LEI DE SAÚDE MENTAL
SESSÃO CONJUNTA
AUDIÇÃO DO REQUERIDO
NULIDADE INSANÁVEL
CONTRADITÓRIO
Sumário

(da responsabilidade do Relator)
I. Sessão conjunta como forma-regra do processo de tratamento involuntário: convocação dirigida ao “requerido” (e não dependente da existência de “internando”), aplicável às decisões iniciais, às revisões e às substituições de regime, por força dos arts. 21.º, 22.º, 23.º, 25.º e 27.º da LSM.
II. Revisão obrigatória bimestral (art. 25.º, n.º 2, LSM) com audição efectiva do requerido, MP, defensor, pessoa de confiança e clínicos, mediante aplicação “correspondente” do art. 22.º, admitindo meios tecnológicos; a prática “de secretaria” frustra a oralidade e o contraditório exigidos.
III. Qualificação jurídico-processual da omissão de sessão/audição como nulidade insanável por falta de acto legalmente obrigatório de garantia, nos termos do art. 37.º LSM e do art. 119.º, al. c), CPP, distinta de irregularidade ou nulidade relativa.
IV. Interpretação conforme à CRP: tutela da liberdade (art. 27.º), integridade pessoal (art. 25.º), processo equitativo e defesa (arts. 20.º e 32.º) e princípio da proporcionalidade (art. 18.º) impõem máxima densidade de garantias também no ambulatório.
V. Delimitação do objecto recursório pelas conclusões (art. 412.º CPP) e exigência de imediação/contraditório para a substituição do internamento por ambulatório (art. 27.º LSM), não bastando a mera valoração documental do relatório clínico.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO
1.1. No processo n.º 472/21.0T8PTG, a correr termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Loures - JL Criminal – Juiz 1, em que é recorrido AA, com os demais sinais dos autos, foi proferido o seguinte despacho: (transcrição)
“ (…)
É entendimento da ora signatária que, atento o processado, não haverá necessidade de ocorrer a diligência de sessão conjunta, uma vez que a mesma tem como conditio sine qua non a existência de um(a) internando(a) (cfr. arts. 21.º e 22.º da L.S.M.), o que não sucede neste caso, além de que não permitiria que fosse tomada uma decisão nos moldes previstos no art. 23.º da L.S.M.
Acresce que nada obsta a que, em momento posterior e caso o paciente não cumpra o tratamento em regime ambulatório, venha a ser agendada sessão conjunta sub judice. Assim, atento o relatório de avaliação clínico-psiquiátrica (ref.ª 16621682 e 16685621) que propugna a necessidade de tratamento compulsivo em regime ambulatório, do paciente AA, de modo a que o mesmo possa tomar eficazmente a medicação, o que o mesmo aceitou; tal como promovido, determina-se a substituição do internamento involuntário por tratamento involuntário em regime ambulatório, que deverá continuar a ser revisto nos termos do art. 25.º (sob “revisão da decisão”) ex vi art. 27.º (sob a epígrafe “substituição do internamento”, ambos da L.S.M., prosseguindo, desse modo, os autos.
(…)”.
*
1.2. Inconformado, recorreu o MP tendo expendido as seguintes conclusões: (transcrição)
(…)
1. Os presentes autos tiveram origem comunicação remetida pelo Departamento de Psiquiatria do Hospital Dr. José Maria Grande, de Portalegre, através da qual foi informado que AA, que padece de esquizofrenia, havia sido internado compulsivamente, em virtude do mesmo evidenciar, em ........2021, ideação persecutória dirigida a terceiros, discurso delirante, períodos de agitação e heteroagressividade, realidade que consubstanciava um risco significativo para a sua integridade física e vida, vide ref.ª 1814590.
2. De salientar que, no seguimento do exposto, foi junto relatório da avaliação clínico-psiquiátrica, nos termos do art.º 17.º da Lei 36/98 de 24.07, sendo que, não obstante ter sido promovida o agendamento da realização da diligência de sessão conjunta, foi proferido, em ........2021, o seguinte despacho pugnado que, entre o mais, “…Uma vez que o internamento compulsivo foi sufragado pelas duas avaliações clínico-psiquiátricas (a segunda foi efetuada por duas psiquiatras que não procederam à primeira), com fundamentos seguros, convincentes e que não deixam margem para qualquer outra decisão, apresentados por Srs. Peritos Médicos com conhecimentos altamente especializados, dispensa-se, por ora, a realização de sessão conjunta…” (vide ref.ª 30867250):
3. Na sequência do exposto, foi interposto recurso pelo Ministério Público, através do qual, foi promovida a revogação da supramencionada decisão, e por conseguinte, que a mesma fosse substituída, por outra, que determinasse a designação para a realização de sessão conjunta, tendo o mesmo sido, por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora datado de ........2021, sido declarado procedente, e por conseguinte, determinada a nulidade da decisão proferida, vide ref.ª 7420380.
4. De acrescentar que, na sequência da informação prestada pelo Departamento de Psiquiatria do Hospital Dr. José Maria Grande de ..., mais concretamente na sequência da melhoria evidenciada pelo requerido, o internamento compulsivo que o mesmo se encontrava a beneficiar foi alterado por tratamento compulsivo em regime ambulatório, vide ref.ª 1860792 e 31102983.
5. Em nosso entendimento, correctamente, no cumprimento do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, em ........2021, foi efectuada diligência de sessão conjunta, tendo sido, no decorrer desta, determinado que AA continuasse a beneficiar da manutenção de tratamento compulsivo em regime de ambulatório.
6. No seguimento do exposto, e até ao dia ........2025, momento em que foi conduzido ao ..., na sequência da emissão de mandados de condução, emitidos pelo Tribunal a quo, em virtude de ter abandonado a terapêutica que lhe havia sido determinada, AA beneficiou de tratamento compulsivo em regime de ambulatório, sendo que, com a entrada em vigor da nova Lei de Saúde Mental, Lei 35/2023 de ........2025, as revisões a que se referem o art.º 25.º deste mesmo diploma legal, foram efectuadas, nos termos do art.º 22.º, n.º 2 da Lei 35/2023 de 21.07, ou seja, com o formalismo imposto para a realização da diligência da sessão conjunta.
7. De salientar que, em virtude da alteração de morada do requerido, os autos, nos termos e por força do disposto art.º 34.º, n.º 1 al. a) da Lei 35/2023 de 21.07, foram remetidos e distribuídos ao Juízo Local Criminal de Loures – Juiz 1, vide ref.ª 34074974 e 16309504.
8. Na sequência de ofício remetido pelo Unidade Local de Saúde de São José, foi informado que o requerido nos presentes autos, AA, que se encontrava a beneficiar de tratamento involuntário em regime de ambulatório, faltou ao agendamento que se encontrava marcado, sendo que, contactado telefonicamente, exteriorizou um discurso, por vezes, ininteligível, recusando, qualquer contacto com os profissionais de saúde, e por conseguinte, o tratamento que lhe foi proposto, razão pela qual, solicitaram a colaboração do Tribunal para que fosse efectuada nova avaliação-psiquiátrica no Serviço de Urgência, vide ref.ª 16534261.
9. Pelo exposto, foram promovidos e emitidos mandados de condução, nos termos do art.º 27.º, n.º 5 da Lei 35/2023 de 21.07, sendo que, após AA ter sido conduzido à Unidade Local de Saúde de São José, foi informado que o mesmo não manifestava qualquer crítica para a doença psiquiátrica de que padece, mais precisamente, esquizofrenia, recusando reiniciar a terapêutica necessária, pelo que existia um real e efectivo risco para a sua integridade física e de terceiros, razão pela qual concluíram estarem reunidos os pressupostos para o seu internamento compulsivo.
10. De acrescentar que, no seguimento do internamento a que o requerido se encontrou sujeito, segundo informação veiculada através do relatório de avaliação clinico psiquiátrica remetido pelo Departamento de Psiquiatria do Hospital Beatriz Ângelo junta sob a ref.ª 16621682 e 16685621, verificou-se que o mesmo evidenciou melhoria clinica em virtude de ter sido reposta a terapêutica clinica, razão pela qual foi substituído o tratamento involuntário em internamento o por tratamento em ambulatório.
11. No entanto, em ........2025, foi proferido despacho com o seguinte teor: “… Ref.ª 16621682 e 16685621: Tomei conhecimento dos esclarecimentos prestados.
É entendimento da ora signatária que, atento o processado, não haverá necessidade de ocorrer a diligência de sessão conjunta, uma vez que a mesma tem como conditio sine qua non a existência de um(a) internando(a) (cfr. arts. 21.º e 22.º da L.S.M.), o que não sucede neste caso, além de que não permitiria que fosse tomada uma decisão nos moldes previstos no art. 23.º da L.S.M.
Acresce que nada obsta a que, em momento posterior e caso o paciente não cumpra o tratamento em regime ambulatório, venha a ser agendada sessão conjunta sub judice. Assim, atento o relatório de avaliação clínico-psiquiátrica (ref.ª 16621682 e 16685621) que propugna a necessidade de tratamento compulsivo em regime ambulatório, do paciente AA, de modo a que o mesmo possa tomar eficazmente a medicação, o que o mesmo aceitou; tal como promovido, determina-se a substituição do internamento involuntário por tratamento involuntário em regime ambulatório, que deverá continuar a ser revisto nos termos do art. 25.º (sob “revisão da decisão”) ex vi art. 27.º (sob a epígrafe “substituição do internamento”, ambos da L.S.M., prosseguindo, desse modo, os autos.
Notifique os intervenientes.…”.
12. Ora, o Ministério Público não concorda com o teor do supramencionado despacho judicial, uma vez que o mesmo, em nosso entendimento, não só é desprovido de suporte legal, mas também viola o que legalmente se encontra previsto nos art.ºs 25.º ex vi 21.º, n.º 1, 22.º, 27.º ex vi art.º 33.º, todos da Lei 35/2023 de 21.07.
13. Analisados os referidos preceitos legais, em nosso entendimento, não resulta qualquer causa que fundamente a desnecessidade da realização quer da sessão conjunta, quer da diligência de audição prevista no art.º 25.º, n.º 4 da Lei 35/2023 de 21.07, ao invés, verificamos que o tratamento involuntário em regime ambulatório tem subjacente a possibilidade de sujeição do doente a tratamento em regime de internamento, sempre que o requerido deixe de cumprir as condições estabelecidas para o tratamento em ambulatório, mediante comunicação ao tribunal competente.
14. De acrescentar que, em nosso entendimento, o legislador nacional, com a nova Lei de Saúde Mental, além do mais, pretendeu, na realidade, sublinhar e reforçar o regime instituído pela Lei 36/98 de 24.07, no decorrer da qual, o art.º 19.º, n.º 1 dispunha, ao invés da Lei 35/2023 de 21.07, que “…Na sessão conjunta é obrigatória a presença do defensor do internando4 e do Ministério Público…”, sendo que, ao substituir a expressão “internando” ( art.º 19.º, n.º1 Lei 36/98 de 24.07) por “requerido” (art.º 21.º da Lei 35/2023 de 21.07) o legislador pretendeu ultrapassar quaisquer dúvidas ou extinguir práticas judiciárias inadequadas existentes, e por conseguinte, impor, sem qualquer margem para dúvidas, que, em todos os processos de tratamento involuntário, quer o requerido se encontre a beneficiar de tratamento involuntário em regime de internamento ou em regime de ambulatório, teria de ser agendada e realizada a diligência de sessão conjunta.
15. De igual forma, que o art.º 25.º, n.º 4 e n.º 5 da Lei 35/2023 de 21.07, estabelecem, de forma peremptória, que a revisão da decisão “…em lugar com audição do Ministério Público, da pessoa em tratamento involuntário, da pessoa de confiança, do defensor ou mandatário constituído, de um dos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica ou do psiquiatra responsável pelo tratamento e de um profissional do serviço de saúde mental que acompanha o tratamento…”, sendo que, “…É correspondentemente aplicável à audição prevista no número anterior o disposto no n.º 2 do artigo 22.º, e à decisão de revisão o disposto no artigo 23.º…”.
16. Ora, efectuada uma análise a todas as supramencionadas disposições legais, resulta, em qualquer margem para dúvidas, que a sessão conjunta bem como a diligência de audição com vista à revisão da decisão, consubstanciam diligências obrigatórias do processo de tratamento involuntário, as quais deve preceder a decisão final, sendo que, tal obrigatoriedade existe, quer se trate do processo resultante de internamento de urgência, atenta a remissão do art.º 33.º, n.º 3 da Lei 35/2023 de 21.07, aplicando-se a todas as situações de tratamento involuntário, ou seja, quer o requerido se encontre em internamento ou em ambulatório, vide art.ºs 22.º, n.º 3 e 4, 23.º, n.º 2, al. d) e 33.º, n.º 4, todos da Lei 35/2023 de 21.07.
17. Pelo exposto, consideramos que a não realização da diligência de sessão conjunta, bem como diligência de audição para se proceder à revisão da decisão de manutenção do tratamento involuntário consubstanciam uma nulidade insanável, nos termos do art.º 119.°, alínea d), do Código de Processo Penal, aplicável por força do disposto no art.º 37.º, da Lei de Saúde Mental, uma vez que a mesma é obrigatória.
18. De acrescentar que, por força do disposto do art.º 5.º da Lei n.º 35/2023, um dos objetivos da política de saúde mental é promover a titularidade efetiva dos direitos fundamentais das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental e combater o estigma face à doença mental, pelo que, apenas e tão-só através da realização da sessão conjunta tais direitos podem ser, devidamente, acautelados.
19. Assim, consideramos que o despacho recorrido deve ser substituído por outro que determine a realização de diligência de audição para se proceder à revisão da decisão de manutenção do tratamento involuntário, diligência de realização obrigatória, uma vez que apenas mediante a sua realização poderá assegurar-se o respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos requeridos em processos de tratamento involuntário, com a presença obrigatória do defensor ou mandatário constituído e do Ministério Público (cfr. artigos 25.º ex vi 21°, 22°, todos da Nova Lei da Saúde Mental), por forma a acautelar a legalidade do processo e o princípio do contraditório, tendo o Tribunal a quo violado as disposições conjugadas dos artigos 8.º, 14.º, 15.º, 19.º, 20.º, 21.º, 23.º, 27.º, 33.º, n.º 3, da Lei n.º 35/2023 de 21 de Julho (Nova Lei de Saúde Mental), artigo 119.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal.
(…)
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1.3. Inexiste resposta ao recurso interposto.
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1.4. Nesta Relação, o Srº Procurador Geral Adjunto apresentou o seu parecer, aderindo aos fundamentos e pedido constantes do recurso do MP da 1ª Instância.
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1.5. No âmbito do disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, inexistem respostas ao parecer.
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1.6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do citado código.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. O objecto dos recursos definem-se pelas conclusões que os recorrentes extraíram da motivação, de harmonia com o art.º 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
In casu, seguindo as questões elencadas pelo MP recorrente, as questões que importa decidir, são as seguintes:
1. saber se, face à LSM (Lei n.º 35/2023), a sessão conjunta prevista no art. 21.º (com remissão do art. 22.º) constitui diligência necessária apenas quando existe “internando” (situação de internamento) ou sempre que haja “requerido” em processo de tratamento involuntário, incluindo quando vigora tratamento em regime ambulatório, maxime quando está em causa revisão da decisão (art. 25.º).
2. se, em procedimentos de substituição do internamento por ambulatório (art. 27.º), o tribunal pode dispensar a sessão conjunta e/ou a audição das pessoas enunciadas no art. 25.º, n.º 5, sobretudo quando o relatório clínico propende para solução menos gravosa e haja aceitação do tratamento.
3. qual a cadência das revisões obrigatórias (art. 25.º, n.º 2) e as consequências processuais da sua inobservância, designadamente a natureza e regime de nulidade aplicável (insanável? relativa?) e o respectivo fundamento no CPP por via do art. 37.º LSM.
4. conformidade legal da interpretação restritiva adoptada no despacho recorrido, face aos direitos de participação, audição e defesa do requerido (art. 8.º LSM; CRP, arts. 27.º, 32.º, 18.º) e às obrigações internacionais, ainda que a sua força normativa varie.
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2.2. Apreciando
2.3.1. saber se, face à LSM (Lei n.º 35/2023), a sessão conjunta prevista no art. 21.º (com remissão do art. 22.º) constitui diligência necessária apenas quando existe “internando” (situação de internamento) ou sempre que haja “requerido” em processo de tratamento involuntário, incluindo quando vigora tratamento em regime ambulatório, maxime quando está em causa revisão da decisão (art. 25.º).
Assume-se como premissa que a LSM abandonou conscientemente a categoria “internando” como elemento exclusivo da oralidade e da imediação, erigindo a figura do “requerido” como polo de imputação de garantias, para todo o processo de tratamento involuntário, independentemente do modo de execução (internamento ou ambulatório).
Assim, diremos desde já, que a resposta só pode ser afirmativa: a sessão conjunta (art. 21.º) e a audição correspondente (arts. 22.º e 25.º) são diligências-regra em qualquer fase decisória ou de revisão do processo de tratamento involuntário, aplicáveis ao “requerido” sem depender do seu estatuto material de internamento. Neste quadro, o despacho recorrido que condiciona a sessão à existência de “internando”, dispensando-a em função do “regime ambulatório”, incorre em erro de direito por desconsiderar a nova topologia normativa e por anacronismo interpretativo, transpondo para a LSM categorias do regime passado.
Mas vejamos mais em detalhe:
O art. 21.º LSM estatui que, recebido o relatório clínico-psiquiátrico, o juiz designa sessão conjunta e notifica, entre outros, “o requerido”, a pessoa de confiança, o Ministério Público, o defensor e um dos psiquiatras subscritores. A norma não emprega a expressão “internando” como condição de accionamento; emprega, sim, o termo “requerido” como sujeito processual nuclear. A terminologia é decisiva: enquanto “internando” descreve uma situação fáctico-jurídico de privação de liberdade hospitalar, “requerido” é categoria processual que abrange toda pessoa em face da qual corre processo de tratamento involuntário, seja a medida pretendida ou executada em internamento, seja em ambulatório. O art. 22.º detalha as formalidades, reforçando a presença necessária do MP e do defensor e a convocação do psiquiatra, com possibilidade de meios tecnológicos; nada sugere a limitação da sessão ao internamento. O art. 25.º, regulando a revisão — i.e., o momento de reavaliação periódica imperativa da medida — determina, no n.º 5, a audição das mesmas pessoas (requerido, MP, defensor, pessoa de confiança, profissionais clínicos), e, no n.º 6, que “é correspondentemente aplicável” o regime do art. 22.º. A referida correspondência, lida à luz do art. 21.º, reproduz no momento da revisão a mesma gramática de oralidade e imediação, não havendo, no corpo da lei, distinção entre internamento e ambulatório como critérios de dispensa. Em síntese literal: a LSM não condiciona o acto de sessão/audição ao estatuto ontológico de “internando”; a palavra-chave, repetida, é “requerido”, enquanto centro de gravidade das garantias processuais. O despacho recorrido, ao regressar ao vocábulo “internando” como elemento necessário, não considera o texto vigente, mas sim uma terminologia superada pelo legislador de 2023.
A leitura sistemática reclama a visão de conjunto do capítulo procedimental. O art. 21.º inaugura a fase decisória com sessão conjunta, onde se reúnem os sujeitos essenciais sob a direcção do juiz, em ambiente de oralidade e contraditório efectivo. O art. 22.º densifica a estrutura dessa sessão (presenças, meios tecnológicos, ordem das intervenções). O art. 23.º fixa a decisão subsequente, que não é meramente “minutada”: é produto da imediação, pressupondo que o julgador contactou oralmente com requeridos e peritos. O art. 25.º institui um ciclo de revisão bimestral como obrigação do tribunal, evitando a cristalização de medidas restritivas por inércia. E o art. 27.º trata da substituição de regimes (internamento↔︎ambulatório), submetendo-a à lógica de controlo judicial e às garantias do requerido. O encadeamento revela um quadro coerente: seja para decidir originariamente, seja para rever ou substituir, o tribunal actua num processo — não num expediente administrativo — e as decisões devem assentar na audição em sessão, salvo impossibilidade material devidamente justificada. Qualquer leitura que reserve a sessão para a presença de “internandos” converteria as revisões em mero controlo documental, desconsiderando a “correspondente aplicação” do art. 22.º (art. 25.º, n.º 6) e desvalorizando a função epistémica da oralidade (testar prognoses clínicas, escrutinar aderência terapêutica, clarificar condições de acompanhamento comunitário). O sistema da LSM é, pois, unívoco: a sessão não é um ritual condicionado ao internamento, mas a plataforma garantística para toda decisão que restrinja ou prolongue ingerências terapêuticas involuntárias, ainda que domiciliárias ou ambulatórias, porquanto o substrato jurídico — a restrição à autodeterminação e à liberdade de movimentos — subsiste, embora em intensidade diversa.
A teleologia da LSM cruza-se, frontalmente, com o sistema constitucional. As medidas de tratamento involuntário, mesmo em ambulatório, operam num espaço de restrição de direitos fundamentais: liberdade (art. 27.º CRP), reserva da vida privada e autodeterminação terapêutica (derivados da dignidade, art. 1.º, e do direito à integridade pessoal, art. 25.º), e garantias de processo equitativo (art. 20.º) e defesa (art. 32.º, por analogia funcional). O princípio da proporcionalidade (art. 18.º) exige meios menos gravosos e salvaguardas reforçadas quando a ingerência persiste no tempo. A sessão conjunta e a audição não são meros formalismos; são o mecanismo institucional que permite ao juiz confrontar versões, apurar aderência, avaliar alternativas e calibrar a medida, maximizando o tratamento necessário e minimizando a restrição. Interpretar a LSM no sentido de que a sessão só é necessária quando o requerido está fisicamente internado seria conflituar com a teleologia protectora da lei e com a exigência de máxima tutela nos contextos de ingerência, criando uma assimetria insubsistente: quanto menor a restrição (ambulatório), menor a garantia (sem sessão); quanto maior a restrição (internamento), maior a garantia. A Constituição da República Portuguesa não legitima esta interpretação. Ao invés, a presença garantística adere aos momentos decisórios relevantes, incluindo a revisão periódica obrigatória. Daí que a correspondente aplicação do art. 22.º ao art. 25.º, n.º 6, realize a máxima constitucional de que restrições, ainda que mitigadas, reclamam escrutínio judicial com participação efectiva do requerido e do seu defensor. Teleologicamente, pois, a sessão acompanha o “requerido” ao longo do processo, e não apenas o “internando”.
A LSM de 2023 sucede a regimes anteriores em que o léxico “internando/internado” era hegemónico. Esse panorama histórico explicava-se por um modelo centrado na privação de liberdade hospitalar como núcleo da intervenção. O legislador de 2023 opera, porém, dupla deslocação: i) consolida um processo médico-judicial com revisões curtas, impondo um standard de escrutínio periódico; ii) substitui o foco ontológico (“internando”) por um foco processual (“requerido”), transversal a todas as modalidades de execução. Este movimento não é decorativo; visa alinhar o regime com tendências comparadas e com instrumentos internacionais que desencorajam automatismos de hospitalização, promovem cuidados comunitários e exigem salvaguardas processuais equivalentes sempre que subsistam restrições. Ao insistir que a sessão é devida apenas quando há “internando”, o despacho recorrido reintroduz, por via interpretativa, um critério que o legislador escolheu superar, arriscando repor a desigualdade de armas entre o relatório clínico e a palavra do requerido, sobretudo em revisões longas e cumulativas. A história legislativa favorece, por isso, a leitura segundo a qual a sessão conjunta é a forma normal de decidir no processo de tratamento involuntário, não um privilégio reservado a cenários de internamento. A expressão correspondentemente aplicável (art. 25.º, n.º 6) codifica, precisamente, a transposição dessa forma para as revisões, evitando que a oralidade inaugural se evapore na fase mais sensível: a de prolongar, modificar ou substituir a medida.
O primeiro pilar do despacho — a existência de “internando” como condição sine qua non da sessão — falha por inconsistência textual e lógica. Textualmente, os arts. 21.º, 22.º e 25.º falam no “requerido”, jamais condicionando a audição à situação hospitalar. Sistematicamente, o art. 25.º, n.º 5, replica a constelação de presenças em sede de revisão, e o n.º 6 projecta as regras do art. 22.º, sem a cláusula de limitação que o despacho introduz. Logicamente, a condição “internando” gera um paradoxo: quando o tribunal pondera substituir internamento por ambulatório — ou manter/agravar um ambulatório — é precisamente aí que a imediação tem mais rendimento epistémico (escrutínio da adesão, contexto familiar, recursos comunitários). Privar o juiz dessa interacção por inexistir internamento é retirar informação onde ela é mais útil. Em termos de garantias, a tese internando-centrada criaria um desvio: o requerido em ambulatório (que pode estar a cumprir obrigações de frequência, medicação supervisionada, comparecências periódicas) ficaria reduzido a objecto de relatório, sem o espaço dialógico para problematizar efeitos adversos, efeitos de estigmatização, barreiras de acesso ao serviço, ou mudanças de circunstâncias. Em suma, a condição proposta não tem sustentação normativa nem racionalidade no desenho da LSM; é um retrocesso hermenêutico que conflita com a função garantística da sessão.
O segundo pilar — a alegada inutilidade da sessão porque “não permitiria decisão nos moldes do art. 23.º” — incorre em erro de construção. O art. 23.º descreve a decisão subsequente à sessão conjunta, não a exaure nem condiciona a sua convocação ao catálogo decisório inicial. A revisão (art. 25.º) e a substituição (art. 27.º) são momentos decisórios autónomos, que se alimentam do mesmo regime de oralidade e imediação. A LSM não exige que toda sessão culmine numa decisão final pura do art. 23.º; antes impõe que qualquer decisão relevante para a continuidade, modificação ou cessação da medida seja informada pela audição prevista. A utilidade da sessão mede-se pela sua função epistémica e garantística, não pela correspondência exacta a um dispositivo decisório. Ao reputar a sessão “inútil” porque a decisão a proferir seria de substituição por ambulatório, o despacho inverte a lógica da lei: é justamente a decisão de substituir — com impacto directo nos deveres do requerido, no plano terapêutico e nos mecanismos de coerção leve — que carece de audição. Acresce que a “inutilidade” tem, em processo, um ónus argumentativo exigente: deve ser concreta, fundamentada em impossibilidade ou desnecessidade superveniente, e não meramente assertiva. Na ausência dessa demonstração, a dispensa da sessão é arbitrária e viola a estrutura procedimental da LSM.
A revisão não é um favor do sistema; é um dever legal do tribunal com periodicidade curta (dois meses). A arquitectura do art. 25.º torna-a um mini-processo dentro do processo, reiterando as presenças e o contraditório. O n.º 6, ao dizer “é correspondentemente aplicável o disposto no art. 22.º”, é semântico e funcionalmente robusto: transvasa, para o momento da revisão, as regras de convocação, presença e meios tecnológicos da sessão conjunta. A expressão “correspondentemente” não é licença para amputar a oralidade; é um comando de adaptação fiel: aplica-se o regime num contexto de revisão, com as devidas adequações factuais de calendário e conteúdo, não com anulação da forma. O despacho recorrido, ao ler “correspondentemente” como “facultativamente”, remodela o texto normativo. Doutrinariamente, “correspondente aplicação” opera como técnica de remissão dinâmica, garantindo coerência procedimental entre instâncias decisórias. Funcionalmente, cumpre uma dupla finalidade: previne a burocratização das revisões e protege a posição do requerido perante relatórios clínicos potencialmente dominantes. A desconsideração dessa remissão destrói a espinha dorsal do controlo periódico e, por essa via, enfraquece a protecção constitucional contra restrições de longa duração sem audiência efectiva.
A omissão da sessão/audição quando legalmente exigida é um vício de estrutura, não um mero defeito formal. O art. 37.º LSM remete para o CPP “com as necessárias adaptações”, o que, no plano das nulidades, significa aplicar o regime das nulidades insanáveis quando a falta afecte actos em que a presença/audição do sujeito processual é legalmente imposta, por se tratar de garantia indispensável. A alínea c) do art. 119.º CPP — lida de forma consolidada — reconduz-se à ausência do arguido/defensor em actos cuja presença a lei exija. Por adaptação funcional, quando a LSM impõe sessão/audição com presença do requerido, do MP e do defensor (arts. 21.º e 22.º) e replica essa exigência na revisão (art. 25.º, nºs 5 e 6), a decisão tomada sem essa etapa viola um acto obrigatório de garantia e integra nulidade insanável. Não procede a tentativa de enquadramento na alínea d) do mesmo preceito (falta de inquérito/instrução); o vício aqui é de supressão do locus de contraditório oral e imediação que a lei instituiu como condição de legitimidade da decisão terapêutica coerciva. A qualificação como nulidade insanável não é maximalista: é coerente com a intensidade das posições jurídicas afectadas e com o quadro garantístico da LSM. A sanção processual tem, além do efeito invalidante, um propósito pedagógico: reconstituir a centralidade da sessão/audição na tomada de decisão, evitando a deriva documental que a lei de 2023 veio precisamente corrigir.
A exigência de sessão conjunta/audição em ambulatório não é uma bagatela processual; é um investimento de racionalidade decisória e de legitimidade democrática. Em política legislativa, a transição para cuidados comunitários com salvaguardas reforçadas supõe que a voz do requerido e do seu defensor não seja residual. Na praxis, a sessão permite medir os dados qualitativos que o relatório, por natureza, não capta: condições de habitação, rede de apoio, obstáculos logísticos, efeitos adversos, propostas de adesão gradual, papel da pessoa de confiança. Em eficiência sistemática, a oralidade bem dirigida poupa litigância futura e reduz incumprimentos, porque gera decisões mais informadas e aderentes. A tese restritiva do despacho — sessão apenas com “internando” — contraria o texto, o sistema, a teleologia e a Constituição; desmantela a coerência entre decisão inicial, revisão e substituição; e desvirtua o nível de garantias precisamente quando a medida se projecta no tempo com custos cumulativos para direitos fundamentais.
Em conclusão : (i) “requerido” é a categoria-sujeito que activa a sessão, não “internando”; (ii) a sessão conjunta e a audição são diligências-regra em todas as decisões relevantes do processo de tratamento involuntário, incluindo as revisões e as substituições em regime ambulatório; (iii) a dispensa fundada na ausência de internamento carece de base legal e viola a “correspondente aplicação” do art. 22.º por força do art. 25.º, n.º 6; (iv) a omissão integra nulidade insanável nos termos do art. 37.º LSM e do art. 119.º, al. c), CPP; (v) a leitura aqui sustentada é a única compatível com a Constituição e com os standards internacionais de protecção em saúde mental.
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2.3.2. se, em procedimentos de substituição do internamento por ambulatório (art. 27.º), o tribunal pode dispensar a sessão conjunta e/ou a audição das pessoas enunciadas no art. 25.º, n.º 5, sobretudo quando o relatório clínico propende para solução menos gravosa e haja aceitação do tratamento.
Sistematicamente, os arts. 21.º-23.º (decisão), 25.º (revisão) e 27.º (substituição) não formam ilhas normativas: integram um único “processo de tratamento involuntário” que se renova e se autocorrige ao longo do tempo. O legislador elegeu a “sessão conjunta” como forma normal de produção da decisão judicial em matéria de saúde mental, garantindo oralidade e imediação entre o juiz e os sujeitos com conhecimento directo (requerido/defensor, pessoa de confiança, psiquiatra responsável, profissionais do serviço). Em termos epistemológicos, a sessão não é um ritual redundante que apenas “sela” internamentos; é o lugar onde se testam os pressupostos clínicos, a proporcionalidade, a adequação das condições comunitárias, a exequibilidade do plano terapêutico e a realidade da adesão. Na revisão (art. 25.º), a lei reproduz o modelo, precisamente para impedir que a medida se burocratize. A substituição (art. 27.º) é — por definição — uma decisão modificativa com efeitos incisivos: desloca o centro de gravidade da medida, altera deveres do requerido, redefine a responsabilidade dos serviços e reconfigura os mecanismos de coerção leve (convocações, conduções, monitorização). Dentro desta arquitectura, dispensar a sessão/audição por se tratar de solução menos gravosa equivaleria a privar o tribunal do instrumento privilegiado de verificação empírica e de calibragem fina num momento de transição sensível, além de subverter o paralelismo deliberadamente instituído pelo legislador entre decisão originária, revisão e substituição.
A teleologia da LSM é dupla: reduzir a hospitalização desnecessária e reforçar as garantias processuais em todas as ingerências no domínio da saúde mental. A Constituição impõe, pelo art. 18.º, a calibração de restrições segundo a proporcionalidade; pelo art. 27.º, protege a liberdade; pelo art. 25.º, a integridade pessoal/psíquica; e pelos arts. 20.º e 32.º, um processo equitativo e garantias de defesa, cujos princípios se projectam, por analogia funcional, nos procedimentos de tratamento involuntário. É um erro confluir “menor gravosidade” com “menor garantia”. Se a decisão de substituição por ambulatório implica uma diminuição da intensidade da restrição, essa diminuição não dispensa — antes pressupõe — a verificação judicial de que as condições de comunidade são suficientes, de que a adesão é real (e não meramente declarativa), e de que os ónus a impor são proporcionais e exequíveis. A audiência de partes e peritos forma o núcleo de “justificação pública” exigível a qualquer restrição continuada. Em termos de legitimidade, a sessão é o espaço onde o requerido se torna sujeito de razão e não objecto de relatório, e onde o juiz se expõe à prova contraditada, diminuindo o risco de decisões “de secretária”. Teleologicamente, pois, a sessão/audição acompanha todas as decisões relevantes — inclusive a substituição — como corolário de um modelo de menor ingerência com máximas garantias procedimentais.
Importa distinguir consentimento livre e esclarecido de “aceitação” em contexto de tratamento involuntário. A LSM trata a aceitação como dado clinicamente valioso, capaz de viabilizar soluções menos intensas. Todavia, enquanto perdurarem os pressupostos (diagnóstico, risco, incapacidade de autodeterminação em certos domínios, necessidade terapêutica), o processo permanece de natureza jurisdicional, com intervenção do MP e do defensor, e com deveres do tribunal de ouvir e decidir. Nestas condições, a “aceitação” não equivale a renúncia a garantias processuais, nem permite presumir que a palavra do requerido “nada acrescenta” ao que o relatório contém. Pelo contrário, é justamente na sessão que se apura se tal aceitação é informada, estável, não condicionada por factores contextuais (medo de regressar ao internamento, dependência logística do serviço), e se o plano comunitário é realista. O defensor deve poder escrutinar prazos, densidade de consultas, regimes de medicação, mecanismos de convocação/condução, pontos de revisão antecipada, e o juiz deve poder interrogar o clínico sobre alternativas individualizadas. A aceitação, assim entendida, milita a favor da substituição no mérito, mas não suprime o iter formae: reforça a necessidade de uma sessão mais vocacionada para a medida do que para antagonismo, mas ainda assim uma sessão.
Três objecções defendem a dispensa da sessão/audição na substituição: (i) o relatório clínico favorável tornaria “marginal” a utilidade da sessão; (ii) a aceitação do requerido tornaria o contraditório desnecessário; (iii) a economia de meios justificaria o deferimento documental. Nenhuma colhe. Quanto a (i), o relatório é peça probatória essencial, mas não exclusiva: pode conter “zonas cegas” (condições habitacionais, barreiras de adesão, papel da família), que a oralidade ilide. O juiz, sem sessão, decide sobre pressupostos empíricos não testados em contraditório. Quanto a (ii), a aceitação carece de validação pública e contraditada; basta recordar os inúmeros casos de “aceitação” formal seguida de incumprimento por obstáculos práticos que teriam sido expostos em audiência. Quanto a (iii), a eficiência não é princípio absoluto; em matéria de restrição de direitos, cede perante o princípio da máxima protecção de garantias, tanto mais que a LSM já prevê mecanismos de racionalização (meios tecnológicos do art. 22.º; agendas coordenadas; audição concentrada). A dispensa generalizada, a pretexto de eficiência, desestrutura a matriz médico-judicial e cria incentivos perversos à burocratização das revisões e substituições, com risco de decisões menos informadas e mais litigiosas a jusante.
Admite-se, por elementar prudência, que situações absolutamente excepcionais possam justificar uma modulação da forma, nunca a sua supressão. São exemplos paradigmáticos: impossibilidade objectiva e momentânea de presença física de um interveniente essencial (p. ex., o psiquiatra responsável), devidamente comprovada; risco imediato que imponha decisão urgente de transição para ambulatório com salvaguarda de vida/terapêutica; obstáculo logístico inultrapassável num prazo razoável. Mesmo nesses casos, a LSM oferece válvulas de segurança: o art. 22.º legitima “meios tecnológicos” para assegurar a presença virtual e a intervenção oral; o juiz pode fraccionar a audiência (colhendo desde logo a posição do requerido/defensor e agendando a intervenção clínica em curtíssimo prazo); pode, em último caso, proferir decisão provisória e convocar sessão subsequente de confirmação, garantindo o contraditório efectivo. Fora deste quadro estrito, a “dispensa” ampla não se coaduna com o desenho legal. A decisão que, ainda assim, opte por não ouvir, tem de justificar densamente a impossibilidade, o balanceamento de custos e benefícios e as razões pelas quais os meios tecnológicos eram inadequados, demonstrando que não se tratou de simples conveniência administrativa. O ónus argumentativo é, pois, elevado e a excepção, residual.
Se o tribunal procede à substituição do internamento por ambulatório sem sessão/audição quando legalmente devidas, pratica uma omissão de acto prescrito por lei com natureza garantística. Como vimos supra, o art. 37.º LSM remete para o regime de nulidades do CPP, com as necessárias adaptações; a alínea c) do art. 119.º CPP — que cobre a ausência do sujeito e do seu defensor em actos cuja presença a lei imponha — é a que melhor se ajusta ao vício em causa. Repete-se: a nulidade é insanável porque afecta o núcleo duro do direito de participação e defesa num acto estruturante da decisão. Os efeitos são os usuais: anulação do despacho/decisão substitutiva, com renovação do acto nos termos legais; manutenção dos efeitos estritamente indispensáveis à protecção da saúde/vida (se aplicável) até à realização da sessão; reiteração da convocação com observância do art. 22.º (incluindo a consideração de meios tecnológicos). Não procede, neste âmbito, a lógica de “sanação” por subsequente concordância tácita do requerido, porque a estrutura da audiência é condição de validade, não mera irregularidade. Também não é adequada a invocação da inexistência de “dano” processual quando a medida é menos gravosa: o vício não é de resultado, mas de forma garantística — e a forma, aqui, protege a substância.
Além do argumento normativo e constitucional, há um benefício operativo claro na realização de sessão/audição na substituição: a medida fina do plano terapêutico em contexto real. Em audiência, o juiz (i) pode delimitar com precisão os deveres de frequência de consultas, o regime de medicação assistida, a periodicidade de contactos com equipa de referência e o papel da pessoa de confiança; (ii) pode advertir expressamente sobre mecanismos de convocação e condução em caso de incumprimento, fixando expectativas claras; (iii) pode recolher compromissos formais do requerido e da rede de suporte; (iv) pode determinar pontos de revisão antecipada por objectivos (p. ex., após 30 dias, se determinada variável clínica ou social se alterar). Estes elementos reduzem drasticamente o risco de incumprimento, pois convertem o requerido em participante co-responsável e tornam o plano terapêutico inteligível e exequível. Por seu turno, os clínicos beneficiam de uma moldura judicial clara que legitima, perante a equipa, as exigências do plano comunitário. Em termos sistemáticos, a audiência na substituição reduz litigância subsequente (v.g., incidentes de incumprimento, pedidos de internamento por falência de ambulatório) e melhora a qualidade da decisão, cumprindo o desígnio de uma justiça terapêutica informada e dialogante.
Conclui-se, pois, que: (i) a substituição do internamento por ambulatório é uma decisão jurisdicional inserida no mesmo processo médico-judicial que regula a decisão originária e a revisão; (ii) as regras da sessão conjunta (arts. 21.º e 22.º) e da audição (art. 25.º, n.ºs 5 e 6) aplicam-se “correspondentemente” à substituição (art. 27.º), não havendo qualquer norma de dispensa automática fundada em menor gravosidade ou em aceitação; (iii) a “aceitação” é um dado de mérito, não um título de renúncia a garantias; (iv) a dispensa da sessão/audição só é concebível em hipóteses absolutamente excepcionais, com impossibilidade objectiva concreta e após demonstração da inadequação de meios tecnológicos, devendo, mesmo assim, assegurar-se contraditório efectivo por via alternativa e/ou subsequente confirmação; (v) a decisão proferida sem a realização da sessão/audição integra nulidade insanável nos termos do art. 37.º LSM e do art. 119.º, al. c), CPP, impondo-se a anulação e a renovação do acto com observância das garantias.
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2.3.3. qual a cadência das revisões obrigatórias (art. 25.º, n.º 2) e as consequências processuais da sua inobservância, designadamente a natureza e regime de nulidade aplicável (insanável? relativa?) e o respectivo fundamento no CPP por via do art. 37.º LSM.
Sem reabrir a questão já fixada quanto à sessão conjunta, audição e substituição de regimes, parte-se do essencial: a revisão periódica não é um acto de expediente, mas um mecanismo de garantia que obriga o tribunal, oficiosamente, a reabrir o juízo de necessidade e proporcionalidade da medida com uma periodicidade curta e certa. A cadência “de dois em dois meses” tem natureza de prazo-garantia e não de mera gestão. Vincula o tribunal a assegurar um contraditório efectivo dentro da janela temporal legal, independentemente do modo de execução da medida, e não se suspende por conveniência. O cômputo inicia-se na data da decisão que aplicou, confirmou ou modificou a medida, ou na data da última revisão validamente realizada; completa-se no mesmo dia do segundo mês subsequente, e, na inexistência de tal dia, no último desse mês. Sendo matéria que envolve restrição de direitos fundamentais, a tramitação deve ser organizada com prioridade, através de agendamento automático e diálogo prévio com os serviços clínicos, recorrendo, quando necessário, aos meios tecnológicos previstos no artigo 22.º para prevenir ultrapassagens temporais.
Quanto ao conteúdo e forma, a revisão não se esgota no relatório clínico: exige, no mínimo irredutível, a audição efectiva do requerido, do Ministério Público, do defensor, da pessoa de confiança e dos profissionais clínicos, com aplicação “correspondente” do regime do artigo 22.º. A remissão “correspondentemente aplicável” tem natureza integradora e não permissiva; impõe a preservação da oralidade e imediação, adaptadas ao contexto da revisão, seja presencialmente, seja por videoconferência. Nesta medida, qualquer solução que transforme a revisão em mero visto documental descaracteriza o instituto e frustra a sua teleologia de controlo jurisdicional próximo.
Para efeitos sancionatórios, interessa distinguir três situações típicas. A primeira é a do atraso acompanhado de audição integral ulterior: uma derrapagem temporal curta, objectivamente justificada e documentada — por exemplo, a impossibilidade superveniente de presença de interveniente essencial, prontamente colmatada com sessão por meios telemáticos — que não suprima o contraditório nem cause prejuízo concreto. A segunda é a chamada revisão “de secretaria”, em que há decisão no prazo mas sem a audição legalmente exigida, ou com uma audição meramente formal que não satisfaz os padrões do artigo 22.º. A terceira é a omissão total, isto é, a ausência de qualquer acto de revisão dentro do período bimestral, sem subsequente convocação tempestiva, mantendo-se a medida por inércia. As duas últimas atingem directamente o núcleo garantístico do instituto; a primeira pode, excepcionalmente, merecer tratamento menos gravoso quando se demonstre inequivocamente que a garantia foi preservada e que não houve lesão de defesa.
A ponte do artigo 37.º LSM para o CPP opera com adaptação teleológica. O vício relevante não é a inexistência de uma fase processual no sentido clássico — o que afastaria a alínea d) do artigo 119.º CPP — mas a supressão do acto de garantia em que a lei impõe a presença e audição do sujeito processual e do seu defensor. Por isso, como vimos, a qualificação correcta recai na alínea c) do artigo 119.º CPP: nulidade insanável por ausência do sujeito e do seu defensor em acto legalmente obrigatório, aqui transposta para o requerido no processo de tratamento involuntário. Assim, e repetindo, tanto a revisão “de secretaria” como a omissão total integram nulidade insanável, porque a decisão foi tomada sem o acto que a lei prescreve como condição de legitimidade, ou porque a restrição foi mantida sem controlo jurisdicional tempestivo. Já nos atrasos mínimos devidamente justificados, com realização subsequente de audição efectiva e sem prejuízo demonstrável, poderá admitir-se, de forma residual, a qualificação como nulidade relativa ou mesmo irregularidade, consoante a intensidade da lesão; mas o ónus de prova dessa inocuidade material e da diligência preventiva compete a quem pretenda afastar o regime mais gravoso, devendo tal constar do processo em despacho fundamentado e com registo das diligências tentadas, incluindo o uso de meios tecnológicos.
Uma vez reconhecida a nulidade insanável, a consequência é a anulação do despacho que manteve, alterou ou substituiu a medida sem revisão válida, com a subsequente convocação urgente da revisão com audição plena, preferindo-se soluções tecnológicas que acelerem a tramitação e evitem novo hiato. Até à realização da sessão, justifica-se a adopção de medidas provisórias estritamente indispensáveis à tutela da saúde e vida do requerido, em chave de menor ingerência e proporcionalidade estrita, precisamente porque a finalidade da nulidade é restaurar a legalidade procedimental e não desproteger o titular do direito.
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2.3.4. conformidade legal da interpretação restritiva adoptada no despacho recorrido, face aos direitos de participação, audição e defesa do requerido (art. 8.º LSM; CRP, arts. 27.º, 32.º, 18.º) e às obrigações internacionais, ainda que a sua força normativa varie.
No plano infraconstitucional, o artigo 8.º da LSM densifica um catálogo de direitos da pessoa em contexto de cuidados de saúde mental que inclui, de modo destacado, o direito à informação adequada, à participação no processo terapêutico e ao exercício do contraditório com assistência técnica. Este elenco não tem função ornamental: ele é o núcleo operativo que legitima, no plano procedimental, a tomada de decisões que restringem a liberdade e a autodeterminação terapêutica. A interpretação que relativiza esses direitos em função do modo de execução (internamento versus ambulatório) viola a estrutura que o legislador lhes atribuiu. O processo não é uma sequência de despachos sobre relatórios; é um espaço de decisão comunicativa em que o requerido participa, pessoalmente e por defensor, e em que o juiz exerce jurisdição com imediação e oralidade. Quando o despacho recorrido reduz a audição a um adereço dispensável fora do internamento, transfere o centro de gravidade da decisão do tribunal para o documento clínico, esvaziando a garantia processual que a lei consagrou e prejudicando a igualdade de armas entre saber técnico e palavra do sujeito afectado.
Constitucionalmente, três parâmetros convergem na censura da leitura restritiva. O artigo 27.º da CRP tutela a liberdade pessoal e exige que qualquer privação ou restrição relevante se encontre legalmente prevista, seja necessária e proporcional, e se mantenha sob controlo jurisdicional efectivo. Mesmo quando o tratamento se executa em ambulatório, subsiste um conjunto de deveres e constrangimentos (comparecimentos, adesão medicamentosa supervisionada, monitorização, possibilidade de condução) que configuram restrições qualificadas à autodeterminação e, em certos contextos, à liberdade de movimentos. Dizer que, por não haver “internando”, decai a exigência de audição é, pois, constitucionalmente dissonante: troca-se a intensidade da ingerência pela intensidade da garantia, quando o princípio é o inverso—quanto mais tempo e mais camadas de restrição, maior deve ser a densidade de controlo e de participação. O artigo 32.º, por seu turno, não obstante se dirigir tipicamente ao processo penal, irradia princípios estruturantes (contraditório, defesa, audiência perante o julgador) para procedimentos análogos de compressão de direitos, mormente quando o próprio legislador os molda como processo jurisdicional com intervenção obrigatória do Ministério Público e do defensor. A audiência do requerido não é despiciendo; é condição de legitimidade epistémica da decisão. Finalmente, o artigo 18.º (princípio da proporcionalidade) fornece o método: a restrição deve ser idónea, necessária e proporcional em sentido estrito. A interpretação restritiva falha nas três etapas. Não é idónea, porque a eliminação da audição não melhora a qualidade da decisão; pelo contrário, agrava o risco de erro ao privar o julgador de informação contraditada. Não é necessária, porque a LSM disponibiliza meios tecnológicos para realizar a sessão com economia de encargos e tempo. Não é proporcional em sentido estrito, porque o ganho marginal de eficiência administrativa não compensa a perda substancial de garantias numa matéria de elevada sensibilidade jurídica e humana.
Ao nível internacional, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos impõe, pelos artigos 5.º e 6.º, um conjunto de exigências procedimentais em casos de privação da liberdade por razões de saúde mental e, por extensão funcional, em decisões que a prolonguem, modifiquem ou substituam sob formas atenuadas.
Do mesmo modo, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CRPD) desloca o paradigma para o reconhecimento de capacidade jurídica, o apoio à tomada de decisão e a exigência de salvaguardas processuais robustas sempre que se admita intervenção sem consentimento. Acrescem instrumentos de soft law do Conselho da Europa (recomendações em saúde mental e direitos humanos) que, embora sem força vinculativa equivalente, constituem critérios interpretativos relevantes na leitura conforme aos direitos fundamentais. Em todos estes planos, a tónica recai na participação informada, na audição pessoal e na fiscalização jurisdicional periódica, não em soluções de secretária baseadas em relatórios unilaterais.
A objecção, porventura mais sofisticada, de que a menor gravosidade do ambulatório legitimaria um “standard” de garantias diluído não resiste a uma análise informada pelo princípio da precaução em direitos fundamentais. A passagem ao ambulatório, típica de fases de estabilização clínica ou de melhoria dos suportes comunitários, é precisamente o momento em que o tribunal deve colher, de viva voz, dados contextuais que o relatório não capta com igual fidelidade—barreiras de acesso ao serviço, condições habitacionais, rede de apoio, riscos de adesão—e em que deve advertir claramente quanto a deveres, mecanismos de convocação e pontos de revisão antecipada. Sem esse exercício de oralidade, a decisão torna-se menos responsiva ao caso concreto e, paradoxalmente, mais propensa a reactivações de internamento por falência prática do plano comunitário. A garantia processual não é apenas um travão; é um acelerador de decisões mais eficazes e sustentáveis.
Do ponto de vista da técnica de decisão, a interpretação conforme que se impõe não exige criatividade judicial; basta aplicar o que a LSM já dispõe: sessão conjunta e audição como regra de decisão e de revisão, com adaptação por meios tecnológicos quando necessário, e fundamentação reforçada para qualquer modulação pontual da forma, nunca para a sua supressão. A leitura que subordina a sessão à existência de “internando” contraria o texto legal, desestrutura a coerência do sistema, afronta a proporcionalidade constitucional e desatende padrões internacionais de devida diligência procedimental. Ao fazê-lo, transfere para o plano da nulidade, na medida em que elimina um acto que a lei prescreve como obrigatório.
Termos em que o recurso obtém provimento.
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III. - DECISÃO
Em face do exposto, acordam os juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público;
2. Revogar o despacho recorrido de 27.05.2025;
3. Declarar a nulidade insanável do processado decisório por omissão de acto legalmente obrigatório de audição/sessão, nos termos do art. 119.º, al. c), do CPP, aplicável por força do art. 37.º da LSM;
4. Anular, quanto baste, os actos subsequentes directa e necessariamente dependentes do despacho revogado;
5. Determinar ao tribunal a quo que proceda, com urgência e prioridade legal, à designação de sessão conjunta e à realização da revisão da decisão, com audição das pessoas legalmente elencadas — requerido (assistido por defensor/mandatário), Ministério Público, pessoa de confiança, um dos psiquiatras subscritores do relatório/psiquiatra responsável e profissional do serviço que acompanha o tratamento — nos termos dos arts. 21.º, 22.º e 25.º da LSM, fazendo uso, quando necessário, dos meios tecnológicos previstos no art. 22.º e assegurando a observância da cadência bimestral prevista no art. 25.º, n.º 2;
6. Advertir que, até à realização da sessão conjunta e subsequente decisão, apenas poderão manter-se as medidas estritamente indispensáveis à protecção da saúde e da vida do requerido, segundo o princípio da menor ingerência e da proporcionalidade estrita, devendo o tribunal a quo fundamentar de modo reforçado qualquer solução provisória adoptada;
7. Sem custas.
Notifique.

Tribunal da Relação de Lisboa, 24-09-2025,
Alfredo Costa
Mário Pedro M. A. Seixas Meireles
Rosa Vasconcelos
(Texto elaborado e revisto pelo relator – artigo 94.º, n.º 2, do CPP).
O relator escreve de acordo com a anterior grafia