SUSPENSÃO DE OPERAÇÕES BANCÁRIAS
NOTIFICAÇÃO
ACESSO AO DIREITO
TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA
Sumário

(da responsabilidade do Relator)
I. O legislador fez consagrar, como sobressai do artigo 49º nº 3 e 4 da Lei nº 83/2017, a obrigação de notificação à pessoa em causa após a sua execução, bem como concedeu ao visado o direito de suscitar a revisão e a alteração da medida.
II. Essa comunicação, para surtir o efeito pretendido e dar concretização prática aos direitos constitucionais de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva – artigo 20º da CRP, terá de incluir, pelo menos em forma resumida, o fundamento ou os fundamentos de tal decisão, não se bastando, como ocorreu no caso concerto, com a mera informação da ocorrência da suspensão e do número do inquérito criminal.
III. A aplicação do segredo de justiça, que constitui um desvio à regra da publicidade, não é absoluto e jamais poderá sobrepor-se a outros princípios igualmente com proteção constitucional, como é o caso do contraditório, do direito ao recurso, acesso à justiça e a um processo justo e equitativo, nas situações em que são proferidas medidas restritivas de direitos fundamentais, como é o caso concreto, e jamais poderá servir de justificação, como resulta do despacho recorrido, para não cumprir uma imposição legal (artigo 49º nº 3 da Lei nº 83/2017) de notificação da decisão judicial e respetivos fundamentos que confirmou a decisão de suspensão temporária proferida pelo Ministério Público.
IV. Recorda-se, uma vez mais, que essa notificação, para dar plena eficácia aos direitos constitucionais de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, não pode limitar-se a dar conta ao visado de que, à ordem dos presentes autos, os movimentos a débito na conta bancária em causa se encontram suspensos, pelo período de três meses. Na verdade, uma informação desacompanhada, ainda que de forma sucinta, dos fundamentos de facto e de direito, que é no fundo aquilo que é exigido a todos os atos decisórios (artigo 97º nº 5 do CPP e 205º da CRP), neutraliza qualquer exercício de reação judicial por parte do visado.
V. O conteúdo da promoção do MP relativa ao despacho do JIC faz parte integrante deste despacho e por constituir a fundamentação deste mesmo despacho terá, necessariamente, que ser notificado à recorrente só assim se dando integral cumprimento à obrigação legal prevista no artigo art.º 49.º, n.º 3, 4 e 7 da Lei n.º 83/2017, de 18/08.

Texto Integral

Em conferência, acordam os Juízes na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório.
Nos autos acima identificados foi proferido, no âmbito de atos jurisdicionais em sede de inquérito, o despacho do JIC, datado de ...-...-2025, através do qual Tribunalaquo,nãodeclarando airregularidadearguida pela agora Recorrente, não a notificou, nem da promoção precedente do Ministério Público, nem do primeiro despacho de confirmação judicial da medida de suspensão temporária de execução de operações bancárias.
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Não se conformando com essa decisão, a ... recorreu para este Tribunal da Relação formulado as seguintes conclusões (transcrição):
1-A Recorrente é titular da conta bancária com o ..., sujeita a medida de suspensão temporária de execução de operações bancárias.
2-O presente recurso tem por objeto o segmento decisório contido no Despacho proferido pelo Juiz 2 do Tribunal Central de Instrução Criminal com a Referência 9260492, datado de ... de ... de 2025, através do qual o Tribunalaquo,nãodeclarando airregularidadearguida pela Recorrente, não a notificou, nem da promoção precedente do Ministério Público, nem do primeiro Despacho de confirmação judicial da medida de suspensão temporária de execução de operações bancárias, o que a Recorrente não aceita, por limitar de forma inadmissível os seus direitos de reação e defesa face a uma medida limitativa de direitos patrimoniais seus.
4-Assim, a Recorrente permanece em situação de desconhecimento dos pressupostos de facto e de Direito que, em concreto, estiveram na base da tomada de posição do Ministério Público e que merecera acolhimento por parte do Tribunal Central de instrução criminal.
5-Nos termos do disposto no art. 97.º, n.º 5 do CPP, os atos decisórios são “(…) sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.
6-No caso em análise, o vício de falta de fundamentaçãodecorreprecisamente da circunstância de a Recorrente não conhecer os argumentos do Ministério Público que terão sido validados pelo Juiz de Instrução Criminal.
7-O facto de os autos se encontrarem sujeitos a segredo de justiça não impede a notificação à RecorrentedoDespachodoMinistérioPúblico que aplicou amedidade suspensão temporária de execução de operações bancárias, nem tão-pouco do Despacho proferido pelo Tribunal central de instrução criminal que o confirmou, pois decorre do art. 49.º, n.º 4 da Lei nº 83/217, de 18 de agosto, na sua redação atualizada que os visados em medida de suspensão temporário de execução de operações bancárias têm o direito de suscitar a revisão ou alteração de tal medida, resultando igualmente do art. 86.º, n.º 9, al. b), do CPP que deve ser dado a conhecer o conteúdo dos atos ou documentos em segredo de justiça quando estes se afigurem indispensáveis ao exercício de direitos pelo interessado, o que é aqui o caso.
8-O Tribunal Central de Instrução Criminal a quo, ao decidir não notificar a Recorrente do Despacho do Ministério Público que antecedeu o Despacho de confirmação judicial, e, bem assim, deste último, com fundamento na sujeição dos presentes autos a segredo de justiça, violou o disposto nos arts. 86.º, n.º 9, al. b) e 97.º, n.º 5, ambos do CPP e no art. 49.º, n.º 4 da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, na sua redação atualizada,
9-Uma vez que, da correta aplicação das normas acabadas de referir ao caso concreto, resulta a obrigatoriedade do recorrente ser notificado, tanto da promoção do Ministério Público com vista ao decretamento da medida de suspensão temporária de execução de operações bancárias, como do respetivo e subsequente Despacho de confirmação judicial.
10-Assim, o Despacho proferido pelo Tribunal Central de instrução criminal a quo com a Referência 9260492, datado de ... de ... de 2025 (que não declarou a irregularidade tempestivamente arguida pela ora Recorrente e que manteve a decisão de não a notificar dos fundamentos da medida de suspensão temporária de execução de operações bancárias contidos no Despacho do Ministério Público que a decretou e no subsequente Despacho de confirmação judicial) deverá ser revogado, ordenando-se a sua substituição por outro que ordene a notificação à Recorrente de ambos os aludidos Despachos.
11-Refira-se, por fim, que a interpretação do disposto nos arts. 48.º, n.º 1 e 49.º, n.º 1 da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, no sentido de acordo com o qual, confirmando o Juiz de Instrução Criminal a aplicação da medida de suspensão temporária de execução de operações bancárias, aludindo à promoção que antecedeu a sua decisão ou, bem assim, a outras suas decisões pretéritas, sem que, na notificação dirigida à entidade visada, seja junta cópia de tal promoção e/ou de tal decisão de confirmação judicial antecedente, sempre redundará em norma materialmente inconstitucional, por violação dos princípios do Estado de Direito Democrático, da restrição mínima de direitos, liberdades e garantias, da tutela jurisdicional efetiva, do direito ao recurso e do dever de fundamentação das decisões judiciais, constantes, respetivamente, dos arts. 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 1, 32.º, n.º 1 e 205.º, n.º 1, todos da CRP – inconstitucionalidade que, para todos os efeitos legais, se deixa expressamente invocada.
12-Conclui pedindo que seja o presente recurso julgado procedente e o Despacho proferido pelo Tribunal Central de instrução criminal a quo com a Referência 9260492, datado de ... de ... de 2025, revogado e substituído por outro que ordene a notificação à Recorrente do Despacho do Ministério Público que decretou a medida de suspensão temporária de execução de operações bancárias e do subsequente Despacho de confirmação judicial proferido pelo Mmo. Juiz de instrução criminal.
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Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413º, do Código de Processo Penal o MP pronunciou-se pela improcedência do recurso por, e, em resumo, os autos estarem em segredo de justiça, o acesso os autos pela recorrente, atenta a natureza, a gravidade dos crimes em investigação e o modo de execução, colocaria em risco a investigação, a notificação do despacho do MP que determinou a SOB é incompatível com o segredo de justiça e que se mostra desnecessária a notificação do despacho inicial que confirmou a medida, porquanto a recorrente foi notificada nos mesmos termos por despacho judicial de ...-...-2024.
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Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.
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Neste Tribunal, na vista a que se refere o art.º 416º do CPP, o Mº. Pº aderiu aos fundamentos do recurso da 1ª instância.
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Colhidos os vistos legais foi o processo à conferência, onde se deliberou nos termos vertidos neste Acórdão.
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Delimitação do objeto do recurso.
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995].
Desta forma, tendo presentes tais conclusões é a seguintes a questão a apreciar:
Irregularidade do despacho recorrido por ausência de notificação da decisão inicial de bloqueio das contas bancárias;
Da inconstitucionalidade da interpretação normativa do disposto nos arts. 48.º, n.º 1 e 49.º, n.º 1 da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, no sentido de que confirmando o JIC a aplicação da medida de suspensão temporária de operações bancárias, aludindo à promoção que antecedeu a sua decisão ou, bem assim, a outras suas decisões pretéritas, sem que, na notificação dirigida à entidade visada, seja junta cópia de tal promoção e/ou de tal decisão de confirmação judicial antecedente.
III- Fundamentação
O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição):
... veio arguir a irregularidade do despacho de confirmação judicial da medida de suspensão de operações bancárias aplicada sobre a conta visada nestes autos, nos termos dos disposto nos artigos 97.º, n.º 5 e 123.º, ambos do Código de Processo Penal, porquanto não foi notificada da promoção do Ministério Público, antecedente ao despacho a determinar a prorrogação da medida de suspensão de operações bancárias, com a referência citius 9141297, datado de ...-...-2024, bem como do primeiro despacho de confirmação judicial da referida medida.
O MinistérioPúblicopugna pelo indeferimento do requerido.
Cumpre apreciar decidir:
A conta bancária titulada pela ... foi objeto de medida de suspensão temporária, decretada pelo Ministério Público, termos do artigo48.º, n.ºs1 e 2, da Lei n.º 83/2017 (vide fls. 136/verso 140/v).
Por despacho proferido em ........2023, foi validada a decisão do Ministério Público de sujeitar os autos a segredo de justiça, nos termos dos 86.º, n.º 3, do C.P.P., bem como foi confirmado a medida de suspensão temporária decretada peloMinistérioPúblico, nos termos do artigo 49.º, n.ºs1 e 2, da Lei n.º 83/2017,de 18 de agosto (vide fls. 143).
Pois bem, encontrando-se o processo em segredo de justiça, tal implica necessariamente ausência de publicidade e, consequentemente, asproibiçõesde assistência à prática ou tomada de conhecimento do conteúdo de ato processual a que não tenham o direito ou o dever de assistir e a divulgação a ocorrência de ato processual ou dos seus termos, independentemente do motivo que presidir a tal divulgação(art. 86.º, n.º8, doCPP), sem prejuízo de, nos termos do n.º 9 deste artigo, poder-se dar ou ordenar ou permitir que seja dado conhecimento a determinadas pessoas do conteúdo de ato ou de documento em segredo de justiça, se tal não puser em causa a investigação e se afigurar: a) conveniente ao esclarecimento da verdade; ou b) Indispensável ao exercício de direitospelosinteressados.
Já quanto à consulta do processo, ainda que em segredo de justiça, dispõe o artigo 89.º, n.º 1, do CPP “Durante o inquérito, o arguido, o assistente, o ofendido, o lesado o responsável civil podem consultar, mediante requerimento, o processo ou elementos dele constantes, bem como obter os correspondentes extratos, cópias ou certidões, salvo quando, tratando-se de processo que se encontre em segredo de justiça, o Ministério Público a isso se opuser por considerar, fundamentadamente, que pode prejudicar a investigação ou os direitos dos participantesprocessuaisoudasvítimas.”.
Ora, a ... não tem a qualidade de arguida nos presentes autos, falhando desde logo um pressuposto formal para ter acesso aos autos.
De todo o modo, ponderando a natureza, a gravidade e o modo de execução dos crimes indiciados, em particular, o de branqueamento, oacessoaosautospelaspessoasabrangidas pela medida de suspensãoseria suscetível de pôrem risco a eficácia e rigor da investigação.
Não obstante, a pessoa ou entidade abrangida pela medida temdireitoa ser notificada da decisão e de reagir contra a mesma (art. 49.º, ns.º3 e 4, da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto).
De facto, tendo-se verificado, nos presentes autos, que a titular da conta não havia sido informada da determinação de tal medida, procedeu-se à sua notificação, nos termos plasmados no despacho de fls. 310, tendo a mesmo sido instruído da medida tomada e ainda do referido prazo.
Maisse informou a mesma da sujeiçãodosautosa segredo de justiça.
Note-se que, encontrando-se os autossujeitosa segredo de justiça, não obriga a Lei a que sejam remetidas aos visados cópias do despacho do Ministério Público que determinou a SOB, uma vez que tal despacho contém necessariamente informação significativa, tal como a identificação das transações suspeitas, razões que fundamentam a imposição da medida, a duração da medida, entidades obrigadas, eventuais tipos de transações, modos da sua execução que ficam suspensos e contas bancárias, entre outras que importa não revelar de modo a não contender com os interesses e a eficácia da investigação.
Como é por demais evidente, a sujeição dos autos a segredo de justiça, pretende precisamente impedir o acesso aos autos, pelo que o envio de cópias dos despachos constantes nos autos, contenderia necessariamente com o que se pretendeu ao determinar a aplicação ao inquérito de tal segredo.
Em face de todo o exposto, inexiste qualquer irregularidade, e havendo oposição do Ministério, nos termos do artigo 89.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.P., indefere-se o acesso aos autos por parte do requerente e o consequente envio de cópia do despacho do Ministério Público que determinou a aplicação da SOB e do despacho de confirmação judicial da referida medida, por razões de ordem processual formal (falta de legitimidade do requerente por não ter o estado processual de arguido) e substantiva (risco para a investigação).
Notifique, procedendo aoenviodo presente despacho.
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Cumpre conhecer o recurso.
Cumpre recuperar a seguinte dinâmica processual.
Por despacho do JIC de .../.../2023 foi determinada a suspensão temporária de quaisquer movimentos a débito, pelo período de três meses, sobre a conta da ..., com o ..., titulada pela ..., bem como de todos os meios de pagamento associados, nomeadamente, cheques, acesso homebanking, cartões de débito e de crédito.
Constata-se que decorreu o prazo de 30 (trinta) dias previsto no artigo 49.º, n.º
3, da Lei 83/2017, de 18 de agosto, sem que a suspeita tivesse sido notificada do despacho de confirmação da suspensão de operações bancárias de ...-...-2023.
Por despachos de ...-...-2024, ...-...-2024, ...-...-2024 foi prorrogada a medida por mais 3 meses, sem que a visada tivesse sido notificada destas decisões.
Em ...-...-2024 veio a ... requerer ao Ministério Público que informe se incide alguma medida de suspensão temporária de execução de operações sobre a conta bancária da sua titularidade junto do ... e, a ser o caso, que seja notificada da Promoção do Ministério Público e do subsequente Despacho de confirmação judicial na sequência dos quais foi determinada a aplicação de tal medida.
Por despacho de ...-...-2024 foi prorrogada, por mais 3 meses, a medida de suspensão e ordenada a notificação da visada.
A recorrente foi notificada do despacho de ...-...-2024 que tem o seguinte conteúdo: “Indiciando-se a prática de factos suscetíveis de integrarem, inter alia, o crime de branqueamento, previsto e punido nos termos dos artigos 368.º-A, do Código Penal, e atentas as razões invocadas na douta promoção que antecede, assim como no despacho que confirmou a suspensão temporária de operações que se dão por integralmente reproduzidas, prorroga-se, em consonância com os artigos 49.º, da Lei n.º 83/2017, de 18-08, e 4.º, n.º 4, da Lei n.º 5/2002, de 11-01, a suspensão provisória de operações de débito, nos termos já determinados, pelo período de 3 (três) meses”.
Por requerimento de ...-...-2025 veio a ora recorrente requerer o seguinte junto do TCIC:“Em face do supra exposto, requer-se a V. Exa. a notificação à Visada, com urgência, da promoção do Ministério Público antecedente ao Despacho com a Ref.ª 9141297, datado de ... de ... de 2024, e, bem assim, do primeiro Despacho de confirmação judicial da medida de suspensão temporária de execução de operações bancárias a débito, por forma a que a Visada possa exercer os seus direitos de defesa, constitucional e legalmente consagrados”
Sobre este requerimento incidiu o despacho de ...-...-2025 objeto do presente recurso. Neste mesmo despacho foi prorrogada a medida por mais 3 meses.
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Antes de entramos na análise dos fundamentos do recurso importa compreender a natureza da medida em causa e os pressupostos para a sua aplicação/manutenção.
Para além da tradicional abordagem repressiva do tipo de crimes que geram vantagens suscetíveis de serem branqueadas, o sistema atual, sobretudo na sequência dos fenómenos do terrorismo internacional e da criminalidade organizada e transnacional, tem vindo a caminhar para uma abordagem preventiva.
Nessa abordagem preventiva, o legislador tem vindo a impor obrigações às entidades financeiras, bem como às demais entidades sujeitas, identificadas no artigo 3º da Lei 83/2017 de 18 de Agosto.
Dispõe o artigo 43º da citada lei o seguinte:
1 - As entidades obrigadas, por sua própria iniciativa, informam de imediato o Departamento Central de Investigação e Ação Penal da Procuradoria-Geral da República (DCIAP) e a Unidade de Informação Financeira sempre que saibam, suspeitem ou tenham razões suficientes para suspeitar que certos fundos ou outros bens, independentemente do montante ou valor envolvido, provêm de atividades criminosas ou estão relacionados com o financiamento do terrorismo.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, as entidades obrigadas comunicam todas as operações que lhes sejam propostas, bem como quaisquer operações tentadas, que estejam em curso ou que tenham sido executadas.
3 - As entidades obrigadas conservam, nos termos previstos no artigo 51.º, cópias das comunicações efetuadas ao abrigo do presente artigo e colocam-nas, em permanência, à disposição das autoridades sectoriais.
Um dos deveres impostos às entidades obrigadas é o dever de abstenção previsto no artigo 47º que dispõe o seguinte:
- As entidades obrigadas abstêm-se de executar qualquer operação ou conjunto de operações, presentes ou futuras, que saibam ou que suspeitem poder estar associadas a fundos ou outros bens provenientes ou relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo.
No domínio preventivo são, sem qualquer dúvida, as entidades financeiras as que melhor estão posicionadas para detetar comportamentos ilícitos e usos indevidos do sistema financeiro, nomeadamente, operações de branqueamento de produtos ou vantagens de um crime. Com efeito, num primeiro momento, são as instituições financeiras quem melhor conhece os seus clientes, quem melhor conhece as operações e transações realizadas, quem melhor está em condições de analisar, perante operações suspeitas, essas mesmas operações.
É no decurso destes deveres impostos às entidades financeiras e da análise feita pelas mesmas, que teremos as medidas processuais especiais de controlo de contas bancárias e de suspensão de operações a débito e/ou a crédito.
Entre essas medidas está a suspensão temporária prevista no artigo 48º da Lei 83/2017 de 18 de Agosto que diz o seguinte:
1 - Nos quatro dias úteis seguintes à remessa da informação a que se refere o n.º 4 do artigo anterior, o DCIAP pode determinar a suspensão temporária da execução das operações relativamente às quais foi ou deva ser exercido o dever de abstenção, notificando para o efeito a entidade obrigada.
2 - Fora dos casos previstos no número anterior, a suspensão temporária pode ainda ser decretada nas seguintes situações:
a) Quando as entidades obrigadas não tenham dado cumprimento ao dever de comunicação de operações suspeitas previsto no artigo 43.º ou às obrigações de abstenção ou de informação previstas no artigo anterior, sendo os mesmos devidos;
b) com base em outras informações que sejam do conhecimento próprio do DCIAP, no âmbito das competências que exerça em matéria de prevenção das atividades criminosas de que provenham fundos ou outros bens, do branqueamento de capitais ou do financiamento do terrorismo;
c) Sob proposta da Unidade de Informação Financeira com base na análise de comunicações de operações suspeitas preexistentes.
3 - A decisão de suspensão temporária:
a) Pode abranger operações presentes ou futuras, incluindo as relativas à mesma conta ou a outras contas ou relações de negócio identificadas a partir de comunicação de operação suspeita ou de outra informação adicional que seja do conhecimento próprio do DCIAP, independentemente da titularidade daquelas contas ou relações de negócio;
b) Deve identificar os elementos que são objeto da medida, especificando as pessoas e entidades abrangidas
e, consoante os casos, os seguintes elementos:
i. O tipo de operações ou de transações ocasionais;
ii. As contas ou as outras relações de negócio;
iii. As faculdades específicas e os canais de distribuição.
iv. De acordo com o artigo 49º
1 - A decisão de suspensão temporária prevista no artigo anterior caduca se não for judicialmente confirmada, em sede de inquérito criminal, no prazo de dois dias úteis após a sua prolação.
2 - Compete ao juiz de instrução confirmar a suspensão temporária decretada por período não superior a três meses, renovável dentro do prazo do inquérito, bem como especificar os elementos previstos na alínea b) do n.º 3 do artigo anterior.
3 - Por solicitação do Ministério Público, a notificação das pessoas e entidades abrangidas, na decisão fundamentada do juiz de instrução que, pela primeira vez, confirme a suspensão temporária, pode ser diferida por um prazo máximo de 30 dias, caso entenda que tal notificação é suscetível de comprometer o resultado de diligências de investigação, a desenvolver no imediato.
4 - O disposto no número anterior não prejudica o direito de as pessoas e as entidades abrangidas pela decisão de, a todo o tempo e após serem notificadas da mesma ou das suas renovações, suscitarem a revisão e a alteração da medida, sendo as referidas notificações efetuadas para a morada da pessoa ou entidade indicada pela entidade obrigada, se outra não houver.
5 - Na vigência da medida de suspensão, as pessoas e entidades por ela abrangidas podem, através de requerimento fundamentado, solicitar autorização para realizarem uma operação pontual compreendida no âmbito da medida aplicada, a qual é decidida pelo juiz de instrução, ouvido o Ministério Público, e ponderados os interesses em causa.
6 - A solicitação do Ministério Público, o juiz de instrução pode determinar o congelamento dos fundos, valores ou bens objeto da medida de suspensão aplicada, caso se mostre indiciado que os mesmos são provenientes ou estão relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo e se verifique o perigo de serem dispersos na economia legítima.
7 - Em tudo o que não se encontre especificamente previsto no presente artigo, é subsidiariamente aplicável o disposto na legislação processual penal.
As medidas de suspensão de movimentos e de congelamento de fundos previstas no artigo 48º configuram natureza cautelar, cuja imposição resulta das regras relativas à prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento ao terrorismo.
O pressuposto de aplicação destas medidas assenta na possibilidade de formulação de um juízo indiciário de que as operações detetadas (realizadas ou em curso), sejam particularmente suscetíveis de estarem relacionadas com a prática de crime de branqueamento de capitais ou de terrorismo, conforme disposto no artigo 1º da citada lei.
Assim, através das normas em causa, pretendeu o legislador adotar medidas preventivas de combate aos referidos fenómenos – branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, o que fez por ter entendido que os instrumentos e mecanismos já disponíveis, designadamente os previstos pelo Código de Processo Penal, eram insuficientes e desadequados para a prossecução de tais fins preventivos, donde se poderá concluir que se tratam, na verdade, instrumentos diversos e dependentes de pressupostos igualmente diferentes.
Estas normas especiais de natureza cautelar, em nosso entender, resultam do facto de o legislador ter compreendido que o fenómeno do branqueamento de capitais e do financiamento ao terrorismo deve ser visto como um processo e não como um ato isolado, uma vez que se visa ocultar ou dar nova justificação para um conjunto de fundos de indiciada origem ilícita, finalidade que apenas é alcançada por um somatório de operações/ manobras de colocação, de circulação e de integração, que, a final, pode permitir quebrar a ligação dos fundos com a sua real origem ilícita.
Esta abordagem preventiva, que é comum a outras legislações da União Europeia, é o assumir, por parte do legislador, que os esforços em matéria de prevenção desenvolvidos ao nível do sistema financeiro podem produzir bons resultados no que concerne ao combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo.
Deste modo, forçoso será concluir que os referidos instrumentos estão dependentes da verificação de pressupostos diferentes dos previstos no CPP e destinados a condutas bem mais graves e organizadas que ponham em risco a segurança nacional e internacional. Na verdade, os crimes em causa (branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo), atenta a sua gravidade e dimensão internacional, justificam a imposição de um sacrifício acrescido ao visado pela medida, pois que fica sujeito a uma mora na disponibilização de determinada quantia que é, em regra, avultada e circula, por vezes, a grande velocidade e com recurso a entidades fictícias que apenas servem para o branqueamento das quantias provenientes da prática de crimes e destinadas à prática de outros crimes.
As medidas de controlo de contas bancárias e de suspensão de movimentos são aplicadas através de despacho do Juiz, no âmbito de um inquérito criminal, mediante impulso do titular da ação penal, ou seja, o Ministério Público.
Esta medida, atenta a sua natureza cautelar e preventiva, não faz apelo aos pressupostos de que dependem a aplicação das medidas de coação e de garantia patrimonial, bem como aos meios de obtenção de prova disciplinados pelo artº 181º do CPP, relativamente a apreensões em estabelecimento bancário.
Para além dessa natureza cautelar, não restam dúvidas de que se tratam, também, de instrumentos de obtenção de prova instituídos para superar alguns pontos de bloqueio na investigação da criminalidade relacionada com o branqueamento de capitais e do terrorismo.
Assim sendo, ao contrário do previsto no artigo 181º do CPP, que diz que o juiz procede à apreensão de títulos, valores, quantias e quaisquer outros objetos depositados em bancos ou outras instituições de crédito, mesmo que em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome, a norma constante do artigo 47º da Lei 83/2017 apenas exige a existência de meras suspeitas da prática de um crime de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo.
Na verdade, exigir a fundamentação da medida preventiva com a verificação de indícios sérios, no momento inicial ou mesmo embrionário de uma investigação, seria inviabilizar, por si só, grande parte da possibilidade de prevenção de práticas de branqueamento e de utilização do sistema financeiro para esse fim, quando a medida aqui em referência se propõe viabilizar a investigação relativamente à prática ou comportamento que se diagnostica na forma de suspeita.
Deste modo, parece-nos que as medidas de controlo e de suspensão de operações bancárias, dependem apenas da existência de suspeitas de prática de ato criminoso – de catálogo, e devem ser entendidas como um meio especial cautelar, reservado, designadamente à criminalidade económico-financeira, capaz de inviabilizar a disseminação dos fundos detetados (de proveniência duvidosa) no sistema financeiro, devendo, posteriormente e de imediato prosseguir a investigação sobre a ilicitude da transação bancária fundada na existência de um crime precedente.
Cumpre referir, também, que a especificidade das medidas em causa, não dispensam o apelo a princípios gerais da necessidade da aplicação de medidas restritivas de direitos e da sua criteriosa proporcionalidade e busca da verdade material, critérios, aliás, orientadores de qualquer outra intervenção investigatória ou judicial.
Reunidos que estejam os pressupostos fundamentais, o recurso a uma medida desta natureza, pretende, desde logo, defender os superiores interesses da investigação criminal em crimes desta gravidade, que, no nosso entender, justificam o sacrifício imposto ao visado pela medida, pois que fica sujeito a uma mora na disponibilização de determinada quantia.
Assim, aquando da prolação do despacho que impõe as medidas em causa o qual terá de ser, por força do disposto no artigo 97º nº 5 do CPP, fundamentado, o juiz terá que verificar se existem indícios/suspeitas da prática de um crime de branqueamento de capitais ou de terrorismo, atenta a proveniência ilícita dos fundos e por forma a evitar que estes se dispersem na economia legítima enquanto se apura a verdade dos factos.
Por último, cumpre referir que estas medidas, conforme resulta do artigo 49º nº 2 da lei 83/2017 de 18-08, apenas podem aplicadas por 3 meses e renovadas dentro do prazo do inquérito, o que evidencia o carácter precário com que as mesmas podem ser aplicadas e mantidas.
Assim, o presente inquérito tem como prazo máximo de duração de 14 meses, nos termos do artigo 276º nº 3 al. a) do CPP, o que faz com as medidas em causa caduquem decorridos que estejam 14 meses contados desde o início do inquérito.
Assim, tendo a medida sido confirmada por despacho do JIC em ...-...-2023, apesar do presente recurso não ter como objeto essa questão, terá ocorrido a caducidade da medida pelo menos em ...-...-2024. Em todo o caso, por despacho de ...-...-2025 foi prorrogada a medida por mais 3 meses.
Cumpre realçar que a visada, apesar de não assumir a qualidade de sujeito processual por não ser arguida, sempre poderá reagir à medida através do recurso ou mediante o expediente previsto no artigo 49º nº 4 da Lei 83/2017.
Apesar estar em causa uma medida de prevenção que não se inclui no catálogo do Código de Processo Penal, esta medida de suspensão de execução de operações bancárias, jamais poderá vista, como muitas vezes sucede e como sucedeu no caso concreto durante um ano, como não justificando a concessão de direitos ao visado.
Na verdade, o facto de a medida ser decretada numa fase muito embrionária do processo, exigir um grau de indiciação muito inferior e ser aplicada em momento muito anterior à constituição como arguido, não deixa de ser uma medida restritiva de direitos fundamentais protegidos constitucionalmente, como é o direito à propriedade privada e o direito à presunção de inocência.
Precisamente por se tratar de uma medida restritiva de direitos fundamentais é que o legislador, ciente dessa restrição e consciente das garantias de defesa previstas na Constituição e na Diretiva 2014/42/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime, adotou as medidas necessárias para assegurar que as pessoas afetadas pelas medidas previstas na Lei 83/2017 tenham acesso a vias de recurso efetivas e a um julgamento equitativo e para defender os seus direitos. Para o efeito, fez consagrar, como sobressai do artigo 49º nº 3 e 4 da citada Lei, a obrigação de notificação à pessoa em causa após a sua execução, bem como concedeu ao visado o direito de suscitar a revisão e a alteração da medida.
Essa comunicação, para surtir o efeito pretendido e dar concretização prática aos direitos constitucionais de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva – artigo 20º da CRP, terá de incluir, pelo menos em forma resumida, o fundamento ou os fundamentos de tal decisão, não se bastando, como ocorreu no caso concerto, com a mera informação da ocorrência da suspensão e do número do inquérito criminal.
Há que ter presente que a visada, por não ser arguida, em regra, não goza de direitos processuais, nomeadamente o direito de consultar o processo e depois porque o processo permanece, quase sempre, em segredo de justiça até ao fim dos prazos máximos do inquérito, podendo chegar aos 18 meses.
Na verdade, o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva é, desde logo, um direito fundamental, com assento constitucional nos artigos 20.º e 268.º da CRP e constitui uma garantia imprescindível da proteção de direitos fundamentais, não só contra terceiros, mas também contra o próprio Estado, sendo, por isso, inerente à ideia de Estado de direito.
É certo que na fase de inquérito o contraditório, atento o facto de estar em causa um outro valor igualmente de dimensão constitucional, que é a realização da justiça, está sujeito a uma grande compressão. Em todo o caso, impõe-se, sobretudo quando são tomadas decisões restritivas de direitos fundamentais, a adoção de soluções de concordância prática, por forma a evitar que não resulte o sacrifício unilateral de nenhum dos valores em conflito. O valor da Justiça, o combate e a perseguição aos movimentos financeiros de proveniência ilícita, designadamente transferências de dinheiro, os fenómenos do terrorismo internacional e da criminalidade organizada e transnacional, apesar de assumirem valores de grande relevância e justificarem, plenamente, a imposição de um sacrifício acrescido ao visado, não são valores absolutos.
Ora, uma dessas soluções é, seguramente, comunicar, em tempo útil, ao visado da medida de suspensão de operações bancárias que a medida foi tomada e quais os fundamentos da mesma. Somente na posse destas informações é que o mesmo estará em condições de reagir, pela via de recurso ou por requerimento ao processo, contra a decisão que lhe restringiu um direito fundamental.
Cumpre realçar que a aplicação do segredo de justiça, que constitui um desvio à regra da publicidade, não é absoluto e jamais poderá sobrepor-se a outros princípios igualmente com proteção constitucional, como é o caso do contraditório, do direito ao recurso, acesso à justiça e a um processo justo e equitativo, nas situações em que são proferidas medidas restritivas de direitos fundamentais, como é o caso concreto, e jamais poderá servir de justificação, como resulta do despacho recorrido, para não cumprir uma imposição legal (artigo 49º nº 3 da Lei nº 83/2017) de notificação da decisão judicial e respetivos fundamentos que confirmou a decisão de suspensão temporária proferida pelo Ministério Público.
Recorda-se, uma vez mais, que essa notificação, para dar plena eficácia aos direitos constitucionais de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, não pode limitar-se a dar conta ao visado de que, à ordem dos presentes autos, os movimentos a débito na conta bancária em causa se encontram suspensos, pelo período de três meses. Na verdade, uma informação desacompanhada, ainda que de forma sucinta, dos fundamentos de facto e de direito, que é no fundo aquilo que é exigido a todos os atos decisórios (artigo 97º nº 5 do CPP e 205º da CRP), neutraliza qualquer exercício de reação judicial por parte do visado.
Resulta dos autos, conforme a dinâmica processual acima descrita, que em ...-...-2023 foi aplicada uma medida restritiva de direitos fundamentais da recorrente sem que esta, apesar de obrigação legal expressa, tivesse sido notificada da mesma.
Mais resulta que a medida de suspensão de operações bancárias foi sendo sucessivamente renovada, pelo período de 3 meses, sem que, até ...-...-2024, a recorrente tivesse sido notificada, ou seja, só após praticamente decorrido o período de duração máxima da medida (14 meses) é que o tribunal recorrido determinou a notificação da recorrente, sendo que esta decisão só ocorreu devido à intervenção da própria recorrente.
Na verdade, a recorrente deveria ter sido notificada do despacho de ...-...-2023, logo que decorresse o diferimento de 30 dias (cfr. o art.º 49.º, n.º 3, 4 e 7 da Lei n.º 83/2017, de 18/08), sendo que tal omissão configura uma irregularidade a arguir perante o Tribunal a quo, como efetivamente ocorreu e sobre o qual incidiu o despacho ora em recurso.
Perante essa irregularidade deveria o ato irregular ser reparado através da notificação obrigatória da decisão, acompanhada da respetiva fundamentação, que determinou a suspensão da operação bancária, bem como as suas sucessivas prorrogações.
Aquando da prolação do despacho que impõe as medidas em causa o qual terá de ser, por se tratar de um ato decisório, fundamentado – artigo 97º nº 5 do CPP e 205º da CRP, o juiz terá que verificar se existem indícios/suspeitas da prática de um crime de branqueamento de capitais ou de terrorismo, atenta a proveniência ilícita dos fundos e por forma a evitar que estes se dispersem na economia legítima enquanto se apura a verdade dos factos.
Conforme consta do normativo em causa, todos os atos decisórios têm de ser fundamentados, entendendo-se de forma expressa que a fundamentação tem que conter a especificação dos motivos de facto e de direito subjacentes à decisão proferida, enquanto condição essencial para a produção de efeitos dos atos decisórios.
A necessidade de fundamentação das decisões (de facto e de direito) é, assim, uma exigência constitucional num verdadeiro Estado de Direito, permitindo o controlo da sua legalidade pelos seus destinatários e, sobretudo, a sua sindicância pelos tribunais superiores, evitando-se, desse modo, qualquer livre arbítrio do julgador/decisor.
A necessidade de fundamentação dos atos decisórios, em particular dos atos que restringem direitos fundamentais, como é o caso concreto, entronca-se no próprio direito de defesa da pessoa afetada pelo ato, pois somente explicitando-se e tornando-se cognoscíveis as concretas razões pelas quais se determina uma certa restrição de um direito fundamental poderá facilitar-se ao visado o uso dos meios de reação previstos na lei. A fundamentação é, portanto, sinónimo de exteriorização do discurso jurídico no qual a autoridade judiciária baseou a sua decisão, cognoscibilidade dos elementos e fundamentos em que o decisor assentou a sua decisão de autorizar o ato de ingerência e na forma como o concedeu.
Tendo em conta o caso em apreço, a decisão judicial que confirmou a medida de suspensão das operações a débito, foi a decisão judicial de ...-...-2023, com os fundamentos que aí constam, bem como na remessa feita para a promoção do MP, sendo que as sucessivas decisões de prorrogação remetem para esse despacho inicial.
Com feito, sobressai do despacho ...-...-2024, em termos de fundamentação, o seguinte: “e atentas as razões invocadas na douta promoção que antecede, assim como no despacho que confirmou a suspensão temporária de operações que se dão por integralmente reproduzidas”, o que demonstra, de forma bem evidente, que a fundamentação do despacho, em termos de facto e de direito, seu deu por adesão à promoção do MP e ao despacho de ...-...-2023, sendo que este despacho, em termos de fundamentação, aderiu ao conteúdo da promoção do MP.
Sobre a possibilidade e conformidade constitucional de efetuar a fundamentação de uma decisão judicial por simples remissão para o conteúdo da promoção do MP, o Tribunal Constitucional já se pronunciou, mais do que uma vez, no sentido de não ser inconstitucional a interpretação normativa do artigo 97º nº 5 do CPP, no sentido de ser admitida tal forma de fundamentação, por não se verificar uma violação dos princípios constitucionais da fundamentação e da reserva de juiz consagrados nos artigos 205º e 32º nº 4 da CRP, desde que este procedimento não suscite dúvidas sobre se o mesmo transmite um juízo autónomo e pessoal do seu subscritor e não um simples “ir atrás” do Ministério Público (cfr. Acs. do Tribunal Constitucional nºs 223/98, 189/99, 396/2003, 391/2015 e 684/15).
Deste modo, o conteúdo da promoção do MP relativa ao despacho do JIC de ...-...-20 faz parte integrante deste despacho e por constituir a fundamentação deste mesmo despacho terá, necessariamente, que ser notificado à recorrente só assim se dando integral cumprimento à obrigação legal prevista no artigo art.º 49.º, n.º 3, 4 e 7 da Lei n.º 83/2017, de 18/08.
Conforme já dissemos, estando os autos em segredo de justiça e não podendo a recorrente aceder ao processo, somente perante um efetivo conhecimento dos fundamentos de facto e elementos probatórios que justificaram a decisão do JIC em restringir aquele concreto direito fundamental é que estará assegurada a finalidade da notificação e garantido o pleno exercício do direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva.
Pelo exposto, perante a omissão de notificação resta concluir pela procedência do recurso e revogação do despacho recorrido.
Em face do agora decidido fica prejudicado o conhecimento da inconstitucionalidade suscitada pela recorrente.

IV – Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pela sociedade ... e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido, determinando-se que a recorrente seja notificada do despacho do JIC de ...-...-2023 acompanhado da promoção do MP que antecedeu esse despacho e serviu de fundamento ao mesmo.
Sem custas
Notifique

Lisboa, 25 de setembro 2025
Ivo Nelson Caires B. Rosa
Marlene Fortuna
Paula Cristina B. Gonçalves
(Elaborado e integralmente revisto pelo relator)