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RECURSO
FACTOS NOVOS
FACTOS ESSENCIAIS
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ERRO DE JULGAMENTO
ATRIBUIÇÃO DO USO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ACORDO
COMPENSAÇÃO DO EX-CÔNJUGE
CONSTITUIÇÃO DE ARRENDAMENTO
FIXAÇÃO DE RENDA
Sumário
Sumário: 1. É de admitir o conhecimento de factos supervenientes pelo tribunal da Relação, desde que, quando carecidos de prova, seja junto aos autos documento bastante para o efeito. 2. A alegação de factos novos (que imponha uma alteração da decisão da primeira instância sobre a matéria de facto) não pode ser feita na contra-alegação de recurso. 3. É controvertida a natureza da patologia presente, quando o tribunal omite pronúncia (julgamento de facto) sobre um dos factos essenciais que constituem a causa de pedir. Seja enquadrando a patologia nas nulidades da decisão, seja enquadrando-a no erro de julgamento sobre a questão de facto, para que se possa concluir pela ocorrência de uma omissão suscetível de afetar a sentença, é necessário que o objeto da pronúncia omitida seja um facto essencial – ou, pelo menos, um facto compreendido no conjunto dos factos que, pela sua relevância, devem integrar a fundamentação de facto da sentença. 4. O acordo sobre o destino da casa de morada de família após a dissolução do casamento é, no essencial, um contrato de transação especial (art. 1248.º, n.º 1, do Cód. Civil), pelo qual os cônjuges previnem ou terminam um litígio no exercício das suas posições jurídicas sobre a casa de morada de família. 5. Por meio da abdicação do uso da residência comum, o ex-cônjuge pode satisfazer uma obrigação sua de alimentos ou de assistência. 6. Quando a atribuição do uso da casa de morada de família visa a satisfação de deveres de assistência ou de alimentos, o termo de todas estas obrigações pode determinar o termo da vigência do acordo. 7. Depois do divórcio, cada cônjuge deve prover à sua subsistência (art. 2016.º, n.º 1, do Cód. Civil). Deste princípio da autossuficiência de cada um dos ex-cônjuges decorre o âmbito temporário da obrigação de alimentos entre estes. 8. O meio previsto na lei para a compensação do ex-cônjuge titular ou contitular do direito de propriedade pela privação da sua faculdade de gozar o seu imóvel, na falta de acordo, é a constituição judicial de uma relação de arrendamento. 9. O critério previsto no n.º 1 do art. 1793.º do Cód. Civil (“necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal”) preside não apenas à atribuição do uso da casa de morada de família, mas também à fixação da renda devida. 10. No entanto, só deve a renda fixada ser inferior ao justo valor do gozo do imóvel, se o uso da casa de morada de família corresponder também à satisfação de uma obrigação alimentícia ou de assistência, e enquanto corresponder. 11. Quando não existam obrigações alimentícias nem subsista o dever de assistência (a cargo do contitular privado do uso do imóvel), devem prevalecer, na fixação da renda, as “condições gerais do mercado”, devidamente temperadas por referência à justa remuneração do investimento imobiliário.
Texto Integral
Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
A. Relatório
A.A. Identificação das partes e indicação do objeto do litígio AAA instaurou contra RRR (em 30 de setembro de 2022), por apenso à ação na qual foi decretado o seu divórcio, a presente ação de processo especial de alteração do acordo sobre a atribuição da casa de morada de família, pedindo que seja “a requerida condenada a pagar ao requerente: a) Uma contrapartida mensal no montante não inferior a € 1500,00, desde a sua citação e enquanto permanecer a indivisão do imóvel e a atribuição do uso da casa de morada de família à requerida; b) A definição de um limite temporal para o uso exclusivo do imóvel por parte da requerida, que se pretende até à adjudicação do imóvel a um deles ou até à venda a terceiros; c) Uma contrapartida indemnizatória, respeitante ao período de agosto de 2020 até agosto de 2022, no montante global de € 12.000,00. d) Às quantias reclamadas, deverão acrescer os juros legais que se vencerem desde a citação até integral pagamento”. Para tanto, alegou que foi casado com a ré, sendo ambos os únicos comproprietários da anterior casa de morada de família. No âmbito do processo de divórcio, acordaram as partes que a ré continuaria a morar na anterior residência comum. Este acordo foi motivado por nesta casa residirem os filhos comuns do casal e por a ré se encontrar transitoriamente desempregada, bem como no pressuposto de que as partes poriam fim à compropriedade com brevidade. As circunstâncias nas quais se fundou o acordo alteraram-se. Citada em 3 de novembro de 2022 (ref. 34083328), a ré contestou, defendendo a improcedência do pedido e, subsidiariamente, a atribuição de uma compensação ao autor em valor não superior a € 225,00, a pagar mensalmente, desde a data da sentença. Após realização da audiência final, o tribunal a quo julgou a ação parcialmente procedente (em 28 de dezembro de 2024), concluindo nos seguintes termos: “Em face do exposto, (…) julgo o pedido parcialmente procedente e, em consequência, fixo uma contrapartida mensal a pagar pela requerida ao requerente no montante de 400,00 € (…), desde a sua citação e enquanto permanecer a indivisão do imóvel e a atribuição do uso da casa de morada de família à requerida. Julgo improcedente o pedido de atribuição de contrapartida indemnizatória, respeitante ao período de agosto de 2020 até agosto de 2022, bem como a definição de um limite temporal para o uso exclusivo do imóvel, o qual já se mostra ultrapassado. Custas da ação na proporção do decaimento, sendo o requerente em 74 % e a requerida em 26 %”. Inconformado, o autor apelou desta decisão, concluindo, no essencial: “16. (…) [A] factualidade descrita nos artigos 38.º a 42.º, 49.ºG, 56.º da petição inicial, não fo[i] objeto de apreciação e decisão pelo tribunal a quo, sendo que a falta ou omissão de pronuncia sobre factos que o tribunal devesse conhecer gera nulidade, que se argui e deve ser declarada com as legais consequências. (artigo 615.º n.º 1, alínea d). e 4 do CPC). (…) 20. (…) [Deve] o 44 dos factos provados, ter a redação (…): . 44) A venda dos imóveis referidos em 39 a 41, teve como objetivo permitir à requerida adquirir a parte do requerente na casa de morada de família, cuja intenção teve sempre e que nunca foi possível por recusa daquele em chegar a um acordo nas condições por ela estabelecidas, designadamente: .a) Previamente a maio de 2022, a requerida apresentou propostas para adquirir a quota parte daquele no imóvel, propriedade de ambos, mediante a permuta dos seus dois imóveis identificados em 39), al. b) e c), ou 190 mil euros, as quais não foram aceites pelo requerente. .b) A requerida não aceitou uma avaliação comercial, por considerar que o imóvel estava onerado com o seu direito real de habitação, vitalício. (…) 29. (…) [R]equer-se a alteração à matéria de facto, com a redação (…): 45) O requerente não aceitou as condições da requerida para a aquisição da sua quota parte no imóvel, e esta passou a exigir-lhe o pagamento das quotas do condomínio– ordinárias e extraordinária, passando este a receber os mails e os avisos para pagamento da administração de condomínio, retomando em junho de 2023, os pagamentos respeitantes à fração. 30. A conduta da recorrida configura um uso abusivo do direito (…). (…) 45. Tem-se por justo e equitativo fixar a quantia de € 500,00 por cada mês de uso da casa de morada de família (…) entre os meses de agosto de 2020 a agosto de 2022 (…). (…) 51. O recorrente suporta sozinho o arrendamento da sua casa, no valor de € 900,00, atualmente cifra-se em € 986,00, arrendado que mantém por constituir, igualmente, a casa de morada dos filhos, do FFF3 em residência alternada, e da filha FFF2 que ali reside em permanência. 52. A filha maior do casal, FFF1, já não reside com a recorrida na casa de morada de família (…) desde novembro de 2024, foi viver e trabalhar para Madrid, requerendo-se ao tribunal ad quem a alteração do facto consignado em 20) na sentença, com esta mesma redação. (…) 56. Impõe-se a alteração ao facto 21), com a redação (…): 21) A filha do meio do casal, FFF2, estudante em medicina, vive na fração arrendada pelo pai em Lisboa durante as semanas de período letivo, e na casa de morada de família aos fins-de-semana e período de férias, onde vai alternando entre uma e a outra casa. 57. Acresce atualizar que, a FFF2 encontra-se desde janeiro p.p. em programa Erasmus, em (…) França, (…) até junho de 2025, após, regressará para residir na casa arrendada do requerente e continuar o seu curso de medicina. 58. Cumpre referir ainda uma alteração entretanto verificada à situação profissional do recorrente: desde dezembro último, devido à guerra civil que ocorre em Moçambique, facto que é publico, encontra-se a trabalhar exclusivamente em território nacional e sem atividade comercial naquele país, verificando-se uma redução dos seus rendimentos, uma vez que, atualmente, só aufere o salário em Portugal de € 2.344,00 líquido, (…) requerendo-se a alteração da factualidade com esta mesma redação. 59. Cumpre ainda atualizar a renda que o recorrente paga pelo arrendamento do imóvel que habita (…), a que se refere o n.º 17 e 18 dos factos provados, que se cifra agora em € 986,00. (…). requerendo-se em conformidade a alteração do valor da renda, descrito no facto provado em 18). (…) 62. Deve a sentença ser revogada e substituída por outra que fixe o valor a pagar pela recorrida ao recorrente de € 1.000.00 mensais, pelo uso da casa de morada de família (…), desde a sua citação e enquanto permanecer a indivisão do imóvel e atribuição do uso (…) à recorrida. (…) 66. A decisão a quo devia declarar que o uso da CMF, não reveste natureza vitalícia nem constituiu um direito de habitação irrestrito (…). Nestes termos e nos melhores de direito, deverá o presente recurso de apelação ser julgado procedente de direito e de facto e em consequência: – julgada procedente a nulidade invocada por omissão de pronuncia e, por estarem reunidos os pressupostos legais, julgada procedente a impugnação de facto, aditando-se e alterando-se em conformidade com o supra exposto; – ser revogada a sentença recorrida e substituída por acórdão que julgue totalmente procedentes por provados, os pedidos formulados pelo recorrente, designadamente: .a) a atribuição de uma contrapartida mensal a pagar pela recorrida ao recorrente, não inferior a 1.000.00€ mensais, desde a citação e enquanto permanecer a indivisão do imóvel e a atribuição do uso da casa de morada de família à recorrida; .b) a condenação da recorrida em indemnização a liquidar ao recorrente no valor de € 12,000,00 em face da conduta que empreendeu, configurar abuso de direito; .c) fixe o termo do uso com menção de que o mesmo não tem caracter vitalício. Mais se, requer-se a admissão dos 5 documentos juntos em sede de recurso, dada a superveniência da matéria que documentam, e porque visam a atualização dos elementos relevantes da decisão, nos termos do disposto no artigo 651.º/1, 425.º Cód. Proc. Civil”. A ré/apelada contra-alegou, pugnando pela improcedência da apelação. Inconformada, a ré apelou desta decisão, concluindo, no essencial: B. (…) [A] matéria vertida nos pontos 14, alínea a), 1.ª parte, e alínea b), e 42 dos factos provados, encontra-se em contradição e foi incorretamente julgada (…); C. (…) [D]everia o tribunal a quo ter concluído no sentido de se encontrar provado que: .“Mais acordaram os ex-cônjuges, informalmente entre si, que: .a) o requerente deixa de comparticipar nas despesas correntes da habitação, tais como os consumos de água, eletricidade, gás, internet e comunicações. .b) a requerida adquiria o imóvel até julho de 2022, prazo estabelecido para que esta tivesse o tempo necessário a angariar o valor necessário a concretizar o negócio, ou mediante o recurso a crédito bancário, ou para proceder à venda de bens imóveis de sua propriedade”. D. (…) [D]everia o tribunal a quo ter concluído no sentido de se encontrar provado que: .A requerida tem despesas mensais fixas com seguro, condomínios, bem como, as despesas com alimentação, vestuário, consumos de água, luz, gás, internet, telemóvel e ainda as despesas dos seus filhos que vivem consigo, no montante global de € 1.917,12 (…); E. Da sentença recorrida resulta a omissão de factos relevantes para a matéria decidenda (…), constituindo, em consequência, uma omissão de pronúncia, ditando a nulidade da decisão recorrida, por violação do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC; F. (…) Deveria o tribunal a quo ter concluído no sentido de se encontrar provado que: .“A requerida suportou sozinha as seguintes despesas, as quais também se encontram deduzidas na ação de divisão de coisa comum já identificada pelo requerente (…): .a) A amortização de parte do crédito à habitação, efetuada exclusivamente com recurso a capitais próprios da requerida, no valor de € 50.000,00 (…), a qual reduziu em 50% do valor da prestação mensal do respetivo empréstimo e uma poupança mensal em média de € 160,00, desde 2011; .b) Desde o ano de 2013, que todas as benfeitorias necessárias e úteis efetuadas na casa de morada de família, foram suportadas na íntegra pela requerida, designadamente: .i. a construção de uma extensão da sala de estar, usada como jardim de inverno, no logradouro do imóvel em causa, sendo a área coberta do imóvel aumentada 13,14 m2, e .ii. a realização de obras de reparação e conservação do muro interior do logradouro do imóvel em causa e retirada da churrasqueira, os quais se encontravam danificados e degradados, em risco de ruína para um parque público, perfazendo um total de € 19.596,46 (…), .c) Desde o mês de junho de 2020 e até junho de 2023, tem vindo a requerida a suportar sozinha as despesas com o condomínio onde se encontra inserido o imóvel em causa, nomeadamente: .i. o pagamento extraordinário de uma fatura da água do condomínio, por ocorrência de uma fuga de água; .ii. o pagamento das respetivas quotas regulares; .iii. o pagamento extraordinário de obras realizadas no muro exterior do imóvel; .iv. o pagamento de obras realizadas na calçada das partes comuns do condomínio; .v. o pagamento extraordinário da pintura exterior do imóvel e das demais zonas comuns do condomínio, tudo no valor total de cerca de € 8.000,00 (…); . d) Suportou as despesas relativas à inundação verificadas no imóvel em 17 de fevereiro de 2024, no valor mínimo de € 1.330,00 (…); .e) Procedeu também, em 15 de maio de 2024, à liquidação integral do crédito à habitação em dívida do imóvel, no valor de € 36.575,59 (…); G. (…) [N]ão se vislumbra quaisquer factos que permitam concluir que houve alteração das circunstâncias (…); (…) M. Atentas as condições de vida de ambos e, bem assim, a iminência da divisão do imóvel em causa, a mesma não pode ser nunca superior ao valor máximo de € 225,00 (…); N. Na fixação do valor da renda o tribunal deve ter em conta as circunstâncias do caso concreto e a situação das partes, em particular, da recorrente e das necessidades dos filhos do ex-casal, sendo adequado, justo e proporcional a fixação de uma compensação simbólica no valor de € 100,00 (…); O autor/apelado contra-alegou, pugnando pela improcedência da apelação. A.B. Questões que ao tribunal cumpre solucionar A primeira questão a enfrentar é a da admissibilidade da junção de documentos na fase de recurso. Segue-se a apreciação das reclamações de nulidade da sentença. As questões de facto a decidir são as destacadas pelos apelantes nas respetivas alegações de recurso, acima transcritas. As questões de direito a tratar – em torno da existência de um fundamento para a alteração do acordo de atribuição do uso da anterior casa comum, bem como da verificação do exercício abusivo do direito – serão mais desenvolvidamente enunciadas no início do capítulo dedicado à análise dos factos e à aplicação da lei. B. Junção de documentos na fase de recurso Com a alegação de recurso, o autor/apelante juntou aos autos cinco documentos, requerendo a sua admissão “dada a superveniência da matéria que documentam, e porque visam a atualização dos elementos relevantes da decisão, nos termos do disposto no artigo 651.º/1, 425.º CPC” – itálico nosso. Não está aqui em discussão a admissibilidade da junção e da consideração de documentos supervenientes para prova de factos pretéritos – questão tratada no n.º 1 do art. 651.º do Cód. Proc. Civil –, mas sim, antes do mais, a alegação de factos supervenientes ao encerramento da discissão perante a 1.ª instância. É, pois, por esta questão prejudicial que começaremos. Também a ré, quer com a apelação por si interposta, quer com a contra-alegação apresentada no recurso interposto pelo autor, requereu a junção aos autos de diversos documentos. Estes requerimentos também serão apreciados preliminarmente. 1. Alegação de factos supervenientes na alegação de recurso São conhecidas as questões suscitadas em torno da alegação de factos novos perante o tribunal da Relação, na instância de recurso – sobre o tema, veja-se a didática dissertação de mestrado Carolina da Silva Guerra, subordinada ao tema “Factos supervenientes em recurso civil”, de 2020, publicada em <repositorio.ulisboa.pt/handle/10451/50651>, bem como a doutrina e a jurisprudência na mesma citadas; quanto a esta, cfr., ainda, o Ac. do STJ de 09-07-2024 (12524/18.9T8LSB.L1.S1) e o Ac. do TRL de 10-05-2022 (23104/19.1T8LSB.L1-1); quanto à doutrina, cfr., ainda, João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume II, Lisboa, AAFDL, 2022, p. 131 e segs.. Considerando que o modelo de recurso – de reponderação, ou de reexame – é o reflexo das soluções legais adotadas, e não o inverso, é nestas que devemos procurar a resposta para tais questões. A remissão operada pelo n.º 2 do art. 663.º do Cód. Proc. Civil para o art. 611.º do mesmo código não responde satisfatoriamente à questão da admissibilidade do conhecimento de factos novos pelo tribunal da Relação, dado que, com alguma propriedade, se poderá dizer que a norma convocada não se dirige à aquisição de factos novos, isto é, à sua narração inovadora nos autos, mas sim à consideração da sua ocorrência ulterior à sua alegação. O mesmo é dizer que, de acordo com esta leitura restritiva da norma, por via desta, poderia o tribunal da Relação conhecer um facto já alegado, mas não provado – por, efetivamente, (na data do encerramento da discussão em primeira instância) ainda não ter ocorrido –, que se verificou ulteriormente, mas não à admissão da alegação e prova de factos supervenientes, não alegados pela via processual legalmente prevista – articulados produzidos perante a 1.ª instância. A relevância matricial da tutela constitucional do direito a um processo equitativo (art. 20.º, n.º 4, da Con. Rep. Portuguesa) condiciona fortemente a resposta a dar à questão do conhecimento de factos novos pelo tribunal da Relação. Inexistindo mecanismos processuais predispostos, quer para a alegação inovadora de factos, quer para a sua prova, por iniciativa das partes, perante 2.ª instância – ressalvado o caso quase académico previsto no art. 264.º do Cód. Proc. Civil –, não poderão pelo tribunal da Relação, por regra, ser considerados factos novos carecidos de alegação e de prova (art. 5.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil). Quanto às hipóteses previstas na als. a) e b) do n.º 1 do art. 5.º do Cód. Proc. Civil, são as mesmas de afastar, por regra, pois a instrução, também por regra, encontra-se encerrada. O mesmo é dizer que, se o facto foi efetivamente adquirido por via da instrução, o mais que se poderá admitir é a existência de uma omissão do seu julgamento, a justificar o uso dos poderes previstos no art. 662.º, n.º 2, Cód. Proc. Civil, não sendo, pois, um problema de superveniência da sua ocorrência. Quanto à hipótese prevista na al. c) do n.º 1 do art. 5.º do Cód. Proc. Civil, não é de afastar liminarmente a sua aplicação aos factos supervenientes, isto é, aos factos ocorridos após o encerramento da decisão em 1.ª instância. No entanto, quanto aos factos carecidos de prova, isto é, quanto aos factos supervenientes de conhecimento oficioso – já não quanto aos factos notórios –, a coerência sistemática do regime legal processual civil exige que a sua prova seja documental (arts. 412.º, n.º 2, segunda parte, e 651.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil). Posto isto, descrita a regra, resta-nos olhar para a exceção. Nesta, o raciocínio legitimador é invertido, partindo da admissibilidade da prova do facto, para depois se concluir pela legalidade da sua alegação. Admite a lei uma atividade instrutória perante a segunda instância: a junção de documentos, designadamente, supervenientes (art. 651.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil). Tanto basta para que não possamos afastar, em absoluto, a possibilidade de aquisição excecional de factos supervenientes perante a segunda instância. Assim ocorrerá, quer quando a junção do documento superveniente for admissível para prova de um facto pretérito – podendo, em abstrato, configurar-se a aquisição de um distinto facto superveniente nele documentado (als. a) e b) do n.º 1 do art. 5.º do Cód. Proc. Civil) –, quer quando for admissível para prova de um facto superveniente invocado na alegação de recurso – ocorrendo a sua aquisição processual, pois, por via de alegação (art. 5.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil). Em qualquer caso, escusado seria dizê-lo, terá de ser respeitado o princípio do contraditório e o direito à prova da contraparte (art. 3.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil). Ultrapassada a questão da válida aquisição processual do facto superveniente, fica ultrapassada a questão da sua prova perante o tribunal da Relação. Tem esta lugar – e só pode ter lugar – por via dajunção de documento superveniente bastante. Se o documento reproduz ou traduz o facto superveniente – por exemplo, a prolação de uma decisão relevante noutro processo –, não pode, logicamente, deixar ele próprio de ser superveniente (art. 362.º, n.º 2, do Cód. Civil). Não sendo admissível a produção, por iniciativa das partes, de outros meios de prova perante o tribunal da Relação, é forçoso concluir que apenas podem ser considerados os factos supervenientes que se encontrem suficientemente provados por documento apresentado (prova bastante). E, ainda assim, só o podem ser os factos que não sejam impugnados pela contraparte ou que, sendo-o, a respetiva contraprova esteja também sujeita a prova documental (não produzida). Se os factos supervenientes se encontrarem plenamente provados pelo documento superveniente, poderão ser conhecidos (e julgados provados) se não for contra-alegado o facto contrário ou, sendo-o, só puder este ser provado por documento (não produzido). Em suma, é, em abstrato, de admitir o conhecimento de factos supervenientes pelo tribunal da Relação, desde que, quando carecidos de prova, seja junto aos autos o documento que os prova, e depois de respeitado o princípio do contraditório e o direito à prova da contraparte. 2. Admissibilidade da junção de documentos com a alegação pelo apelante Os documentos juntos com a alegação destinam-se à prova dos seguintes factos supervenientes, descritos na conclusão da alegação: “52. A filha maior do casal, FFF1, já não reside com a recorrida na casa de morada de família (…) desde novembro de 2024, foi viver e trabalhar para Madrid, requerendo-se ao tribunal ad quem a alteração do facto consignado em 20) na sentença, com esta mesma redação. [documento n.º 1 junto com a alegação] 57. Acresce atualizar que, a FFF2 encontra-se desde janeiro p.p. [ano de 2025] em programa Erasmus, em Saint Étienne, França, na Faculdade de Medicina, até junho de 2025, após, regressará para residir na casa arrendada do requerente e continuar o seu curso de medicina. [documento n.º 5 junto com a alegação: contrato de 30 de janeiro de 2025] 58. Cumpre referir ainda uma alteração entretanto verificada à situação profissional do recorrente: desde dezembro último [ano de 2024], devido à guerra civil que ocorre em Moçambique, facto que é publico, encontra-se a trabalhar exclusivamente em território nacional e sem atividade comercial naquele país, verificando-se uma redução dos seus rendimentos, uma vez que, atualmente, só aufere o salário em Portugal de € 2.344,00 líquido. (…). requerendo-se a alteração da factualidade com esta mesma redação. [documento n.º 2 junto com a alegação: recibo de vencimento de janeiro de 2025] 59. Cumpre ainda atualizar a renda que o recorrente paga pelo arrendamento do imóvel que habita (…), a que se refere o n.º 17 e 18 dos factos provados, que se cifra agora em € 986,00. (…). requerendo-se em conformidade a alteração do valor da renda, descrito no facto provado em 18).” [documentos n.os 3 e 4 junto com a alegação: comunicação do aumento de renda para o ano de 2025 e renda liquidada em fevereiro de 2025] Na afirmação da superveniência destes factos, dever-se-ão ter em consideração as seguintes duas ocorrências processuais: a) Em 17 de junho de 2024 (ref. 436384956), teve lugar a última sessão da audiência final, na qual, além do mais, foi proferido o seguinte despacho: “Elaborada a ata, apresente os autos conclusos para prolação de sentença”. b) Em 28 de dezembro de 2024 (ref. 436657154), foi proferida a sentença apelada. Conclui-se do confronto entre as datas destas ocorrências e as datas dos factos agora alegados que estes são, efetivamente, supervenientes. Dito isto, cabe verificar se a matéria nova é relevante para a justa decisão do litígio. Não se discutindo na ação a atribuição do uso da casa de morada de família – mas apenas a fixação de uma compensação, a suportar pela ré apelada, pela exclusividade da ocupação do imóvel de que apenas é comproprietária – nem se discutindo neste processo especial o direito a alimentos, são irrelevantes os factos respeitantes à situação socioeconómica do autor apelante – conclusões 58, segunda parte, e 59 –, como adiante melhor se explicará. O facto descrito na conclusão 52 também é desprovido de utilidade, pois refere-se a uma filha maior que exerce uma atividade profissional, tal como consta do ponto 20 – factos provados. No que toca à conclusão 57, diz ela respeito a uma circunstância transitória, com o seu termo no passado mês de junho de 2025. É irrelevante para a sorte do litígio, considerando o teor do ponto 21 – factos provados. Em suma, e quase sem exceção, os factos para prova dos quais se pretende a junção de documentos não assumem relevância na decisão da apelação, não havendo fundamente para que se configure a sua aquisição processual, pelo que não é de admitir a referida junção de documentos com as alegações de recurso. Poder-se-á, no entanto, ressalvar o facto descrito na 1.ª parte da conclusão 58 – “desde dezembro último [ano de 2024], (…) [o autor] encontra-se a trabalhar exclusivamente em território nacional”. Este facto é, em si mesmo, pouco relevante. No entanto, poder-se-á entender que, reflexamente (considerando o propósito das partes vertido no acordo de regulação das responsabilidades parentais), dele se extrai que o filho mais novo do ex-casal (não sujeito ao poder paternal, mas ainda dependente) já não reside a maior parte do tempo na anterior casa de morada de família. Podemos, pois, admitir a válida alegação e aquisição processual deste facto: desde dezembro de 2024, o autor encontra-se a trabalhar exclusivamente em território nacional. Questão diferente desta é a da valia probatória do documento n.º 2 apresentado com a alegação, o único cuja junção agora se admite. Em conclusão, e com esta ressalva, não se admite a pretendida junção de documentos supervenientes. Pela junção parcialmente não admitida, deve o apelante ser condenado em multa (art. 443.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, e 27.º, n.º 1, do Reg. Cust. Processuais). 3. Admissibilidade da junção de documentos com a contra-alegação pela apelada Perante a alegação de factos novos pelo autor apelante, a ré apelada, nas contra-alegações, não ofereceu oposição, limitando-se a excecionar: “Vem ainda o recorrente insurgir-se contra a compensação mensal fixada pelo tribunal a quo, juntando para o efeito novos documentos, mormente quanto às despesas da recorrida com os filhos do casal. // Sucede que, contrariamente ao que refere o recorrente, a recorrida mantém inúmeras despesas com os seus vários filhos”. Aproveitou, pois, a apelada a porta aberta pelo apelante (em parte, irregularmente) para, por seu turno, apresentar 17 novos documentos. Com a sua junção pretende a recorrida provar que “mantém inúmeras despesas” com os seus vários filhos. Pretende, pois, a apelada provar que, após o encerramento da audiência final, despendeu as seguintes quantias:
Destino
Valor
Doc.
despesas do filho
105,50
1
despesas do filho
130,00
2
despesas do filho
14,90
3
despesas do filho
138,50
4
despesas da filha FFF1
406,98
5
despesas da filha FFF1
325,00
6
despesas da filha FFF2
423,60
8
despesas da filha FFF2
194,00
9 a 11
reparação à caldeira e reparações várias
476,00
13 e 14
seguro do imóvel
287,11
15 e 16
Total
2 501,59
Quer, ainda, a apelantepelante discutir a factualidade respeitante aos seguintes documentos:
Descritivo
Doc.
conduta do recorrente com a filha FFF2
7
recurso às urgências
12
orçamentação de obras necessárias (€7.000,00)
17
Os documentos em questão não revelam uma alteração substancial do quadro socioeconómico da apelante, pelo que, ainda que este quadro fosse relevante para a decisão da causa, nunca seria de admitir a sua junção. Como é evidente, é inconcebível que, a cada nova despesa suportada após o encerramento da audiência final, a parte pretenda alegar a sua realização e juntar aos autos o documento que a comprova, com vista à demonstração da sua situação económica e profissional – inalterada, essencialmente. Conforme se extrai do enunciado do n.º 1 do art. 423.º do Cód. Proc. Civil, “os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes”. Isto significa, designadamente, que os documentos se destinam à prova ou à contraprova de factos processualmente adquiridos. Ora, a factualidade nova invocada pela apelada, não sendo relevante – por não determinar uma diferente solução para o litígio –, não deve ser processualmente adquirida: nem a que foi alegada pelo apelante na alegação de recurso (com a ressalva já sinalizada, para aqui irrelevante), nem a que é irregularmente alegada pela apelada nas contra-alegações – numa estratégia de “Cavalo de Troia”. Se não foi adquirida nova factualidade, os documentos que supostamente a demonstrariam ou contrairiam não podem ser admitidos. Quanto à factualidade inovadoramente referida pela apelada, temos ainda de sublinhar que a sua invocação é absolutamente irregular por diferente razão, pois implica uma alteração da decisão sobre a matéria de facto. Por um lado, a alegação de factos novos com a contra-alegação (mas ocorridos antes de decorrido o prazo de recurso) dificulta gravemente o respeito pelo princípio do contraditório. Por outro lado, quando a afirmação de factos novos na fase de recurso impõe, reflexamente, uma alteração da decisão da primeira instância sobre a matéria de facto, representa a sua alegação, materialmente, uma impugnação desta decisão, pelo que só pode ser conseguida por via de recurso (art. 627.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil) ou, subsidiariamente (e preventivamente), da ampliação do seu âmbito (art. 636.º do Cód. Proc. Civil). Nunca por via de simples contra-alegação. Em suma, os factos para prova dos quais se pretende a junção de documentos não podem ser processualmente adquiridos nesta fase, pelo que não se admite tal junção com as contra-alegações de recurso. Deve a apelada ser condenada em multa (art. 443.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, e 27.º, n.º 1, do Reg. Cust. Processuais). 4. Admissibilidade da junção de documentos com a alegação pela ré apelante Com a alegação de recurso da sua apelação, a ré apelante juntou aos autos sete documentos, requerendo a sua admissão para prova das suas despesas com “internet e telemóveis (incluindo do filho mais novo)” (documentos n.os 1 a 5) e para prova de “despesas extraordinárias que surgiram recentemente com a manutenção da casa” (documentos n.os 6 e 7). Inscrevem-se estes factos instrumentais na demonstração do seguinte facto, que a apelante pretende que seja julgado provado pelo tribunal ad quem: “42) A Requerida tem despesas mensais fixas com seguro, condomínios, bem como, as despesas com alimentação, vestuário, consumos de água, luz, gás, internet, telemóvel e ainda as despesas dos seus filhos que vivem consigo, no montante global de € 1.917,12 (mil novecentos e doze euros e dezassete cêntimos)”. Afira-se-nos apodítico que a junção de documentos (n.os 6 e 7) para prova de “despesas extraordinárias que surgiram recentemente com a manutenção da casa” é totalmente desprovida de utilidade na prova das “despesas mensais fixas” da apelante. É, pois, inadmissível a sua junção. No que toca aos documentos apresentados para prova das despesas da apelante com “internet e telemóveis (incluindo do filho mais novo)” (n.os 1 a 5), e como já foi acima sublinhado, é inconcebível que, a cada nova despesa suportada após o encerramento da audiência final, a parte pretenda alegar a sua realização e juntar aos autos o documento que a comprova. No caso, o (suposto) facto a provar é a existência de um encargo mensal com telecomunicações, com determinado valor médio, e não a liquidação de cada fatura mensal vencida. Ora, não só tal facto (a existência de um encargo mensal com telecomunicações) não é superveniente, como já teve a apelante oportunidade de juntar o documento que o demonstra – uma (qualquer) fatura vencida e liquidada. Não demonstra a apelante que, até ao fim do encerramento da discussão, não lhe foi possível apresentar uma fatura demonstrativa dos seus gastos médios com telecomunicações. Não é, pois, admissível a junção dos documentos n.os 1 a 5, conforme previsto nos arts. 425.º e 651.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil. Resta acrescentar que este raciocínio é válido para qualquer outra despesa fixa (mensal) com o consumo de bens e de serviços essenciais – designadamente, água, eletricidade ou gás. Em suma, por falta de base legal, não se admite a junção dos documentos apresentados com a alegação de recurso da ré. Deve a apelante ser condenada em multa (art. 443.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, e 27.º, n.º 1, do Reg. Cust. Processuais). C. Fundamentação C.A. Factos provados (conforme decidido pelo tribunal ‘a quo’) 1. Anterior casamento entre as partes 1 – Em 30 de novembro de 1995, o requerente e a requerida casaram, com convenção antenupcial, no regime de separação de bens, conforme assento de casamento da Conservatória do Registo Civil de Lisboa. 2 – Do matrimónio nasceram três filhos, a saber: a) FFF1, nascida em … de … de 1998; b) FFF2, nascida em … de … de 2001; e c) FFF3, nascido em … de … de 2004 (…). 3 – Em 14 de janeiro de 2022, o casamento e vínculo conjugal foram dissolvidos por divórcio decretado por sentença proferida no processo principal, na sequência da convolação do divórcio sem o consentimento do outro cônjuge para divórcio por mútuo consentimento. 2. Aquisição da casa de morada de família 4 – Os ex-cônjuges instalaram a casa de morada de família na fração autónoma (…) descrita na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º XXX da freguesia do Estoril (…). 5 – A fração autónoma foi adquirida pelo requerente e pela requerida (…). 6 – O requerente e a requerida, aquando da aquisição da referida fração autónoma, contraíram um empréstimo hipotecário (…), no valor de € 125.000,00, com o montante máximo assegurado de € 154.375,00 (…). 7 – Trata-se de uma fração autónoma, localizada num condomínio fechado (…), composto por 6 moradias unifamiliares, com piscina comum e espaço comum de jardim infantil, todas as casas estão viradas para o …, constituído por um arvoredo denso de pinheiros e outras árvores, proporcionando qualidade e tranquilidade ao condomínio. 8 – O condomínio, com um portão único de acesso ao corredor comum das garagens individuais em box, situa-se a cerca de 2 minutos da entrada da autoestrada Lisboa – Cascais, de 5 minutos do centro do Estoril, com uma localização de fácil acesso e junto às praias da “linha de Cascais e São João do Estoril” e de 5 minutos do Hospital de Cascais e da zona comercial do Cascais Shopping. 9 – A fração é composta por 6 divisões assoalhadas, dispostas em 4 pisos, a saber: a) cave composta por garagem, casa das máquinas, arrumos e arrecadação; b) rés-do-chão composto por sala de estar e de jantar, cozinha, hall, wc social e acesso ao pátio privado; c) 1.º piso composto por 3 quartos, sendo uma suite, hall e wc completa comum; d) 2.º piso ou sótão, composto por um quarto, wc completa e sala de estar. 10 – A fração tem o VPT de € 176.792,70 avaliado pela AT no ano de 2015. 11 – Em 30 de agosto de 2020, o requerente deixou de habitar a casa de morada da família. 12 – O requerente, depois de ter deixado de habitar o imóvel, pagou sempre a metade de sua responsabilidade: a) na prestação mensal de amortização do crédito hipotecário contraído (…) para a sua aquisição, no valor mensal de € 166,15. b) no prémio anual do seguro de vida agregado ao citado mútuo hipotecário, no valor total de € 710,20. c) no prémio anual do seguro multirrisco agregado ao citado mútuo hipotecário, no valor total de € 196.81. 3. Acordo sobre o destino da casa de morada de família 13 – Consta da sentença de divórcio que requerente e requerida declararam acordar que “o uso da casa de morada de família está atribuído ao cônjuge mulher”. 14 – Mais acordaram os ex-cônjuges, informalmente entre si, que: a) o requerente deixa de comparticipar nas despesas de condomínio respeitantes à fração, bem como nas despesas correntes da habitação, tais como os consumos de água, eletricidade, gás, internet e comunicações; b) a requerida usufruiria do imóvel até julho de 2022, prazo estabelecido para que esta tivesse o tempo necessário a angariar o valor necessário a concretizar o negócio, ou mediante o recurso a crédito bancário, ou para proceder à venda de bens imóveis de sua propriedade. 15 – O requerente concordou que a requerida continuasse a habitar a fração, como sempre esteve desde a separação do casal, e porque nesta habitação permaneciam os filhos de ambos, o FFF3 (então menor de idade), a FFF1 e a FFF2, sendo que esta última permanecia menos tempo na casa de morada de família, já que durante a semana ficava na casa arrendada do requerente em Lisboa, por ser mais perto da sua faculdade. 16 – Após a separação do extinto casal, o requerente foi viver temporariamente para a casa da sua irmã, sita no Lumiar, em Lisboa. 17 – Em 1 de novembro de 2020, arrendou uma habitação (…) em Lisboa. 18 – O requerente passou a centrar a sua vida pessoal e familiar nesta habitação, custeando todas as despesas inerentes, tais como a renda mensal no valor de € 900,00 e os consumos de água, eletricidade, gás, internet e comunicações. 19 – Na ação de divórcio, depois de convolada para mútuo consentimento, os progenitores acordaram no exercício das responsabilidades parentais referentes ao então filho menor, FFF3, nos seguintes termos [mediante junção de acordo obtido na ação de Regulação das Responsabilidades Parentais n.º 2693/20.3T8CSC]: “2º Quando o progenitor estiver em Portugal, o FFF3 fica aos cuidados e a residir com ambos os progenitores, de forma alternada e semanal. § Durante o tempo em que o progenitor estiver em Portugal, não haverá lugar ao pagamento de pensão de alimentos. 3º Quando o progenitor estiver em Moçambique, o FFF3 fica aos cuidados e a residir com a progenitora. §Durante o tempo em que o progenitor estiver em Moçambique, este pagará, a título de pensão de alimentos devidos ao FFF3, a quantia de € 190,00 (…) mensais, a pagar à progenitora até o FFF3 atingir a maioridade. §§ Quando o FFF3 atingir a maioridade, tal pagamento será efetuado diretamente ao jovem. §§§ Tal quantia será atualizada anualmente em janeiro de cada ano, em função da evolução do índice de preços no consumidor publicado pelo INE, ocorrendo a primeira atualização em janeiro de 2022”. 4. Condições económicas e habitacionais dos filhos comuns 20 – A filha mais velha do ex-casal, FFF1, vive na casa de morada de família, e trabalha em Carnaxide, mediante remuneração no montante de € 1 500,00. 21 – A filha do meio do ex-casal, FFF2, estudante em medicina, vive na fração arrendada pelo pai, em Lisboa, durante as semanas de período letivo e na casa de morada de família quer aos fins-de-semana, quer durante todo o período de férias. 22 – O filho mais novo, FFF3, estudante em engenharia, vive na casa morada de família, está no primeiro ano de Engenharia, no …, no …, Oeiras, com residência alternada nos períodos em que o progenitor se encontra em Portugal (entre 3 a 5 meses por ano). 5. Condições económicas e habitacionais do autor 23 – Em 1 de janeiro de 2022, o requerente celebrou contrato de trabalho com a sociedade …, Lda., para o exercício das funções de Diretor de Serviços, relacionadas com a Direção Executiva, sendo nele fixada a remuneração base mensal ilíquida de 1 360,00 €, acrescida de subsídio de refeição no valor de 7,63 €, por dia, de retribuição por isenção de horário no montante de 340,00 €. (cfr. contrato de trabalho junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido) 24 – O requerente é Diretor Geral e atualmente desenvolve a sua atividade profissional entre Portugal e Moçambique, onde se desloca com muita frequência e lá permanece vários períodos de tempo ao longo do ano. 25 – Da “Demonstração de Liquidação de IRS” referente ao requerente resulta que: a) no ano de 2020 foi declarado rendimento global de 7 968,87 €; b) no ano de 2021 foi declarado rendimento global de 14 380,07 €; 26 – O requerente declarou auferir rendimentos mensais ilíquidos no montante de aproximadamente 3 600,00 €. 27 – O requerente é sócio da empresa que configura como sua entidade patronal naquele contrato, detendo uma quota de € 3.200,00. 28 – O requerente beneficia do Programa Regressar desde 2018, sendo tributado em apenas 50% dos seus rendimentos durante 5 anos. 29 – O requerente vive com outra pessoa, com quem partilha as despesas correntes, à exceção da renda de casa e outras que aquele tem para com os filhos quando estão a residir no locado. 30 – O requerente intentou ação de divisão de coisa comum, que se encontra pendente (…). 31 – A requerida e o requerente alcançaram acordo no sentido de aquela suportar as despesas correntes com a filha FFF1 que, apesar de trabalhar, está a pagar o seu carro, e com os outros dois filhos quando estão na casa de morada da família. 32 – O requerente ficou encarregue das despesas correntes da filha FFF2, de metade das propinas e dos materiais necessários, bem como saúde e medicação. 6. Condições económicas e habitacionais da ré 33 – A requerida exerceu funções de técnica superior na … no ano de 2021, por um salário líquido de cerca de € 1.069,46. 34 – A partir de 29/05/23, passou a exercer funções de jurista junto da XXX, por contrato a termo de um ano, cessando a 28/05/23, onde auferiu um ordenado líquido mensal de cerca de € 1.800,00. 35 – A requerida exerce funções como arbitra em matéria tributária no XXX desde o mês de julho de 2021, mas a distribuição dos processos é incerta, feita por sorteio e os honorários só processados e pagos no final dos processos. 36 – A requerida é titular de um contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, desde 1 de setembro de 2021, pertence ao mapa de pessoal do XXX e encontra-se integrada na carreira/categoria de Técnico Superior. Aufere pela 1ª posição remuneratória da categoria de Técnico Superior, nível 16 da Tabela Remuneratória Única (TRU), a que corresponde o valor pecuniário de 1.385,99€. 37 – Desde 8 de julho de 2024, encontra-se a desempenhar funções na Direção-Geral XXX, ao abrigo do regime da mobilidade. 38 – Em “Demonstração de Liquidação de IRS” referente à requerida, consta, relativamente aos anos de: a) 2021 – o rendimento global de 18 860,80 € (cfr. doc. n.º 3 junto com a contestação e que se dá por reproduzido); b) 2022 – o rendimento global de 24 758,31 € (cfr. doc. n.º 4 junto com a contestação e que se dá por reproduzido); 39 – A requerida possui(a) 3 imóveis próprios, a saber: a) Casa dos pais que obtida por herança destes, sita em Paço de Arcos, (…) que consiste num T4, arrendado pelo montante de 1 400,00 €, sujeito a retenção na fonte em 25% (…); b) Fração autónoma sita em Monte Abrão (…), arrendada pelo montante de 450,00 e, entretanto, colocado à venda (…); c) Fração autónoma sita em Casal de São Marcos – Cacém (…), arrendada até ao mês de novembro de 2023 pelo montante de 420,00€ e prometida vender por contrato promessa outorgado a 17 de novembro de 2023. 40 – A promessa de compra e venda da fração autónoma sita em Casal de São Marcos – Cacém (…) concretizou-se com a celebração do contrato de compra e venda outorgado a 4 de janeiro de 2024. (…) 41 – A requerida transmitiu a propriedade da Fração autónoma sita em Monte Abrão (…) a terceiro. (…). 42 – A requerida tem despesas mensais fixas com empréstimos bancários, seguro, condomínio, bem como, as despesas com alimentação, vestuário, consumos de água, luz, gás, internet, telemóvel e ainda as despesas dos seus filhos que vivem consigo, no montante global de 1 000,00 €. 43 – A requerida usa veículo automóvel na modalidade de renting, com o valor de € 342,00, 44 – A venda dos imóveis teve como objetivo permitir à requerida adquirir a parte do requerente na casa de morada de família, cuja intenção teve sempre e que nunca foi possível por recusa daquele em chegar a um acordo nas condições por ela estabelecidas. 7. Avaliação e divisão da coisa comum 45 – A requerida passou a exigir do requerente as quotas de condomínio, ordinárias e extraordinárias, a partir de dezembro de 2023, passando a remeter-lhe os mails da administração de condomínio e os avisos de pagamento. 46 – A requerida não aceita a venda da casa a terceiros. 47 – A GESVALT – Consultoria & Avaliação, avaliou a moradia que constitui a casa de morada da família em 467 000 €, segundo o método de VM – Valor de Mercado (…). 48 – O Eng. MMM avaliou a mesma moradia, segundo o mesmo o mesmo método (valor de Mercado), no valor de 582 000,00 € e calculou o valor de renda potencial, a cinco anos de duração do contrato, no valor de 3 326,00 € (…). C.B. Arguição de nulidades (vícios processuais) Nas duas apelações, os respetivos apelantes reclamam contra a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia sobre factos essenciais alegados, nos termos previstos no art. 615.º, n.º 1, alínea d), do Cód. Proc. Civil. Recorde-se que a sentença é nula, designadamente, quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (art. 615.º, n.º 1, al. d), do Cód. Proc. Civil). É controvertida a natureza da patologia presente quando o tribunal omite pronúncia sobre um dos factos essenciais que constituem a causa de pedir (ou a exceção oposta) carecidos de prova (arts. 552.º, n.º 1, al. d), 572.º, al. c), 607.º, n.º 3, e 608.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil). Mais precisamente, é controvertida a sua qualificação como nulidade (da sentença). Uma significativa corrente jurisprudencial recusa este enquadramento à omissão de julgamento de um facto essencial, procurando na lei outras ferramentas para enfrentar esta irregularidade – cfr. o Ac. do TRL de 28-02-2023 (1069/14.6TBOER.L1-7). De acordo com diferente entendimento o apuramento da verdade sobre o facto essencial constituinte da causa de pedir (isto é, da sua ocorrência histórica) é uma questão que o tribunal deve resolver na sentença, para os efeitos previstos no art. 608.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, pelo que os vícios da pronúncia sobre a matéria de facto são vícios da sentença, podendo feri-la de nulidade, nos termos previstos no art. 615.º, n.º 1, al. d), do Cód. Proc. Civil – cfr. o Ac. do TRL de 08-04-2025 (19415/19.4T8LSB.L1). No entanto, seja enquadrando a patologia nas nulidades da decisão, seja enquadrando-a no erro de julgamento sobre a questão de facto, para que possamos concluir pela ocorrência de uma omissão suscetível de afetar a sentença, é necessário que o objeto da pronúncia omitida seja um facto essencial – ou, pelo menos, um facto compreendido no conjunto dos factos que, pela sua relevância, devem integrar a fundamentação de facto da sentença. Com efeito, mesmo à luz do primeiro enquadramento, é jurisprudência pacífica das Relações que “não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objeto de impugnação não forem suscetíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2.º, n.º 1, 137.º e 138.º, todos do Cód. Proc. Civil)” – assim, entre muitos outros, cfr. os Acs. do TRC de 24-04-2012 (219/10.6T2VGS.C1), de 14-01-2014 (6628/10.3TBLRA.C1) e de 15-09-2015 (6871/14.6T8CBR.C1), do TRG de 15-12-2016 (86/14.0T8AMR.G1) e de 22-10-2020 (5397/18.3T8BRG.G1), e do TRL de 26-09-2019 (144/15.4T8MTJ.L1-2) e de 27-10-2022 (7241/18.2T8LRS-A.L1-2). No caso dos autos, na fixação da factualidade relevante para a decisão do litígio, é essencial termos presente que não estamos perante uma ação de alimentos. Recorde-se que, na tentativa de conciliação realizada em 15 de dezembro de 2021 (ref. 411378767 do processo principal), a ré declarou, além do mais, “que, apesar das dificuldades financeiras, prescinde dos alimentos por se encontrar a exercer uma atividade laboral” – a relevância deste facto instrumental não vai ao ponto de afastar o disposto no n.º 1 do art. 2008.º do Cód. Civil, obviamente. Não estamos, sequer, perante uma ação destinada a atribuir o uso da casa de morada de família. O objeto válido do processo é apenas um: o direito exercido pelo autor a uma compensação mensal pela privação do gozo do imóvel de que é comproprietário. É esta a referência jurídica que emprestará relevância, ou não, aos factos alegados. Do exposto se extrai que a relevância dos factos alegados respeitantes à situação socioprofissional e económica do autor é praticamente nula, sendo também absolutamente marginal a relevância dos factos alegados respeitantes à situação socioprofissional e económica da ré. Apenas poderão ter alguma pertinência, a afirmar com parcimónia, os factos respeitantes à situação socioprofissional e económica daqueles a quem o autor deve alimentos e que os recebem por via da cedência do uso da anterior casa de morada da família – isto é, dos filhos a cargo. Vejamos, pois, se a factualidade (alegada nos articulados da ação) sobre a qual o tribunal a quo, alegadamente, não se pronunciou tem alguma relevância essencial para a boa decisão da causa. 1. Essencialidade dos factos não conhecidos objeto da reclamação do autor apelante Entende o autor apelante que o tribunal omitiu pronúncia sobre “a factualidade descrita nos artigos 38.º a 42.º, 49.ºG, 56.º da petição inicial”. A factualidade invocada pelo apelante, e para além da alegação de incumprimento do acordo celebrado, encontra-se condensada no art. 40.º da petição inicial, nestes termos: “40. O comportamento da requerida tem configurado um ostensivo abuso de direito (…): – usufrui em exclusivo um bem imóvel que não é só seu, sem pagar nada ao comproprietário, quando pode perfeitamente pagar uma contrapartida (…); – recusa-se a que avaliadores acedam ao imóvel para a realização de uma avaliação; – recusa-se a aceitar o valor de mercado daquele imóvel (…); – limita-se a apresentar propostas manifestamente insuficientes de aquisição (…)”. Os enunciados deste artigo, nem todos contendo proposições descritivas de factos, referem-se, pois, ao comportamento da requerida desde que goza do uso exclusivo gratuito da anterior morada comum, no sentido de o perpetuar, não viabilizando a sua partilha nem alienação. Tais factos, no entender do apelante, revelam o exercício abusivo do direito por parte da apelada, sendo esta a forma de ilicitude na qual funda o seu pedido de indemnização: “c) Uma contrapartida indemnizatória, respeitante ao período de agosto de 2020 até agosto de 2022, no montante global de € 12.000,00”. O tribunal a quo não conheceu da cumulação ilegal de pedidos (por não corresponder este pedido à forma especial de jurisdição voluntária prevista nos arts. 986.º e 990.º do Cód. Proc. Civil, nos termos dos arts. 37.º, n.º 1, e 555.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, mas sim à forma de processo comum). Recorde-se que o autor propôs uma ação “em processo de jurisdição voluntária, ao abrigo do disposto nos artigos 986.º e seguintes do C.P.C., e n.º 3 do artigo 1793.º do CC”. Também não conheceu da incompetência absoluta do juízo de família de menores para conhecer deste pedido (art. 122.º da LOSJ), pois apenas diz este respeito às relações entre comproprietários, não se constituindo como uma (retroativa) alteração do acordo. A questão mostra-se, pois, ultrapassada (art. 97.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil). O tribunal a quo considerou, sim, ser manifestamente improcedente a pretensão do autor, nesta parte. Extrai-se da decisão apelada que de nenhum dos factos alegados se pode retirar a existência de abuso do direito. Nos dizeres da sentença apelada, “não sendo, de qualquer forma, o exercício de tal direito abusivo, por o excesso cometido não ter sido manifesto, deve o pedido improceder nesta vertente. E também deve improceder a atribuição de qualquer indemnização à luz das normas constantes dos art. 562.º e segs. do Cód. Civil”. Nada há a apontar ao julgamento de mérito do tribunal a quo. Os factos alegados pelo autor não configuram, por si só, um abuso do direito. Só assim se poderia considerar se, eventualmente, o apelante pretendesse também usar o bem comum (art. 1406.º do Cód. Civil). E mesmo aqui, com maior propriedade se deveria falar de inexistência de direito, e não de exercício abusivo de um direito de que o sujeito é titular. O gozo gratuito de um imóvel pelo comproprietário não excede “manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” (art. 334.º do Cód. Civil). Não configurando a factualidade alegada pelo autor um abuso do direito, é inútil qualquer pronúncia sobre a mesma. Bem poderia, aliás, o tribunal a quo ter julgado este pedido manifestamente improcedente nas fases inicial ou intermédia da ação (art. 590.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil). Por todo o exposto, improcede a reclamação sob apreciação, face à irrelevância jurídica dos factos que não foram objeto de pronúncia. 2. Essencialidade dos factos não conhecidos objeto da reclamação da ré apelante Entende a ré apelante que o tribunal omitiu pronúncia sobre a sua alegação no sentido de ter suportado diversas despesas com o imóvel comum (art. 73.º da contestação e conclusões E e F). Não explica a apelante em que medida é que a realização de despesas com a anterior casa de morada de família impede, modifica ou extingue o direito exercido pelo autor. Ou seja, não explica a apelante a relevância que tais factos supostamente têm para a boa decisão da causa. Se a apelante entende que tem créditos sobre o apelado, pois que os reclame. No limite, até se poderá configurar uma situação de compensação com os créditos a rendas que sejam devidas ao autor. Mas esta eventualidade em nada contende com o reconhecimento do direito exercido nesta ação. Para terminar, refira-se que a apelante não esclarece por que meio foram validamente adquiridos para o processo os factos referidos nas als. d) e e) da conclusão F (art. 5.º do Cód. Proc. Civil) – designadamente, indicando a sua alegação num articulado superveniente. E se um facto não foi processualmente adquirido, não pode sobre ele o tribunal emitir pronúncia. Por todo o exposto, improcede a reclamação sob apreciação, face à irrelevância jurídica dos factos que não foram objeto de pronúncia. C.C. Impugnação e ampliação da decisão sobre a matéria de facto Como já adiantámos, na fixação da factualidade relevante para a decisão do litígio, é essencial termos presente que o objeto válido do processo é apenas o exercício do direito a uma compensação mensal pela privação do gozo do imóvel de que o autor é comproprietário. O pedido de natureza ressarcitória é manifestamente improcedente, tal como decidiu o tribunal a quo e adiante se reitera. É este o contexto jurídico que nos permitirá determinar a relevância das diferentes impugnações das decisões sobre a matéria de facto deduzidas. 1. Apelação interposta pelo autor Começamos a análise da impugnação apresentada pelo autor lembrando que não foi considerada processualmente adquirida a factualidade nova descrita nas conclusões 51 e seguintes da alegação do autor/apelante, com exceção da 1.ª parte da conclusão 58. O mesmo é dizer que sobre ela não cabe pronúncia de facto. A pretensão do autor do seu conhecimento pelo tribunal ad quem improcede, pelos motivos acima já desenvolvidos. Resta-nos apreciar a impugnação das decisões sobre os pontos 44 e 45 dos factos provados, bem como emitir pronúncia sobre o facto superveniente descrito na 1.ª parte da conclusão 58 da alegação do apelante/autor. 1.1. Alteração do ponto 44 dos factos provados O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto: 44 – A venda dos imóveis teve como objetivo permitir à requerida adquirir a parte do requerente na casa de morada de família, cuja intenção teve sempre e que nunca foi possível por recusa daquele em chegar a um acordo nas condições por ela estabelecidas. Na sentença apelada, não encontramos uma motivação específica dedicada a esta pronúncia, para além da invocação de platitudes teóricas sobre as regras legais e epistemológicas de apreciação da prova. Pretende o apelante que a redação do facto em questão seja alterada, nos seguintes termos: 44) A venda dos imóveis referidos em 39) a 41), teve como objetivo permitir à requerida adquirir a parte do requerente na casa de morada de família, cuja intenção teve sempre e que nunca foi possível por recusa daquele em chegar a um acordo nas condições por ela estabelecidas, designadamente: a) Previamente a maio de 2022, a requerida apresentou propostas para adquirir a quota parte daquele no imóvel, propriedade de ambos, mediante a permuta dos seus dois imóveis identificados em 39), als. b) e c), ou 190 mil euros, as quais não foram aceites pelo requerente. b) A requerida não aceitou uma avaliação comercial, por considerar que o imóvel estava onerado com o seu direito real de habitação, vitalício. (…). As duas subalíneas que o apelante pretende ver aditadas descrevem a livre expressão da autonomia privada e o exercício da liberdade contratual. Não encerram nenhum comportamento ilícito, censurável ou abusivo. Do mesmo modo, não encerram factos constitutivos, modificativos ou extintivos dos direitos exercidos na ação. Esta factualidade é insuscetível de alterar a sorte do julgamento da causa. Tal como já adiantámos, é jurisprudência pacífica das Relações que “não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objeto de impugnação não forem suscetíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2.º, n.º 1, 137.º e 138.º, todos do Cód. Proc. Civil)” – assim, entre muitos outros, cfr. os Acs. do TRC de 24-04-2012 (219/10.6T2VGS.C1), de 14-01-2014 (6628/10.3TBLRA.C1) e de 15-09-2015 (6871/14.6T8CBR.C1), do TRG de 15-12-2016 (86/14.0T8AMR.G1) e de 22-10-2020 (5397/18.3T8BRG.G1), e do TRL de 26-09-2019 (144/15.4T8MTJ.L1-2) e de 27-10-2022 (7241/18.2T8LRS-A.L1-2). Por todo o exposto, rejeita-se, nesta parte, o recurso sobre a decisão da matéria de facto. 1.2. Alteração do ponto 45 dos factos provados O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto: 45 – A requerida passou a exigir do requerente as quotas de condomínio, ordinárias e extraordinárias, a partir de dezembro de 2023, passando a remeter-lhe os mails da administração de condomínio e os avisos de pagamento. Na sentença apelada, também não encontramos uma motivação específica dedicada a esta pronúncia. Pretende o apelante que a redação do facto em questão seja alterada, nos seguintes termos: 45) O requerente não aceitou as condições da requerida para a aquisição da sua quota parte no imóvel, e esta passou a exigir-lhe o pagamento das quotas do condomínio, ordinárias e extraordinária, passando este a receber os mails e os avisos para pagamento da administração de condomínio, retomando em junho de 2023, os pagamentos respeitantes à fração. No que respeita à primeira oração aditada – respeitante à não aceitação de propostas de aquisição –, valem aqui as considerações expendidas no ponto anterior: esta factualidade descreve a livre expressão da autonomia privada e o exercício da liberdade contratual, sendo insuscetível de alterar a sorte do julgamento da causa. Não encerra ela um facto constitutivo, modificativo ou extintivo dos direitos exercidos na ação. No que toca à indicação da data a partir da qual foi retomada a comparticipação do autor nas despesas de condomínio, também não se alcança o interesse do apelante na sua alteração. Também não explica o apelante em que medida a alterações pretendia levaria a diferente decisão final de mérito. Em conformidade, nesta parte, rejeita-se o recurso sobre a decisão da matéria de facto, com o que se mantém inalterada a factualidade fixada em 1.ª instância. 1.3. Pronúncia sobre 1.ª parte da conclusão 58 da alegação do apelante/autor Alegou o apelante/autor que, desde dezembro de 2024, se encontra a trabalhar exclusivamente em território nacional. Para prova do alegado, juntou aos autos o recibo de vencimento respeitante ao referido mês. A prova apresentada pelo apelante é fraca. No entanto, sobre o facto supervenientemente alegado, a apelada apenas alegou que a própria também “mantém inúmeras despesas com os seus vários filhos”. Ou seja, talvez por o facto não lhe ser desfavorável, a apelada não impugnou o facto descrito na 1.ª parte da conclusão 58 da alegação do apelante/autor. Pode ele ser afirmado por este tribunal. Em face do exposto, adita-se ao leque dos factos que integram a fundamentação de facto da decisão da causa o seguinte ponto: 49 – Desde dezembro de 2024, o autor encontra-se a trabalhar exclusivamente em território nacional. Esta pronúncia obriga à alteração do ponto 22 – factos provados – nos seguintes termos: 22 – O filho mais novo, FFF3, estudante em engenharia, também vive na casa morada de família, está no primeiro ano de Engenharia, no IST, no Tagus Park, Oeiras, com residência alternada nos períodos em que o progenitor se encontra em Portugal. 2. Apelação interposta pela ré Alega a apelante que “a matéria vertida nos pontos 14, alínea a) 1ª parte e alínea b), 42 dos factos provados” (conclusão B), encontra-se em contradição. No entanto, no corpo da alegação, a apelante nunca explica em que medida existe aqui uma incongruência. Na verdade inexiste contradição, sendo a afirmação da apelante, sim, desprovida de lógica. No ponto 14 é descrito um acordo informal; no ponto 42 são descritos factos subsequentes a tal acordo. É manifesto que inexiste incompatibilidade na afirmação simultânea destes dois factos. Acrescenta a apelante que tais factos foram incorretamente julgados. Resta-nos, pois, verificar se aqui lhe assiste razão. 2.1. Alteração do ponto 14 dos factos provados O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto: 14 – Mais acordaram os ex-cônjuges, informalmente entre si, que: a) o requerente deixa de comparticipar nas despesas de condomínio respeitantes à fração, bem como nas despesas correntes da habitação, tais como os consumos de água, eletricidade, gás, internet e comunicações; b) a requerida usufruiria do imóvel até julho de 2022, prazo estabelecido para que esta tivesse o tempo necessário a angariar o valor necessário a concretizar o negócio, ou mediante o recurso a crédito bancário, ou para proceder à venda de bens imóveis de sua propriedade. Sustenta a apelante que não deveria ter sido julgado provado que as partes acordaram que o requerente deixaria de comparticipar nas despesas de condomínio (al. a)) nem que a ré usufruiria o imóvel até julho de 2022, dado que acordaram, sim, que esta o adquiriria até tal data (al. b)). Não se percebe bem o interesse desta impugnação. Dir-se-ia que a apelante pretende demonstrar que não é titular de um direito real de gozo de uso exclusivo do imóvel: não se compreenderia que o autor apelado continuasse a pagar condomínio se tal direito tivesse sido acordado, pelo que a manutenção desta obrigação sugere fortemente que nunca foi vontade das partes a sua constituição. Fica por esclarecer que interesse tem a apelante em demonstrar que nãoé titular de um direito real de gozo de uso exclusivo do imóvel. O tribunal a quo motivou a sua convicção, no que respeita ao alegado acordo informal entre as partes, nos seguintes termos: “(…) foi feita prova de acordo informal entre os (ex)cônjuges no sentido de que a requerida usufruiria do imóvel até julho de 2022, prazo estabelecido para que esta tivesse o tempo necessário a angariar o valor necessário a concretizar o negócio, tal como alegado no art. 33.º da p.i., aceite pelo art. 1.º e da contestação e confirmado em declarações de parte”. A apelante motivou a sua impugnação alegando “Na verdade, a única prova existente nos autos relativamente a esta matéria cinge-se a supostas comunicações enviadas pela administração de condomínio do imóvel em causa, das quais não se retira qualquer manifestação, ainda que implícita, de um acordo entre as partes sobre o pagamento ou não das respetivas quotas de condomínio”. Independentemente do interesse e da utilidade da impugnação da decisão do tribunal a quo, assiste razão à apelante quando sustenta que dos meios de prova invocados pelo tribunal a quo – declarações de parte – não pode concluir que o acordo informal teve também por conteúdo a desoneração do comproprietário do pagamento das despesas de condomínio. As declarações de parte produzidas não versam sobre esta questão. Quanto à alteração do enunciado da al. b) do ponto 14 do leque dos factos provados, é ela puramente formal. O sentido dos dois enunciados – o impugnado e o proposto – é o mesmo: a ré continuaria a usar o imóvel (em exclusivo) até adquirir a quota do autor, prevendo a partes que tal aquisição ocorreria “até julho de 2022”. A procedência desta impugnação representa um mero aperfeiçoamento do enunciado, e não uma alteração do decidido sobre a realidade dos factos. Em face do exposto, na procedência desta impugnação, decide-se alterar o ponto 14 – factos provados –, passando este a ter o seguinte teor: 14 – Mais acordaram os ex-cônjuges, informalmente entre si, que: a) o requerente deixa de comparticipar nas despesas correntes da habitação, tais como os consumos de água, eletricidade, gás, internet e comunicações; b) a ré continuaria a usar o imóvel até adquirir a quota do autor, prevendo as partes que tal aquisição ocorreria até julho de 2022, tempo que entenderam ser necessário para aquela angariar o valor do preço, ou mediante o recurso a crédito bancário, ou para procedendo à venda de bens imóveis de sua propriedade. 2.2. Alteração do ponto 42 dos factos provados O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto: 42 – A requerida tem despesas mensais fixas com empréstimos bancários, seguro, condomínio, bem como, as despesas com alimentação, vestuário, consumos de água, luz, gás, internet, telemóvel e ainda as despesas dos seus filhos que vivem consigo, no montante global de 1 000,00 €. Quanto a esta questão, não consta da sentença nenhuma motivação dedicada, mas apenas considerações genéricas e estéreis. Entende a apelante que o tribunal recorrido deveria ter considerado que a mesma suporta despesas mensais fixas, incluindo de condomínio, de € 1.917,12. Sustenta a sua impugnação nos gastos descritos na seguinte tabela:
Tabela
Valor
seguro do imóvel
33,00
condomínio da casa morada família
50,00
condomínio da casa que pertencia aos pais e que está arrendada
66,66
consumos de água
35,69
consumos de luz
142,42
internet e telemóveis (incluindo do filho mais novo)
92,40
supermercado e vestuário (incluindo vestuário do filho mais novo)
655,00
engomadaria
63,00
empregada doméstica
432,00
consumos de gás
50,00
50% das propinas dos dois filhos mais novos
70,00
mesadas dos dois filhos mais novos
90,00
despesas do filho mais novo
57,50
IMI
79,45
1 917,12
Sobre esta matéria, havia a ré alegado na contestação apresentada: 39. A requerida tem a seu cargo exclusivo (..) despesas mensais fixas com empréstimos bancários, seguro, condomínio, bem como, as despesas com alimentação, vestuário, consumos de água, luz, gás, internet, telemóvel e ainda as despesas dos seus filhos que vivem consigo (…). 41. Tudo o que perfaz despesas mensais fixas no valor de € 3.200,00 (…) Constata-se, pois, que parte dos gastos que agora pretende que sejam incluídos no leque dos factos provados não foram pela apelante alegados – v.g., “engomadaria” e “empregada doméstica”. Acresce que, sendo tais factos instrumentais (se tanto), não sinaliza a ré de que documentos extrai a sua aquisição processual (art. 5.º, n.º 2, al. a), do Cód. Proc. Civil). A falta de identificação dos documentos pertinentes admitidos representa uma insatisfação do ónus previsto no art. 640.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Civil. Esta insatisfação determina a sorte da impugnação – sendo certo que é inexistente o interesse (três anos após o divórcio) da atual situação socioprofissional e económica da apelante. Em face do exposto, nesta parte, rejeita-se a impugnação da decisão sobre a matéria de facto. 3. Alteração da decisão sobre a questão de facto por via da contra-alegação Na contra-alegação que apresentou no recurso interposto pelo autor, a ré sustentou que: a) deve ser aditada “à matéria de facto que a recorrida comparticipa as despesas mensais do filho, além das inerentes à sua habitação (já que este reside alternadamente com ambos os pais), em valor não inferior a € 150,00 (…)”; b) deve ser aditada “à factualidade relevante para a decisão da causa que, embora a FFF1 tenha deixado de residir na casa de morada de família, a recorrida continua a suportá-la financeiramente, com quantias aliás mais elevadas do que aquelas que pagava quando a filha residia consigo, em quantia mensal variável, que oscila entre os € 320,00 (…) e os € 400,00 (…)”; c) deve ser alterada a “decisão de facto vertida em 21”, no sentido de passar a constar que, “até junho de 2025, a FFF2 não residirá com nenhum dos pais, passando, a partir dessa data, a residir alternadamente com ambos os pais, e isto apenas devido à proximidade entre a casa do progenitor e a faculdade que frequenta”. d) deve ser aditada “à factualidade da causa, que a recorrida tem despesas com esta filha [FFF2] em montante que se estima em €500,00 (…)”; e) deve ser alterado o “ponto 12 da matéria de facto”, esclarecendo-se que “no ano de 2025, o recorrente não comparticipou o prémio relativo ao imóvel, tendo esta quantia sido paga na totalidade pela recorrida” e aditando-se que “a recorrida suportou, em exclusivo, as despesas relativas à reparação do imóvel, no passado mês de novembro de 2024, no valor de € 476,00”; f) deve ser aditada à fundamentação de facto que “o imóvel sofre de problemas estruturais de humidade e capilaridade, que diminuem o seu valor comercial para arrendamento” e “para fazer face a tais danos, antecipa-se que a Recorrida venha a ser obrigada a suportar despesas orçamentadas de € 7.420,53 (…)”. Tal como já acima desenvolvemos, esta factualidade não foi processualmente adquirida por uma das vias legalmente admissíveis (art. 5.º do Cód. Proc. Civil), pretendendo a apelada a sua aquisição por via da sua irregular alegação na resposta à alegação de recurso. Não tendo sido adquirida, não pode sobre ela o tribunal pronunciar-se. No mais, dá-se aqui por reproduzido o que acima já desenvolvemos no ponto 3 (Admissibilidade da junção de documentos com a contra-alegação pela apelada) da parte B (Junção de documentos na fase de recurso). Por todo o exposto, rejeita-se a impugnação irregular da decisão da matéria de facto e a alteração dos fundamentos de facto do julgamento de direito, com o que se mantém inalterada a factualidade fixada em 1.ª instância, improcedendo a apelação nesta parte. 4. Alteração oficiosa da decisão respeitante à matéria de facto Consta dos fundamentos de facto da sentença impugnada, acima transcrita, a seguinte factualidade dada por provada: 5 – A fração autónoma foi adquirida pelo requerente e pela requerida (…). 6 – O requerente e a requerida, aquando da aquisição da referida fração autónoma, contraíram um empréstimo hipotecário (…), no valor de € 125.000,00, com o montante máximo assegurado de € 154.375,00 (…). Alegou o autor (ref. 48964750 e 39416180) que a casa de morada de família foi adquirida, em 2006, pelo preço de € 314.242,68. Ora, a ré não impugnou este facto. Acresce que, por um lado, não está em litígio este negócio e que, por outro lado, não é afirmado que foi este o valor declarado na escritura púbica – facto este sujeito a prova documental –, mas apenas que foi este o preço efetivamente liquidado. Nada obsta, pois, à aquisição e à afirmação deste facto, sendo ele relevante pois ajuda a perceber o efetivo valor da perda económica sofrida pelo autor com a manutenção da privação do uso. Impõe-se, pois, quer ao abrigo da norma enunciada no n.º 1 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil, quer por força do disposto na al. c) do n.º 2 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil, alterar a decisão de facto – sobre a admissibilidade da alteração oficiosa, cfr. o Ac. do STJ de 17-10-2019 (3901/15.8T8AVR.P1.S1), bem como António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2022, pp. 357 e 358. Assim, deverá o ponto 5 – factos provados – passar a ter o seguinte conteúdo: 5 – A fração autónoma foi adquirida pelo requerente e pela requerida, no ano de 2006, pelo preço de € 314.242,68. C.D. Análise dos factos e aplicação da lei São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar: 1. Pedido de alteração do acordo sobre o uso da casa de morada de família 1.1. Acordo sobre o uso da casa de morada de família 1.2. Limites temporais ao dever de assistência e ao direito de alimentos 1.2.1. Obrigação de assistência ou de prestação de alimentos aos filhos 1.2.2. Obrigação de alimentos entre ex-cônjuges 1.3. Interpretação do acordo sobre a atribuição da casa de morada de família 1.4. Acordo firmado entre as partes e alteração das circunstâncias 1.5. Meio e critério a adotar na reposição do equilíbrio contratual 1.6. Instituição de um arrendamento no caso dos autos 1.6.1. Fixação da contraprestação devida pela ré 1.6.2. Duração do arrendamento 2. Direito a uma indemnização fundado no abuso do direito 3. Fixação de um termo final para o direito de uso do imóvel 4. Responsabilidade pelas custas 1. Pedido de alteração do acordo sobre o uso da casa de morada de família Formula o autor três pedidos que, já na alegação de recurso, adquiriram a seguinte configuração: a) a atribuição de uma contrapartida mensal a pagar pela recorrida ao recorrente, não inferior a 1.000.00€ mensais, desde a citação e enquanto permanecer a indivisão do imóvel e a atribuição do uso da casa de morada de família à recorrida; b) a condenação da recorrida em indemnização a liquidar ao recorrente no valor de € 12,000,00 em face da conduta que empreendeu, configurar abuso de direito; c) [a fixação do] (…) termo do uso com menção de que o mesmo não tem caracter vitalício. Seguiremos esta ordem no julgamento da apelação do demandante, em cada capítulo abordando a posição defendida na apelação da ré, se se justificar. 1.1. Acordo sobre o uso da casa de morada de família Casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plenacomunhão de vida (art. 1577.º do Cód. Civil). A pontual satisfação do escopo deste contrato obriga, por regra, à coabitação dos cônjuges (art. 1672.º do Cód. Civil). Para tanto, devem estes escolher de comum acordo a casa de morada da família – onde ambos passarão a residir (art. 1673.º, n.º 2, do Cód. Civil) –, atendendo, nomeadamente, às exigências da sua vida profissional e aos interesses dos filhos, e procurando salvaguardar a unidade da vida familiar (art. 1673.º, n.º 1, do Cód. Civil). Em suma, na constância do casamento, por regra, existe uma casa de morada de família, sendo esta a residência de ambos os cônjuges. Desta circunstância decorre que, em caso de dissolução do casamento, existe um bem (a casa de morada de família) sobre o qual os dois ex-cônjuges podem ter um interesse legítimo de uso (habitacional) – fundado, ou não, num direito real ou num direito pessoal de gozo próprio ou comum. A colisão de posições jurídicas é inevitável (art. 335.º do Cód. Civil) e o litígio no exercício destas posições uma séria possibilidade. O casamento dissolve-se pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio (art. 1788.º do Cód. Civil), existindo normas legais que dispõem sobre o destino da casa de morada de família nestes dois casos – quanto ao primeiro, cfr. os arts. 1707.º-A, n.os 2 a 6, e 2103.º-A do Cód. Civil. Interessa-nos, na presente apelação, a dissolução do casamento por divórcio. Numa das suas modalidades, o divórcio assenta no mútuo consentimento das partes – isto é, na ausência de litígio quanto à dissolução da comunhão de vida, em todas as suas dimensões (arts. 1773.º e 1775.º do Cód. Civil). Entre estas está, naturalmente, o fim da coabitação na residência comum. Neste contexto, de modo a assegurar a efetiva existência de consenso, o legislador onera os requerentes do divórcio por mútuo consentimento com a celebração de um acordo sobre o destino da casa de morada de família após a dissolução do casamento (art. 1775.º, n.º 1, al. d), do Cód. Civil). Assim sucede no âmbito do processo de divórcio realizado na Conservatória do Registo Civil (arts. 1105.º, n.os 1 e 3, 1775.º, n.º 1, d), e n.º 2, e 1776.º, n.º 1, Cód. Civil, 14.º do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de outubro, e 271.º, 272.º, n.º 1, f), e n.º 4, Cód. Reg. Civil), bem como no âmbito do processo judicial de divórcio por mútuo consentimento – inicial (art. 1778.º e 1778.º-A do Cód. Civil) ou após convolação (arts. 1779.º, n.º 3, do Cód. Civil e 931.º, n.os 5 e 6, do Cód. Proc. Civil). O acordo sobre o destino da casa de morada da família pode, ainda, constituir o objeto de um procedimento autónomo (art. 5.º, n.º 1, b), do Decreto-Lei n.º 272/2001) ou resultar de transação judicial obtida no decurso da ação prevista no art. 990.º Cód. Proc. Civil. Este acordo é, no essencial, um contrato de transaçãoespecial (art. 1248.º, n.º 1, do Cód. Civil) – estando sujeito a diversos limites especiais à autonomia privada –, pelo qual os cônjuges previnem um litígio no exercício das suas posições jurídicas sobre a casa de morada de família ou terminam um litígio – aqui quando o acordo põe fim ao processo previsto no art. 990.º Cód. Proc. Civil. As obrigações emergentes deste acordo têm, pois, natureza civil (art. 397.º do Cód. Civil), e não meramente natural (art. 402.º do Cód. Civil). O conteúdo do acordo sobre o uso da casa de morada de família varia em função, designadamente, da natureza da posição jurídica dos ex-cônjuges sobre a mesma. Assim, se o ex-cônjuge ao qual é, sem mais, atribuído o seu uso é o único titular de um direito real ou de um direito pessoal de gozo sobre a antiga residência comum, o acordo tenderá a ditar o fim do referido conflito de posições jurídicas – dificilmente se configurando o seu ressurgimento. O mesmo se diga quando tal exclusividade nasce do próprio acordo (art. 1248.º, n.º 2, do Cód. Civil) – quer se trate de uma frequente transmissão ou concentração da posição de arrendatário (art. 1105.º do Cód. Civil), quer se trate de uma transmissão de um direito real (ou de uma sua quota). Nos restantes casos, mantendo cada um dos cônjuges uma posição jurídica sobre a anterior casa morada de família, o conflito potencial subsiste. Não sendo o acordo sobre o destino da casa de morada de família um contrato de conteúdo instrumental tabelado – para além da tipicidade essencial que lhe advém de prevenir ou pôr termo a um litígio –, o seu fim pode ser alcançado com recurso a diferentes soluções jurídicas. O mesmo é dizer que inexistem efeitos essências típicos para as posições jurídicas das partes decorrentes do acordo – isto é, necessariamente decorrentes da lei –, apenas se podendo afirmar que uma destas posições, pelo menos, manterá no seu titular o uso da antiga residência comum, ao menos transitoriamente. Podemos, no entanto, dar por assente que, tendo o acordo um limite temporal, quando ocorrer o ser termo (por mero decurso do tempo), os direitos próprios dos ex-cônjuges sobre a antiga casa de morada de família recuperarão a sua normal eficácia. Conforme avançámos acima, o acordo sobre o destino da casa de morada de família é um contrato de transação com diversas restrições à liberdade contratual. Desde logo, na sua génese, surge como um ónus, e não como mero exercício da faculdade de contratar. Também o seu objeto não está na total disponibilidade das partes. Afigura-se-nos inequívoco que a lei impõe aos contratantes que conciliem os seus termos com o respeito pelas restantes obrigações fundadas nas relações familiares que sobrevivem ao divórcio, mais precisamente, com o respeito pela obrigação de assistência (arts. 1874.º, 1879.º, 1880.º e 1906.º do Cód. Civil) e pelas obrigações de alimentos (arts. 1905.º e 2009.º, n.º 1, als. a) e c), do Cód. Civil). Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir o destino do uso da casa de morada de família, tendo em conta a necessidade de cada ex-cônjuge, os interesses dos filhos e outros fatores relevantes (arts. 1105.º, n.º 2, 1793.º, n.º 1, do Cód. Civil). É a existência das referidas obrigações por parte do ex-cônjuge único proprietário da casa de morada de família justifica que o uso desta possa ser atribuída ao outro ex-cônjuge (art. 1793.º, n.º 1, do Cód. Civil). Neste caso, inexiste colisão de direitos de natureza real ou pessoal de gozo que justifique e imponha a regulação (por acordo ou por decisão do tribunal) do uso da antiga casa da família. Somente aqueles direitos indisponíveis respeitantes a alimentos e às obrigações parentais explicam a contração das faculdades previstas no art. 1305.º do Cód. Civil que cabem ao ex-cônjuge proprietário. Num lugar paralelo (o da união de facto, também no contexto liquidatário de relações patrimoniais), Rute Pedro sublinha que ao direito ao uso da anterior casa de morada de família “subjaz (…) um objetivo de natureza alimentar” – cfr. Rute Teixeira Pedro, «Breves reflexões sobre a proteção do unido de facto quanto à casa de morada de família propriedade do companheiro falecido», in Textos de Direito da Família: Para Francisco Pereira Coelho, Guilherme de Oliveira (coord.), Imp. Univ. Coimbra, 2016, p. 319; ainda relacionando a satisfação de uma obrigação alimentícia com a cedência do uso da casa de morada de família, cfr. Ana M. Castro (org.), Direito da Família e das Crianças, Lisboa, CEJ, 2023, e-book, p. 102. Existindo acordo, e prestando tributo à coerência axiológica do sistema jurídico (art. 9.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil) – identificando-se os bens jurídicos tutelados com a decisão do tribunal sobre o destino da casa de morada de família com os bens jurídicos tutelados com o acordo –, a sua validade está também dependente do respeito pelos interesses indisponíveis dos cônjuges e dos filhos (art. 1778.º-A, n.º 1, do Cód. Civil). Se estes não forem respeitados, deve o tribunal convidar as partes a alterarem os seus termos. Se o convite à alteração do acordo não for acolhido, a sua homologação pelo tribunal deve ser rejeitada (art. 290.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil). O mesmo já não será de dizer dos fatores respeitantes a direitos disponíveis, os quais só devem ser tidos em consideração na decisão judicial de questão litigiosa, como a justa contrapartida a atribuir ao ex-cônjuge proprietário – as “condições gerais do mercado” referidas no lugar paralelo previsto n.º 7 do art. 1707.º-A do Cód. Civil; recuperando-se aqui a ideia de coerência axiológica, cfr. o art. 1310.º do Cód. Civil. 1.2. Limites temporais ao dever de assistência e ao direito de alimentos Caso outra coisa não resulte do documento apresentado, entende-se que o acordo sobre a atribuição do uso da casa de morada de família se destina tanto ao período da pendência do processo como ao período posterior (arts. 1775.º, n.º 2, do Cód. Civil e 272.º, n.º 4, do Cód. Reg. Civil). Isto não significa que, na falta de menção expressa à existência de um termo extintivo, o acordo será vitalício ou de duração absolutamente indeterminada. Se a atribuição do uso da casa de morada de família está condicionada pela satisfação das obrigações de assistência e de alimentos, bem se compreende que a extinção de todas estas obrigações possa representar o termo da vigência do acordo – ainda que tal não tenha sido expressamente acordado. É este um problema de interpretação da declaração negocial (arts. 236.º a 238.º do Cód. Civil). 1.2.1. Obrigação de assistência ou de prestação de alimentos aos filhos Neste contexto, importa ter presente que os filhos apenas estão sujeitos às responsabilidades parentais até à maioridade (art. 1877.º do Cód. Civil), somente se prevendo o prolongamento do dever de assistência enquanto o filho não houver completado a sua formação profissional, pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete (art. 1880.º do Cód. Civil). Ultrapassada esta fase da vida, cessa o dever de assistência, sem prejuízo da possível existência da obrigação de alimentos (art. 2009.º, n.º 1, al. c), do Cód. Civil). No entanto, estoutro direito está dependente da verificação de um novo pressuposto constitutivo: a situação de efetiva necessidade do filho maior. O conceito axial da obrigação de alimentos é a necessidade (do alimentando). O mesmo é dizer que o preenchimento deste conceito é determinante para a afirmação do direito a alimentos – e, subsequentemente, para o apuramento da sua medida. Como fundamento constitutivo do direito a alimentos, devemos entender que se encontra em necessidade “quem não consegue satisfazer adequadamente as necessidades de uma vida autónoma e digna, quer com o seu património, quer com a sua força de trabalho. Se a necessidade do alimentando for suscetível de cessar com o seu trabalho (de acordo com a as suas possibilidades físicas e intelectuais, o seu estado de saúde, etc.), com a abstenção da prática do jogo, da prodigalidade ou de outros vícios e condutas impeditivas do desenvolvimento de uma atividade profissional, não deve então ter direito a alimentos, pois que inexiste uma verdadeira e própria necessidade” – cfr. Maria João Vaz Tomé, «Reflexões sobre a obrigação de alimentos entre ex-cônjuges», in Guilherme de Oliveira (coord.), Textos de Direito da Família Para Francisco Pereira Coelho, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, p. 597. 1.2.2. Obrigação de alimentos entre ex-cônjuges Durante o casamento, os cônjuges são reciprocamente obrigados à prestação de alimentos (art. 2015.º do Cód. Civil). Diferentemente, depois do divórcio, cada cônjuge deve prover à sua subsistência (art. 2016.º, n.º 1, do Cód. Civil). Vigora, pois, no nosso ordenamento jurídico o princípio da autossuficiência de cada um dos ex-cônjuges. Concretizando, os cônjuges estão reciprocamente obrigados a proporcionar habitação entre si (art. 2016.º, n.º 1, do Cód. Civil), na medida das suas possibilidades – por regra, em coabitação (art. 1673.º, n.º 2, do Cód. Civil). Depois de divorciados, esta obrigação cessa. Excecionalmente, pode ser reconhecido ao ex-cônjuge o direito a alimentos (art. 2016.º, n.º 2, do Cód. Civil), desde que se encontre em situação de necessidade (arts. 2004.º, n.º 1, e 2009.º, n.º 1, al. a), do Cód. Civil). São, pois, dois os pressupostos constitutivos do direito a alimentos entre ex-cônjuges, no que aqui importa destacar: a pré-existência do vínculo matrimonial e a situação de necessidade do ex-cônjuge. A necessidade, enquanto pressuposto constitutivo do direito a alimentos, não abrange a manutenção do padrão de vida de que o ex-cônjuge beneficiou na constância do matrimónio (art. 2016.º-A, n.º 3, do Cód. Civil). Devemos, pois, atender à situação pessoal do ex-cônjuge na atualidade, em face do padrão normal de vida existente na região onde vive – temperado por critérios de razoabilidade e tendo por referência a remuneração mínima de um trabalhador por conta de outrem –, não se devendo recorrer, como termo de comparação, ao padrão que mantinha antes do divórcio. Do princípio de autossuficiência decorre o âmbito temporário da obrigação de alimentos – cfr. o Ac. do STJ de 25-02-2025 (14337/22.4T8LSB.L1.S1). Por um lado, destinando-se o divórcio a obter um novo começo para ambos os cônjuges e o corte de todo o seu relacionamento conjugal pretérito – e mesmo, atualmente, na família alargada, o corte das relações de afinidade (art. 1585.º do Cód. Civil) –, surge como contraditória a ideia de manter os ex-cônjuges vitaliciamente vinculados pela obrigação alimentícia. Por outro lado, tal como constata a Economia Comportamental, não pode ser negado que os seres humanos respondem a estímulos, pelo que é irracional e contrário às regras da experiência dar por certo que, sem qualquer estímulo – como a transitoriedade da prestação alimentícia –, o ex-cônjuge necessitado procurará ativamente encontrar um projeto de vida objetivamente menos confortável – mantendo o nível de rendimento (proporcionado pela perceção da prestação alimentícia), mas tendo de prestar uma atividade laboral para o conseguir. “Visando os alimentos permitir a transição para a independência económica, o carácter temporário da obrigação em apreço surge com alguma clareza. // Procura-se uma harmonização prática entre as necessidades do alimentando e as vinculações do alimentante, tendo-se também em vista que os efeitos negativos do divórcio se devem repercutir igualmente na esfera de cada um dos cônjuges” – cfr. Maria João Vaz Tomé, «Reflexões sobre a obrigação de alimentos entre ex-cônjuges», in Guilherme de Oliveira (coord.), Textos de Direito da Família Para Francisco Pereira Coelho, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, p. 601. 1.3. Interpretação do acordo sobre a atribuição da casa de morada de família Tal como já adiantámos, o contrato de transação sobre o destino da casa de morada de família não tem conteúdo instrumental tabelado, podendo o seu fim ser alcançado com recurso a diferentes soluções jurídicas (e tipos contratuais). Por exemplo, as partes podem acordar numa cedência do gozo do imóvel ao cônjuge não proprietário, com ou sem uma contrapartida – um arrendamento (art. 1023.º do Cód. Civil) ou um comodato (art. 1129.º do Cód. Civil). Do mesmo modo, poderão constituir sobre a anterior residência da família um direito real de gozo (art. 1484.º do Cód. Civil). Importa, no entanto, ter presente que, por regra, nenhuma destas figuras contratuais poderá ser tomada na sua pureza. Tomemos o comodato como hipótese de trabalho (art. 1129.º do Cód. Civil). É este um contrato gratuito. Ora, se, por meio do acordo sobre o destino da residência comum, uma das partes satisfaz também uma obrigação sua de alimentos (ou de assistência), a gratuitidade que tenha sido acordada é meramente aparente. Esta parte não agiu por puro espírito de liberalidade, à custa da sua faculdade de gozo de um património, pois beneficia com a diminuição do seu passivo – isto é, com a extinção da obrigação de alimentos, nos termos consentidos pelo art. 2005.º do Cód. Civil. Dependendo do caso concreto, e com vista à satisfação das mencionadas obrigações, poderá o acordo estar sujeito a uma condição extintiva ou a um termo final, ou mesmo ser enquadrável no regime revisto no art. 1137.º, n.º 1, do Cód. Civil. À face da frugalidade que costuma caracterizar este tipo de acordos, não raramente surgem aqui espinhosos problemas de interpretação da declaração negocial (arts. 236.º a 238.º do Cód. Civil). É importante que os tribunais, vistos na sua unidade, sejam coerentes e consequentes com as suas decisões. Neste sentido, não se afigura razoável que um tribunal homologue, sem mais, um acordo mediante o qual o ex-cônjuge proprietário único aceita singelamente que o outro continue a viver na antiga residência comum com os filhos menores de ambos, sem o pagamento de uma renda – não fiscalizando o juiz, por exemplo, a eventual necessidade de liquidação do Imposto de Selo ou do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis –, vindo depois outro tribunal a qualificar o direito constituído por tal acordo como sendo um direito real. Recorde-se que as normas de direito público envolvidas na constituição ou transmissão de um direito real sobre um imóvel para habitação são da mais variada ordem, devendo a sua satisfação ser verificada no ato: desde a verificação da apresentação da certificação energética (art. 31.º do Decreto-Lei n.º 101-D/2020, de 7 de dezembro) até à constatação da demonstração do trato sucessivo (com a junção da certidão da descrição do prédio no registo predial, documentando a legitimidade do alienante), passando pela verificação da regularização de obrigações fiscais (com a junção certidão da inscrição matricial, do documento comprovativo da liquidação ou da isenção de IMT e do Imposto de Selo) ou de ónus administrativos (existência de licença de utilização ou certidão camarária comprovativa da receção provisória das obras de urbanização ou de que a caução prestada é suficiente para garantir a boa execução das obras de urbanização), e pela formulação de diversas advertências legais, para além da atividade fiscalizadora em torno da prevenção do branqueamento de capitais, a qual obriga, por exemplo, à descrição no ato do modo de pagamento e à averiguação da atualização do registo de beneficiário ativo das sociedades comerciais (cfr., designadamente, arts. 4.º, n.º 1, al. f), 10.º, 31.º, 50.º, n.º 1, 183.º da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto). Insurgindo-se contra a ficção de uma (inexistente) vontade de constituição de um direito real, defendem Rita Lobo Xavier e Nuno Salter Cid que, “se o acordo sobre o destino da casa não exprimir a vontade negocial inequívoca no sentido de constituir o mencionado direito real (naturalmente se for possível constituí-lo) ou de constituir outro direito típico (obviamente sendo possível esta opção), pensamos dever considerar-se que, normalmente, os ex-cônjuges terão querido constituir um direito obrigacional atípico, destinado à utilização da casa por um dos cônjuges (e pelos filhos, havendo-os) – obviamente para a habitar –, enquanto subsistirem as necessidades e os interesses que devem ser acautelados e se quer que o sejam desse modo” – cfr. Rita Lobo Xavier e Nuno Salter Cid, «Do direito constituído por acordo sobre o destino da casa de morada da família: a propósito de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça», Lex Familiae, ano 19, n.º 38 (2022), p. 43; o último sublinhado é nosso. 1.4. Acordo firmado entre as partes e alteração das circunstâncias Extrai-se do leque dos factos provados que: 13 – Consta da sentença de divórcio que requerente e requerida declararam acordar que “o uso da casa de morada de família está atribuído ao cônjuge mulher”. Também resultou provado que: 14 – Mais acordaram os ex-cônjuges, informalmente entre si, que: a) o requerente deixa de comparticipar nas despesas correntes da habitação, tais como os consumos de água, eletricidade, gás, internet e comunicações; b) a ré continuaria a usar o imóvel até adquirir a quota do autor, prevendo as partes que tal aquisição ocorreria até julho de 2022, tempo que entenderam ser necessário para aquela angariar o valor do preço, ou mediante o recurso a crédito bancário, ou para procedendo à venda de bens imóveis de sua propriedade. Este acordo informal contemporâneo do acordo formal é inválido, dado que resulta das disposições legais acima citadas que o acordo sobre o destino do uso da casa de morada de família deve ser formalizado por escrito – ou por documento junto aos autos, ou na ata que regista o ato judicial conciliatório. A exigência de forma escrita é também determinada no art. 1250.º do Cód. Civil. O acordo verbal contemporâneo é, pois, nulo (art. 221.º, n.º 1, do Cód. Civil). O seu teor é útil, todavia, na compreensão do acordo referido na sentença de divórcio – nesta constando que requerente e requerida declararam acordar que “o uso da casa de morada de família está atribuído ao cônjuge mulher”. Ainda útil na compreensão deste acordo é o acordo sobre a regulação das responsabilidades parentais relativamente ao filho menor comum, neste constando, designadamente, que “quando o progenitor estiver em Moçambique, o FFF3 fica aos cuidados e a residir com a progenitora”. A partir deste conjunto de elementos, podemos concluir que as partes não fixaram um termo final certo para a vigência do acordo sobre o uso da casa de morada de família. Sustentar o contrário briga com a norma enunciada no art. 238.º, n.º 1, do Cód. Civil. No entanto, as circunstâncias (representações ou previsões) em que as partes fundaram a decisão de contratar compreendem, quer a manutenção do direito do autor só até julho de 2022 – depois desta data, a ré já seria proprietária única do imóvel –, quer a manutenção da residência do filho dependente, maioritariamente, com a mãe (e a manutenção do dever de assistência por parte do autor) – sobre a base negocial subjetiva, cfr. o Ac. do STJ de 16-04-2002 (02A654). Estes motivos não podem deixar de relevar quando se discute a existência de circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração do acordo (arts. 988.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil e 1793.º, n.º 3, do Cód. Civil) Tendo o filho FFF3 atingido a maioridade (em 14 de janeiro de 2022) na data em que foi proferida a sentença de divórcio, cessou a necessidade (e a imposição) de residir a maior parte do tempo na casa de morada de família – o que não significa que não o tenha continuado a fazer, dado que o pai continuou a trabalhar em Moçambique. Esta situação alterou-se em dezembro de 2024 – cfr. o facto 49 –, altura em que o autor passou a residir permanentemente em Portugal. Emerge dos factos provados que, sendo em Lisboa a residência do autor, o FFF3 também nesta reside alternadamente – satisfazendo o apelante as suas responsabilidades parentais habitacionais através do acolhimento do filho na sua própria residência. Podemos, pois, concluir que cessaram os motivos que emprestavam equilíbrio ao acordo celebrado – malgrado privar totalmente um dos comproprietários do gozo do imóvel. O pedido de revisão do acordo celebrado entre as partes é fundado. Resta fixar os termos que permitirão recuperar o seu equilíbrio. 1.5. Meio e critério a adotar na reposição do equilíbrio contratual O meio previsto na lei para a compensação do ex-cônjuge titular ou contitular do direito de propriedade pela privação da sua faculdade de gozar o seu imóvel (art. 1305.º do Cód. Civil), na falta de acordo, é a constituição de uma relação locatícia. (Assim ocorre, ainda que este arrendamento se possa traduzir numa insólita locação a quem é contitular do bem locado, pois a lei é clara nesta qualificação (art. 1793.º, n.º 1, do Cód. Civil), não se prevendo, por exemplo, em caso de compropriedade, uma oneração da quota com um direito a favor do ex-cônjuge ao qual é atribuído o uso (art. 1408.º do Cód. Civil) – em sentido aparentemente não coincidente, embora referindo-se a um imóvel comum, cfr. o Ac. do TRL de 11-02-2021 (1787/13.6TBVFX-A.L1-2)). Não se pode ver neste arrendamento judicialmente “forçado” uma forma de expropriação por utilidade particular sem direito a indemnização (art. 1310.º do Cód. Civil, quer porque o proprietário (único, em comunhão ou em compropriedade) é compensado com o pagamento da renda, quer porque o ónus imposto corresponderá também, frequentemente, como vimos, à satisfação de uma obrigação própria (de alimentos ou de assistência – diferentemente, entendendo que a lei (sem ferir a Con. Rep. Portuguesa) permite aqui “ao tribunal ‘expropriar’ sem indemnização o uso da casa ao cônjuge a quem é imposto o arrendamento”, cfr. Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol. I (Introdução; Direito matrimonial), 5.ª edição, com a colaboração de Rui Moura Ramos, Imp. Univ. Coimbra, 2016, p. 752; sobre a constitucionalidade da solução legal, cfr. o Ac. do Trib. Constitucional n.º 127/13. Como em qualquer arrendamento, a fixação de uma renda é no arrendamento judicialmente determinado um elemento essencial do contrato. O tribunal deverá aqui tomar por ponto de partida as “condições gerais do mercado” – expressamente convocadas no enunciado do n.º 7 do art. 1707.º-A do Cód. Civil. Todavia, tendo presente que o uso da casa de morada de família pode servir também para a satisfação de uma obrigação alimentícia, o tribunal poderá (deverá) ter, ainda, em consideração a condição socioprofissional e económica dos ex-cônjuges, bem como outras necessidades familiares. Afigura-se, pois, que o critério previsto no n.º 1 do art. 1793.º do Cód. Civil preside não apenas à atribuição do uso da casa de morada de família, mas também à fixação da renda devida. Só assim deverá suceder – isto é, só deve a renda fixada ser inferior ao justo valor do gozo do imóvel –, no entanto, se o uso da casa de morada de família corresponder também à satisfação de uma obrigação alimentícia ou de assistência, e enquanto corresponder. Caso contrário, caberá aos (verdadeiros) obrigados a alimentos ou aos mecanismos de segurança social públicos sustentar o ex-cônjuge carecido. Tal tarefa não é adjudicada pela lei ao outro ex-cônjuge (nem se justificaria que o fosse) por via da limitação da sua faculdade de fruir o seu património. Quando não existam obrigações alimentícias nem subsista o dever de assistência (a cargo do contitular privado do uso do imóvel), devem prevalecer, na fixação da renda, as “condições gerais do mercado”. Esta conclusão tem, no entanto, de ser devidamente compreendida e restringida. Por um lado, se no “mercado” se praticarem valores manifestamente exagerados, não pode o tribunal participar nesta atividade especulativa e contribuir para a obtenção de rendimentos iníquos que o “bom pai de família” não persegue. Aproveitando a expressão de Castro Mendes, entendemos que o tribunal deve reter o poder de lutar contra as conceções dominantes do comércio jurídico (ética ou moral positiva), não aceitando pautar-se ou reger-se por elas – João de Castro Mendes, Teoria Geraldo Direito Civil, Vol. II, Lisboa, AAFDL, 1985, p. 112 (sobre o art. 253.º, n.º 2, do Cód. Civil). Se o comproprietário (caso dos autos) está desagradado com o valor justo fixado e pretende beneficiar dos proveitos iníquos permitidos pelo “mercado”, pode sempre exercer o seu direito potestativo de divisão de coisa comum. Por outro lado, não se pode desconsiderar que os valores praticados no “mercado” resultam da necessidade de satisfação das regras legais gerais vigentes. Assim, a renda mais elevada pode refletir a oneração do imóvel (embaraço) em caso de alienação, compensando a remuneração acordada a redução, por assim dizer, de liquidez do ativo. Ora, o arrendamento dos autos não está sujeito a estas baias, podendo o tribunal determinar que ele se extinga por efeito da alienação do imóvel. O mesmo é dizer que o proprietário não tem de ser compensado por uma (inexistente) maior dificuldade de alienação com a obtenção de uma renda mais elevada. Simetricamente, estando a posição arrendatário menos protegida, dificilmente conseguiria o senhorio aqui obter uma renda correspondente ao valor normal de mercado (de um arrendamento mais seguro). 1.6. Instituição de um arrendamento no caso dos autos Na petição inicial, o autor declarou pretender que o tribunal fixe “uma renda/compensação devida pelo uso exclusivo” (art. 52.º da petição). Sustentou, a este respeito, que “a alteração ao acordo pode consistir em se manter a atribuição da casa de morada de família ao cônjuge inicial, mas pagando este uma renda ao outro ex-cônjuge, sobre a metade que àquele pertence” (art. 66.º da petição). Já no petitório, pediu o autor a condenação da ré a pagar-lhe “uma contrapartida mensal no montante não inferior a € 1500,00, desde a sua citação e enquanto permanecer a indivisão do imóvel e a atribuição do uso da casa de morada de família à requerida”. Não pede, pois, o autor, expressamente, a constituição de uma relação de arrendamento. No entanto, o enquadramento jurídico do pedido do autor – reportando-o ao disposto no art. 1793.º do Cód. Civil – leva-nos à constituição de uma relação de arrendamento. O segmento dispositivo da decisão que o estabeleça contém-se nos limites do pedido (o efeito prático-jurídico da decisão está compreendido no efeito prático-jurídico pedido) − sobre o tema, cfr. Miguel Mesquita, «A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno Processo Civil», RLJ, ano 143.º, Coimbra, nov/dez 2013, pp. 129 a 151, e Carlos Lopes do Rego, «O princípio dispositivo e os poderes de convolação do juiz no momento da sentença», inEstudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I, 2013, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 781 a 810. Acresce que, nas providências a tomar no âmbito da jurisdição voluntária, o tribunal deve adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna (art. 987.º do Cód. Civil). Nada obsta, pois, seguindo até a solução legal substantiva, que se institua uma relação de arrendamento entre as partes. O estabelecimento de um arrendamento no caso dos autos traduz-se numa extinção do contrato atípico vigente – que, na sua génese, não era um verdadeiro comodato, como vimos – e o surgimento de um contrato de arrendamento – ou, se se preferir, na conversão de um contrato noutro de conteúdo (típico) diferente –, em conformidade com o previsto nos n.os 1 e 3 do art. 1793.º do Cód. Civil. Assim se reporá o equilíbrio e o sinalagma da relação contratual entre os ex-cônjuges. 1.6.1. Fixação da contraprestação devida pela ré Não parece haver especial litígio entre as partes sobre a solução acima preconizada, apenas existindo forte controvérsia sobre o valor justo da renda a fixar, pretendendo agora o apelante que seja o valor “de € 1.000.00 mensais”, próximo do efetivamente praticado no mercado (conclusão 62 da sua alegação de recurso) e entendendo a ré que deve ser uma “compensação simbólica no valor de € 100,00” (conclusão N da sua alegação de recurso). Conforme já concluímos acima, cessaram os motivos que levaram as partes, em especial o autor, a aceitar o equilíbrio contratual geneticamente existente. Não resulta dos factos provados que, atualmente, a satisfação de uma obrigação de alimentos aos filhos (ou do dever de assistência) seja obtida por meio do acordo celebrado nem que autor tenha alguma obrigação de alimentos perante a ré. O ponto de partida na fixação da renda não pode, pois, deixar de ser o justo valor de mercado. Resulta do leque dos factos provados que o preço de aquisição da casa de morada de família foi, no ano de 2006, de € 314.242,68. Este montante corresponde a um valor de investimento imobiliário no ano de 2024 entre € 411 600,00 – usando o coeficiente previsto na Portaria n.º 288/2024/1, de 7 de novembro (1,31) – e € 428 500,00 – usando a taxa de variação média do Índice de Preços no Consumidor (1,36…). Na fixação do valor de mercado justo para a remuneração do autor, é útil recordar que a taxa de variação média do Índice de Preços no Consumidor em 2024 (taxa de inflação) foi de 2,4%. A taxa de juro (TAA) de novos depósitos a prazo dos particulares – uma das aplicações mais seguras, atualmente em queda – era, em dezembro de 2024, de 2,16%. Ainda como informação relevante, verificamos num estudo de 2024 (valores medianos / dados do 2.º trimestre de 2024) que a rentabilidade habitacional em Lisboa era de 4,6% – estudo objeto de divulgação na página intitulada «Comprar casa para arrendar em Portugal rende 7,2% no 2.º trimestre», disponível em <www.idealista.pt>. À luz destes dados, é de considerar adequada uma yield de 4%. Recorde-se, como acima já foi sublinhado, que o arrendamento dos autos não está sujeito às regras do mercado na sua duração (art. 1793.º, n.º 2, do Cód. Civil). Ou seja, a relativa insegurança que encerra para o arrendatário provoca, inevitavelmente, uma diminuição do valor da renda. Acresce o autor não tem de suportar custos de mediação e de contratação nem a demora no surgimento de um interessado. Destas circunstâncias decorre que a renda adequada é de € 1400,00, pelo que a contrapartida a fixar a suportar pela ré, na falta de outro critério decisório que se sobreponha, deve ser de € 700,00. Discute-se na ação o direito do autor comproprietário a uma compensação, a satisfazer pela comproprietária, por se encontrar expropriado (de facto) de um imóvel de que é contitular – expropriação que a ré parece pretender ad aeternum, não obstante o disposto nos arts. 1308.º e 1310.º do Cód. Civil. Reconduzida a questão a estes termos – verdadeiramente cíveis e que de família já só têm a história –, não constituem critérios que devam presidir à decisão “as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal” (arts. 1105.º, n.º 2, e 1793.º, n.º 1, do Cód. Civil). Com efeito, estando as partes divorciadas desde 14 de janeiro de 2022 – ou seja, há dois anos e meio (contados até à data do encerramento da discussão em primeira instância, sendo o decurso do tempo um facto notório: arts. 412.º, n.º 1, 611.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil) – mais não são elas, atualmente, do que (terceiras) comproprietárias de um imóvel onde uma delas habita (art. 1403.º do Cód. Civil), embora com um passado comum – a justificar o recurso a um meio processual inserido num capítulo da lei adjetiva intitulado “providências relativas aos filhos e aos cônjuges”. Se nalgum momento houve uma obrigação de alimentos do autor perante a ré – e não é líquido que tenha havido, desde logo porque esta possuía outros imóveis habitacionais –, na data de encerramento da discussão em primeira instância ela já havia cessado. Vale no caso, plenamente, o dever de cada cônjuge prover à sua subsistência (art. 2016.º, n.º 1, do Cód. Civil). Não tem o comproprietário autor nenhuma obrigação de sustentar a comproprietária ré, prescindindo de parte da renda justa pela frutificação do imóvel de que também é titular. Em suma, a contraprestação (renda) a suportar pela ré deve ser fixada em € 700,00. Considerando a idiossincrasia desta relação locatícia – a inquilina goza um imóvel que também é seu –, justifica-se que a renda (€ 700,00) seja paga até ao último dia de cada mês de uso do imóvel – e não como é comum, até ao dia oito do mês anterior. 1.6.2. Duração do arrendamento O autor apelante não impugna o facto de, na data do encerramento da audiência final, o filho FFF3 – estudante e maior dependente – residir sobretudo na casa de morada de família, conforme consta do ponto 22 – factos provados (na sua redação inicial). Como vimos, por via da cedência da exclusividade do uso da casa de morada de família à ré apelada, o autor também satisfazia uma obrigação própria (de assistência ou de alimentos ao filho). Esta situação só se alterou, comprovadamente, em dezembro de 2024 – cfr. o ponto 49 –, altura em que o autor passou a residir permanentemente em Portugal. Emerge dos factos provados que, sendo em Lisboa a residência do autor, o FFF3 também nesta reside alternadamente – satisfazendo o apelante os seus referidos deveres através do acolhimento do filho na sua própria habitação. Justifica-se, pois, que o início do arrendamento tendo por objeto a anterior casa de morada de família se reporte ao mês de dezembro de 2024, inclusive, e não à data da citação, nesta parte procedendo parcialmente a apelação da ré. Note-se que, na sentença apelada, embora se tenha fixado uma renda de € 400,00, se determinou que esta é devida desde a data da citação (3 de novembro de 2022). Com base na decisão proferida, a dívida de rendas da autora seria de € 13 600,00 – 34 meses x € 400,00). Iniciando-se o arrendamento em dezembro de 2024, a dívida é de € 6300,00 – 9 meses x € 700,00. No entanto, o valor mais elevado da renda constituirá um poderoso incentivo a que as partes resolvam rapidamente o litígio que mantêm, seguindo com as suas vidas. O arrendamento, considerando o seu escopo, deve cessar com a divisão da coisa comum – seja pela plena confusão da qualidade senhorio e de inquilino, seja pela venda a terceiro (1051.º, al. b), do Cód. Civil). 2. Direito a uma indemnização fundado no abuso do direito Reclama o autor o pagamento de “uma contrapartida indemnizatória, respeitante ao período de agosto de 2020 até agosto de 2022, no montante global de € 12.000,00”. Funda o seu alegado direito na responsabilidade civil aquiliana, sendo o ilícito invocado o abuso do direito por parte da ré (art. 334.º do Cód. Civil). Não está, pois, em discussão o pagamento de uma compensação visando estabelecer ou restabelecer o equilíbrio contratual. Está fora de causa “a hipótese de o cônjuge provisoriamente excluído da utilização da casa sem compensação atribuída, por acordo homologado que a não estipulou ou por falta de oportuna impugnação da decisão judicial que a não fixou, vir depois reclamá-la com efeitos retroativos” – cfr. Nuno de Salter Cid, «Sobre a atribuição judicial provisória do direito de utilizar a casa de morada da família», Julgar, n.º 40, janeiro-abril de 2020, p. 70. O tribunal a quo identificou o direito exercido pela ré como sendo o direito de gozo do imóvel, do qual esta é comproprietária, nele residindo com os filhos comuns do casal. Conforme referimos em momento anterior deste aresto, o tribunal recorrido entendeu que “do comportamento da requerida” não se pode “extrair uma atuação desonesta, incorreta e desleal (de má-fé) no exercício de direitos e deveres, ou violado o conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e corretas aceitam comummente (bons costumes), bem como o fim social do uso da casa de morada de família”. Os factos invocados pelo autor para fundar a sua pretensão são, recorde-se, os seguintes: “40. O comportamento da requerida tem configurado um ostensivo abuso de direito (…): – usufrui em exclusivo um bem imóvel que não é só seu, sem pagar nada ao comproprietário, quando pode perfeitamente pagar uma contrapartida (…); – recusa-se a que avaliadores acedam ao imóvel para a realização de uma avaliação; – recusa-se a aceitar o valor de mercado daquele imóvel (…); – limita-se a apresentar propostas manifestamente insuficientes de aquisição (…)”. Quanto ao primeiro facto, é certo que a ré “usufrui em exclusivo um bem imóvel que não é só seu, sem pagar nada ao comproprietário”; mas assim é porque assim ficou acordado entre as partes. Se o autor pretende receber uma prestação pela cedência do uso, deverá lançar mão dos mecanismos jurídicos ao seu dispor (caso do processo vertente) na defesa dos seus interesses; não pode estar à espera de que seja a ré a defender os interesses do demandante – oferecendo uma renda ou promovendo uma venda que não deseja –, mantendo-se este inerte. Ou seja, o uso do imóvel pela ré gratuitamente nada tem de abusivo. A recusa “a que avaliadores acedam ao imóvel para a realização de uma avaliação” está ultrapassada e sempre seria ultrapassável. Em todo o caso, é descabido falar-se aqui de um exercício abusivo do direito da ré de obstar à avaliação. Se o autor tem o direito de obter tal avaliação, a ré não tem o referido direito impeditivo, pelo que nunca se pode falar do seu exercício abusivo. Cabe ao autor, designadamente no âmbito do processo de divisão de coisa comum, lançar mão dos mecanismos processuais potestativos existentes para exercer o seu direito. Quanto à recusa de propostas contratuais e à apresentação de outras insuficientes, encontram tais comportamentos total cobertura nos princípios da autonomia privada e da liberdade contratual – aqui também na vertente de liberdade de não contratar (art. 405.º do Cód. Civil). Em conclusão, a ré não exerce de modo abusivo as suas posições jurídicas (art. 334.º Cód. Civil) – seja o direito de propriedade, seja o direito ao uso da casa de morada de família seja a faculdade de contratar (ou não). Cabe ao autor, sim, defender os seus interesses conflituantes, designadamente, pela via judicial apropriada. 3. Fixação de um termo final para o direito de uso do imóvel Pede, ainda, o autor a “definição de um limite temporal para o uso exclusivo do imóvel por parte da requerida, que se pretende até à adjudicação do imóvel a um deles ou até à venda a terceiros”. O tribunal a quo julgou este pedido improcedente, embora pareça aceitar que o prazo para o uso exclusivo do imóvel por parte da ré foi fixado, mas “já se mostra ultrapassado” – veja-se o segmento final do dispositivo da sentença. O prazo acordado para a ré usar o imóvel não se mostra ultrapassado. Resulta do raciocínio acima exposto que estamos perante um acordo com duração incerta – sujeito a uma condição potestativa extintiva (arts. 270.º e 1412.º do Cód. Civil) –, não se tendo ainda verificado o facto extintivo. Aliás, se se tivesse completado um prazo de vigência fixado, o acordo dever-se-ia ter por extinto (caducado), sendo desprovido de sentido o presente processo de… alteração do acordo. Neste cenário, restaria ao autor recorrer aos meios comuns cíveis para exercer o seu direito de comproprietário (art. 1406.º e 1407.º do Cód. Civil). A questão mostra-se ultrapassada, face às condições contratuais já fixadas neste acórdão: o arrendamento legitimador do uso exclusivo cessará com a divisão da coisa comum. 4. Responsabilidade pelas custas A responsabilidade pelas custas da apelação interposta pelo autor cabe ao apelante, na proporção de 7/10, e à apelada, na proporção de 3/10, por ser esta a medida aproximada do vencimento/decaimento (art. 527.º do Cód. Proc. Civil). O apelante pretendia um acréscimo de € 600,00 no valor da renda – pretendia € 1000,00, a não € 400,00, como decidido na sentença –, tendo um vencimento de € 300,00, com a alteração do valor de € 400,00 para € 700,00, agora decidida. Acresce que o apelante ficou vencido no pedido de indemnização formulado A responsabilidade pelas custas da apelação interposta pela ré cabe à apelante e ao apelado, em partes iguais, por ser esta a medida aproximada do vencimento/decaimento (art. 527.º do Cód. Proc. Civil). Com base na decisão proferida em primeira instância, a dívida de rendas da autora (vencidas) seria de € 13 600,00. Por força da decisão agora proferida, esta dívida é apenas de € 6300,00. No entanto, é necessário ter em conta o decaimento da apelante na fixação do valor da renda, com repercussões sobre dívida de rendas vincendas. A responsabilidade pelas custas da ação cabe ao autor, na proporção de 7/10, e à ré, na proporção de 3/10, por ser esta a medida aproximada do vencimento/decaimento (art. 527.º do Cód. Proc. Civil). D. Dispositivo D.A. Do mérito do recurso Em face do exposto, na parcial procedência da apelação interposta pelo autor e da apelação interposta pela ré, acorda-se em alterar a decisão recorrida, decidindo-se, em sua substituição, estabelecer em benefício da ré, enquanto inquilina, o arrendamento do imóvel anterior casa de morada de família, acima identificada, sujeito às seguintes cláusulas: a) a ré deverá liquidar ao autor a renda mensal de € 700,00 (setecentos euros) até ao último dia de cada mês de uso do imóvel, por meio de transferência bancária; b) o arrendamento tem o seu início no mês de dezembro de 2024, inclusive, e cessará com a transmissão ou concentração da propriedade resultante da divisão da coisa comum. No mais, vai a ré absolvida do pedido, mantendo-se a sentença apelada. D.B. Das custas Custas da apelação do autor a cargo do apelante, na proporção de 7/10, e da apelada, na proporção de 3/10. Custas da apelação da ré a cargo de apelante e apelado, em partes iguais. Custas da ação a cargo autor, na proporção de 7/10, e da ré, na proporção de 3/10. Vai o autor apelante condenado na multa de 1 UC, pela parcialmente inadmissível apresentação de documentos com a alegação de recurso (art. 443.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, e 27.º, n.º 1, do Reg. Cust. Processuais). Vai a ré apelante condenado na multa de 1 UC, pela inadmissível apresentação de documentos com a alegação de recurso (art. 443.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, e 27.º, n.º 1, do Reg. Cust. Processuais). Vai a ré apelada condenado na multa de 2 UC, pela inadmissível apresentação de documentos com a contra-alegação de recurso, levando-se na devida consideração a reiteração desta irregularidade e a quantidade de documentos apresentados (art. 443.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, e 27.º, n.º 1, do Reg. Cust. Processuais). * Notifique.
Lisboa, 23 de setembro de 2025 Paulo Ramos de Faria Alexandra de Castro Rocha Carlos Oliveira