DEPOIMENTO INDIRECTO
USO INDEVIDO DO PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
ABSOLVIÇÃO DO PEDIDO
REFORMATIO IN PEJUS
Sumário

Sumário: (art.º 663º nº 7 do CPC) – Da responsabilidade exclusiva do relator)
1. O Código de Processo Civil não proíbe diretamente a valoração do depoimento testemunhal indireto, ou de “ouvir dizer”.
2. O depoimento testemunhal indireto é processual admissível no seio do processo civil nos mesmos casos que o Art. 129.º do Código de Processo Penal o admite.
3. Abaixo desse patamar de segurança jurídica, só em condições muito restritas pode ser valorado o depoimento indireto, devendo nesses casos essa valoração ser suportada ainda noutros meios de prova que lhe confiram um mínimo de credibilidade.
4. O pedido relativo ao pagamento de despesas de cobrança de valores em dívida não se ajusta às finalidades típicas previstas para o processo de injunção, nos termos previstos nos Art.s 1.º e 7.º do Dec.Lei n.º 269/98.
5. Nessa situação verifica-se um uso indevido do procedimento de injunção, que é uma exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, que conduz à absolvição da instância, nos termos dos Art.s 576.º n.º 2, 577.º e 578.º do C.P.C..
6. Esse vício afeta o procedimento de injunção apenas na parte em que o subjacente pedido não se ajuste á finalidade do referido procedimento, nos termos previstos do Art.º 7º do diploma anexo ao DL 269/98, devendo o processo prosseguir apenas quanto aos pedidos que se compreendem no âmbito dessas finalidades.
7. Não poderá o Recorrente, que pretendia a revogação da sentença recorrida com o propósito de ver o R. ser condenado no pedido, ver-se na situação de, por força da procedência do recurso por si interposto, ver agora o R. ser absolvido do pedido, quando a sentença recorrida apenas havia absolvido este da instância.
8. Se, por força da procedência do recurso de apelação, e da conformação do acaso ao direito aplicável, resultar que a revogação da sentença recorrida iria determinar necessariamente que a decisão de absolvição da instância fosse substituída pela de absolvição do R. do pedido, deve ser mantida a sentença recorrida nos seus termos, sob pena de haver uma situação de “reformatio in pejus”, proibida de princípio pelo Art. 635.º n.º 5 do C.P.C..

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
RPA, Lda. veio apresentar requerimento de injunção contra FB, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de €5.396,03, sendo €2.659,06 a título de capital, €2.134,97 a título de juros, €500,00 de outras quantias, relativas a despesas com a tentativa de cobrança, e taxa de justiça de €102,00.
Alegou que, no âmbito da sua atividade comercial, prestou ao R. os fornecimentos de bens e serviços constantes de conta-corrente, relativos a faturas vencidas no período de 02/08/2009 a 01/08/2019, que totalizam €2.659,06, mais juros contabilizados relativos ao período de 02/08/2009 a 31/05/2020, no valor de €2.134,97.
Mais alegou que por carta regista de 10/03/2020, interpelou o R. para pagar a dívida, sendo que em face ao tempo decorrido, aquele não tem intenção de liquidar a quantia em dívida.
Não foi possível a citação pessoal da R., que assim foi citado editalmente, encontrando-se representado pelo M.º P.º, nos termos do Art. 21.º do C.P.C., que se limitou na contestação a invocar que não lhe é aplicável o ónus de impugnação especificada (cfr. Art. 574.º n.º4 do C.P.C.) e que não tinha conhecimento direto dos factos alegados pela A. no requerimento de injunção, devendo a ação ser julgada de acordo com a prova a produzir.
Designada audiência final, foram as partes convidadas a pronunciar-se quanto à exceção dilatória de uso indevido do procedimento de injunção, tendo a A. pugnado pela respetiva improcedência e o M.º P.º pela procedência dessa exceção.
Produzida a prova requerida e discutida a causa, veio a ser proferida sentença que julgou verificada a exceção dilatória de uso indevido do procedimento de injunção e, em consequência, absolveu o R. da instância, fixando o valor da causa em €5.396,03.
É dessa sentença que a A. vem interpor recurso de apelação apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
1. A autora intentou procedimento de injunção contra o réu, para cumprimento de obrigações pecuniárias, baseado no fornecimento de bens, peticionando, a quantia total de 5.396,03€, correspondente a 1) 2.659,97€ a titulo de capital em divida; 2) 2.134,97€ a titulo de juros de mora; 3) 500€ a titulo de despesas de tentativa de cobrança; e 4) 102€ a titulo de taxa de justiça.
2. Como se afere pela leitura de sentença, não foi possível a citação pessoal do réu que foi editalmente citado, não contestou, nem constitui mandatário, pelo que a autora juntou aos autos as faturas, a conte corrente e indicou uma testemunha a ser ouvida em sede de audiência final, que foi realizada, estando o réu representado pelo ministério publico.
3. No inicio da audiência, foi a autora convidada a prenunciar-se sobre a exceção, deduzida pelo Ministério Publico, de alegado uso indevido do procedimento de injunção, relativamente ao seu pedido identificado acima sob o n.º 3 e n.º 4 – “500€ a titulo de despesas de tentativa de cobrança, taxas de justiça e demais encargos com o processo.”, como de afere pela leitura de fls. 3 da sentença de que se recorre.
4. Erradamente, o tribunal não deu como provado que “No âmbito da sua atividade comercial, a Requerente forneceu bens ao requerido, no valor total de €2.134,94 (dois mil, cento e trinta e quatro euros e noventa e quatro cêntimos)”;
5. Como se afere pela audição do depoimento da testemunha SS, com a duração de 10 minutos e 11 segundos, entre as14:26 e as 14:37 da gravação junto aos citius com a gravação da audiência do dia 02 de outubro de 2024, a prova documental foi toda ela corroborada pelo depoimento da testemunha.
6. A testemunha é assistente administrativa, trabalha para a autora há mais de dez (10) anos e agiliza a parte das cobranças com os clientes e apenas quando as faturas em divida estão pagas o processo segue para arquivo e deixa de estar na sua alçada.
7. A testemunha no decorrer do seu depoimento, como se alcança pela audição do mesmo, foi confrontada com as faturas e com a conta corrente junta aos autos, reconhecendo todos os documentos, explicando que a determinada altura o cliente deixou de ter credito na loja e pagava a pronto pagamento as peças levantadas, com o encargo de ir pagamento as faturas mais antigas.
8. A testemunha explicou ao tribunal que, apesar de não ter presenciado as vendas, as faturas estavam na sua posse, porque não estavam pagas e era necessário proceder à sua cobrança.
9. É certo que a prova, quando o réu é ausente, citado editalmente, não conteste, nem tenha intervindo de qualquer forma no processo e seja o Ministério Publico citado para suprir tal revelia – artigo 21º do CPC - outrossim não conteste, estamos perante um caso de revelia absoluta, para o efeito do artigo 568º al. b) in fine, do CPC, pelo que os factos alegados pelo autor não podem ser dados como provados nos termos do artigo 567º, devendo pois proceder-se ao julgamento com apreciação da prova e prolação de sentença com fundamentação de facto e de direito – artigo 607º do CPC.
10. A autora juntou aos autos as faturas e a conta corrente que foram de todo, ignoradas pelo tribunal, sem que a falsidade daquelas tivesse sido alegada e provada, ou sequer tivessem sido impugnadas, atenta a revelia do réu e a falta de contestação.
11. Como se afere do depoimento da testemunha, que o Tribunal terá, por certo, a paciência de ouvir na integra, a autora vende peças automóveis em loja aberta ao publico, a fatura ou documento de venda é entregue ao comprador contra a entrega da mercadoria, pelo que todas as peças foram entregues ao réu e as faturas emitidas em seu nome e sobre o seu numero de contribuinte.
12. Tal como a testemunha referiu, há clientes que tem pequenos negócios de oficina e por isso compram a crédito, pagam umas faturas, isto é uns bens e levam outros, peças automóveis, para colocar em veículos que arranjam em pequenas oficinas.
13. Neste caso, o cliente era faturado com o seu número de contribuinte individual, pelo que ainda que tivesse um pequeno negócio de arranjo de automóveis, era o seu número de contribuinte que indicava para faturação.
14. Temos, com o devido respeito, uma venda devidamente identificada, a um consumidor, resultante de uma venda comercial e desde logo o credor tem direito de se socorrer do processo de injunção, para que possa ter título executivo e possa intentar o processo de execução para recuperar o valor que lhe é devido.
15. Os documentos juntos aos autos são faturas comerciais por si emitidas, pelo que não podem ser consideradas falsas, nem desconsideradas pelo tribunal, com o devido respeito, com a simples menção de: “Sem prejuízo do que antecede, cumpre esclarecer que a Autora não logrou provar – como lhe incumbia (cfr. artigo 342.º, n.º1, do C.C.) - qualquer dos factos alegados, pelo que, ainda que se adotasse uma posição jurídica distinta quanto às consequências do uso indevido do procedimento de injunção, a improcedência do pedido sempre teria de ser decretada”
16. O sem prejuízo do que antecede, refere-se o tribunal, por certo à questão da exceção dilatória inominada de uso indevido de procedimento de injunção, a que nos referiremos de seguida e que o tribunal, a nosso ver erradamente julgou procedente.
17. A nosso ver, as faturas que o tribunal ignorou, são documentos particulares, cuja autoria não foi posta em causa, assim como o teor das declarações que neles constam, isto é o fornecimento de diferentes peças automóveis, como bombas de água, pastilhas de travão, filtros de diversas naturezas e outros relacionados com a mesma natureza.
18. Importa aqui, com o devido respeito, aquilo que o tribunal a quo não fez que é invocar o disposto no artigo 376º do Código Civil segundo o qual tais documentos fazem prova bastante no processo quanto à matéria da sua materialidade e quanto a factos desfavoráveis ao réu e que terão de ser dadas como fazendo prova do valor do capital que está em divida para com a autora – o pedido acima identificado como n.º 1.
19. São no fundo as regras da experiência da vida e de acordo com a prática comercial, de que as faturas de venda, emitidas e datadas pelo vendedor, facultam, salvo prova em contrário, a convicção judicial da venda dos materiais delas constantes, já que por fatura se entende “o documento em que o vendedor faz a discriminação completa das mercadorias que vende ao comprador e em que indica as despesas que efetuou, bem como as vantagens que concede nos preços e as condições de entrega e de pagamento” (Sousa Leite, Compêndio de Noções de Comércio, 2ª ed., pág. 107) e já que tais escritos comerciais têm por função, exatamente, documentar tais vendas.
20. É certo que, ao contrário do que acontece relativamente aos documentos autênticos, cuja força probatória só pode ser ilidida com base na sua falsidade (art. 371º CC), estes documentos admitem impugnação nos termos gerais, mas, face à situação de revelia em que o próprio réu se colocou, não resultou qualquer demonstração da inverdade dos referidos documentos, nem mesmo uma dúvida séria sobre o seu teor.
21. A fatura comercial não é um documento particular qualquer! É um documento utilizado habitualmente na vida comercial, de acordo com os usos e costumes do tráfico mercantil e, atualmente imposto e referido pela legislação comercial de quase todos os ordenamentos jurídicos.
22. Por outras palavras, a fatura é, na tradição (usos e costumes mercantis) e de acordo com as normas que regem a profissão, o documento que titula as vendas das coisas móveis no comércio e as mesmas devem merecer, salvo demonstração em contrário, credibilidade geral do público e dos agentes económicos em geral por força do princípio da confiança e da boa-fé, sendo certo que tal princípio encontra consagração legal entre nós justamente no artigo 227º Código Civil e em muitos outros que se referem à boa-fé.
23. Bastariam tais documentos, mesmo sem a audição da testemunha, para que a prova do capital em divida estivesse feita nos autos. Apesar disso a testemunha, que o tribunal de modo negligente, com o devido respeito, descredibiliza, testemunhou, como acima se explanou de modo claro e credível que as faturas estavam na sua posse, uma vez que não estavam pagas e lhe competia a ela tentar a cobrança daqueles documentos, como muito bem explanou.
24. É certo que a testemunha não efetuou as vendas ao balção, mas como é bom de ver, muito dificilmente qualquer testemunha, poderá ter memória das peças automóveis em concreto vendidas a um determinado cliente, num balção que atende dezenas de clientes por dia. Exigir que a prova testemunhal tivesse passado por uma testemunha ter a recordação ao ponto de saber ou se lembrar se os materiais a que se referem as faturas são exatamente os mesmos que foram fornecidos, passados os anos volvidos da data das faturas, equivaleria à exigência de uma verdadeira “prova diabólica”.
25. Porém, como se não bastasse a prova testemunhal que foi feita, resulta da prova documental, que autora e réu, mantiveram um relacionamento comercial no âmbito do qual o réu, no que se refere às faturas juntas aos autos, adquiriu a esta vários tipos de peças para veículos automóveis, que não pagou e cujo pagamento a autora agora reclamou através de procedimento de injunção.
26. É certo que a prova é de apreciação livre do julgador, mas apreciação livre apenas tem o sentido de não vinculada, como seria, por exemplo, a resultante da prova legal ou tarifada [documentos autênticos legalmente exigidos (certidões, escrituras, instrumentos notariais avulsos), presunções juris et de jure, etc.], não equivalendo a apreciação arbitrária, ideia que também já salientámos supra. Esta é, aliás, a teleologia da obrigatoriedade de fundamentação da convicção do julgador ou, nas palavras da lei (art. 653º n.º 2 CPC), “especificação dos fundamentos que foram decisivos para o julgador”, justamente para permitir aos tribunais superiores a apreciação do itinerário cognitivo-valorativo do julgador nas suas decisões.
27. Na verdade, a decisão do tribunal a quo, de não valorar os meios de prova trazidos aos autos, é quase arbitrária, atenta a falta de fundamentação, na douta sentença, para não valorar tal prova.
28. Em síntese, tendo a autora alegado o fornecimento das peças automóveis ao reu, constantes das faturas, cujas cópias das mesmas juntou ao processo para documentar e comprovar os mesmos. Não tendo o réu logrado impugnar as faturas ou mesmo alegar a sua eventual inexatidão, atenta a sua revelia absoluta, importa, pois, considerar provadas as vendas das peças automóveis a que se referem as faturas juntas aos autos.
29. Aqui chegados a esta conclusão temos que, no caso vertente, deu-se a transmissão do direito de propriedade sobre os produtos descritos nas faturas juntas aos autos – designadamente o fornecimento de várias peças para veículos automóveis, estando o réu obrigado ao pagamento do preço que são efeitos essenciais do contrato de compra e venda, tal como vem designado no artigo 879º do Código Civil.
30. O contrato de compra e venda é um contrato oneroso, tendo em conta que a transmissão da coisa implica o pagamento de um preço, na medida em que dele advêm vantagens económicas para ambas as partes. Ora, como contrato que é, esse negócio jurídico, livremente celebrado, deve ser pontualmente cumprido, ou seja, o cumprimento deve coincidir, ponto por ponto, com a prestação a que o devedor se encontra adstrito, conforme estipulado no artigo 406.º n.º 1 Código Civil, o que aconteceu da parte da autora, que forneceu os produtos discriminados nas faturas juntas aos autos ao réu, sendo que este não cumpriu com a sua obrigação, ou seja proceder ao pagamento do preço.
31. Sendo o pagamento uma exceção perentória cuja invocação extingue o efeito jurídico dos factos articulados pela autora, não é a esta que compete provar a falta de pagamento, mas sim ao réu que compete provar o pagamento – cfr. art. 342º n.º 2 CC e arts. 493º n.º 3 e 496º CPC, o que este não logrou fazer, atenta a sua absoluta revelia.
32. O segundo pedido da autora, acima identificado, é de que o réu seja condenado no pagamento de juros legais de mora desde a data do vencimento das respetivas faturas, e por si calculados até à data da propositura da presente ação em 2.234,97€.
33. Vejamos então quanto ao pagamento de juros legais de mora vencidos. Nos termos do artigo 559º do Código Civil, os juros legais são fixados em Portaria conjunta dos Ministros da Justiça e das Finanças e do Plano. Por outro lado, o artigo 804º Código Civil preceitua que, ao não cumprir pontualmente a sua obrigação – ainda possível – o devedor incorre em mora, sendo que a simples mora o constitui na obrigação de reparar os danos causados ao credor.
34. Os nºs 1 e 2 do artigo 806º Código Civil dispõem, por sua vez, que na obrigação pecuniária – caso ora em apreço – a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora sendo, em princípio, devidos os juros legais. Acrescenta ainda o n.º 1 do artigo 805º CC que o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir. No entanto, a alínea a) do n.º 2 dispõe que, independentemente de interpelação, há mora do devedor se a obrigação tiver prazo certo.
35. Ora, terá de resultar provado nos presentes autos, o réu estava obrigado ao pagamento das faturas identificadas e juntas aos autos, emitidas pela autora, a pronto pagamento, ou seja nos dias das suas emissões, pelo que concluiremos que o réu se constituiu em mora no dia seguinte a essas datas, tal como descrito no requerimento de injunção.
36. Assim, verificado o não cumprimento pelo réu também este pedido tem de proceder, pois tem fundamento legal, nos termos do artigo 805º n.º 2 alínea a) Código Civil, como sucede no caso em apreço, a obrigação a que estava adstrita tem prazo certo, ou seja aqui os dias correspondentes às datas apostas nas respetivas faturas como data de emissão.
37. Pelo que deveria o tribunal ter condenado o reu no pegamento do capital em divida das faturas e nos juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento.
38. O terceiro pedido da autora, identificado no requerimento de injunção sob a epigrafe de “outras quantias”, referia-se ao pagamento de 500€ a título de ressarcimento das despesas efetuadas com tentativas de cobrança, taxas de justiça e demais encargos com o processo.
39. E, é este pedido que o tribunal a quo entende, erradamente, como pedido principal dos autos e que, como acima se identificou o tribunal entendeu como “exceção dilatória inominada de uso indevido do procedimento de injunção”.
40. Assistiria por certo razão ao tribunal se este fosse o único pedido da autora no requerimento de injunção, mas não foi, como sobejamente já se explanou.
41. Entende a recorrente que o tribunal entendeu mal o que esta pretendia com a indicação de “contrato celebrado com consumidor”, uma vez que se tratava de um comprador em nome individual e não de uma sociedade. Mas tal facto não invalida que a autora se socorra do procedimento de injunção para cobrança de dividas tituladas por faturas.
42. Se o pedido da autora indicado em 3º lugar no requerimento de injunção extravasa o seu âmbito, então deveria o tribunal ter absolvido o réu desse pedido e não ter feito tabua rasa do requerimento de injunção como se a autora o tivesse aproveitado para em vez de intentar uma ação de responsabilidade civil, intentar um requerimento de injunção. E, não foi o caso.
43. Este terceiro pedido era tão somente um pedido de pagamento se ressarcimento de despesas extrajudiciais com a tentativa de cobrança do crédito derivado das faturas e não um crédito derivado de responsabilidade civil.
44. Esta exceção determina a absolvição da instancia do réu, o que o tribunal determinou, sem qualquer fundamento jurídico-legal, como acima de explanou.
45. Com o devido respeito é notório que o tribunal andou mal e não apreciou o pedido principal do requerimento de injunção que não se consubstanciava num pedido relativo a responsabilidade civil, mas relativo a cobranças de faturas em divida, que é o escopo máximo do requerimento de injunção e a função para o qual foi criado.
46. Não pode o tribunal, com tamanha ligeireza absolver-se de não decidir sobre o pedido principal dos autos e não fundamentar a sua não apreciação, escudando-se no fundamento de que o terceiro pedido da autora reveste a natureza de uma prestação relativa a responsabilidade civil, o que não era o caso vertido nos autos, como acima sobejamente se explanou.
47. Pelo que, tudo sopesado, deveria o tribunal ter considerado como provado que a autora/recorrente forneceu ao réu/recorrido, as peças automóveis melhor identificadas e referidas nas faturas juntas aos autos, condenado este no pagamento do valor indicado nas faturas, juros de mora desde a data do vencimento das faturas, juros vincendos até integral pagamento e custas de processo e demais encargos com o mesmo.
Pede assim que a procedência das conclusões de recurso e a revogação da sentença, julgando-se a ação procedente por provada.
O M.º P.º, em representação do R., respondeu ao recurso, sobrelevando das suas contra-alegações as seguinte conclusões:
1- A douta decisão proferida a 09/10/2024, não merece qualquer reparo, tanto ao nível da fundamentação de facto, como ao nível da fundamentação de direito.
2- Os fundamentos invocados pelo Tribunal a quo são válidos, sendo que concordamos plenamente com os mesmos, não tendo qualquer colhimento os fundamentos invocados pela Recorrente.
3- A decisão recorrida não padece do vício de falta de fundamentação.
4- Não devem ser peticionadas neste tipo de ações as obrigações pecuniárias que não emergem diretamente do contrato, mas que resultam antes do seu incumprimento culposo, como é o caso da cláusula penal ou indemnização pela cobrança de dívida, sendo que no presente caso é reclamado o pagamento de uma quantia de 500€, a título de indemnização por despesas ocasionadas com a recuperação judicial e extrajudicial do crédito.
5- Verifica-se a impossibilidade de em sede de procedimento de injunção peticionar tal tipo de valor, pelo que aderimos na íntegra ao entendimento do Tribunal a quo, verificando-se, assim, a exceção dilatória inominada de uso indevido do procedimento de injunção.
6- Concorda-se, em absoluto, com o entendimento do Tribunal a quo, designadamente com o que consta da fundamentação de facto, no que se refere à factualidade dada como não provada, sendo que, efetivamente, a prova produzida – documental e testemunhal – não foi suficiente para dissipar a dúvida quanto à ocorrência dos factos, que foram considerados como não provados.
Pede assim que seja julgado o recurso por improcedente.
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II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art. 5.º n.º 3 do C.P.C.). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Assim, em termos sucintos, por ordem de precedência lógica, as questões essenciais a decidir serão as seguintes:
a) A impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
b) A exceção dilatória de uso indevido do procedimento de injunção; e
c) A condenação do R. no crédito peticionado.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1. Nos presentes autos a Requerente peticiona, entre o mais, a quantia de €500,00 (quinhentos euros), a título de indemnização por despesas alegadamente efetuadas com a tentativa de cobrança, taxas de justiça e demais encargos no processo.
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Foi julgada por não provada a seguinte matéria de facto:
a. No âmbito da sua atividade comercial, a Requerente prestou ao Requerido o fornecimento de bens e serviços, no valor total de €2.134,94 (dois mil, cento e trinta e quatro euros e noventa e quatro cêntimos);
b. No sentido de resolver a situação extrajudicialmente, a Requerente remeteu ao Requerido, em 10.03.2020, carta registada a requerer que o mesmo procedesse ao pagamento.
Tudo visto, cumpre apreciar.
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IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Estabelecidas as questões objeto da apelação apresentada, cumpre agora debruçar-nos sobre elas pela sua ordem de precedência lógica, começando pela impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
1. Da impugnação da matéria de facto.
A Recorrente pretende apenas pôr em causa o julgamento da matéria de facto não provada constante do ponto 1, considerando que dele fez prova, tendo em atenção a prova documental junta e o único depoimento testemunhal produzido, que se mostra gravado, cujas passagens que no seu entender seriam mais relevantes transcreveu, por defender que das mesmas resultaria decisão diversa.
Apreciando, nos termos do Art. 662.º n.º 1 do C.P.C. a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa. No entanto, nos termos do Art. 640.º n.º 1 do C.P.C., quando seja impugnada a matéria de facto, deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito concretiza-se que, quanto aos meios probatórios invocados incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso. Para o efeito poderá transcrever os excertos relevantes. Sendo que, ao Recorrido, por contraposição, caberá o ónus de designar os meios de prova que infirmem essas conclusões do recorrente, indicar as passagens da gravação em que se funda a sua defesa, podendo também transcrever os excertos que considere importantes, isto sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o mais importante dos quais, subjacente a todo o regime processual assim estabelecido, o de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o que implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida na primeira instância.
No caso concreto, pode dizer-se que formalmente foram cumpridos os ónus previstos no Art. 640.º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C., não existindo motivo para a rejeição do recurso nesta parte.
É certo que a Recorrente não explicitou de forma especificada que concreta decisão pretendia ver consagrada em função da impugnação apresentada, mas implicitamente resulta evidente que o que pretende é que o facto constante do ponto 1 da matéria de facto não provada na sentença recorrida passe a figurar como facto provado. Pelo que, cumprirá apreciar a impugnação sobre a decisão da matéria de facto.
Do ponto 1 dos factos não provados aqui em discussão consta, no essencial, o julgamento sobre a existência da dívida principal cujo pagamento é reclamado pela A. no requerimento de injunção.
Pretendia a A. provar, por ele, que no exercício da sua atividade forneceu bens e serviços no valor de €2.134,94.
A sentença recorrida julgou esse facto por não provado com a seguinte fundamentação: «No que tange à factualidade dada como não provada, a mesma foi consignada nestes termos atenta a dúvida que subsistiu quanto à sua ocorrência, a qual foi valorada em prejuízo da parte à qual beneficiava, o.s. a R., em conformidade com o critério de julgamento previsto no artigo 414.º, do C.P.C.. Concretizando:
«A respeito de tal factualidade a prova produzida limitou-se:
«i) À apresentação das faturas emitidas pela Requerente em nome do Requerido, nos anos de 2009 e 2014;
«ii) À apresentação de um documento particular, denominado de conta corrente; Estes dois documentos são de autoria exclusiva da Requerente, gozando, por esse motivo, de força probatória frágil e incapaz de merecer o acolhimento dos autos;
«iii) Depoimento da testemunha SS, trabalhadora da Requerente, desde o ano de 2014, que prestou declarações sobre factos em relação aos quais não tem conhecimento direto, por não trabalhar para a Requerente à data em que, alegadamente, ocorreram, tendo-se limitado a reproduzir em Tribunal aquilo que ouviu dizer de terceiro, de identidade desconhecida.
«Salvo o devido respeito, a razão de ciência da testemunha é indireta e de fonte duvidosa, razão pela qual o seu depoimento não logrou convencer o Tribunal, não tendo sido considerado.
«Não tendo sido produzido qualquer outro elemento de prova mais equidistante, permaneceu a dúvida quanto à ocorrência dos referidos factos, os quais foram dados como não provados».
A Recorrente vem pôr em causa este julgamento por entender que não se mostra devidamente fundamentada a valoração da prova, porque não se teve em atenção as faturas e a conta corrente que juntou ao processo (cfr. “Requerimento” de 02-05-2024 – Ref.ª n.º 39244226 - p.e.), sendo que esses documentos não foram impugnados, nem foi invocada a sua falsidade, estando assente a sua autoria e a natureza de faturação comercial, titulando-se pelos mesmos a existência da dívida, o que até tornaria dispensável a necessidade de prova testemunhal. Sem prejuízo, reproduziu segmentos do depoimento da testemunha SS que, enquanto assistente administrativa e trabalhadora da A. há mais de 10 anos, e mesmo sendo certo que não conheceu pessoalmente o R., referiu que a partir de certo momento foi-lhe entregue o processo de cobrança, tendo sido nesse contexto que foi confrontada com a dívida das faturas não pagas.
Assim terá referido que a atividade da A. era a «venda de peças para os automóveis» (cfr. gravação aos minutos 02:05); que as vendas eram feitas ao balcão numa loja (cfr. gravação aos minutos 2:14); que «existem alguns clientes com quem já se tem alguma relação profissional, então tentava-se que pagamento fosse feito, não diariamente, conforme fosse levantar o material, mas à semana, ou quinzenal (…) seria a situação desse cliente, não tinha de pagar na hora, mas sim à semana ou quinzenalmente» (cfr. gravação aos minutos 3:03); que conhecia as faturas, porque as teve consigo no processo de regularização de dívida (cfr. gravação aos minutos 4:05); que «existiam mais documentos do que os que estão presentes, ele foi regularizando, levava uma fatura e era capaz de regularizar outra das mais antigas (…) chegou a uma altura que não apareceu mais. Não fazia compras, nem aparecia para liquidar o que estava em atraso (…) cortou-se o credito (…) foi regularizando algumas, até realmente ter desaparecido e ficarem estes documentos pendentes de pagamento» (cfr. gravação aos minutos 6:33); que, quando perguntada se tentaram contactar com o senhor para vir regularizar a dívida, respondeu: «Sim, sim, tentamos algumas vezes via telefone, o meu colega que cobria a área onde este senhor trabalhava, foi algumas vezes tentar encontrá-lo e a certa altura deixamos de ter qualquer contacto com ele, não atendia o telefone e não estava no sitio onde era a suposta oficina que ele tinha» (cfr. gravação aos minutos 7:20); e que «ele também não veio regularizar a divida que sabia que tinha» (cfr. gravação aos minutos 7:47); que o NIF constantes das faturas era do R. (cfr. gravação aos minutos 8:40); e explicou que lhe foi entregue o processo para tentar estabelecer comunicação com o cliente para pagar o que estava em atraso (cfr. gravação aos minutos 9:06). Em suma, a testemunha, apesar de não ter presenciado as vendas, explicou que as faturas vieram a si, porque não estavam pagas e era necessário proceder à sua cobrança.
Apreciando, temos de começar por referir que os documentos juntos com o requerimento de 2 de maio de 2024 (Ref.ª n.º 39244226 - p.e.), compostos de “faturas” e um documento identificado como “conta-corrente”, são meros documentos particulares (cfr. Art.s 362.º, 363.º e 372.º do C.C.), da alegada autoria da própria A..
Esses documentos não têm força probatória suficiente, só por si, para demonstrar o facto impugnado que foi julgado por não provado, pois deles não consta qualquer declaração imputável ao R., nem deles resulta que o R. tenha tido qualquer intervenção direta na sua emissão.
Neste contexto, a força probatória plena, que poderia decorrer da aplicação ao caso do disposto no Art. 376.º n.º 1 do C.C., esgotar-se-ia na mera constatação de que a A. produziu as declarações aí documentadas, mas não prova que essas declarações correspondam à verdade, porque todos os factos que deles se podem extrair são favoráveis à declarante (cfr. Art. 376.º n.º 2 “ contrario” do C.C.). Nessa medida, não fazem prova plena de que o R. recebeu os bens faturados, nem que os bens alegadamente fornecidos tenham o valor aí indicado.
A consideração de que se trata de documentação de natureza comercial não afasta esta conclusão, porque o Código Comercial não afasta a aplicação ao caso do regime jurídico emergente do direito probatório material estabelecido no Código Civil.
A circunstância desses documentos não terem sido impugnados pelo R. também não permite no caso a conclusão sobre a admissão da factualidade subjacente, porquanto o R. é revel e está representado pelo M.º P.º, ao abrigo do Art. 21.º do C.P.C., que não tem ónus de impugnação especificada (cfr. Art. 574.º n.º 4 do C.P.C.).
Em suma, essa prova documental está sujeita ao princípio geral da livre apreciação pelo julgador (cfr. Art. 607.º n.º 5 do C.P.C.). Sendo que, em caso de dúvida, os factos alegados, porque integram a factualidade que serve de causa de pedir do direito de crédito invocado pela A. (cfr. Art. 342.º n.º 1 do C.C.), deverão ser julgados contra a parte a quem os mesmos aproveitam (cfr. Art. 414.º do C.P.C.). Pelo que, ao contrário do sustentado pela Recorrente, no caso concreto, não bastava a junção desses documentos para provar o que se encontrava controvertido, sendo necessário complementar essa prova com outros meios probatórios que pudessem legitimamente consubstanciar a convicção do tribunal no sentido de que esses factos eram verdadeiros, tal como muito bem ficou a constar a fundamentação da sentença recorrida.
Ora, a única outra prova produzida, nomeadamente em audiência final, foi a prova testemunhal, que se mostra gravada, e que se resume ao depoimento da testemunha SS.
Também a valoração da prova testemunhal está sujeita à regra geral da livre apreciação pelo julgador (cfr. Art. 607.º n.º 5 do C.P.C. e Art. 396.º do C.C.), sendo a mesma admissível em todos os casos que não seja direta ou indiretamente afastada (cfr. Art. 392.º do C.C.).
A prova testemunhal traduz-se em declarações proferidas pessoalmente num processo judicial por pessoas alheias ou estanhas às incidências da causa decidenda, para nele transmitirem ou narrarem factos por si vistos, ou ouvidos, e enunciarem a respetiva razão de ciência (vide: Ferreira de Almeida in “Direito Processual Civil”, Vol. II, 2.ª Ed., pág. 364).
Cumpre também dizer que a nossa lei não proíbe diretamente a valoração do depoimento de “ouvir dizer” – “hearsay rule” (cfr. Castro Mendes e Teixeira de Sousa in “Manual de Processo Civil”, AAFDL, Vol. I, pág. 558).
No Código de Processo Penal o depoimento indireto é admitido em termos condicionais no seu Art. 129.º, estabelecendo que não pode ser valorado se a pessoa de quem a testemunha disse que ouviu-dizer não for convocada para prestar depoimento, salvo situações em que sobreveio a morte, incapacidade psíquica ou total impossibilidade da sua inquirição.
No Código de Processo Civil não existe norma semelhante. Em todo o caso, se a prova testemunhal está sujeita à regra da livre apreciação, sendo natural a sua maior falibilidade e menor fiabilidade relativamente a outros meios de prova mais seguros, pode assentar-se na conclusão de que oferecerá maiores dificuldades a sua valoração quando em causa esteja um depoimento indireto ou de “ouvir-dizer”.
Como a propósito se refere Lebre de Freitas (in “Introdução ao Processo Civil. Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto”, 1996, pág. 156): «não está excluía a inquirição da chamada “testemunha de ouvir dizer”, mas o depoimento daquela de quem ela ouviu o relato dos factos (…) tem maior valor probatório».
Luís Pires de Sousa (in “Prova Testemunhal”, 2014, págs. 197 a 198) defende que no processo civil, por maioria de razão, o depoimento testemunhal indireto deve ser admitido nos mesmos termos que é admissível no processo penal. Abaixo desse patamar, deveriam ser seguidas as orientações defendidas pela doutrina e jurisprudência italianas. Ou seja, se a testemunha tem por fonte um terceiro estranho à lide, poderá ser relevado como prova meramente indiciária a cotejar com outros meios de prova que lhe confiram credibilidade; se a testemunha tem por fonte a própria parte, reproduzindo declarações favoráveis a esta, não terá valor probatório sem o conforto doutro elementos, sendo a sua relevância nula; se a testemunha tem por fonte uma parte que produziu declarações desfavoráveis a si própria, a “confissão indireta” determina que esse depoimento deva ser livremente apreciado pelo julgador (idem Ob. Cit., págs. 194 a 196).
Por nós, entendemos que, se não se verificarem os pressupostos previsto no Art. 129.º do C.P.P., que conferem um patamar de segurança jurídica suficiente, só em condições muito restritas pode ser valorado o depoimento indireto, devendo essa valoração ser suportada ainda noutros meios de prova que lhe confiram um mínimo de credibilidade.
No caso, a única testemunha ouvida reportou o seu depoimento a “terceiros”, que seriam igualmente funcionários da A., sempre agindo no interesse desta última e relativamente a factos favoráveis à parte demandante, que é a sua entidade patronal.
A testemunha não interveio pessoalmente na venda ou fornecimento de bens e não interveio no processo inicial de cobrança da dívida. Simplesmente recebeu esse processo numa fase adiantada, pré-contenciosa, quando, de acordo com o que depôs, já haviam sido feitos anteriormente esforços de cobrança e tentados contactos com o R. através doutras pessoas, que igualmente seriam funcionários da A.. A testemunha nunca mencionou ter entrado em contacto, pessoalmente ou por telefone, com o R., o qual desconhece por completo.
No fundo o que sabe é que na empresa existem as faturas que foram juntas aos autos e que lhe foi solicitado para proceder à sua cobrança junto do R., o que não conseguiu.
Em suma, a prova assim produzida é muito fraca e insuficiente para podermos dar por certo que os bens mencionados nas faturas foram efetivamente entregues ao R. e que os mesmos têm o valor que delas consta, desconhecendo-se por completo se o R. alguma vez aceitou a existência dessa concreta dívida e mesmo se alguma vez foi contactado pela A. e pago outras faturas que alegadamente tivessem estado em dívida.
Não se pode falar propriamente em “prova diabólica”, ou impossibilidade prática da A. poder provar esses concretos fornecimentos, tal como a Recorrente alegou, pois esta é uma empresa que tem contabilidade organizada e lojas abertas ao público, sendo que só podem ter sido os seus funcionários (que não foram arrolados como testemunhas) quem eventualmente possa ter vendido e fornecido esses bens ao R..
Fica claro que a A. optou, portanto, por arrolar, como única testemunha, a pessoa que talvez menos soubesse, dentro da sua organização, sobre os factos que alegou no requerimento de injunção. Sibi imputet.
Julgamos assim dever concordar com o julgamento da matéria de facto que consta da sentença recorrida, improcedendo a impugnação apresentada.
2. Da exceção dilatória de uso indevido do procedimento de injunção.
A sentença recorrida acabou por não tomar conhecimento do pedido de condenação no pagamento de quantia certa emergente de contrato a que se reporta o requerimento de injunção apresentado pela A., porquanto julgou procedente uma exceção dilatória que obstaria à possibilidade de apreciação dessa condenação.
Em termos sucintos, a sentença relevou que, entre as várias quantias cujo pagamento a A. peticionava, encontrava-se uma verba de €500,00, relativa a despesas alegadamente ocorridas com a tentativa de cobrança do crédito em dívida, que não poderiam estar compreendidas no quadro das obrigações pecuniárias suscetíveis de ser objeto de cobrança através do procedimento especial de injunção. O que se traduzir numa situação de uso indevido do processo de injunção e constituiria uma exceção dilatória inominada que deveria determinar a absolvição do R. da instância.
A Recorrente entende que essa exceção não se verifica, mas releva que não foi esse o único pedido que formulou, existindo outras dívidas, a título de capital e juros, que estão compreendidas nas finalidades legais do processo de injunção.
Apreciando, nos termos do Art. 1.º do diploma preambular que constitui o Dec.Lei n.º 269/98 de 1/9, foi aprovado o “regime dos procedimentos para exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000,00”.
Entre esses procedimentos está a “injunção”.
Decorre do Art. 7.º, do regime de procedimentos assim aprovado, que a injunção tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o Art. 1.º do diploma preambular, ou as obrigações emergentes de transações comerciais abrangidos pelo Dec.Lei n.º 32/2003 de 17/2.
Realce-se que, nos termos do Art. 2.º n.º 2 al. a) do Dec.Lei n.º 32/2003 de 17/2, estão excluídos do âmbito de aplicação desse diploma «Os contratos celebrados com consumidores». O que parece ser o caso dos autos.
Portanto, não estando em causa especificamente obrigações emergentes de “transações comerciais” abrangidas pelo Dec.Lei n.º 32/2003 de 17/2, os requisitos que legitimam o recurso ao procedimento de injunção para cobrança de créditos de valor inferior a €15.000,00, são:
1- Que esteja em causa uma obrigação pecuniária inferior a €15.000,00;
2- Que essa obrigação respeite ao cumprimento de um contrato.
Ocorre que, como resulta do requerimento de injunção (cfr. “Requerimento Inicial” de 06-10-2020 – Ref.ª n.º 27305666 - p.e.), uma parte do pedido aí formulado, no valor de €500,00, reporta-se efetivamente ao pagamento de despesas de cobrança da dívida.
Relativamente a este tipo de pretensões, tal como referido na sentença recorrida, tem vindo efetivamente a ser entendido, de forma uniforme, que a injunção, porque se aplica apenas a obrigações pecuniárias diretamente emergentes do cumprimento de contratos, excluí do seu âmbito de aplicação quaisquer pedidos de indemnização ou compensações não emergentes diretamente do cumprimento do contrato (Neste sentido: João Vasconcelos Raposo e Luís Batista Carvalho, in «Injunções e Ações de Cobranças», 2012, pág. 15; e Paulo Duarte Teixeira in «Os Pressupostos Objetivos e Subjetivos do Procedimento de Injunção», revista Themis, VII, n.º 13, pág. 184).
O relator do presente acórdão já tomou posição nesse sentido nos acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29 de abril de 2025 (Proc. n.º 13028/23.3T8SNT.L1) e de 17 de junho de 2025 (Proc. n.º 5529/24.2T8SNT.L1), sendo que este último, curiosamente, é subscrito pelos mesmos adjuntos do presente acórdão.
E até aqui, parece que todos estamos de acordo, não existindo qualquer divergência jurisprudencial.
O problema é o passo seguinte, que foi dado pela decisão recorrida, no sentido de que, mesmo havendo outras obrigações de natureza estritamente pecuniária e emergentes da mera exigência do cumprimento de um contrato, como sejam o não cumprimento do pagamento das faturadas que alegadamente titulam os fornecimentos dos bens em dívida, não é admissível qualquer possibilidade aperfeiçoamento do requerimento de injunção, nem o aproveitamento do processo, na parte em que não tenha sido feito uso indevido da injunção.
É nesta parte que a divergência jurisprudencial tem sido absoluta, havendo entendimentos completamente divergentes entre si.
Assim, só a título de exemplo, no acórdão do TRP de 15/01/2019, Processo n.º 141613/14.0YIPRT.P1, pode ler-se do respetivo sumário: «I - Só pode ser objeto do pedido de injunção o cumprimento de obrigações pecuniárias diretamente emergentes de contrato, mas já não podem ser peticionadas naquela forma processual obrigações com outra fonte, nomeadamente, derivada de responsabilidade civil. (…) III - Quando o autor/requerente use de forma indevida ou inadequada o procedimento de injunção verifica-se uma exceção dilatória inominada, que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância. IV - Tal exceção dilatória inominada, afetando o conhecimento e o prosseguimento da ação especial em que se transmutou o procedimento de injunção, por não se mostrarem reunidos os pressupostos legalmente exigidos para a sua utilização, não permite qualquer adequação processual ou convite a um aperfeiçoamento».
Em suma, defende-se que, quando se verifica uma exceção dilatória de uso indevido do procedimento de injunção, de conhecimento oficioso, tal é inevitavelmente gerador da absolvição da instância, ao abrigo dos Art.s 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, 578.º e 278.º, n.º 1, alínea e), todos do C.P.C. (No mesmos sentido: Ac. do TRL de 10/10/2024 - Processo n.º 5820/24.8T8SNT.L1-6; Ac. do TRL de 23/11/2021, Processo n.º 88236/19.0YIPRT.L1-7; Ac. do TRL de 28/04/2022, Processo n.º 28046/21.8YIPRT.L1-8; e o Ac. do TRC de 14/03/2023, Processo n.º 14529/22.6YIPRT.C1).
Em sentido diametralmente oposto, igualmente a título meramente exemplificativo, vão os acórdãos proferidos neste Tribunal da Relação de Lisboa em 10/10/2024 – Proc. n.º  4709/23.2T8SNT.L1-6 – e a 24/10/2024 – Proc. n.º 9707/23.3T8LSB.L1 –, ambos relatados por Eduardo Petersen Silva e também disponíveis em www.dgsi.pt.). De igual modo, pode ler-se no sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, o acórdão de 6 de fevereiro de 2025 (Proc. n.º 19143/19.0T8SNT.L1-6     - Relator: António Santos, disponível no mesmo sítio) que: «1. - O uso indevido do procedimento de injunção ocorre designadamente no caso de o respetivo pedido, no todo ou em parte, não se ajustar à respetiva finalidade nos termos previstos no art.º 7º do diploma anexo ao DL 269/98; 2. - Ocorrendo a situação referida em 1., verifica-se uma exceção dilatória inominada, a qual é de conhecimento oficioso, desencadeando a inevitável absolvição da instância, nos termos dos artigos 576.º, n.º 2, 577.º e 578.º, todos do Código de Processo Civil. 3. - O vício referido em 2., todavia, não afeta em todo o caso todo o título (…) formado no procedimento de injunção, mas apenas na parte em que o subjacente pedido não se ajuste á finalidade do referido procedimento, nos termos previstos no art.º 7º do diploma anexo ao DL 269/98; 4. - Em consonância com o referido em 3., impõe-se, portanto, apenas o indeferimento parcial (…)».
Realçamos que no Site do Tribunal da Relação de Lisboa está disponível um “Caderno Temático”, com o n.º 28, com o título “Procedimento de Injunção: Erro na utilização do meio processual; Execução assente em título emergente de procedimento de injunção», onde está publicada e concatenada praticamente toda a jurisprudência produzida neste tribunal sobre esta matéria, sendo aí patente a discórdia.
O Relator do presente acórdão, para além dos supra mencionados, também se debruçou esta temática no acórdão de 11 de março de 2025 (Proc. n.º 10570/24.2T8SNT.L1 – disponível para consulta em www.dgsi.pt), ainda que reportando-se a um caso de rejeição liminar da execução com este mesmo fundamento, aí deixando-se consignado o seguinte entendimento: «Por nós, não havendo outra forma de o dizer, concordamos com esta última posição, pois se a lei prevê a possibilidade de rejeição parcial da execução, de indeferimento liminar parcial, seja da execução, seja do requerimento de injunção (se essa questão tivesse sido oportunamente colocada), e até permite o convite ao aperfeiçoamento do requerimento executivo (ou mesmo da injunção, se essa questão tivesse sido colocada), o que permitiria que o título fosse restringindo à parte em que pode ser efetivamente válido e exequível, não vemos como não devam funcionar os princípios de economia processual e do máximo aproveitamento do processado, em conformidade com o que decorre do disposto no Art. 193.º do C.P.C.».
Esta posição de princípio funciona, quer relativamente aos procedimentos de injunção onde seja reclamada uma indemnização contratual penal por violação do período de fidelização, quer relativamente àqueles em que se pede o pagamento de despesas administrativas de cobrança de dívida (neste sentido, o já citado Ac. TRL de 6/2/2025 - Proc. n.º 19143/19.0T8SNT.L1-6 - Relator: António Santos), mesmo que a possibilidade da sua ocorrência e reembolso esteja prevista no contrato, pois nenhuma dessas obrigações corresponde à finalidade típica para a qual foi especificamente previsto o procedimento de injunção, na medida em que não correspondem a pedidos de pagamento de obrigações pecuniárias emergentes da exigência estrita do mero cumprimento do contrato.
Em suma, a exceção dilatória de uso indevido da injunção verificava-se no caso concreto, mas não deveria determinar a absolvição do R. de toda a instância, mas sim, e apenas, na parte em que o pedido se referia a despesas de cobrança da dívida, devendo a instância prosseguir relativamente à parte do pedido que se refere à exigência do cumprimento do pagamento do preço previsto no contrato.
No entanto, o caso concreto oferece mais especificidades que importará ainda ter em consideração.
3. Do crédito peticionado.
Como referido, a A. pedia – para além da condenação do R. no pagamento de despesas de cobrança, que se referem a pedido que não poderia ser formulado no seio de um procedimento de injunção – que o R. fosse condenado a pagar-lhe a quantia de €2.659,06 a título de capital, acrescida de €2.134,97, a título de juros de mora.
Sucede que, a procedência dessa parte do pedido estava dependente da prova dos factos constitutivos desse direito (cfr. Art. 342.º n.º 1 do C.C.). O que, no caso, não ocorreu, porque todos eles constam  dos factos não provados (v.g. factos não provados 1 e 2). Em consequência, o R. deveria ser absolvido do pedido nessa parte.
Ocorre que a sentença recorrida não absolveu o R. desses pedidos. A sentença recorrida absolveu o R. da instância, por força da extensão objetiva dada à procedência da exceção dilatória inominada que julgou procedente.
A absolvição do pedido é objetivamente mais gravosa para a A., porque determina definitivamente, com força de caso julgado, a inexistência do crédito da A. sobre o R. (cfr. Art. 619.º e 621.º do C.P.C.).
A absolvição da instância não obsta a que a A. possa propor outra ação com o mesmo objeto (cfr. Art. 279.º n.º 1 do C.P.C.).
Assim sendo, a revogação da sentença recorrida e a conformação do caso ao direito aplicável, iria determinar necessariamente que essa decisão fosse substituída pela de absolvição do R. do pedido relativamente às obrigações pecuniárias emergentes da exigência do cumprimento do contrato referentes à dívida por capital e juros, o que constituiria uma situação processualmente inadmissível de “reformatio in pejus”, proibida de princípio pelo Art. 635.º n.º 5 do C.P.C..
De facto, não poderá o Recorrente, que pretendia a revogação da sentença recorrida com o propósito de ver o R. ser condenado no pedido, ver-se na situação de, por força da procedência do recurso por si interposto, verificar agora que o R. será absolvido do pedido, quando a sentença recorrida apenas o havia absolvido da instância.
Em face disso, a decisão constante da sentença recorrida, de apenas absolver o R. da instância, deverá manter-se, uma vez que não foi apresentado recurso subordinado pelo Recorrido no sentido de ser absolvido do pedido.
É neste termos que julgamos que a apelação deverá improceder, bem como todas as conclusões que a sustentavam, mantendo-se assim a decisão recorrida.
Finalmente, quanto a custas, só resta dizer que a Recorrente responde pelas custas do recurso, em função da regra geral da causalidade resultante do seu decaimento total (cfr. Art. 527.º n.º 1 do C.P.C.).
V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, por não provada, mantendo-se a sentença recorrida.
- Custas do recurso pela Apelante (Art. 527º n.º 1 do C.P.C.).
*
Lisboa, 23 de setembro de 2025
Carlos Oliveira
Alexandra de Castro Rocha
Luís Lameiras