LIVRANÇA EM BRANCO
AVAL
FIANÇA
DECLARAÇÃO TÁCITA
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
DIREITO DE REGRESSO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Sumário

Sumário: (art.º 663º nº 7 do CPC) – Da responsabilidade exclusiva do relator)
1. Uma livrança entregue em branco, por dela constarem apenas as assinaturas que vinculam a sociedade devedora e a dos avalistas, não produz efeitos como livrança, como decorre explicitamente do 1.º parágrafo do Art. 76.º da L.U.L.L., porque não contém ainda uma promessa de pagamento duma “quantia determinada” (cfr. n.º 2 do Art. 75.º), nem a “época de pagamento” (n.º 3 do Art. 75.º).
2. Enquanto a entidade bancária (que nesse documento figura como credora) não preencher a livrança em conformidade com o estabelecido no pacto de preenchimento, a relação cambiária não se chega a constituir, não existindo sequer aval, enquanto negócio jurídico.
3. Tendo um dos sócios da sociedade devedora entregue a esta os meios financeiros para pagar, em parte, o crédito que a entidade bancária tinha sobre aquela, quando nem sequer havia sido preenchida a livrança, mesmo sendo certo que esse sócio figurava como subscritor de “aval” nesse documento, não goza por essa via de direito de regresso relativamente aos restantes sócios da mesma sociedade, que igualmente aí figuravam como subscritores de “aval”, porquanto as obrigações cartulares ainda não se constituíram.
4. A vontade de prestar fiança, nos termos do Art. 628.º n.º 1 do C.C., deve ser expressamente declarada, não sendo admissível a possibilidade dela resultar de mera declaração tácita (cfr. Art. 217.º n.º 1 “in fine” do C.C.) através de deduções, inferências ou presunções, muito embora não haja necessidade de utilizar fórmulas precisas ou palavras sacramentais para esse efeito.
5. É por via de interpretação negocial (v.g. Art.s 236.º e ss. do C.C.) que se poderá concluir no sentido de as partes terem querido expressamente constituir uma fiança.
6. Não se provando que houvesse sido querida a constituição de fiança solidária dos sócios a favor da sociedade devedora, o sócio que entregou os meios para essa sociedade liquidar parte do seu crédito à entidade bancária credora não goza de direito de regresso sobre os demais sócios, só pelo motivo de todos eles figurarem como “avalistas” numa livrança entregue em branco e ainda por preencher.
7. Os demais sócios dessa sociedade não respondem por essa obrigação de reembolso, pelas regras do enriquecimento sem causa, porquanto na sua esfera jurídica não se verificou qualquer enriquecimento direto emergente da realização da prestação pelo sócio, aqui Autor.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
FA intentou contra FL e JM a presente ação de condenação, em processo declarativo comum, pedindo a condenação de cada um dos R.R. ao pagamento das quantias de €51.666,66, acrescidas de juros de mora à taxa legal, até integral e efetivo pagamento.
Para tanto, alega que constituiu com os R.R. a sociedade “V, Lda.”, tendo cada um uma quota no valor nominal de €500,00. Para prossecução do objeto social, essa sociedade ajustou, em 30 de Março de 2015, com a “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Nordeste Alentejo” um contrato de abertura de crédito em conta corrente até ao montante de €200.000,00, por um período de 12 meses, o qual era garantido por livrança em branco, subscrita pela sociedade e avalizada por A. e R.R., e ainda por hipoteca sobre um imóvel de que o A. era proprietário.
Na sequência de divergências com os R.R., o A. renunciou à gerência da sociedade em menção, vindo depois a receber cartas de interpelação da “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Nordeste Alentejo” que davam conta do incumprimento do contrato de abertura de crédito, sendo depois informado que iriam ser acionados os mecanismos legais para a cobrança judicial da dívida da sociedade de que o A. ainda era sócio.
Perante o silêncio dos R.R., o A. alienou um imóvel de que era proprietário para pagar essa dívida, tendo apresentado uma proposta de pagamento da quantia de €155.000,00. Ao que aquela entidade bancária lhe retorquiu que o montante em dívida ascendia a €190.204,75 e que os R.R. a informaram que liquidariam o remanescente. O que, contudo, não vieram a fazer.
Alegou ainda que a “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Nordeste Alentejo” veio a aceitar que, por conta do incumprimento contratual, lhe fosse apenas entregue a quantia de €155.000,00. O que fez em 5 de Agosto de 2020.
Considerando que lhe assistia o direito a haver dos R.R., na qualidade de avalista e único pagador, a quantia correspondente a 1/3 desse valor, reclama a condenação individual de cada um deles ao pagamento da quantia de €51.666,66, acrescida de juros.
Os R.R. contestaram arguindo a ilegitimidade processual passiva e alegaram que a livrança em branco jamais foi preenchida e que a mesma nem sequer foi junta aos autos. O que, no seu ver, integraria uma exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso conducente à absolvição da instância e determinaria, igualmente, a ilegitimidade substantiva ativa do A..
Mais aduziram que o A. age em abuso do direito, pois sabe que entregou a quantia de €155.000,00 à “V, Lda.” para ser esta efetuar o pagamento da dívida, o que corresponde a um aporte de suprimentos.
Mais alegaram que o A. jamais foi demandado pela entidade bancária e que a entrega feita visou apenas obter o distrate da hipoteca, sendo que o montante total em dívida emergente do empréstimo era superior ao montante entregue, não tendo a livrança sido preenchida, sendo que os R.R. também efetuaram entregas à “V, Lda.” por conta daquele montante.
Sustentaram também que “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Nordeste Alentejo” jamais resolveu o contrato, e/ou notificou a devedora e os avalistas para sanar a mora, e frisaram que a entrega daquela quantia se justificava pela pretensão de o A. obter o distrate da hipoteca e pelo facto de este ter tido a oportunidade de vender um imóvel (que não o hipotecado) e de utilizar parte do valor para aquele efeito.
Impugnaram ainda especificadamente factos vertidos na petição inicial e concluíram pela procedência das exceções dilatórias aduzidas e, subsidiariamente, pela improcedência da ação.
O A. apresentou articulado em que respondeu à matéria de exceção e ampliou o pedido, por forma a que, caso se entendesse em sentido diverso, a sua pretensão pudesse ser considerada com o enquadramento jurídico do enriquecimento sem causa.
Os R.R. responderam à ampliação do pedido, pugnando pela não admissão dessa pretensão.
Findos os articulados, em audiência prévia foi proferido despacho saneador, onde se julgou improcedente a exceção dilatória da ilegitimidade e se fixaram temas da prova, o objeto do litígio e se admitiram os requerimentos probatórios.
Designada audiência final, após a produção da prova e discutida a causa, veio a ser proferida sentença que julgou improcedente a exceção dilatória inominada aduzida pelos R.R., julgando a ação improcedente por não provada e, em consequência, absolveu os R.R. do pedido, mais decidindo que ficou prejudicada a apreciação da exceção perentória do abuso do direito invocada pelos R.R..
É dessa sentença que o A. agora recorre, apresentando no final das suas alegações de recurso as seguintes conclusões:
1. Entende o recorrente que, não obstante inexistir relações cambiárias entre si e os Réus, em função do não preenchimento da livrança em branco, não deixa no entanto de haver entre eles relações de direito comum, que possibilitam que aquele que pague um determinado valor acione não cambiariamente os demais coavalistas para com eles repartir o valor não pago pela avalizada.
2. Com efeito, na Conferência de Genebra foi aprovada a Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças (LULL), tendo aí se concluído na consideração 75 do seu relatório que, “não havia entre coavalistas relações cambiárias, mas somente de direito comum, que uma lei uniforme sobre letras não tinha de regular”.
3. Por conseguinte, não obstante, ter aquele legislador afastado a aplicação da LULL às relações dos coavalistas de um mesmo avalizado, estatuiu, porém, que essas relações seriam reguladas pelas regras legais comuns, em concreto, as que regulam a repartição da responsabilidade solidária.
4. Na verdade, se assim não fosse, respaldar-se-ia o entendimento de que o avalista pagante jamais poderá ser ressarcido da quota parte do pagamento que caberia ao avalista não pagante realizar, assim se violando até o princípio da igualdade.
5. Por outro lado, tal criaria as condições para que se concretizasse um desequilíbrio patrimonial entre sujeitos, neste caso, os coavalistas, que ab initio se colocaram no mesmo plano de responsabilidade perante os credores cambiários.
6. Assim, tendo o legislador responsável pela criação da LULL fixado que as relações entre os coavalistas serão reguladas pelo direito comum, então de acordo com o estatuído nos artigos 516.º, 524.º e 650.º do CC, e tendo ficado provado nos autos que o Autor e Réus tinham a qualidade de avalista,
7. tendo também ficado provado que por conta do incumprimento da sociedade avalizada o recorrente regularizou junto do banco credor o valor em dívida, e os demais Réus não, ter-se-á de concluir que o recorrente ficou sub-rogado nos direitos que eram anteriormente titulados pelo banco credor,
8. e, por conseguinte, o Autor avalista que pagou em quantia superior à que lhe competia, tem direito de reaver dos Réus avalistas a parte que a cada um destes competia, que se presume ser igual para todos.
9. Ao não ter assim decidido a sentença recorrida, e ao exigir o preenchimento da livrança em branco para que o ora recorrente pudesse exercer o seu legitimo direito de regresso sobre os demais recorridos, entende que interpretou de forma incorreta o estatuído nos artigos 516.º, 524.º e 650.º do CC.
10. Acresce que, quer do conjunto dos factos assentes na sentença recorrida, quer do conjunto da prova carreada para os autos, resulta que na sequência de um incumprimento prologando no pagamento pela sociedade avalizada das suas obrigações vencidas, a Caixa de Crédito Agrícola interpelou o Autor e Réus, todos na qualidade de garantes, para procederem ao pagamento dessa obrigação vencida.
11. Daí resulta também que esse incumprimento já se encontrava no contencioso jurídico daquela instituição bancária, sendo que, para além do aval prestado, para cobertura das responsabilidades decorrentes do contrato de crédito, tinha também o Autor prestada uma hipoteca sobre um imóvel seu a favor da Caixa Agrícola.
12. Por conseguinte, tendo o Autor, na sua qualidade de garante, liquidado o valor global de 155.000,00€ à instituição bancária credora, em virtude do incumprimento da sociedade avalizada, sob pena de aquela instituição obter a cobrança coerciva da divida, com a consequente perda do seu imóvel hipotecado, forçoso será concluir que os Réus, na sua qualidade de coavalistas, obtiveram um ganho patrimonial à custa do património do Autor.
13. Daí que, salvo o devido respeito, não poderia sentença recorrida ter concluído que a única beneficiária do pagamento unilateral realizado pelo recorrente foi a sociedade avalizada, quando, na verdade, foram verdadeiramente os ora recorridos, que como se encontra documentado nos autos, foram por diversas vezes interpelados na qualidade de garantes pelo banco credor para regularizam a respetiva parte do débito.
14. Assim, entendendo a sentença recorrida que até ao preenchimento da livrança em branco, que havia sido entregue à instituição bancária credora, não poderia o Autor obter a restituição dos Réus da quota parte do valor que por este deveria ser paga, e que tal preenchimento já não poderá ocorrer fruto do pagamento entretanto realizado, não restava outra alternativa legal a não ser a do Autor obter essa restituição por via do instituto do enriquecimento sem causa, ao contrário do entendido pela sentença recorrida.
15. Ao não ter a sentença recorrida assim decidido, também entende o Autor que fez uma incorreta interpretação do estatuído no n.º 1 do artigo 437.º do CC..
Pede assim que seja concedido provimento ao recurso, revogando-se a sentença e substituindo-a por outra decisão que ordene a primeira instância a julgar procedente a petição inicial instaurada pelo A..
Os R.R. responderam ao recurso e, mesmo não apresentando conclusões, pugnaram pela improcedência da apelação assim interposta.
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II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106).
Assim, em termos sucintos, as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a) O direito de regresso do A. sobre os R.R. por aplicação das regras fiança solidária;
E, subsidiariamente,
b) O direito ao reembolso das quantias pagas pelo A. por força das regras do enriquecimento sem causa.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1. Pela ap. n.º …57 de 2 de Maio de 2012 da ficha n.º …/…730 da 1.ª Conservatória do Registo Predial de Cascais, está registada a aquisição favor do A. do prédio denominado “Murtal”, sito na Rua …., freguesia da Parede.
2. O A. e os R.R. são sócios da “V, Lda.”, sendo cada um titular de uma quota no valor nominal de €500.
3. Em escrito datado de 30 de Março de 2015 e encimado pela expressão “CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO EM CONTA CORRENTE COM LIVRANÇA E AVAL E HIPOTECA AUTÓNOMA”, a “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Nordeste Alentejano, C.R.L.”, aí designada como “CAIXA AGRÍCOLA”, a “V, Lda.”, aí designada como “MUTUÁRIA”, o A. e os R.R., aí designados como “Garantes ou AVALISTAS” declararam:
«(…) PRIMEIRA (Objeto/ limite do Crédito e Finalidade)
1. Por este contrato, a CAIXA AGRÍCOLA concede à MUTUÁRIA, a seu pedido e no seu interesse, um crédito até ao montante de DUZENTOS MIL EUROS (€200.000,000), para ser utilizado em Conta Corrente (no sistema de 'revolving' e com as condições de movimentação previstas na cláusula Terceira. (…)
3. A MUTUÁRIA confessa-se devedora das quantias mutuadas ou disponibilizadas e das inscritas na Conta Corrente, obrigando-se a pagá-las, à CAIXA AGRÍCOLA, com os respetivos juros, impostos, encargos e despesas.
«QUARTA (Prazo, renovação e denúncia)
1. O crédito é concedido pelo prazo de DOZE meses, a contar da data deste contrato e é automaticamente renovável por iguais e sucessivos períodos, salvo denúncia ou oposição à renovação feita pela MUTUÁRIA ou pela CAIXA AGRÍCOLA, com uma antecedência mínima de trinta (30) dias em relação à data do termo Inicial ou de qualquer renovação. (…)
«NONA (Livrança e aval)
1. A MUTUÁRIA entrega uma Livrança por si subscrita em branco, com o aval a seguir previsto, à CAIXA AGRÍCOLA, para titular as obrigações emergentes deste contrato e da Conta Corrente, bem como de eventuais prorrogações, renovações ou outras alterações, e para assegurar o seu pagamento, sem que tal constitua novação, e desde já autoriza a CAIXA AGRÍCOLA a preencher essa livrança, em qualquer momento, inclusive através de representante, e nela inscrever as quantias que lhe sejam devidas, as datas e os locais de emissão, de vencimento e de pagamento, mesmo à vista, bem como as cláusulas "sem despesas" e "sem protesto", e "bom para aval", ainda que por outras expressões equivalentes, além de a poder descontar, endossar e utilizar como bem entender e for do seu interesse, ficando, desde já autorizado que, em caso de cessão dos créditos emergentes deste contrato, a CAIXA AGRÍCOLA pode entregar à cessionária esta livrança e a cessionária fica expressamente autorizada a preenchê-la e utilizá-la nos exatos termos da autorização prevista na presente cláusula e concedida pela subscritora e pelos avalistas à cedente.
2. Os AVALISTAS dão o seu aval nessa livrança e autorizam o seu preenchimento, nas condições referidas no número anterior, e para nela ser inscrita a cláusula "bom para aval", vinculando-se solidariamente com a MUTUÁRIA pelo pagamento de todas as sobreditas responsabilidades, por qualquer prazo, prorrogação ou renovação, e dos encargos e despesas; bem como declaram a sua expressa renúncia a qualquer oposição ou benefício previsto por lei e aos que se refere o número sete da cláusula sétima.
«DÉCIMA (Garantia, hipoteca)
O bom, Integral e pontual cumprimento das obrigações e responsabilidades decorrentes deste crédito e contrato, designadamente o reembolso do capital e o pagamento dos juros, comissões, despesas e demais encargos, fica assegurado pela hipoteca constituída a favor da CAIXA AGRÍCOLA para garantir todas e quaisquer responsabilidades da MUTUÁRIA, nos termos do procedimento Casa Pronta realizado em vinte e cinco de Março de dois mil e quinze perante os Serviços do Registo Predial de Ponte de Sor. (…)»
4. Pela Ap. n.º …53 de 25 de Março de 2015, está registada a favor da “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Nordeste Alentejano, C.R.L.” hipoteca até ao montante máximo de €286.000 para «(…) Garantia do bom e integral pagamento de todas e quaisquer obrigações e responsabilidades até ao montante do capital de 200.000,00€, perante a Caixa Agrícola, contraídas ou a contrair pela sociedade "V, Lda.”, (…), designadamente o reembolso de capital, pagamento de juros, comissões e encargos contratuais , que derivem de qualquer operação de natureza bancária, designadamente de empréstimos, aberturas de crédito ou de outras operações de crédito (…)».
5. Em escrito datado de 15 de Outubro de 2017 e remetido ao A., a “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Nordeste Alentejano, C.R.L.” declarou «(…) Vimos pela presente informar que o empréstimo acima identificado de que V. Exa. é Garante se encontra em atraso desde o dia 30-09-2017, com responsabilidades vencidas (…)».
6. Em e-mail datado de 10 de Fevereiro de 2020 e dirigido ao A., a “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Nordeste Alentejano, C.R.L.” declarou:
«(…) No âmbito do contacto anterior, informo que as responsabilidades encontram-se por regularizar desde 30/03/2018 e que o processo foi submetido para a sua recuperação por via judicial, dada a ausência de regularização.
«Aproveitando o contacto e uma vez que o processo não está sob a nossa alçada conforme já tinha informado, há previsão de regularização? - Se sim, qual a forma e data prevista para tal? (…)».
7. Em email datado de 14 de Maio de 2020 e remetido à “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Nordeste Alentejano, C.R.L.”, o A. declarou:
«(…) No seguimento da nossa conversa telefónica de ontem venho por este meio informar sobre ponto de situação relativamente à venda do imóvel que tenho atualmente.
«O imóvel está no mercado há cerca de 6 semanas. É um imóvel muito bem localizado, numa zona nobre de Lisboa (Avenidas Novas). (…)
«Nesta fase acredito que o risco é que as ofertas atuais possam não se manter.
«Assim, tomei a decisão de fechar negócio esta semana de forma a garantir o valor atual.
«Com as presentes ofertas firmes apresentadas o valor que tenho disponível, caso o negócio se concretize, para amortização da conta corrente do V Lda. é de 155.000€.
«Peço que submeta esta proposta à administração de forma a libertar a hipoteca do meu imóvel. (…)».
8. Em e-mail datado de 25 de Maio de 2020 e remetido ao A., a “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Nordeste Alentejano, C.R.L.” declarou:
«(…) Após o nosso contacto de dia 14/05/2020 foi submetido ao Conselho de Administração o seu pedido de distrate da hipoteca que existe sobre o seu imóvel, tendo sido deliberado que o distrate da hipoteca apenas seria possível com a liquidação integral das responsabilidades (segue em anexo extrato da conta à ordem, dos últimos 30 dias, e segue valor em dívida da CCC à data de 15/06/2020). E foi ainda deliberado que a data de 15/06/2020 seria a data limite, uma vez que se considera ser o tempo suficiente para a realização da referida escritura.
«Desta forma e de maneira a irmos ao encontro do pretendido (cancelamento da hipoteca), os demais sócios e garantes da CCC foram contactados e indicaram que liquidarão o remanescente dos valores em dívida. (…)».
9. A 26 de Maio de 2020, a “V, Lda.” era devedora da quantia €190.204,75 à “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Nordeste Alentejano, C.R.L.”.
10. A “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Nordeste Alentejano, C.R.L.” emitiu o distrate da hipoteca referida no ponto n.º 4.
11. O A. entregou a quantia de €155.000,00 à “V, Lda.” para que esta a entregasse à “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Nordeste Alentejano, C.R.L.” por conta do valor referido no ponto n.º 9.
12. A livrança referida no escrito parcialmente reproduzido no ponto n.º 2 não foi preenchida.
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Foram julgados por não provados os seguintes factos:
- O A. contactou os R.R. para que estes pagassem os montantes usados pela “V, Lda.” que não haviam sido restituídos à “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Nordeste Alentejano, C.R.L.”.
- Os R.R. não responderam aos contactos referidos no ponto precedente;
- Em virtude do facto referido no ponto precedente, o A. decidiu vender o imóvel mencionado no ponto n.º 1;
- Na sequência de negociações encetadas, a “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Nordeste Alentejano, C.R.L.” acordou em receber apenas a quantia referida no escrito parcialmente reproduzido no ponto n.º 7.
- Em virtude do facto referido no ponto precedente, o A. pagou a quantia de €155.000,00 à “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Nordeste Alentejano, C.R.L.”;
- O A. agiu da forma descrita no ponto n.º 11 para obter o distrate da hipoteca referida no ponto n.º 4.

Tudo visto, cumpre apreciar.
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IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Identificadas as questões que fazem parte do objeto do recurso, cumpre agora apreciar as mesmas pela sua ordem de precedência lógica.

1. Do direito de regresso do A. segundo as regras fiança solidária.
A pretensão principal do A., tal como configurada inicialmente na petição inicial, assentava o pedido de pagamento da quantia de €51.666,66, por cada um dos R.R., na circunstância de A. e R.R. serem solidariamente corresponsáveis, em parte iguais, na proporção de 1/3 para cada um, duma dívida bancária emergente de contrato de abertura de crédito, na qual figuravam, como credora, a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Nordeste Alentejano, C.R.L., e devedora, a sociedade “V, Lda.”, da qual A. e R.R. eram sócios. A corresponsabilidade dos sócios dessa sociedade pelo pagamento dessa dívida resultaria de ter sido dada em garantia das responsabilidades contratuais desse crédito bancário uma livrança em branco, na qual A. e R.R. figuravam como coavalistas.
A sentença recorrida julgou esta pretensão improcedente, porque, em função da factualidade que logrou apurar, não chegou a constituir-se a obrigação cambiária, pois a livrança entregue em branco nunca foi preenchida. Em consequência, A. e R.R. não eram solidariamente responsáveis pela dívida por força das regras da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças.
O Recorrente vem agora sustentar que, mesmo sendo certo que não se chegou a constituir a relação cambiária, os sócios da sociedade devedora seriam sempre solidariamente responsáveis pelo pagamento dessa dívida por força das regras de direito comum relativas à fiança, considerando que se aplicariam as normas dos Art.s 516.º, 524.º e 650.º do C.C., chamando a atenção para o facto de no considerando 75 do relatório da Conferência de Genebra, que aprovou a Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL), “não havia entre coavalistas relações cambiárias, mas somente de direito comum, que uma lei uniforme sobre letras não tinha de regular”.
Os Recorridos vêm sustentar que não é isto que decorre da LULL, nem da consideração 75 do Relatório da Conferência de Genebra que aprovou esta Lei, pois nem a LULL estabelece solidariedade entre coavalistas, nem determina a aplicação das referidas disposições civis. Sendo que, não se chegou a constituir a obrigação cambiária de avalista e não existe responsabilidade solidária dos sócios para com a sociedade, porque não foi celebrado qualquer contrato donde tal resultasse, ou que os obrigasse a restituir os valores em causa.
Apreciando, podemos assentar, como ponto de partida indiscutível, que a relação cambiária não se chegou a constituir, porque a livrança nunca chegou a ser preenchida pela entidade bancária credora, a favor da qual se estabeleceu o pacto de preenchimento.
Se a livrança está em branco, dela apenas constando as assinaturas que vinculam a sociedade devedora e a dos avalistas, a mesma não produz efeito como livrança, como decorre explicitamente do 1.º parágrafo do Art. 76.º da L.U.L.L., porque não contém certamente ainda uma promessa de pagamento duma “quantia determinada” (cfr. n.º 2 do Art. 75.º), nem a “época de pagamento” (n.º 3 do Art. 75.º).
Trata-se, portanto, de um título incompleto, que poderá ser completado em observância do pacto de preenchimento, que se mostra formalizado na cláusula nona do “contrato de abertura de crédito em conta corrente” (cfr. facto provado 3) e como decorre indiretamente do disposto no Art. 10.º da L.U.L.L..
Uma livrança em branco será uma garantia em “sentido lato” para o credor em face duma situação de incerteza relacionada com o incumprimento de um contrato duradouro, porque reforça a sua posição creditória através da possibilidade de acesso facultativo à via da ação executiva, derivada da circunstância de ficar logo em poder de um título que, chegado certo momento, pode ser completado, sem dependência ou manifestação de vontade dos devedores (vide, a propósito Carolina Cunha in “Aval e Insolvência”, págs. 19 a 22).
Em todo o caso, a subscrição e entrega do título em banco «não constituem exatamente uma vinculação cambiária: representam (metaforicamente) o seu simples embrião. Dão corpo à primeira etapa de um fattispecie complexa, que só quando se possam dizer reunidos todos os elementos desembocará na criação de uma verdadeira obrigação cartular» (idem Ob. Cit., pág. 21).
Esse documento, nessas condições, não pode ainda valer como título de crédito, não produzindo efeitos como uma livrança (cfr. Art. 76.º da L.U.L.), ficando a constituição das obrigações cartulares, nomeadamente as relativas aos avalistas, sujeitas à condição futura, e meramente eventual, do preenchimento regular do título.
Como refere ainda Carolina Cunha (in Ob. Loc. Cit. pág. 22), a este propósito: «antes de preenchido o título, o próprio aval não existe sequer enquanto negócio jurídico: o que temos é a vinculação jurídica constante do acordo de preenchimento, mais a vinculação cambiária em estado embrionário (através da assinatura aposta no título) e o poder fáctico de o portador do título o vir a preencher».
Em suma, nunca poderia ser por força estrita das obrigações assumidas pela subscrição da livrança entregue em branco que poderiam emergir logo para A. e R.R. qualquer vínculo obrigacional para com a entidade bancária, ou qualquer vínculo recíproco de cumprimento dessa obrigação por parte dos avalistas, seja entre si ou destes relativamente à sociedade devedora “avalizada”. Portanto, a legitimidade do direito invocado pelo A. não pode, em circunstância alguma, ser encontrado no âmbito da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças e das obrigações estritamente cambiárias, porque ainda não há efetivamente uma “livrança”.
Ainda assim temos de relevar que na cláusula “NONA”, com a epígrafe “Livrança e aval”, constam as seguintes declarações imputáveis aos “avalistas”: «2. Os AVALISTAS dão o seu aval nessa livrança e autorizam o seu preenchimento, nas condições referidas no número anterior, e para nela ser inscrita a cláusula "bom para aval", vinculando-se solidariamente com a MUTUÁRIA pelo pagamento de todas as sobreditas responsabilidades, por qualquer prazo, prorrogação ou renovação, e dos encargos e despesas; bem como declaram a sua expressa renúncia a qualquer oposição ou benefício previsto por lei e aos que se refere o número sete da cláusula sétima».
Poderia interpretar-se que os “avalistas” (A. e R.R.) não se limitam a dar o seu aval à sociedade subscritora da livrança através desse título, pretendendo ainda vincular-se solidariamente para com a sociedade de que são sócios, pelo pagamento de todas as responsabilidades emergentes desse contrato.
Por outras palavras, A. e R.R. não teriam assinado esse contrato apenas como avalistas da livrança entregue em branco e com autorização do seu preenchimento. A. e R.R. teriam assinado esse contrato também como “Garantes”, assumindo assim uma fiança solidária pelo pagamento das responsabilidades contratuais da sociedade de que eram sócios.
Em primeiro lugar, temos de dizer que não se pode falar propriamente numa assunção cumulativa da dívida (que não tem regime legal tipificado na lei), porquanto essa figura jurídica pressupõe que exista, no mínimo, um interesse económico próprio dos assuntores no cumprimento duma obrigação de outrem (vide, a propósito: Januário Gomes in “Assunção Fidejussória de Dívida”, págs. 275 e ss.). Ora, isso no caso não se verifica, porque como o A. logo alegou na sua petição inicial e está assim evidenciado nos autos, o crédito foi constituído no interesse único da atividade comercial da sociedade devedora, não existindo qualquer interesse próprios de A. e R.R. na assunção pessoal dessa dívida.
Está claro que A. e R.R. só assinaram esse contrato, porque o banco credor quis-se assegurar do cumprimento das obrigações contratuais através do alargamento da garantia patrimonial suscetível de responder pela dívida (cfr. Art. 601.º do C.C.), não se bastando com a garantia do património da sociedade devedora, pois queria ainda compreender a responsabilidade patrimonial dos sócios daquela por esse crédito.
Assim, se o propósito da intervenção de A. e R.R. neste contrato era garantir a satisfação do direito de crédito, ficando os sócios obrigados pessoalmente perante o credor, poder-se-ia dizer que a finalidade típica das declarações negociais constantes da 2.ª parte do n.º 2 da cláusula Nona do contrato só poderia ser entendida como uma fiança (cfr. Art. 627.º do C.C.).
A fiança tem semelhanças com o aval, na medida em que também o avalista responde, com o seu património, pelo cumprimento duma dívida, só que o aval reporta-se apenas à garantia da obrigação cambiária avalizada, pressupondo, portanto, que exista um título de crédito formalmente constituído, como uma letra ou livrança.
Para além disso, como realça Antunes Varela (in “Das Obrigações em Geral”, Vol. II, 7.ª Ed., pág. 480) o Art. 32.º da L.U.L.L. determina que o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, mas a sua obrigação mantém-se, mesmo que a obrigação garantida seja nula por qualquer razão que não seja um vício de forma do título. Em conformidade, a obrigação do avalista é paralela da que recai sobre o avalizado, o que a distingue da garantia decorrente da fiança, que tem como características naturais a sua subsidiariedade e acessoriedade. Neste contexto, o avalista nunca goza do benefício de excussão prévia, que a lei estabelece para o fiador como regra (cfr. Art. 638.º do C.C.), ainda que possa ser lícito a este prescindir desse benefício.
Ocorre que, nos termos do Art. 628.º n.º 1 do C.C., a vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal.
Deste normativo resulta apenas claro que o legislador excluiu a possibilidade de a fiança resultar de mera declaração tácita (cfr. Art. 217.º n.º 1 “in fine” do C.C.).
Como a este propósito escreve Januário Gomes (in Ob. Loc. Cit. pág. 467), citando posição de Antunes Varela: «a vontade de cobrir a obrigação do devedor “tem de resultar diretamente da declaração do fiador, e não através de deduções, inferências ou presunções, embora para esse efeito não haja fórmulas precisas”».
Na mesma linha, Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte (in “Garantias de Cumprimento”, 4.ª Ed., págs. 87 a 88), escrevem: «A declaração expressa exigida por lei não pressupõe a utilização de palavras sacramentais, nos termos do artigo 217.º do Código Civil a declaração será expressa «quando, feita por» qualquer «meio direto de manifestação da vontade». Será por via de interpretação negocial (artigos 236.º e seguintes do Código Civil) que se poderá concluir no sentido de as partes terem querido expressamente constituir uma fiança».
O problema, no caso concreto, é que as declarações negociais, nomeadamente as constante da cláusula Nona n.º 2 do contrato de abertura de crédito em conta corrente, não permitem dizer, de forma expressa e clara, que as partes identificadas como “avalistas” tenham assumido outras obrigações que não sejam as decorrentes da assinatura da livrança entregue em branco e da autorização de preenchimento da mesma.
É certo que, a identificação das partes “avalistas”, no introito do contrato, é feito também como recurso à palavra “Garantes”, usando a expressão em alternativa: «adiante designados por Garantes ou AVALISTAS» (sic).
Também é verdade que na cláusula Nona n.º 2, 2.ª parte, houve a necessidade de especificar que o vínculo era solidário e abrangia as prorrogações ou renovações do contrato, com expressa renúncia de qualquer benefício decorrente da lei.
Mas, partir destas duas situações meramente indiciárias, para se concluir que se estabeleceu também, para além duma responsabilidade de A. e R.R. como avalistas, uma assunção duma “fiança solidária”, parece-nos que não tem o mínimo de correspondência com o texto do clausulado, ainda que imperfeitamente expresso (cfr. Art. 238.º n.º 1 do C.C.).
Aliás, não podemos deixar de notar que esse contrato é identificado como “Contrato de Abertura de Crédito em Conta Corrente Com Livrança e Aval e Hipoteca” (sublinhado nosso). Não se fala nunca em fiança.
Em suma, não chegando a existir livrança, por força do disposto no Art. 76.º da L.U.L.L., também não se constitui uma obrigação cartular típica de avalista (cfr. Art. 32.º “ex vi” Art. 77.º da L.U.L.L.), não existindo ainda solidariedade dos signatários do título, seja como subscritores da livrança, seja como avalistas, com possibilidade de acionamento judicial do crédito cartular (cfr. Art.s 47.º a 49.º “ex vi” Art. 77.º da L.U.L.L.).
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/10/2002 (Proc. n.º 02A2976 – Relator: Silva Salazar), que é citado pelo Recorrente nas suas alegações de recurso (que de disponibiliza para consulta com a seguinte link (https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2002:02A2976.78?search=U4vmrmU3iNolQOYtQ3I ) não tem aplicação ao caso, porque reporta-se a uma letra que havia sido efetivamente preenchida e legitimava a interpretação sobre a existência da obrigação de aval e o recurso supletivo às regras da fiança. Estamos, portanto, perante, realidades completamente diversas.
Também podemos dizer que não existe uma constituição expressa duma “fiança solidária” de A. e R.R. a favor da sociedade de que eram sócios (cfr. Art. 628.º n.º 1 do C.C.), inexistindo por essa via qualquer vínculo contratual que obrigasse A. ou R.R. a assumir o pagamento da dívida da sociedade diretamente ao banco, sem que fosse constituída a obrigação cartular que ainda estava numa fase meramente “embrionária”.
Não se nega que A. e R.R. pudessem ter interesse legítimo em que a livrança não fosse preenchida, como era direito potestativo do banco-credor. Mas a relação creditória substantiva vinculava diretamente apenas a sociedade devedora ao banco-credor (cfr. Art. 406.º n.º 1 e 762.º do C.C.). Por isso, o A. entregou a quantia de €155.000,00 à sociedade-devedora, a “V, Lda.”, para esta pagar a dívida à Caixa de Crédito Agrícola (cfr. Facto provado 11).
Diga-se que, o A., enquanto terceiro interessado, também poderia cumprir essa prestação (cfr. Art. 767.º do C.C.), se o credor a aceitasse, como foi o caso. Mas daí não resulta qualquer vínculo que obrigue os R.R. (que apenas eram “avalistas” numa livrança que nunca chegou a ser preenchida) a reembolsar o valor adiantado pelo A. por conta das quantias que se mostrariam em dívida pela sociedade devedora.
Não chega sequer a existir uma situação de sub-rogação (cfr. Art. 589.º ou 591.º do C.C.), que estaria sempre dependente de declaração expressa, que não se formalizou.
Concordamos assim com a sentença recorrida quando sustenta que não há nenhum vínculo, legal ou contratual, que legitime o direito de regresso do A. relativamente aos R.R., porquanto em causa está apenas uma situação de cumprimento duma obrigação alheia, sem que se tivesse ainda constituído formalmente o vínculo de garantia, que estava apenas latente com a subscrição de aval duma livrança entregue em branco.
Quando muito poderia colocar-se a possibilidade de haver o cumprimento de obrigações alheias na convicção de que se está a cumprir essa obrigação, que tem a seu assento legal no Art. 478.º do C.C.. O que nos leva ao tema seguinte da presente apelação.
2.Do direito ao reembolso por força do enriquecimento sem causa.
O A. em articulado posterior à petição inicial, veio ampliar a causa de pedir, com oposição dos R.R., por forma a que fosse considerada a mesma pretensão, de condenação destes no pagamento, por cada um deles, da quantia de €51,666,66, mas desta feita por força do instituto do enriquecimento sem causa.
Apesar a oposição dos R.R., não consta dos autos que tenha sido proferido despacho a pronunciar-se sobre essa pretensão, tendo sido proferido despacho saneador sem ter sido decidido esse incidente. Sendo certo que o articulado também não foi ordenado desentranhar e a sentença recorrida acabou por tomar conhecimento dessa pretensão, julgando a mesma improcedente.
Para que fique claro, o novo pedido é fundamentalmente o mesmo, ainda que formulado agora numa versão que o configura como “pedido subsidiário”, para a eventualidade da pretensão formulada na petição inicial, com outro enquadramento jurídico, não vir a vingar. Mas, na verdade, a causa de pedir é que também foi ampliada, por força dessa nova pretensão, sem respeitar o disposto no Art. 265.º n.º 1 do C.P.C., tendo em atenção a oposição manifestada pelos R.R..
Sem prejuízo, ninguém suscitou a questão e, como referido, essa causa de pedir foi apreciada pela sentença, sendo que as alegações de recurso sustentam a procedência da ação com esse enquadramento jurídico.
Apreciando, o que resulta do Art. 473.º n.º 1 do C.C. é que aquele que, sem justa causa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
Entende a doutrina que são pressupostos do enriquecimento sem causa: a existência de um enriquecimento; a ausência de causa justificativa; e que o enriquecimento seja à custa de quem requer a restituição (vide, a propósito: Antunes Varela in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 10.ª Ed., págs. 480 e ss.; Almeida Costa in “Direito das Obrigações”, 12ª Ed., pág. 491; Menezes Leitão, Direito das Obrigações in “Direito das Obrigações”, Vol. I, 2ª Ed., pág. 381).
O enriquecimento representa uma vantagem, ou benefício de carácter patrimonial e suscetível de avaliação pecuniária, produzido na esfera jurídica da pessoa obrigada à restituição e traduz-se numa melhoria da sua situação patrimonial. Deve corresponder a um enriquecimento real, por corresponder ao valor objetivo da vantagem adquirida, e a um enriquecimento patrimonial, que reflete a diferença, para mais, produzida na esfera económica do enriquecido e que resulta da comparação entre a sua situação efetiva (real) e aquela em que se encontraria se a deslocação se não houvesse verificado (situação hipotética) (vide: Almeida Costa, in Ob. Loc. Cit., págs. 492 e 493; e Pereira Coelho in “O enriquecimento e o dano”, separata dos anos XV e XVI, Direito e Estudos Sociais, 2ª reimpressão, Coimbra 2003, págs. 24 e ss. e 36 e ss.).
De igual modo, como escreveu Vaz Serra (in RLJ, ano 102º, pág. 337, nota 2): «o enriquecimento consiste numa melhoria da situação patrimonial do obrigado a restituir, representando a diferença entre o estado atual do seu património e o estado em que ele se encontraria se não tivesse tido lugar a deslocação, sem causa, de valores».
O enriquecimento consiste, pois, na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista, podendo traduzir-se, quer num aumento do ativo patrimonial, quer no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio.
Menezes Cordeiro (in “Tratado de Direito Civil Português”, volume II, Tomo III, págs. 226, 228, 230, 231 e 234), a propósito dos requisitos gerais deste instituto, referindo-se ao enriquecimento e depois de elencar as situações em que ele pode traduzir-se, escreveu que: «o instituto do enriquecimento só pode ser ativado quando algo transite de uma pessoa para a outra», ademais, referindo-se ao empobrecimento, depois de mencionar que ele pode traduzir-se nas figuras inversas às apontadas a propósito do enriquecimento, bastando o dano em abstrato, e acrescentou ser necessária «a deslocação patrimonial ou o acervo de vantagens que se destinariam ao empobrecido mas que, mercê do fenómeno em estudo, surgem na esfera do enriquecido».
Quanto à relação entre o enriquecimento e o empobrecimento defende que ela deve existir, por decorrer da expressão «à custa de outrem», a qual tem utilidade desde que seja devidamente integrada, devendo ser entendida como «uma proposição específica de enriquecimento sem causa, que exprime uma relação entre os futuros credores da obrigação de restituir o enriquecimento e o devedor da mesma».
O mesmo autor (in Ob. Loc. Cit., pág. 234) sustenta ainda a necessidade da imediação entre o enriquecimento de uma das partes e o empobrecimento da outra e que a relação entre o enriquecido e o empobrecido deve ser direta, na medida em que «um certo enriquecimento pressupõe uma precisa relação jurídica (logicamente) entre dois sujeitos. Essa relação é determinada por um juízo de valor…», o qual «vai ter por base a ideia fecunda do conteúdo da destinação».
No mesmo sentido, de exigir que enquanto o património de um valoriza, aumenta ou deixa de diminuir, na medida em que no outro se dá o inverso, porque desvaloriza, diminui ou deixa de aumentar, veja-se também: Galvão Telles in “Direito das Obrigações”, 7ª edição, Reimpressão, 2010, págs. 197 e 198; Almeida Costa in “Direito das Obrigações”, 12.ª Ed., págs. 495 e 496.
No que respeita à ausência de causa justificativa, sobreleva o disposto no n.º 2 do Art. 473.º do C.C., onde se identificam a título exemplificativo três situações especiais de enriquecimento desprovido de causa: 1) a condictio in debiti (repetição do indevido), 2) a condictio ob causam finitam (enriquecimento por virtude de causa que deixou de existir) e, 3) a condictio ob causam datorum (enriquecimento derivado da falta de resultado previsto) – vide, a propósito: Galvão Telles in “Direito das Obrigações”, 7.ª Ed., pág. 205; Almeida Costa in “Direito das Obrigações”, 12.ª Ed., pág. 505; e Menezes Leitão in “Direito das Obrigações”, Vol. I, 2.ª Ed., pág. 395).
A falta de causa justificativa pode resultar da circunstância de nunca ter existido ou, tendo existido, entretanto, se ter perdido, ou seja, a causa do enriquecimento pode resultar do fim imediato da prestação e do fim típico do negócio, donde, se a obrigação não existiu ou se o fim do negócio falhou, deixou de haver causa para a prestação e a obrigação resultante do negócio, importando ainda saber, em cada caso concreto, “se o ordenamento jurídico considera ou não justificado o enriquecimento e se portanto acha ou não legítimo que o beneficiado o conserve” (neste sentido: Galvão Telles in Ob. Loc. Cit., págs. 199 e 200), ou, então, se “o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema, ou se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa” (neste sentido: Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4.ª Ed., págs. 454 e ss.; e Diogo Leite de Campos in “A Subsidiariedade da Obrigação de Restituir e Enriquecimento”, págs. 317 e 412; e Ac.. do S.T.J. de 3 de Novembro de 2016 (Proc. n.º 390/09.0TBBAO.P1.S1), de 3 de Maio de 2018 (Proc. n.º 175/05.2TBALR.E1.S1), ambos disponíveis no sítio da “dgsi”).
Ora, no caso concreto, o que se passa é que os R.R. não tiveram qualquer enriquecimento direto por força do empobrecimento do A.. A realização da prestação pelo A. enriqueceu o património da sociedade “V, Lda.”, que era a devedora relativamente ao crédito reclamado pela Caixa de Crédito Agrícola. Os R.R. apenas viram diminuída a sua potencial responsabilidade pela garantia de pagamento de um crédito que ainda não está determinado, na medida em que está dependente da eventualidade de a “V, Lda.” não liquidar integralmente as suas responsabilidades contratuais para como o banco-credor e este exercer o seu direito de preencher a livrança e acionar os coobrigados por esse título.
Poderia entender-se que o A. cumpriu uma obrigação alheia, na convicção que estava obrigado a cumpri-la. Caso em que não lhe assistia o direito de repetição relativamente ao credor, mas apenas o direito de exigir do devedor, ou seja da sociedade “V, Lda.”, aquilo com que este injustamente se locupletou à sua custa (cfr. Art. 478.º do C.C.). No entanto, não foi o A. quem cumpriu a obrigação, porquanto a prestação debitória foi efetivamente realizada pela sociedade devedora, não se aplicando ao caso o disposto no Art. 478.º do C.C..
Os R.R. não respondem por qualquer obrigação de reembolso, porquanto na sua esfera jurídica não se verificou qualquer enriquecimento direto emergente da realização da prestação pelo A., embora indiretamente dela possam eventualmente poder ter tirado algum benefício, quando e se, o banco preencher a livrança avalizada e os acionar por valor em dívida pela sociedade “V, Lda.”, então já por um valor substancialmente inferior.
Em suma, julgamos que improcedem todas as conclusões que suportam apreciação diversa da exposta, devendo por isso a sentença recorrida ser confirmada integralmente.
As custas são pelo Recorrente, em função do seu decaimento total neste recurso (cfr. Art. 527.º do C.P.C.).

V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, por não provada, confirmando a sentença recorrida.
- Custas pelo Apelante (Art. 527º n.º 1 do C.P.C.).
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Lisboa, 23 de setembro de 2025
Carlos Oliveira
Alexandra de Castro Rocha
Paulo Ramos de Faria