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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
Sumário
(da responsabilidade da Relatora) Sumário: I. Uma das coisas que distingue o crime de violência doméstica do crime de ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças, conferindo àquele uma maior moldura penal e carácter público é a maior abrangência dos bens jurídicos protegidos por aquele tipo legal como sejam, para além da integridade e saúde física e psíquica, a salvaguarda da dignidade da pessoa humana do ofendido, como sujeito enfraquecido em relação ao agressor. II. No caso dos autos, atendendo ao que ficou provado, efectivamente, a ofensa ocorreu num dia concreto e na sequência de o arguido ter ficado convencido que o assistente o havia traído. III. Não ficou provado que o arguido actuou com o propósito conseguido e reiterado de humilhar e maltratar o assistente. IV. A situação descrita ocorreu num contexto específico e como uma manifestação de raiva, impulsiva, e não com um propósito reiterado de humilhar e/ou rebaixar. V. Dados os factos considerados provados, bem andou o tribunal a quo em considerar estar em causa um crime de ofensa à integridade física e não de violência doméstica. VI. No que concerne às expressões injuriosas que terão sido proferidas naquele mesmo dia, conforme se cita, e bem, na sentença em crise, de acordo com o recente Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 9/2024 do Supremo Tribunal de Justiça “O Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da acção penal e o assistente a legitimidade para a prossecução processual, nos casos em que, a final do julgamento, por redução factual de acusação pública por crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152º, nº 1, do Código Penal, são dados como provados os factos integrantes do crime de injúria p. e p. no artigo 181º, nº 1, do Código Penal, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público.” VII. Nos presentes autos, o assistente não acompanhou a acusação pública deduzida pelo Ministério Público, pelo que não poderia o arguido ser condenado pela prática deste mesmo crime, e muito menos pela prática do crime de acesso ilegítimo, p.p. no artigo 6º da Lei do cibercrime, ou do crime de dano, porquanto os factos que seriam pertinentes para a condenação pela prática daquele primeiro crime não resultaram provados e no caso do crime de dano, o único facto provado a este respeito diz respeito ao derramar de lubrificante na cama, que é insuficiente para o preenchimento deste ilícito típico.
Texto Integral
Acordam em Conferência os Juízes da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
1. Relatório:
Nos autos de Processo n.º 1160/23.8 PALSB-L1 foi proferida sentença na qual foi decidido:
a) Absolver o(a) arguido(a) AA da prática, como autor(a), de um crime de violência doméstica, p. e p. no art.º 152º, n.ºs 1, alínea b), 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal;
b) Condenar o(a) arguido(a) AA pela prática, como autor(a), de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. no art.º 143º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo a quantia global de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros). Não conformado com tal acórdão, veio o assistente BB, nos autos melhor identificado, interpor recurso para este Tribunal, juntando para tanto as motivações que constam dos autos, e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, concluindo nos seguintes termos, que se transcrevem:
A - Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls. (…), que julgando parcialmente improcedente a acusação, absolveu o arguido, AA, da prática de um crime de violência doméstica, p.e.p. no artigo 152º, n.º 1 alínea b), 2, alínea a), 4 e 5 do Código Penal, condenando o arguido, ao invés, como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. no artigo143º, n.º 1 do Código Penal, na pena de noventa dias de multa à razão diária de €5,00 (cinco euros).
O presente recurso versa matéria de facto e de direito.
B- Da análise da acta da audiência de julgamento de dia ... de ... de 2025, resulta evidente a menção à presença, na qualidade de testemunha de defesa, de CC; Na mesma acta é consignado que a referida testemunha prestou o seu depoimento entre as 12H59m e as 13h09m, assim como que o seu depoimento “…foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste tribunal”; e na motivação da decisão de facto, também o douto tribunal a quo alude ao depoimento da dita testemunha, todavia o depoimento da aludida testemunha não se encontra entre a prova gravada.
C- Confrontado o registo das sessões gravadas relativas ao dia .../.../2025, disponíveis na plataforma citius, é manifesta a ausência de registo da prova (artºs 363º e 364º, nº1 do CPP), no que tange ao depoimento da testemunha CC; Nulidade que se assaca, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 119º e 120º, nº 1 ambos do Código de Processo Penal.
DA OMISSÃO DE FUNDAMENTAÇÃO:
D- O tribunal a quo, ao carrear para a douta sentença a matéria que indica como não provada, apresenta unicamente como fundamento para tanto, de forma genérica e superficial, o encontrar-se a factualidade não assente “…em contradição com aquela que ficou assente ou não foi produzida qualquer prova ou esta foi julgada insuficiente.” Fundamento, esse, que estende a toda a factualidade que carreou para os factos não provados, não vislumbrado o Recorrente, na douta sentença, referência a qualquer outra “explicação”, elucidação ou exposição dos motivos que consubstanciam a convicção e decisão do douto tribunal.
E- In casu, e salvo o devido respeito por melhor e douta opinião, aquela referência ecuménica a que a factualidade não assente é a que está “…em contradição com aquela que ficou assente ou não foi produzida qualquer prova ou esta foi julgada insuficiente” não respeita a previsão legal ínsita no n.º 2 do artigo 374.º do CPP, pois que, da leitura e análise da mesma, não afigura o Recorrente quais os motivos, afinal, para ter aquela matéria factual sido dada como não provada, pelo que, de acordo com as disposições combinadas da alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º e do n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, a douta sentença padece, no aludido segmento, de nulidade atenta a falta de fundamentação.
DO ERRO DE JULGAMENTO E DA INCORRECTA APRECIAÇÃO E VALORAÇÃO DA PROVA PRODUZIDA EM JULGAMENTO:
DA MATÉRIA CARREADA PARA A ALÍNEA A) DOS FACTOS NÃO PROVADOS:
F - Entendeu o douto tribunal a quo carrear para a factualidade não provada que: “O arguido e o assistente coabitaram durante cerca de três meses, como se fossem casados um com o outro;”. TODAVIA, resulta do depoimento do assistente, a instâncias da Meritíssima Juiz, que o mesmo confirmou que coabitou com o arguido, mais ou menos a meio da relação de ambos, o que situou temporalmente entre os meses de ... do ano de 2023.- Neste sentido e para cabal esclarecimento do supra expendido, veja-se o depoimento do assistente - cfr acta da audiência de julgamento de dia .../.../2025, e gravação áudio com início pelas 11h27m e termo pelas 12h12m- que se transcreve parcialmente em sede de desenvolvimento, para que se remete por economia de meios e que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
G- O assistente foi perentório em confirmar a situação de coabitação com o arguido. Matéria que não infirmada pelo depoimento de qualquer outra testemunha [e cujo depoimento se encontre gravado – ressalvando-se nesta sede o expendido supra em II – A.1) quanto à testemunha CC], prova documental ou pericial que haja sido produzida ou analisada em julgamento.
H - Destarte, e salvo o devido respeito, por melhor e douta opinião, entende o Recorrente que o tribunal “a quo” não valorou o seu depoimento, dado que a prova produzida impunha respostas diferentes aos factos ou a parte deles e, consequentemente, ditava uma decisão diversa daquela que foi produzida nos presentes autos, desde logo quanto à aludida coabitação. O tribunal “a quo” julgou assim incorrectamente os factos melhor acima explanados.
I- Mal andou o tribunal “a quo”, lavrando em erro de julgamento, o que resulta quer do texto da decisão que ora se põe em crise, quer do explanado supra, o que inquina de nulidade o aludido segmento da douta decisão ora posta em crise. Como tal, e com os fundamentos explanados supra, reapreciada que seja a matéria de facto, mister é concluir que deve ser determinada a sua alteração, determinando-se que a matéria constante da aludida alínea a) dos factos não provados seja, ao invés, aditada aos factos provados, uma vez que a factualidade representada na mesma resulta sustentada nos elementos de prova dos autos.
J- COM OS FUNDAMENTOS MELHOR EXPENDIDOS SUPRA, DEVE A PRESENTE DECISÃO SER REVOGADA E SUBSTITUÍDA POR OUTRA ONDE SE MOSTRE ADITADA À MATÉRIA PROVADA OS FACTOS QUE INFRA SE ENUMERAM: O arguido e o assistente coabitaram durante cerca de três meses, entre ..., como se fossem casados um com o outro.”
Sem prescindir
Nem conceder,
DA MATÉRIA ÍNSITA NAS ALÍNEAS B) E C) DOS FACTOS NÃO PROVADOS:
K - Entendeu o douto tribunal a quo não resultar provado que:
”b) O arguido não tinha autorização para aceder aos sistemas operativos de dispositivos electrónicos pertença do assistente, o que sabia;” e “c) No dia ........2023 o arguido actuou nos termos vertidos na alínea e) dos factos assentes contra a vontade do assistente, o que sabia;”
L- Salvo devido respeito, que é muito, entende o Recorrente laborar o douto tribunal em erro na apreciação da prova produzida em julgamento e na análise que da mesma faz, no que tange à aludida situação, atendendo ao depoimento do Assistente, é patente que o mesmo esclarece que após desentendimentos com o arguido, que situa terem ocorrido no mês de ..., lhe disse para parar de aceder aos seus equipamentos electrónicos. - Neste sentido e para cabal esclarecimento do supra expendido, veja-se o depoimento do assistente - cfr acta da audiência de julgamento de dia .../.../2025, e gravação áudio com início pelas 11h27m e termo pelas 12h12m- que se transcreve parcialmente em sede de desenvolvimento, para que se remete por economia de meios e que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos - Pelo que, no dia ... de ... de 2023 – data posterior ao aludido mês de ... – o arguido acedeu ao tablet do Assistente após as instâncias do mesmo para que o mesmo não o fizesse.
M- Salvo o devido respeito, por melhor e douta opinião, entende o Recorrente que o tribunal “a quo” não valorou o seu depoimento, dado que a prova produzida impunha respostas diferentes aos factos ou a parte deles e, consequentemente, ditava uma decisão diversa daquela que foi produzida nos presentes autos, desde logo quanto ao acesso ilegítimo do arguido aos dados constantes dos equipamentos electrónicos do assistente.
O tribunal “a quo” julgou assim incorrectamente os factos melhor acima explanados.
N- Mal andou o tribunal “a quo”, lavrando em erro de julgamento, o que resulta quer do texto da decisão que ora se põe em crise, quer do explanado supra, o que inquina de nulidade o aludido segmento da douta decisão ora posta em crise. Erro de julgamento da matéria de facto aferido pelo confronto da apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova constante do art. 127.º do CPP.
O- Como tal, e com os fundamentos explanados supra, reapreciada que seja a matéria de facto, mister é concluir que deve ser determinada a sua alteração, determinando-se que a matéria constante das aludidas alíneas b) e c) dos factos não provados seja, ao invés, aditada aos factos provados, uma vez que resulta sustentada nos elementos de prova dos autos.
P- DEVE A PRESENTE DECISÃO SER REVOGADA E SUBSTITUÍDA POR OUTRA ONDE SE MOSTRE ADITADA À MATÉRIA PROVADA OS FACTOS QUE INFRA SE ENUMERAM:
“- Pelo menos a partir de dia não concretamente determinado do mês de ..., o arguido não tinha autorização para aceder aos sistemas operativos de dispositivos electrónicos pertença do assistente, o que sabia;
- No dia ........2023 o arguido actuou nos termos vertidos na alínea e) dos actos assentes contra a vontade do assistente, o que sabia;”
DA MATÉRIA ÍNSITA NA ALÍNEAS H) DOS FACTOS NÃO PROVADOS:
Q- Entendeu o douto tribunal a quo carrear para a factualidade não provada que “h) Além do vertido na alínea s) dos factos assentes o arguido actuou com o propósito conseguido e reiterado de humilhar e maltratar o assistente.”
R- Resulta patentemente provado – vide, entre o mais, os pontos i), m) e n) os factos provados – que o arguido apodou o assistente, para além de “puta”, de “estúpido”, “porco”, “nojento”, “puta”, “sacana” e “badalhoco” e cuspiu no rosto do assistente, desferiu uma bofetada na face esquerda do mesmo, a que acresce a conduta do arguido, visando o Assistente, descrita nas alíneas g) e h) da matéria assente, que se transcreve em sede de desenvolvimento, para que se remete por economia de meios e que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos; O Assistente descreveu a forma como o arguido o identificou na dita publicação, o que resulta confirmado também pelas declarações do próprio arguido.- Neste sentido e para cabal esclarecimento do supra expendido, veja-se o depoimento do assistente, cfr acta da audiência de julgamento de dia .../.../2025, e gravação áudio com início pelas 11h27m e termo pelas 12h12m, que se transcreve parcialmente em sede de desenvolvimento, para que se remete por economia de meios e que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos ; e as declarações do arguido - cfr acta da audiência de julgamento de dia .../.../2025, e gravação áudio com início pelas 10h34m e termo pelas 11h27m- que se transcreve parcialmente, em sede de desenvolvimento, para que se remete por economia de meios e que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
S- Concatenando o depoimento do assistente, as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas DD e EE, resulta provado ainda que, durante o tempo em que mantiveram uma relação, arguido e assistente discutiam com frequência, comportamento motivado pelos ciúmes do arguido e pela tentativa pelo mesmo de exercer controlo sobre o assistente e que o arguido modificou o seu comportamento, apresentando-se agitado, inseguro, nervoso e alterado. O que resulta manifesto do depoimento da testemunha EE cfr acta da audiência de julgamento de dia .../.../2025, e gravação áudio com início pelas 13h08m e termo pelas 13h46m- que se transcreve parcialmente em sede de desenvolvimento, para que se remete por economia de meios e que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos- e da testemunha DD - cfr acta da audiência de julgamento de dia .../.../2025, e gravação áudio com início pelas 12h13m e termo pelas 12h42m- que se transcreve parcialmente em sede de desenvolvimento, para que se remete por economia de meios e que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
T- Em sede de fundamentação da douta sentença, no que à aludida matéria respeita, entende o douto tribunal a quo existir “…. apenas a publicação pelo arguido no seu próprio perfil de um vídeo cujo enredo para terceiros é necessariamente dúbio sobre pretender descrever actuação do assistente e, portanto dirigir-se ao mesmo…”. No que, cremos, também nesta sede laborar em erro na apreciação e análise da factualidade em causa porquanto o arguido identifica o assistente na publicação, que é um vídeo em que um indivíduo apoda outro, repetidamente, de “puta”. A conduta do arguido de inserir na publicação a identificação do Assistente, analisada à luz das regras da experiência comum, revela ser indubitavelmente intenção do arguido qualificar o Assistente de “puta”, publicamente, e cujo prática levou a cabo através de meio que facilita a sua divulgação, i.e., através de conta na rede social instagram, a que tinham acesso, pelo menos, 180 pessoas.
U- Salvo o devido respeito, por melhor e douta opinião, entende o Recorrente que o tribunal “a quo” não analisou e valorou, com o rigor que se impunha, aquelas declarações do arguido e o depoimento do Assistente, dado que a prova produzida impunha respostas diferentes aos factos ou a parte deles e, consequentemente, ditava uma decisão diversa daquela que foi produzida nos presentes autos, desde logo quanto à aludida intencionalidade, ao estado anímico do arguido, ao conhecimento e vontade da realização do tipo objetivo pelo arguido, em suma, ao elementos subjectivo do(s) crime(s) em análise.
O tribunal “a quo” julgou assim incorrectamente os factos melhor acima explanados.
V- Destarte, mal andou o tribunal “a quo”, lavrando em erro de julgamento, que resulta quer do texto da decisão que ora se põe em crise, quer do explanado supra, o que inquina de nulidade o aludido segmento da douta decisão ora posta em crise. Como tal, e com os fundamentos explanados supra, reapreciada que seja a matéria de facto, mister é concluir que deve ser determinada a sua alteração, determinando-se o aditamente à matéria assente, uma vez que resulta sustentada nos elementos de prova dos autos, que o arguido actuou com o propósito conseguido de humilhar o assistente, atingindo-o na sua honra e consideração.
W- COM OS FUNDAMENTOS MELHOR EXPENDIDOS SUPRA, DEVE A PRESENTE DECISÃO SER REVOGADA E SUBSTITUÍDA POR OUTRA ONDE SE MOSTRE ADITADA À MATÉRIA PROVADA OS FACTOS QUE INFRA SE ENUMERAM:
“- Além do vertido na alínea s) dos factos assentes, o arguido actuou com o propósito conseguido de humilhar o assistente e atingi-lo na sua honra e consideração.” SEM PRESCINDIR,
NEM CONCEDER,
POR DEVER DE PATROCÍNIO,
SEMPRE SE DIGA QUE,
DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Y- Discorda, respeitosamente, o Recorrente da integração jurídica levada a cabo pelo tribunal “a quo”, mormente ao julgar parcialmente improcedente a acusação, absolvendo o arguido da prática de um crime de violência doméstica, p.e.p. no artigo 152º, n.º 1 alínea b), 2, alínea a), 4 e 5 do Código Penal, porquanto a factualidade provada evidencia a prática pelo arguido sobre o Recorrente de maus tratos psíquicos e maus tratos físicos: para além de ter atingido a honra e consideração do Assistente e de lhe ter causado lesão na sua integridade física, com as descritas condutas adoptadas o arguido também violou a liberdade de determinação e de decisão daquele e causou dano nos seus bens; condutas que, pela sua gravidade, não se reconduzem à mera soma dos diversos ilícitos típicos como sejam ofensas à integridade física, injúrias ou difamação, dano ou acesso ilegítimo aos equipamentos electrónicos do Assistente.
Z- O comportamento do arguido, pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre o Assistente, e vistas as atitudes e as reações deste perante esse comportamento, implica o propósito e a concreta verificação de constrangimento do Assistente, de controlo do Assistente pelo Arguido, de humilhação e vergonha do aqui Recorrente, e assim um atentado, relevantemente maltratante, à dignidade do mesmo; o arguido manifestou desprezo, desejo de humilhar e especial desconsideração pela vítima. Não há, pois, como não afirmar o comprometimento da dignidade da pessoa do Assistente no âmbito do relacionamento mantido com o Arguido.
AA- Entende o Recorrente que a factualidade dada como provada – e aquela ela qual se pugna integre a matéria assente - representa, no contexto do relacionamento interpessoal vivenciado por Recorrente e arguido, um potencial de agressão que supera a proteção oferecida pelos também tipificados crimes de ofensas à integridade física simples, injúrias, difamação, dano e acesso ilegítimo, quando considerados isoladamente, impondo-se assim que o tribunal “a quo” procedesse ao enquadramento jurídico da matéria assente no tipo legal previsto no artigo 152º do Código Penal. Não o fazendo, mal andou o tribunal “ a quo”, incorrendo em erro de julgamento quanto ao enquadramento jurídico da factualidade provada. AB- Ainda que, doutamente, se não entenda pelo enquadramento jurídico da factualidade dada como provada – e daquela pela qual o Recorrente pugna seja integrada na matéria assente - no tipo legal previsto no artigo 152º do Código Penal – o que não se concede e por mero dever de patrocínio se enuncia – sempre se diga que é indubitável que tal factualidade sempre integraria a prática pelo arguido dos seguintes crimes:
- dano, p. e p. no n.º 1 do artigo 212º do CP
- acesso ilegítimo, p. e p. artigo 6º da Lei do Cibercrime
- difamação agravada, nos termos conjugados do disposto no n.º 1 do artigo
180º, n.º 1 do artigo 181º e alínea a) do artigo 183º todos do CP
Porquanto,
- o arguido e o assistente mantiveram relacionamento de namoro durante cerca de um ano, ao longo do qual, em várias ocasiões, de número não concretamente apurado, o arguido acedeu aos sistemas operativos de dispositivos electrónicos pertença do assistente, nomeadamente seu telemóvel, computador e tablet, examinando o registo das comunicações mantidas pelo assistente com terceiros;
- Pelo menos a partir de dia não concretamente determinado do mês de ..., o arguido não tinha autorização para aceder aos sistemas operativos de dispositivos electrónicos pertença do assistente, o que sabia; - no dia ........2023, um pouco antes das 19H00, o arguido se encontrava na residência do assistente, que não estava em casa e o arguido acedeu ao sistema operativo do tablet do assistente e, contra a vontade do assistente, examinou o respectivo conteúdo;
- de seguida, utilizando dispositivo eletrónico, o arguido publicou registo videográfico de terceiros no seu próprio perfil da rede social Instagram onde num contexto de traição entre casal o traído apodava o traidor, em inglês, de “puta”, ali o deixando disponível para que qualquer dos seus amigos nesse seu perfil - em número não inferior a 180 - pudessem visualizar;
- o arguido pretendia referir-se ao assistente com esse contexto e essa expressão usada no vídeo; - após, utilizando pensos rápidos, o arguido formou a palavra “puta” num quadro existente no quarto do assistente, assim pretendendo aludir ao assistente; - o arguido derramou lubrificante sobre a cama do assistente, inutilizando as roupas de cama e sujando o colchão; assim como inutilizou todos os produtos de higiene, incluindo perfumes, champôs, gel de duche, cremes de cara, cremes de corpo do assistente, que assim se viu compelido a substitui-los e ainda inutilizou o computador do Assistente.
AC- Destarte, face ao exposto supra, era imperativo que o tribunal “a quo” procedesse ao enquadramento jurídico da matéria assente nos aludidos tipos legais de dano, p. p. artigo n.º 1 do artigo 212º do CP, acesso ilegítimo, p. e p. artigo 6º da Lei do Cibercrime e difamação agravada, nos termos conjugados do disposto no n.º 1 do artigo 180º, n.º 1 do artigo 181º e alínea a) do artigo 183º todos do CP; E, para além da condenação pelo crime de ofensas à integridade física simples p. e p. no artigo 143º, n.º 1 do Código Penal, condenasse ainda o arguido pela prática destes aludidos crimes.
AD- Não o fazendo, e omitindo pronúncia sobre a factualidade ora em causa e o seu enquadramento jurídico nos tipos legais a que aludimos supra, mal andou o tribunal “ a quo”, incorrendo em erro de julgamento quanto ao enquadramento jurídico da factualidade provada.
AE- E, bem assim, nos mesmos termos e com idêntico fundamento, omitindo o douto tribunal a quo pronúncia sobre a factualidade ora em causa e o seu enquadramento jurídico nos tipos legais a que aludimos supra, questões sobre as quais indubitavelmente está legalmente vinculado a conhecer, incorreu em omissão de pronúncia, o que inquina de nulidade a douta sentença recorrida, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, o que se invoca para os devidos e legais efeitos.
AF- Face ao exposto, a decisão recorrida, ao decidir em sentido diverso ao ora expendido, para além de outras normas e princípios violou o disposto nos artigos 14º, 40.º, 71.º, 143º, 152º, 180º, 181º, 183º e 212º todos do C.P., o artigo 6º da Lei do Cibercrime e os artigos 18.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa.
TERMOS EM QUE, REQUER-SE A V. EXAS. que concedam provimento ao presente recurso e, consequentemente revoguem a decisão recorrida, substituindo-a por outra onde se mostre aditada à matéria provada os factos que infra se enumeram: “- O arguido e o assistente coabitaram durante cerca de três meses, entre ..., como se fossem casados um com o outro.” - “- Pelo menos a partir de dia não concretamente determinado do mês de ..., o arguido não tinha autorização para aceder aos sistemas operativos de dispositivos electrónicos pertença do assistente, o que sabia;
- No dia ........2023 o arguido actuou nos termos vertidos na alínea e) dos factos assentes contra a vontade do assistente, o que sabia;”
“- Além do vertido na alínea s) dos factos assentes, o arguido actuou com o propósito conseguido de humilhar o assistente e atingi-lo na sua honra e consideração.”
SEM CONCEDER,
À CAUTELA, POR DEVER DE PATROCÍNIO,
QUANDO ASSIM DOUTAMENTE SE NÃO ENTENDA,
Declarem nula a douta decisão recorrida, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 119º ,120º n.º1, 363º, 364º, nº1, 374º, 379º e 410º todos do CPP
SEM CONCEDER,
À CAUTELA, POR DEVER DE PATROCÍNIO,
QUANDO ASSIM DOUTAMENTE SE NÃO ENTENDA,
Que V. Exas., revejam o enquadramento jurídico dos factos provados, revogando a douta sentença revidenda e substituindo-a por outra nos termos propugnados e determinando a condenação do arguido pela prática do ilícito típico p. e p. no artigo 152º do Código Penal.
SEM CONCEDER,
À CAUTELA, POR DEVER DE PATROCÍNIO,
QUANDO AINDA ASSIM DOUTAMENTE SE NÃO ENTENDA
No caso de improcedência do alegado supra – o que por dever de patrocínio se enuncia -, Que V. Exas., revejam o enquadramento jurídico dos factos provados, revogando a douta sentença revidenda e substituindo-a por outra nos termos propugnados e determinando a condenação do arguido, pela prática dos ilícitos típicos p. e p. no n.º 1 do artigo 212º do CP, no artigo 6º da Lei do Cibercrime e dos termos conjugados do disposto no n.º 1 do artigo 180º, n.º 1 do artigo 181º e alínea a) do artigo 183º todos do Código Penal, para além da condenação pelo crime de ofensas à integridade física simples p. e p. no artigo143º, n.º 1 do Código Penal. Respondeu o MºPº ao recurso do assistente, pugnando pela manutenção da decisão, concluindo nos seguintes termos:
O assistente, não se conformando com tal decisão, vêm dela interpor recurso, por discordar da sentença em relação aos seguintes pontos : 1.- Erro notório na apreciação da prova, dando determinada matéria de facto como provada, quando tal não reflecte a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e violação do disposto no artigo 127º do CPP.
- O tribunal indicou os meios de prova em que se baseou e explicitou o processo que seguiu para a formação da sua convicção, o que permite aferir das regras e critérios de valoração seguidos, e se o resultado probatório surge como o mais aceitável.
Deste modo, outra não pode ser a conclusão de que o resultado probatório a que chegou a decisão recorrida se mostra consentâneo com a prova produzida.
O Mmº juiz a quo seguiu um processo lógico e racional, observando regras de experiência comum (regras de probabilidade e razoabilidade), sendo a decisão convincente pela explicitação do substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse naquele sentido e pela forma como valorou os diversos meios de prova, indicando a razão porque uns merecem credibilidade em detrimento de outros, não merecendo por isso qualquer reparo.
4- E outra não pode ser a conclusão se não a de que o tribunal apreciou correctamente a prova produzida em audiência e fundamentou com clareza e objectividade a sua convicção, esclarecendo porque conferiu credibilidade a determinados meios de prova em detrimento de outros, em observância das regras que norteiam a apreciação da prova, sendo por isso insusceptível de qualquer crítica.
A decisão recorrida mostra-se lógica, conforme às regras de experiência comum e é fruto de uma adequada apreciação da prova, segundo o princípio consagrado no artº 127º doCPP, pelo que aderimos à exaustiva e criteriosa apreciação feita pelo tribunal, a qual deve ser mantida nos seus precisos termos. Por todo o exposto, a douta sentença recorrida não merece qualquer censura porque fez correcta aplicação do direito à matéria de facto provada, nem violou qualquer disposição legal, designadamente as indicadas pelo recorrente. Mostrando-se adequada, atentas as circunstâncias que se verificam no caso concreto, seguindo os critérios legais, pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos. O arguido AA, respondeu ao recurso, concluindo nos seguintes termos:
O Arguido concorda integralmente com a douta Sentença proferida nos presentes autos, a qual não lhe merece qualquer reparo, pelo que, deve ser integralmente mantida, devendo improceder tudo o alegado e peticionado pelo Assistente, por improcedente, dando-se aqui por reproduzido todo o argumentário acima explanado.
B) Não corresponde à verdade que o testemunho de CC não esteja gravado no sistema informático, aliás, as mesmas constam das gravações disponibilizadas no Citius conjunta e seguidamente ao depoimento da testemunha FF, pelo que, improcede a nulidade invocada.
C) Não se verifica qualquer falta de fundamentação da douta sentença, não merecendo a mesma qualquer reparo, devendo ser integralmente mantida, sendo improcedente a nulidade invocada
D) Não assiste razão ao Assistente quanto à sua impugnação da matéria de facto, devendo, também quanto a esta parte, ser a douta sentença integralmente mantida, tudo conforme argumentário acima explanado, que aqui se dá por reproduzido.
E) A Douta sentença fez a adequada qualificação e integração jurídica dos factos dos autos, pelo que, deve ser integralmente mantida. Neste Tribunal a Ilustre Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Foi cumprido o disposto no artigo artº 417º nº 2 do CPP.
Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se á conferência.
2. Fundamentação:
Cumpre assim apreciar e decidir.
É a seguinte a decisão recorrida (fundamentação de facto e motivação): II - Fundamentação: 2.1. Factos provados: Discutida a causa e produzida a prova, resultam assentes os seguintes factos: a) O arguido e o assistente BB mantiveram relacionamento de namoro durante cerca de um ano, findo em ........2023; b) O assistente residia no ...; c) Ao longo desse relacionamento amoroso, em várias ocasiões, de número não concretamente apurado, o arguido acedeu aos sistemas operativos de dispositivos electrónicos pertença do assistente, nomeadamente seu telemóvel, computador e tablet, examinando o registo das comunicações mantidas pelo assistente com terceiros d) No dia ........2023, um pouco antes das 19H00, o arguido encontrava-se na residência do assistente, que não estava em casa; e) O arguido acedeu ao sistema operativo do tablet do assistente e examinou o respectivo conteúdo; f) O arguido visualizou conteúdo que o deixou convencido de ter sido traído pelo assistente; g) De seguida, utilizando dispositivo eletrónico, o arguido publicou registo videográfico de terceiros no seu próprio perfil da rede social Instagram onde num contexto de traição entre casal o traído apodava o traidor, em inglês, de “puta”, ali o deixando disponível para que qualquer dos seus amigos nesse seu perfil pudessem visualizar; h) O arguido pretendia referir-se ao assistente com esse contexto e essa expressão usada no vídeo; i) Após, utilizando pensos rápidos, o arguido formou a palavra “puta” num quadro existente no quarto do assistente, assim pretendendo aludir ao assistente; j) Seguidamente, o arguido derramou lubrificante sobre a cama do assistente; k) Nessa sequência o arguido sentou-se junto à porta do andar do assistente nas escadas interiores do edifício e aí aguardou pelo assistente; l) Quando o assistente se aproximou da sua casa encontrou o arguido nessas escadas; m) Então, o arguido apodou o assistente de “estúpido”, “porco”, “nojento”, “puta”, “sacana” e “badalhoco”; n) Acto contínuo, o arguido cuspiu no rosto do assistente; o) E depois desferiu, ainda, uma bofetada na face esquerda do mesmo; p) O assistente, em momento não concretamente apurado após o arguido lhe cuspir, colocou as mãos nos ombros do arguido e empurrou-o; q) Como consequência directa e necessária da actuação do arguido o assistente sentiu dores do impacto; r) O arguido sabia que devia particular respeito e consideração ao assistente na qualidade de seu namorado; s) O arguido actuou livre, voluntária e conscientemente, no propósito que logrou alcançar de magoar o assistente, apesar de saber ser proibido e punido o seu comportamento t) O arguido tem como habilitações literárias o 12º ano de escolaridade; frequenta o 2º ano do curso universitário de relações internacionais; vive em ... com os pais, que o sustentam; durante o período de aulas reside em apartamento para estudantes em Lisboa; u) O arguido é tido pelos pais como educado, respeitador, sensível e responsável; v) O arguido não tem antecedentes criminais conhecidos. 2.2. Factos não provados: Com relevância para a decisão da causa, não se provou que: a) O arguido e o assistente coabitaram durante cerca de três meses, como se fossem casados um com o outro; b) O arguido não tinha autorização para aceder aos sistemas operativos de dispositivos electrónicos pertença do assistente, o que sabia; c) No dia ........2023 o arguido actuou nos termos vertidos na alínea e) dos factos assentes contra a vontade do assistente, o que sabia; d) O registo videográfico publicado era do arguido a apodar o assistente de “puta”; e) Qualquer terceiro podia visualizar o vídeo publicado pelo arguido; f) O arguido agarrou o assistente pelos ombros e sacudiu-o; g) O arguido só cessou a sua conduta por intervenção das amigas do assistente, DD e GG; h) Além do vertido na alínea s) dos factos assentes o arguido actuou com o propósito conseguido e reiterado de humilhar e maltratar o assistente. 2.3. Motivação da decisão de facto: A convicção do Tribunal quanto à factualidade provada assentou, desde logo, nas declarações do arguido que admitiu a factualidade vertida nas alíneas a) a i), j) (apenas que colocou no interior da roupa da cama frascos de lubrificante já sujos no exterior com lubrificante), k), l), m) (só quanto à expressão “porco”), o) e p) (mas dizendo que o assistente actuou assim antes de lhe desferir a bofetada). Quanto ao mais, negou-o o arguido afirmando que foi após a factualidade constante da acusação agredido pelo assistente e pelas duas amigas deste. Por outro lado o assistente BB confirmou a factualidade assente, afirmando que de facto empurrou o arguido, mas assegurando que o fez após a bofetada que ele lhe desferiu, negando, ainda, ter traído o arguido (neste pormenor, encolhendo-se na cadeira, deixando alguma dúvida sobre se algo aconteceu ou se apenas a pergunta o deixou constrangido), dizendo inclusive em voz alta a palavra-passe das suas redes sociais, que disse ainda ser a mesma, admitindo que esta (e outras protecções) foi sempre partilhada com o arguido, que fez consigo partilha semelhante. As testemunhas DD e GG, amigas do assistente, apesar de terem estado com o assistente momentos antes de este encontrar o arguido nas escadas, não viram a interacção entre ambos constante da acusação (apenas ouvindo o som equivalente ao estalo e algumas das palavras vertidas na factualidade assente proferidas pelo arguido), assegurando a testemunha HH que quando chegou junto dos mesmos viu o rosto do assistente com cuspe (descrevendo, depois, estas testemunhas a forma como se dirigiram a ambos), ambas confirmando que estiveram no quarto do assistente logo a seguir e aí viram a palavra “puta” construída com os pensos rápidos e a cama com lubrificante entornado. As testemunhas CC, mãe do arguido, e EE, pai do arguido, nada presenciaram, apenas confirmando terem constatado a partilha de palavras-passe (e afins) entre arguido e assistente, fazendo-o de modo crítico, revelando estupefacção, merecendo nisso credibilidade. Com efeito, conjugando as declarações do arguido e as do assistente, que à excepção de pequenos pormenores não são na sua essencialidade divergentes, com os depoimentos das testemunhas inquiridas, não podem subsistir dúvidas sobre a factualidade objectiva assente. Na verdade, o assistente ainda fez referência em ter em momento anterior tido desaguisado com o arguido e lhe dito que não podia mais aceder aos seus dispositivos electrónicos, porém, deixando convicção de que, a ter-lhe tal afirmado, com a sua conduta posterior deixou essa “proibição” esquecida, tanto mais que o arguido explicou o acesso do próprio dia, fazendo-o de forma lógica e conforme a ter essa autorização, arguido, aliás, que prestou declarações assumindo a maioria dos factos assentes, mas nos que negou e se consideraram assentes não sendo sequer peremptório na sua negação. Com efeito, e por exemplo, quanto a cuspir no rosto do assistente o arguido negou-o, mas acabou por dizer que “não recorda” cuspir, o que é revelador que de facto o fez, deixando, assim, a certeza de que, apesar de ter admitido grande parte dos factos, tentou, ainda assim, de alguma forma aligeirar a sua conduta, mas não o sabendo fazer de forma coerente (outro exemplo encontramo-lo no pormenor dos lubrificantes, tendo o arguido dito que só colocou os frascos sujos na cama, sem derramar propositadamente, numa versão sem sentido, além de desmentida pelo assistente e pelas testemunhas amigas deste). No que tange a ter sido o arguido empurrado pelo assistente, ambos o afirmaram, mas em momentos ligeiramente diferentes, o que por ambos ter sido relatado de forma plausível, por in casu - atento o anteriormente executado pelo arguido - sem relevância essencial, não tendo as testemunhas que estavam junto ao local nesse momento visão para a acção, não podemos ter mais do que dúvidas sobre em que exacto momento tal ocorreu (apesar de ter ocorrido nesse episódio). De referir que do relatório pericial de fls. 17 a 18, com base em exame realizado ao assistente (quatro dias após os factos), resulta nenhuma lesão ter sido então encontrada ao assistente quanto aos factos denunciados nos termos do auto de denúncia de fls. 2 a 6, o que se coaduna com a factualidade vertida nos factos assentes. Assim, perante esta prova não podem subsistir dúvidas quanto aos factos objectivos vertidos na factualidade assente. Os factos referentes ao elemento subjectivo resultaram provados também com base nas regras da experiência comum, pois que pertencendo ao foro íntimo do sujeito, o seu apuramento ter-se-á de apreender do contexto da acção desenvolvida. Os factos atinentes às condições pessoais e à situação económica do(a) arguido(a) provaram-se com base nas suas declarações. A factualidade vertida na alínea u) dos factos assentes resultou, ainda, do depoimento das testemunhas CC e EE que, de forma coerente e convicta, a confirmaram. Finalmente, os antecedentes criminais do(a) arguido(a) encontram-se certificados nos autos. * Quanto à demais factualidade não assente, ou a mesma se encontra em contradição com aquela que ficou assente ou não foi produzida qualquer prova ou esta foi julgada insuficiente. Consigna-se que não se fez constar dos factos assentes e não assentes factos conclusivos, bem como matéria irrelevante para a boa decisão da causa ou meramente instrumental para a mesma. O(a) arguido(a) vem acusado(a) da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. no art.º 152º, n.ºs 1, alínea b), e 2, alínea a), do Código Penal. Nos termos deste preceito pratica este crime “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: (…) a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação” [alínea b)]. Prevendo, ainda, a alínea a) do o n.º 2 deste preceito legal, a agravação da pena “se o agente praticar o facto (…) na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima”. “A violência doméstica é um crime público que tem uma dimensão essencialmente privada: apesar de não ser necessária a queixa para se instaurar o inquérito, essa desnecessidade não decorre da prevalência da protecção da comunidade sobre o interesse individual da vítima na existência ou não de resposta punitiva, mas antes de uma tentativa de proteger esse interesse individual contra formas de coerção”, conforme afirma Cláudia Cruz Santos, em Violência Doméstica e Mediação Penal, Julgar, n.º 12 Especial, pág. 74. Trata-se de um crime específico, na medida em que, só pode ser praticado por certas e determinadas categorias de pessoas, no caso concreto pelo cônjuge, ex-cônjuge, pessoa que viva ou tenha vivido com o ofendido em condições análogas às dos cônjuges, pessoa com quem mantenha ou tenha mantido relação de namoro. Como refere Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 1999, pág. 333, ainda a propósito do crime de maus tratos, p. e p. no art.º 152º do Código Penal, na redacção anterior à introduzida pela Lei 59/2007, de 04.09, “a ratio do tipo não está (…) na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. (...) Se, em tempos passados, se considerou que o bem jurídico protegido era apenas a integridade física, constituindo o crime de maus tratos uma forma agravada do crime de ofensas corporais simples, hoje, uma tal interpretação redutora é, manifestamente, de excluir. A ratio desse art.º 152º vai muito além dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos (p. ex., humilhações, provocações, ameaças, curtas privações da liberdade de movimentos, etc.), a sujeição a trabalhos desproporcionados à idade ou à saúde (física, psíquica ou mental) do subordinado, bem como a sujeição a actividades perigosas, desumanas ou proibidas. Portanto deve dizer-se que o bem jurídico protegido por este crime é a saúde - bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental”. Na redacção actualmente em vigor “o código dispensa expressamente a existência de coabitação, o que torna possível a inclusão de situações em que juridicamente a qualificação como «união de facto» seria inviável”, como acentua Teresa Pizarro Beleza, em Colectânea de Textos de Parte Especial de Direito Penal, Violência Doméstica, 2008, pág. 120, acrescentando que “nem a referência à desnecessidade de reiteração, nem a inclusão expressa dos actos designados como «castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais» constavam da versão anterior. Estas inovações estão ligadas à evolução da jurisprudência e às críticas apresentadas durante a discussão pública do projecto (…)”. Aliás, como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.11.2007, em texto integral em www.dgsi.pt, “são objecto da incriminação introduzida pelo tipo condutas de várias espécies que podem ser susceptíveis de, singularmente consideradas, constituírem, em si mesmas, outros crimes, a saber, maus tratos físicos (ofensas corporais simples) e maus tratos psíquicos, humilhações, provocações (que podem envolver ameaças ou injúrias). A actual definição típica inclui agora também para os casos como o presente, castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais o que logo suscita questões de qualificação jurídica, revestindo-se de alguma complexidade determinar se perante a factualidade considerada provada de que se dispuser se deve entender que o agente praticou o crime de maus tratos, ou se praticou, antes, crimes de tipo comum (nomeadamente de ofensas à integridade física)”. Porém, “só as ofensas corporais, ainda que praticadas uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, ou seja, que traduzam crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária da parte do agente é que cabem na previsão do art.º 152º do Código Penal”, conforme se analisa no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.11.1997, CJ, tomo III pág. 235, ou seja, “desde que os mesmos correspondam a actos, isolada ou reiteradamente praticados, reveladores de um tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima”, como se conclui no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26.05.2010, em texto integral em www.dgsi.pt. Considerando os factos que ficaram provados temos de concluir não ser manifestamente este o caso, pois que nada temos além de que o arguido e o assistente BB mantiveram relacionamento de namoro durante cerca de um ano, findo em ........2023; que o assistente residia no ...; que ao longo desse relacionamento amoroso, em várias ocasiões, de número não concretamente apurado, o arguido acedeu aos sistemas operativos de dispositivos electrónicos pertença do assistente, nomeadamente seu telemóvel, computador e tablet, examinando o registo das comunicações mantidas pelo assistente com terceiros; que no dia ........2023, um pouco antes das 19H00, o arguido se encontrava na residência do assistente, que não estava em casa; que o arguido acedeu ao sistema operativo do tablet do assistente e examinou o respectivo conteúdo; que o arguido visualizou conteúdo que o deixou convencido de ter sido traído pelo assistente; que de seguida, utilizando dispositivo eletrónico, o arguido publicou registo videográfico de terceiros no seu próprio perfil da rede social Instagram onde num contexto de traição entre casal o traído apodava o traidor, em inglês, de “puta”, ali o deixando disponível para que qualquer dos seus amigos nesse seu perfil pudessem visualizar; que o arguido pretendia referir-se ao assistente com esse contexto e essa expressão usada no vídeo; que após, utilizando pensos rápidos, o arguido formou a palavra “puta” num quadro existente no quarto do assistente, assim pretendendo aludir ao assistente; que seguidamente, o arguido derramou lubrificante sobre a cama do assistente; que nessa sequência o arguido se sentou junto à porta do andar do assistente nas escadas interiores do edifício e aí aguardou pelo assistente; que quando o assistente se aproximou da sua casa encontrou o arguido nessas escadas; que então, o arguido apodou o assistente de “estúpido”, “porco”, “nojento”, “puta”, “sacana” e “badalhoco”; que, acto contínuo, o arguido cuspiu no rosto do assistente; que depois desferiu, ainda, uma bofetada na face esquerda do mesmo; que o assistente, em momento não concretamente apurado após o arguido lhe cuspir, colocou as mãos nos ombros do arguido e empurrou-o; que como consequência directa e necessária da actuação do arguido o assistente sentiu dores do impacto; que o arguido sabia que devia particular respeito e consideração ao assistente na qualidade de seu namorado; e que o arguido actuou livre, voluntária e conscientemente, no propósito que logrou alcançar de magoar o assistente, apesar de saber ser proibido e punido o seu comportamento. Ora, trata-se de um comportamento por parte do(a) arguido(a) cujos contornos, nos termos assentes, não nos permitem concluir pela existência de um tratamento humilhante ou cruel. Na verdade, temos assente que o arguido actuou no âmbito de uma convicção de ter sido traído pelo arguido e só num determinado dia (no dia ........2023, pois que quanto ao acesso ao longo do namoro - e incluindo nesse dia - aos sistemas operativos de dispositivos electrónicos pertença do assistente, nomeadamente o seu telemóvel, computador e tablet, nada temos assente que o mesmo não tivesse autorização para tanto), no qual temos apenas a publicação pelo arguido no seu próprio perfil de um vídeo cujo enredo para terceiros é necessariamente dúbio sobre pretender descrever actuação do assistente e, portanto dirigir-se ao mesmo, a palavra escrita no quarto do assistente e o lubrificante derramado sobre a cama do assistente (estes actos realizados sem a presença do assistente), as palavras injuriosas dirigidas ao assistente, aqui se incluindo a cuspidela no rosto, e uma bofetada na face que apenas teve como consequência a dor do impacto e a qual não temos assente se ocorreu antes ou depois do assistente empurrar o arguido (embora actuando o assistente em qualquer dos casos após ser cuspido no rosto pelo arguido). Consequentemente, tem o(a) arguido(a) de ser absolvido(a) da prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. no art.º 152º, n.ºs 1, alínea b), e 2, alínea a), do Código Penal, pelo qual vinha acusado(a). Porém, importa aferir se a conduta do(a) arguido(a) vertida na factualidade assente integra os elementos típicos de outro(s) ilícito(s) penal(is), nomeadamente, in casu, a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. no art.º 143º, n.º 1, do Código Penal. * Dispõe o art.º 143º, n.º 1, do Código Penal, que pratica este crime “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa (...)”. Ora, “ofensa do corpo é toda a alteração ou perturbação da integridade corporal, do bem estar físico ou da morfologia do organismo. Ofensa da saúde é toda a alteração ou perturbação do normal funcionamento do organismo”, numa definição de M. Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, 1999, pág. 497. Citando diversas noções d sejam estas ofensas, Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas Santos, Código Penal Anotado, 2000, pág. 225. Analisando o crime em causa, temos, desde logo, que pode ser cometido por qualquer pessoa, não se exigindo qualquer qualificação especial ao sujeito activo. Trata-se de um crime material e de dano, uma vez que abrange “um determinado resultado que é a lesão do corpo ou saúde de outrem, fazendo-se a imputação objectiva deste resultado à conduta ou à omissão do agente de acordo com as regras gerais. Estamos também perante um tipo legal de realização instantânea, bastando para o seu preenchimento a verificação do resultado descrito”, como esclarece Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 1999, pág. 204. Ora, temos como assente que o(a) arguido(a) desferiu uma bofetada na face esquerda do mesmo e que como consequência directa e necessária da actuação do arguido o assistente sentiu dores do impacto. No que tange ao tipo subjectivo, deparamo-nos com um crime que exige dolo relativamente às ofensas provocadas no corpo ou saúde do(a) ofendido(a), dolo em qualquer das suas modalidades. Resultou provado que o(a) arguido(a) quis levar a cabo tal conduta, magoando o(a) ofendido(a) na sua integridade física, sabendo que a mesma era reprovável. Desta forma, agiu o(a) arguido(a) com dolo directo, nos termos do art.º 14º, n.º 1, do Código Penal, uma vez que, conhecendo o carácter reprovável da sua conduta - elemento intelectual do dolo -, quis levá-la a efeito, actuando com vontade de realização - elemento volitivo do dolo. Não existem causas de exclusão da ilicitude nem da culpa. Consequentemente, praticou o(a) arguido(a), em autoria material, um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. no art.º 143º, n.º 1, do Código Penal.
*** As questões colocadas à consideração deste Tribunal são as seguintes:
A. Nulidade decorrente da ausência de registo de prova;
B. Omissão de fundamentação;
C. Erro de julgamento;
D. Enquadramento jurídico penal dos factos.
***
A. Nulidade decorrente da ausência de registo de prova:
No que concerne a esta específica questão, o assistente, através de requerimento de ........2025, prescindiu da sua apreciação, uma vez que se reportava à pretensa ausência de gravação do depoimento de uma testemunha CC - e veio a verificar-se estar tal depoimento efectivamente gravado e disponível no citius ;
B. Omissão de fundamentação;
Nos termos do disposto no artigo 379º, do Código de Processo Penal, é nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º.
3 - Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, exceto em caso de impossibilidade.”
Estatui o artigo 374º nº 2 do Código de Processo Penal, no que respeita à exigência da fundamentação da decisão de facto, que a sentença deve conter “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Na sua motivação, o Tribunal recorrido demonstrou ter feito uma correta aplicação das regras de interpretação e valoração da prova, estando os factos provados e não provados devidamente fundamentados e alicerçados nos meios de prova produzidos em audiência, encontrando-se a matéria de facto fixada de acordo com um raciocínio lógico e coerente.
O tribunal descreveu os depoimentos das testemunhas e explicitou os motivos pelos quais atribuiu, ou não, credibilidade às suas declarações, numa exposição bastante consistente, pormenorizada, sólida e coerente. Valorou e discutiu criticamente os restantes meios de prova.
O tribunal verdadeiramente lançou mão do artigo 127.º, do Código de Processo Penal, de acordo com o qual: salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente e, sem, naturalmente, chegar a qualquer estado de dúvida que justificasse o funcionamento do princípio in dubio pro reo.
Assim, nenhum motivo existe para entender existir alguma nulidade decorrente de falta de exame crítico das provas.
C. Erro de julgamento - saber se o tribunal errou ao considerar como não provados os factos constantes das alíneas A), B), C) e H),
O assistente, relativamente a todos estes factos, que constam do elenco da matéria não provada, alega que o tribunal não valorou com o rigor que se impunha as declarações do arguido e o depoimento do assistente, dado que a prova produzida impunha respostas diversas.
O tribunal descreveu as declarações do arguido e do assistente, os depoimentos das testemunhas e explicitou os motivos pelos quais atribuiu, ou não, credibilidade às suas declarações, numa exposição simples, mas suficientemente, pormenorizada, sólida e coerente. Verdadeiramente, fez o tribunal a apreciação crítica da prova, que valorou em determinado sentido, em conformidade com a sua convicção.
É o próprio assistente que afirma que o tribunal ponderou a prova produzida, designadamente as declarações de arguido e assistente, mas que as valorou em sentido que o assistente entende não estar correcto.
Tendo sempre presente que no artigo 412º do CPP se revela que, quando alguém põe em causa a matéria de facto, deve indicar concretamente os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõe decisão diversa da recorrida, cumpre, desde já, dizer que as provas mencionadas devem impor uma decisão diversa da que foi tomada, não se trata de permitir uma outra decisão, mas sim de ela ser imposta pela existência de provas que se mencionam.
Isto é, as provas de que o arguido, neste caso o assistente, se socorre para impugnar a decisão da matéria de facto têm que ser tão inequívocas como inabaláveis no sentido de imporem uma decisão diversa da que foi tomada.
Não se trata de existirem duas interpretações possíveis da prova produzida, tem que haver uma só, a do arguido ou do assistente, que se impõe pela sua evidência, pela sua certeza, pelo seu carácter inequívoco, e que obriga o Tribunal da Relação a revogar a decisão tomada pelo tribunal de primeira instância.
No caso, as provas a que o assistente alude foram tidas em consideração pelo tribunal, que as valorou no sentido descrito, não se detectando qualquer dúvida ou hesitação do tribunal, que de forma muito esclarecedora e escorreita esclareceu e revelou a sua convicção.
A livre convicção é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade, portanto, uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores (Cavaleiro de Ferreira, ob cit. P 11 e 27).
Concluindo, nenhum motivo existe para operar qualquer alteração à matéria de facto dada como provada.
D. Saber se os factos dados como provados integram a prática do crime pelo qual o arguido foi condenado, de ofensa à integridade física, ou o crime de violência doméstica ou ainda, eventualmente, um crime de acesso ilegítimo previsto e punido no artigo 6º da Lei do Cibercrime e um crime de difamação, p.p. no artigo 180º do CP ou de dano, p.p. no artigo 212º do CP;
A este respeito, escreveu-se na sentença, designadamente, o seguinte: Na verdade, temos assente que o arguido actuou no âmbito de uma convicção de ter sido traído pelo arguido e só num determinado dia (no dia ........2023, pois que quanto ao acesso ao longo do namoro - e incluindo nesse dia - aos sistemas operativos de dispositivos electrónicos pertença do assistente, nomeadamente o seu telemóvel, computador e tablet, nada temos assente que o mesmo não tivesse autorização para tanto), no qual temos apenas a publicação pelo arguido no seu próprio perfil de um vídeo cujo enredo para terceiros é necessariamente dúbio sobre pretender descrever actuação do assistente e, portanto dirigir-se ao mesmo, a palavra escrita no quarto do assistente e o lubrificante derramado sobre a cama do assistente (estes actos realizados sem a presença do assistente), as palavras injuriosas dirigidas ao assistente, aqui se incluindo a cuspidela no rosto, e uma bofetada na face que apenas teve como consequência a dor do impacto e a qual não temos assente se ocorreu antes ou depois do assistente empurrar o arguido (embora actuando o assistente em qualquer dos casos após ser cuspido no rosto pelo arguido). Consequentemente, tem o(a) arguido(a) de ser absolvido(a) da prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. no art.º 152º, n.ºs 1, alínea b), e 2, alínea a), do Código Penal, pelo qual vinha acusado(a). Porém, importa aferir se a conduta do(a) arguido(a) vertida na factualidade assente integra os elementos típicos de outro(s) ilícito(s) penal(is), nomeadamente, in casu, a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. no art.º 143º, n.º 1, do Código Penal. Ora, temos como assente que o(a) arguido(a) desferiu uma bofetada na face esquerda do mesmo e que como consequência directa e necessária da actuação do arguido o assistente sentiu dores do impacto. No que tange ao tipo subjectivo, deparamo-nos com um crime que exige dolo relativamente às ofensas provocadas no corpo ou saúde do(a) ofendido(a), dolo em qualquer das suas modalidades. Resultou provado que o(a) arguido(a) quis levar a cabo tal conduta, magoando o(a) ofendido(a) na sua integridade física, sabendo que a mesma era reprovável. Desta forma, agiu o(a) arguido(a) com dolo directo, nos termos do art.º 14º, n.º 1, do Código Penal, uma vez que, conhecendo o carácter reprovável da sua conduta - elemento intelectual do dolo -, quis levá-la a efeito, actuando com vontade de realização - elemento volitivo do dolo. Não existem causas de exclusão da ilicitude nem da culpa. Consequentemente, praticou o(a) arguido(a), em autoria material, um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. no art.º 143º, n.º 1, do Código Penal (,,,) Uma vez que ficou igualmente assente que o(a) arguido(a), utilizando dispositivo eletrónico, publicou registo videográfico de terceiros no seu próprio perfil da rede social Instagram onde num contexto de traição entre casal o traído apodava o traidor, em inglês, de “puta”, ali o deixando disponível para que qualquer dos seus amigos nesse seu perfil pudessem visualizar, pretendendo referir-se ao assistente com esse contexto e essa expressão usada no vídeo; que utilizando pensos rápidos o arguido formou a palavra “puta” num quadro existente no quarto do assistente, assim pretendendo aludir ao assistente; que o arguido apodou o assistente de “estúpido”, “porco”, “nojento”, “puta”, “sacana” e “badalhoco”; e que o arguido cuspiu no rosto do assistente, importa referir que no que tange à prática de um crime de injúria, p. e p. nos art.ºs 181º, n.º 1, e 182º do Código Penal, mas também de um crime de difamação, p. e p. nos art.ºs 180º, n.º 1, e 183º, alínea a), do Código Penal, temos que o respectivo procedimento criminal depende de acusação particular, de harmonia com o disposto no art.º 188º, n.º 1, do Código Penal. Acresce que, preceitua o art.º 50º, n.º 1, do Código de Processo Penal, “quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular”. Ora, tendo-se embora o(a) ofendido(a) constituído assistente, não tendo deduzido acusação particular (nem à mesma tendo aderido ou não o tendo feito tempestivamente), não pode existir procedimento criminal e o(a) arguido(a) ser condenado(a) pela prática de tal(is) crime(s), aliás, na esteira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2024, publicado no DR n.º 131/2024, 1ª Série, de 09.07.2024, que fixou a seguinte jurisprudência: “O Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da ação penal e o assistente a legitimidade para a prossecução processual, nos casos em que, a final do julgamento, por redução factual de acusação pública por crime de violência doméstica p. e p. no art.º 152º, n.º 1, do Código Penal, são dados como provados os factos integrantes do crime de injúria p. e p. no art.º 181º, n.º 1, do Código Penal, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público”
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O artigo 152º, n.º1 do CP, estatui hoje que:
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima (…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício das responsabilidades parentais(…) por um período de um a dez anos.
Convém dizer que o artigo 152º está integrado no título dedicado aos crimes contra as pessoas.
Já no que se referia ao anterior crime de maus tratos, dizia Américo Taipa de Carvalho, no Comentário Conimbricense ao Código Penal, tomo I, p. 332, que a ratio do tipo está não na protecção da família ou da sociedade conjugal mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana.
No entender deste autor, o bem jurídico protegido por este crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos (…) que afectem a personalidade do cônjuge.
Convém recordar que a nossa jurisprudência já antes de 2007 se encaminhava no sentido de que bastava um único acto para que houvesse um crime de maus-tratos.
Já no Acórdão do STJ de 14.11.97, in CJ III, p. 235 se podia ler que só as ofensas corporais, ainda que praticadas uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade ou seja, que traduzam crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária por parte do agente é que cabem na previsão do artigo 152º do CP.
Sendo assim, na esteira do Acórdão da Relação do Porto de 26.05.2010, relatado pelo Sr. Desembargador Joaquim Gomes, acessível em www.dgsi.pt, podemos assentar que no actual crime de violência doméstica da previsão do artigo 152º do CP, a acção típica aí enquadrada tanto pode revestir maus tratos físicos, como sejam as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, nomeadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou maus tratos, como sejam as ofensas sexuais e as privações de liberdade, desde que os mesmos correspondam a actos, isolada ou reiteradamente praticados, reveladores de um tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima.
A função deste artigo é prevenir as frequentes e, por vezes, tão subtis e camufladas formas de violência no âmbito da família. Neste sentido, a necessidade prática da criminalização das espécies de comportamentos descritos no art. 152º, alínea a) resultou da consciencialização ético-social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos. A neocriminalização, no sentido de que a disposição deste artigo é algo de relativamente recente, não significa novidade ou maior frequência deles, nos tempos actuais, mas sim uma saudável consciencialização da inadequação e da gravidade e perniciosidade desses comportamentos, de uma consciencialização recente da violência conjugal como problema social.
O crime de violência doméstica pressupõe um agente, um sujeito activo que se encontra numa determinada relação para com o sujeito passivo, a vítima, daqueles comportamentos. Assim sendo, estamos perante aquilo a que se chama um crime específico.
Este denominado crime específico será impróprio ou próprio, consoante as condutas por si mesmas consideradas já constituam crime (estamos a lembrar-nos dos maus tratos físicos, sinónimo de ofensa à integridade física simples, de algumas formas de maus tratos psíquicos, como por exemplo, ameaças, injúrias ou difamações) ou não configurem em si mesmas qualquer tipo de crime.
As condutas previstas e punidas por este artigo podem ser de duas espécies: maus tratos físicos (ofensas à integridade física simples) e maus tratos psíquicos (ameaças, humilhações, provocações, molestações, perseguições).
E estes maus tratos podem ser infligidos de modo reiterado ou não. Anteriormente, à alteração introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro ao Código Penal, o tipo em análise pressupunha implicitamente uma reiteração das respectivas condutas. Um tempo longo entre dois dos referidos actos afastaria o elemento reiteração ou habitualidade. Contudo, existia já uma grande parte da jurisprudência, com a qual concordávamos, que considerava que uma conduta ainda que isolada podia configurar um crime de maus tratos desde que pela sua gravidade pusesse em causa a dignidade humana do cônjuge ofendido – cf. neste sentido Acórdão da Relação de Coimbra de 13/06/2007, in www.dgsi.pt.
O nº 2 do preceito em análise, prevê uma agravação da moldura penal quando os factos forem praticados contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima.
Nos factos típicos integradores do crime de violência doméstica estão contidas as ofensas verbais, físicas e psíquicas, sexuais e também os comportamentos persecutórios.
No Ac da RG de 11/02/2019, processo 1128/16.0PBGMR.G1, in www.dgsi.pt pode ler-se que:
II - No crime de violência doméstica, o comportamento imputado ao agente, normal e tendencialmente, pode ser susceptível de integrar, numa situação de concurso aparente, alguns outros crimes – como os de ofensas corporais simples (art. 143º, n.º 1), de injúria (art. 181º), de ameaça (art. 153º), de coacção (art. 154º), de sequestro simples (art. 158º, n.º 1), de devassa da vida privada [art. 192º, n.º 1. al. b)], de gravações e fotografias ilícitas [art. 199º, n.º 2, al b)] e de perseguição (art. 154º-A, n.º 1) –, que, pela subsunção a uma única previsão legal, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma, acabando por ser unificados naquele único crime (de violência doméstica), que é específico impróprio, pois a qualidade especial do agente ou o dever que sobre ele impende constitui o fundamento da agravação relativamente aos crimes que as condutas já integravam.
Conforme acertadamente se diz na sentença, uma das coisas que distingue o crime de violência doméstica do crime de ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças, conferindo àquele uma maior moldura penal e carácter público é, assim, a maior abrangência dos bens jurídicos protegidos por aquele tipo legal como sejam, para além da integridade e saúde física e psíquica, a salvaguarda da dignidade da pessoa humana do ofendido, como sujeito enfraquecido em relação ao agressor.
No caso dos autos, atendendo ao que ficou provado, efectivamente, a ofensa ocorreu num dia concreto e na sequência de o arguido ter ficado convencido que o assistente o havia traído.
Não ficou provado que o arguido actuou com o propósito conseguido e reiterado de humilhar e maltratar o assistente.
A situação descrita ocorreu num contexto específico e como uma manifestação de raiva, impulsiva, e não com um propósito reiterado de humilhar e/ou rebaixar.
Dados os factos considerados provados, parece-nos, que, efectivamente, bem andou o tribunal a quo em considerar estar em causa um crime de ofensa à integridade física e não de violência doméstica.
No que concerne às expressões injuriosas que terão sido proferidas naquele mesmo dia, conforme se cita, e bem, na sentença em crise, de acordo com o recente Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 9/2024 do Supremo Tribunal de Justiça “O Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da acção penal e o assistente a legitimidade para a prossecução processual, nos casos em que, a final do julgamento,por redução factual de acusação pública por crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152º, nº 1, do Código Penal, são dados como provados os factos integrantes do crime de injúria p. e p. no artigo 181º, nº 1, do Código Penal, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público.”
Nos presentes autos, o assistente não acompanhou a acusação pública deduzida pelo Ministério Público, pelo que não poderia o arguido ser condenado pela prática deste mesmo crime, e muito menos pela prática do crime de acesso ilegítimo, p.p. no artigo 6º da Lei do cibercrime, ou do crime de dano, porquanto os factos que seriam pertinentes para a condenação pela prática daquele primeiro crime, não resultaram provados e no caso do crime de dano, o único facto provado a este respeito diz respeito ao derramar de lubrificante na cama, que é insuficiente para o preenchimento deste ilícito típico.
O recurso do assistente deve, pois, ser julgado improcedente.
3. Decisão:
Assim, e pelo exposto nega-se provimento ao recurso do assistente, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.
Custas pelo assistente que se fixam em 4 UCS.
Notifique.
Lisboa, 24 de Setembro de 2025
Cristina Isabel Henriques
João Bártolo
Rui Miguel Teixeira