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, quer se encontrem sob a guarda dos pais ou de qualquer outra pessoa a quem tenham sido confiadas - artigo 19.º, n.º 1), vele para que as crianças apenas sejam separadas de seus pais se essa separação se mostrar necessária “no interesse superior da criança”: é o que dispõe o se artigo 9.º, n.º 1 (“Os Estados Partes garantem que a criança não é separada dos seus pais contra a vontade destes, salvo se as autoridades competentes decidirem, sem prejuízo de revisão judicial e de harmonia com a legislação e o processo aplicáveis, que essa separação é necessária no interesse superior da criança. Tal decisão pode mostrar-se necessária no caso de, por exemplo, os pais maltratarem ou negligenciarem a criança ou no caso de os pais viverem separados e uma decisão sobre o lugar da residência da criança tiver de ser tomada”).
[8] Assinatura digital, cujos certificado está visível no canto superior esquerdo da primeira página (artigos 132.º, n.º 2 e 153.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e 19.º, n.ºs 1 e 2, e 20.º, alínea b), da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto)